aspectos sintático-semânticos na leitura e na produção de

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 32 – As interfaces da gramática.
ASPECTOS SINTÁTICO-SEMÂNTICOS
NA LEITURA E NA PRODUÇÃO DE TEXTOS
André VALENTE1
RESUMO: A gramática não é um fim em si mesmo, mas sim um meio para se chegar a
um fim, aliás, dois: ler e escrever melhor. Dentro da tripartição da gramática tradicional
– Fonética, Morfologia e Sintaxe –, é na última parte que mais se percebe a importância
do domínio da Gramática para a leitura e produção de textos. Quem domina a sintaxe –
as estruturas sintáticas – da língua invariavelmente lê e escreve melhor.
Da sua origem filosófica, a partir das idéias de Platão e Aristóteles utilizadas pelos
primeiros gramáticos gregos, até a supervalorização da dicotomia certo x errado na
gramática normativa, houve períodos de destaque para aspectos descritivos e semânticos
no desenvolvimento de estudos gramaticais. Entendo que o estudo da interface de
sintaxe e semântica possibilita rever propostas desenvolvidas, nas últimas décadas, na
prática didático-pedagógica do Brasil.
Um ponto que merece revisão é a relação semântico-discursiva decorrente da função
sintática do adjetivo, segundo pesquisas de Joaquim Fonseca e Carlos Franchi. Elas
trazem importantes contribuições para se ler, numa abordagem sintático-semântica,
frases do tipo “O guarda florestal encontrou o animal morto”. O trabalho de Franchi,
junto com Esmeralda V. Negrão e Ana Lúcia Müller, explora, entre outros aspectos, a
duplicidade de sentido no emprego do adjetivo e ressalta a necessidade de se recorrer à
construção de cenários para clarificar as relações sintático-semânticas, como exige a
frase “Os alunos acharam o caminho fácil”.
Já o de Fonseca explora as duas vias por que se realiza a atualização do adjetivo no
enunciado: a atribuição e a predicação. Ao descrever as funções sintáticas e funções
semânticas do adjetivo em Português, tem por meta clarificar alguns aspectos centrais
do seu comportamento no discurso, como se pode observar em “O rapaz tomou a sopa
quente” e “As sucessivas agruras tornaram o rapaz amargo”.
Aos suportes teóricos supracitados, pode-se acrescentar o que aborda a posição do
adjetivo na cadeia sintagmática. A análise do emprego do determinante em textos
literários ou midiáticos permitirá tirar conclusões sobre a sua expressiveidade
contextual, como se pode observar na passagem machadiana “Eu não sou propriamente
um autor defunto, mas um defunto autor” ou na fala do presidente venezuelano Hugo
Chávez: “Não tenho presos políticos, mas políticos presos”.
A proposta aqui apresentada parte da premissa de que a Gramática, desde a sua origem
filosófica, não é algo menor, mas sim uma base essencial para ler e produzir textos. Para
tanto, busca explorar os efeitos de sentido decorrentes dos processos sintáticosemânticos na interação, com vistas a uma contribuição para o ensino da Língua
Portuguesa.
1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Departamento LIPO. Rua São Francisco
Xavier, 524, 11º andar, sala 11.144, bloco F. CEP 20.550-900. Rio de Janeiro, Brasil.
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PALAVRAS-CHAVE: gramática; sintaxe; semântica; interação.
A combinação da sintaxe com a semântica é fundamental para a compreensão de
simples frases a textos mais complexos. Com base em tal premissa e em aspectos
discursivos e pragmáticos da linguagem, pode-se perceber o duplo sentido de frases em
que a ambiguidade é utilizada como recurso linguístico: passa de defeito a virtude. Para
os casos aqui estudados, terão destaque as noções de contexto e de construção de
cenários. Observem-se as seguintes passagens:
(1) MADONNA ENCONTRA JESUS (revista VEJA, 31/12/08)
(2) SOU FISCAL DO SARNEY (plástico em carros brasileiros, julho/2009)
(3) A GRIPE SUÍNA FOI TRAZIDA PELOS PORCOS CAPITALISTAS (frase
dita por líder sindical dos professores, em manifestação de rua)
(4) EU NÃO TENHO PRESOS POLÍTICOS, MAS POLÍTICOS, PRESOS.
(Hugo Chávez)
Na primeira, o título da matéria sugere a conversão da cantora pop americana ao
catolicismo. O subtítulo “A cantora conhece biblicamente o modelo brasileiro”, o lead e
o sublead irão desfazer, metalinguisticamente, o duplo sentido. Tal procedimento
também ocorre no seguinte anúncio na mesma revista:
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A expressão de caráter polissêmico – capriche no português – é explicitada no
texto e na imagem que compõem o anúncio. Desfaz-se a polissemia com as indicações
de que não se quer vender uma gramática, mas sim um azeite português.
Já na segunda passagem, a decodificação da mensagem deve levar em conta o
contexto, assim definido na Gramática da Língua Portuguesa (Mateus et al, 2003, p.81):
O contexto, ou situação, onde tem lugar um dado comportamento
linguístico constituído por um enunciado, contribui para a
interpretação desse mesmo enunciado. O conhecimento ou
desconhecimento do contexto, ou dos princípios socioculturais que o
regulam, numa dada comunidade, actua selectivamente sobre o que se
diz e pode ou deve ser dito e restringe ou especializa a interpretação e
compreensão do que é, facto, dito. Neste sentido, o contexto recruta da
parte do falante um conjunto de pressupostos ou crenças necessárias
para que a interpretação dos enunciados se faça.
Na realidade política atual, “Sou fiscal do Sarney” tem leitura distinta da mesma
frase nos anos 1980. Naquela época, Sarney era o Presidente com grande respaldo
popular por ter instituído o plano cruzado, que congelava os preços dos alimentos.
Havia, então, orgulho em ser fiscal do Sarney. Em 2009, Sarney, o Presidente do
Senado, foi acusado de inúmeras irregularidades. Ser fiscal do Sarney corresponde a
“ser fiscalizador do Sarney”. Se no primeiro caso, Sarney era agente da fiscalização por
meio dos cidadãos que o apoiavam, no segundo tornou-se o objeto de fiscalização.
Na 3ª passagem, o sintagma “porcos capitalistas” tem como 1ª leitura a ideia
mais corrente consagrada no jargão político de manifestantes que buscam seduzir seu
auditório. Em tal caso, “capitalistas” é o determinado e “porcos” o determinante. No
entanto, pelas explicações dadas para a origem da gripe, pode-se admitir o
entendimento de “porcos” como elemento nuclear do sintagma.
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Na 4ª passagem, fica nítida a alternância entre determinado/substantivo e de
determinante/adjetivo, dado que Hugo Chávez, para se defender de acusações contra o
seu governo, afirma que não tem “presos que são políticos”, mas “políticos que estão
presos”. Cabe observar que o sintagma “presos políticos”, cristalizado, funciona quase
como um substantivo composto, enquanto “políticos presos” surpreende pelo inusitado,
gera ruptura, provoca estranhamento. Daí decorre o efeito de sentido.
Observem-se agora as seguintes passagens:
(5) O GAROTO TIROU OS BOTÕES DOS BOLSOS TRASEIROS DA CALÇA
(6) OS ALUNOS ACHARAM O CAMINHO FÁCIL
(7) ENCONTREI O ANIMAL MORTO
São frases que admitem dupla leitura: (5) e (7). Para a plena compreensão delas,
faz-se necessário recorrer à construção de cenários, como observa Franchi et al (2006,
p.108) para a frase (6), à qual atribuirá, posteriormente, uma terceira leitura.
A primeira estratégia utilizada é a de construir dois ‘cenários’ que,
contextualizando essa oração, levam à escolha entre uma ou outra
interpretação. Nesse caso, estamos utilizando um fato conhecido da
linguagem: embora as expressões das línguas naturais sejam muitas
vezes ambíguas e vagas, sabemos que, em uma situação específica de
discurso, em um contexto apropriado, conseguimos interpretá-las de
modo bastante preciso. Assim, construindo um cenário apropriado,
podemos fazer aparecer um ou outro sentido que desejamos discutir.
Utilizar diferentes cenários não passa de um procedimento, de uma
técnica para conseguir esclarecer não somente diferentes situações de
uso das expressões mas, sobretudo, diferentes situações que as
expressões descrevem. Muitas vezes, no caso de expressões ambíguas,
interpretamo-las em um sentido e dificilmente nos damos conta de
uma outra interpretação possível. Precisamos, por isso, colocar
expressões que estudamos sob diferentes focos ou sobre diferentes
fundos.
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Franchi et al (op. cit) imaginaram diferentes cenários para (5):
- na CENA I, o garoto não parou de mexer em cada prega e em cada bolso, de
desabotoar e abotoar cada peça. Não descansou enquanto não retirou “os botões dos
bolsos traseiros da calça”.
- na CENA II, o garoto só poderia participar do jogo de botões se tivesse um
time. Perguntaram-lhe se possuía e o garoto tirou “dos bolsos traseiros da calça os
botões”.
Os autores concluem que:
As diferenças na análise sintática de (5), que correspondem às
diferenças de interpretação, são expressas pela análise de dos bolsos
traseiros da calça
como adjunto adnominal de botões na
interpretação que corresponde à cena II, dos bolsos traseiros da calça
como adjunto adverbial de tirar (p. 109).
Já em (6), as diferenças na análise sintática – fácil como predicativo do objeto
direto ou adjunto adnominal – correspondem às diferenças de interpretação para
cenários distintos que desfazem a ambiguidade de “os alunos acharam o caminho fácil”.
Na construção de diferentes cenários, os autores destacam:
- na CENA I, os alunos, para chegarem ao sítio do professor, receberam um
mapa contendo instruções. Apesar de o caminho ser difícil, por um ziguezague de
estradinhas secundárias, os alunos acharam o caminho fácil.
- na CENA II, há diferentes trajetos, no parque municipal, para os que praticam
caminhadas e corridas, o primeiro, mais curto, é fácil de percorrer e vem marcado com
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faixas amarelas, enquanto o segundo, mais difícil, apresenta marcas vermelhas. Logo
que chegaram, procurando pela cor das faixas, os alunos acharam o caminho fácil que
deviam percorrer.
Na cena I, pode-se compreender que “os alunos consideraram o caminho fácil” e
“fácil”, predicativo do objeto direto, é entendido como a opinião ou avaliação do
caminho pelos alunos. Na Cena II, pode-se compreender que “os alunos encontraram o
caminho fácil” e “fácil”, adjunto adnominal, especifica o caminho que foi encontrado
pelos alunos, em oposição ao caminho difícil.
Os autores remetem a uma tripla ambiguidade (sic) em relação a (6). Afirmam
que “de fato, a gente poderia estar querendo dizer que foi fácil, para os alunos, encontrar
o caminho” (p. 128).
Interpretação III
Os alunos acharam/encontraram facilmente o caminho.
Lembram que as distinções entre adjetivos e advérbios e, correspondentemente,
entre adjunto adnominal e adjunto adverbial baseiam-se em critérios morfológicos e
relacionais ou funcionais. O adjetivo, palavra variável em gênero e número (critério
morfológico), modifica nomes substantivos com que concorda (critério relacional). O
advérbio, palavra invariável (critério morfológico), modifica um verbo com que se
relaciona (critério relacional). Como adjetivo/adjunto adnominal, “fácil” forma um todo,
um substantivo complexo, um constituinte nominal: “Os alunos acharam o [caminho
fácil]. Como advérbio/adjunto adverbial, “fácil” depende do verbo “achar” ou do
sintagma verbal “achar o caminho” e com este se compõe. “Os alunos [acharam o
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caminho] fácil]. Destacam que, se usarmos o critério morfológico com a forma plural
“os caminhos”, somente haveria o plural “fáceis” para o adjetivo/adjunto adnominal:
Os alunos acharam os caminhos fáceis
Os alunos acharam os caminhos fácil/facilmente
Entendo que não é tão tranquilo aceitar “fácil” como advérbio, principalmente
com a frase pluralizada, dado que a frase gera estranhamento e o usuário tenderia a
utilizar a forma adverbial.
Há autores, como Bechara (1999), que, no estudo da adverbialização de
adjetivos, ressaltam que muitos destes, permanecendo imóveis, na sua flexão de gênero
e número, podem passar a funcionar como advérbios, em “Fala claro na hora da sua
defesa” e “Compraram caro a fazenda”. Bechara conclui que “o critério formal de
diferenciação das duas classes de modificador (adjetivo: modificador nominal;
advérbio: modificador verbal) é a variabilidade do primeiro e a invariabilidade do
segundo (p. 294), como em “Eles vendem muito cara a fruta” (adjetivo) e “Eles vendem
caro a fruta” (advérbio).
Pode-se perceber que sofre algumas restrições o reconhecimento de adjetivo
funcionando como advérbio. Ao tratar das funções sintáticas e funções semânticas do
adjetivo, Fonseca (1993, p. 31) faz a seguinte ressalva:
Não considerarei, naturalmente, neste estudo o uso de adjectivos como
advérbios. Os adjectivos que se prestam a este uso (e que devem,
então ser tomados como advérbios, e já não como adjectivos: reparese em que não se verifica acordo – em gênero e número – entre essas
formas e uma base substantival) não são muito numerosos, e a sua
ligação a um predicado verbal obedece a restrições mais ou menos
fortes, ilustro sumariamente: rente (cortar rente), duro (trabalhar
duro), limpo (jogar limpo) exemplificam casos de combinatórias
fortemente restringidas; alto, baixo, claro combinam-se
genericamente com verbos de actividade verbal (falar, dizer...): rápido
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apresenta uma larga combinatória com variados tipos de verbos de
actividade e de movimento...
No
que respeita à distinção
entre adjetivo/adjunto
adnominal e o
adjetivo/predicativo do objeto direto, cabem as seguintes considerações:
a)
como a pluralização da frase “Os alunos acharam os caminhos fáceis”
não serve para reconhecer a função sintática do adjetivo, o uso da
paráfrase adquire especial importância. Assim, em “os alunos
encontraram os caminhos fáceis” e “os alunos consideraram os
caminhos fáceis”, o adjetivo funciona, respectivamente, como adjunto
adnominal e predicativo do objeto direto. Tal recurso também se
aplica à frase no singular;
b)
a inversão da voz verbal constitui outro recurso importante para a
distinção. Se o adjetivo acompanhar o substantivo, será adjunto
adnominal; se ficar separado, predicativo do objeto direto. Observemse as frases, com o adjetivo “excelente”, nas vozes ativa e passiva:
1ª) Comprei um livro excelente / Um livro excelente foi comprado por mim.
2ª) Considerei o livro excelente / O livro foi considerado excelente por mim.
Na 1ª, o adjetivo excelente é adjunto adnominal; na 2ª, predicativo.
c)
há verbos transitivos diretos que exigem um predicativo para o
complemento verbal. Entre eles, destacam-se “considerar”, “julgar”,
“nomear”, “eleger”, “tornar” e “fazer” (= tornar). Recebem
denominações diferentes: transobjetivos (César Guilmar), judicativos
(Carlos Franchi), transitivos predicativos (Joaquim Fonseca). A
necessidade do predicativo do OD é óbvia em frases como “O filho
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fez o pai feliz”. Fonseca destaca que a ausência do predicativo afeta a
boa formação do enunciado, o que se pode constatar em “A falta de
água tornou os campos estéreis”, ou gera outro sentido, como em “O
Zé considera os seus vizinhos inconvenientes/O Zé considera os seus
vizinhos (tem consideração). Azeredo (2008) distingue verbos
transitivos diretos (TD) em “levar a roupa” e “resumir a história” de
verbos transitivos diretos e predicativos (TDP), em “nomear o
funcionário chefe da seção” e “considerar o candidato preparado”.
Em (7), a ambiguidade também ocorre visto que morto pode funcionar como
adjunto adnominal ou predicativo do objeto direto. Para “Encontrei o animal morto”,
Guilmar (1994) observa que “em muitos casos apenas o contexto nos permitirá
estabelecer a diferença” (p. 150). O autor, assim como Mira Mateus (op. cit.) fala de
contexto ou situação, o que corresponde à construção de cenários proposta por Franchi
et al. Guilmar sugere os seguintes contextos:
- no contexto I, o chefe de uma reserva florestal, onde vivem animais selvagens,
avisa pelo rádio a um guarda que deve procurar por uma onça, provavelmente ferida por
um caçador clandestino. Passado pouco tempo, ouve-se a comunicação do guarda:
encontrei o animal morto”. Aqui ocorre a constatação de um estado – morto – em
determinado momento. O adjetivo funciona como predicativo;
- no contexto II, o chefe avisa ao guarda que deve procurar um animal morto, já
que aves de rapina sobrevoam determinado ponto. Após seguir as indicações, o guarda
comunica: “Encontrei o animal morto”. Aqui o estado de morto já pertencia ao animal,
independente da ação: o adjetivo é adjunto adnominal (p. 150).
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Cabe destacar que, para o reconhecimento da função sintática do adjetivo,
Guilmar trabalha com a noção de tempo. O adjunto adnominal “indica uma qualidade,
estado ou condição apresentados como pertencentes a esse substantivo, independente de
qualquer noção de tempo” (p. 149). Em “Encontrei ali uma porta enorme”, a qualidade é
apresentada como pertencente à porta, anterior e posterior ao fato de encontrá-la. Já o
predicativo é, para o autor, a atribuição ou constatação de uma qualidade ou condição
em um momento dado. Assim, quando o adjetivo exerce a função de predicativo, “a
atribuição feita ao substantivo vem cronologicamente marcada, ou seja, será a
qualidade, estado ou condição em um determinado tempo” (p. 149), como ocorre em
“Encontrei a porta aberta” (a porta não estaria sempre aberta, mas no momento em que
a encontrei). Guilmar alerta, a seguir, que se pode imaginar um contexto em que alguém
deveria localizar em um prédio, entre dezenas de portas, uma única aberta e, em
seguida, comunicar a localização por interfone. Surgiria, então, outra frase com
entoação distinta da primeira.
A distinção proposta por Guilmar corresponde ao par opositivo essencialidade,
para adjunto adnominal, e eventualidade, para predicativo.
No primeiro caso, a qualidade/estado/condição é inerente ao ser/substantivo e,
portanto, anterior à ação. No segundo, é uma atribuição ao ser/substantivo e, por
conseguinte, posterior à ação. Em “Adquiri um quadro belíssimo”, o quadro não passou
a ser belíssimo depois que o adquiri, mas a minha aquisição ocorreu pelo fato de ele ter
tal qualidade. Em “Considerei o livro excelente”, a qualidade excelente é eventual,
atribuída em dado momento, após a minha leitura.
Quando Guilmar sugere outra leitura, em novo contexto, para “Encontrei a porta
aberta”, remete-nos, em verdade, para fatores pragmáticos e aspectos discursivos. Sobre
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tal procedimento, Franchi et al fazem importante ressalva para a tripla ambiguidade
(sic) de “Os alunos acharam o caminho fácil”, a qual não teria nada a ver com aspectos
sintáticos, estruturais, da oração, “mas se resolveria exclusivamente em termos
discursivos ou pragmáticos ou com recurso a uma diferença lexical, dicionarizável” (p.
129).
O uso de contextos diferentes, com dois ou mais cenários, leva a interpretações
variadas. O problema é que cada contexto “é único e diferente dos muitos contextos
possíveis para o emprego de uma expressão” (p.129). Como cada ocorrência de uma
expressão, no seu contexto, “é também um acontecimento singular”, os autores
destacam que
A especificidade de cada contexto linguístico e extralinguístico de
uma expressão em uso e os efeitos de cada ocorrência dessa expressão
são extremamente relevantes para a análise do discurso, que envolve
as condições de uso e de produção. Mas, uma teoria gramatical visa a
descrever os aspectos generalizáveis, e não individuais, da construção
das expressões: a estabelecer princípios e regras que valham para
todas as ocorrências de uma oração (para uma oração-tipo) e não para
sua interpretação em um evento discursivo particular (pp. 129-130).
À guisa de conclusão, comentarei, com base em elementos linguísticogramaticais e em aspectos discursivos/pragmáticos, as seguintes orações:
(8) Marina Silva deixou o governo preocupada.
(9) Marina Silva deixou o governo preocupado.
(10) Frei Beto deixou o governo preocupado.
Pretendo, nas análises a seguir, retomar pontos relevantes deste artigo com o
intuito de colaborar com reflexões teóricas para as práticas de natureza didáticopedagógica.
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Em (8), não há ambiguidade uma vez que o caráter seletivo da concordância
nominal atribui o estado de preocupação à Ministra Marina Silva, que se afastara do
governo. Observe-se a seguinte particularidade sintática: o verbo é transitivo direto e a
oração tem predicativo do sujeito.
Acerca de construções desse tipo, Fonseca (op. cit.) registra que “similar
predicação secundária (do sujeito orientada para o sujeito) é ilustrada nos enunciados
abaixo” (p. 18):
O Zé tomou os remédios contrariado.
A Ana recebeu as visitas sorridente.
O Zé ouviu as notícias despreocupado.
Fonseca ressalta que “tais verbos, conjuntamente com o seu complemento
objecto, realizarão o predicado primário do enunciado, cabendo ao adjectivo a
predicação secundária, facultativa – que é auxiliada por esses mesmos verbos” (p. 18).
Em (9), também não há ambiguidade devido ao caráter seletivo da concordância
nominal. O estado de preocupação só pode ser atribuído ao “governo”. O adjetivo
funciona como predicativo do objeto direto, o que se pode atestar com apoio em alguns
dos recursos anteriormente sugeridos:
- com uso da paráfrase, “Marina Silva fez com que o governo ficasse preocupado”
- o estado de preocupação não é inerente ao “governo”, mas decorre das atitudes de
Marina Silva: não há essencialidade e, sim, eventualidade;
Em (10), verifica-se o único caso de ambiguidade pelo fato de o adjetivo
preocupado estar em referência ao sujeito (Frei Beto) ou ao objeto direto (o governo). A
posição do adjetivo no sintagma contribui para a existência de uma frase ambígua. A
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mudança de posição dos termos no sintagma, combinada com sinais de pontuação,
torna-o bastante claro nas seguintes opções:
- Frei Beto, preocupado, deixa o governo.
- Preocupado, Frei Beto deixa o governo.
A simples mudança de posição em “Frei Beto deixa preocupado o governo”
ainda permitiria a análise do adjetivo como predicativo do sujeito ou predicativo do
objeto direto.
Finalmente, convém destacar que as noções de mundo compartilhado,
conhecimento de mundo e fatores extralinguísticos ajudam nas interpretações. Marina
Silva e Frei Beto, no Brasil, participaram da construção do Partido dos Trabalhadores
(PT), da eleição do Presidente Lula e colaboraram, direta ou indiretamente, com o
governo eleito em 2002 e reeleito em 2006. Nomes de grande destaque nos cenários
políticos nacional e internacional, Marina e Frei Beto deixariam qualquer governo
preocupado caso dele se afastassem, quer pela repercussão de suas saídas, quer pela
possibilidade de se lhe fazer oposição, o que veio a ocorrer com Marina Silva, em 2009,
pré-candidata à Presidência da República nas eleições de 2010.
Fiz a síntese dos dois percursos políticos com o propósito de relembrar como
estão imbricados os elementos linguísticos e os aspectos discursivos nas análises dos
fatos da língua.
Bibliografia
AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo:
Publifolha, 2008.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
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ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 32 – As interfaces da gramática.
FONSECA, Joaquim. Estudos de Sitaxe-Semântica e Pragmática do Português. Porto:
Porto Editora, 1993.
FRANCHI, Carlos et al. Mas o que é mesmo “GRAMÁTICA”? São Paulo: Parábola,
2006.
GUILMAR, César. Aulas de Português. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994.
MATEUS, Maria Helena Mira et al. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial
Caminho, 2003
278
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