Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces, no 40, p. 13-16, 2010 13 Entrevista com Danilo Marcondes: “A LINGUAGEM É A FORMA MESMA DE INTERMEDIAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS Por Fernando Afonso de Almeida E stamos honrados em poder abrir o número 40 do Caderno de Letras com sua entrevista, não apenas devido ao evidente reconhecimento de seus trabalhos pela academia, mas também, pela posição um tanto singular que o senhor ocupa no cenário das pesquisas em ciências humanas. 1) Durante o período clássico a linguagem e a filosofia andavam de mãos dadas. Como o senhor vê atualmente a relação entre filosofia e linguagem? Teria o advento da linguística imposto um maior distanciamento entre elas? Não concordo com a afirmação de que durante o período clássico linguagem e filosofia andavam de mãos juntas. Platão questiona a importância da linguagem devido à convencionalidade do signo e ao uso retórico do discurso pelos sofistas. Já no início da Modernidade, Descartes considera as palavras como fontes de erro. Os filósofos do período clássico dão um valor central ao conhecimento e consideram que é a mente e não a linguagem o meio pelo qual se conhece o real. Portanto, diria, que é só no século XX com o “linguistic turn” que essa aproximação maior se dá. A linguagem se tornou importante para a filosofia sobretudo desde o início do século XX, em várias correntes filosóficas, devido à crise da filosofia idealista e da concepção de idéias como representações. O desenvolvimento da lingüística e das ciências da linguagem em geral desde o final do século XIX pode ser considerado parte deste processo. Esse o sentido do “linguistic turn”. 2) Qual seria a principal vocação da linguagem? Representar? Fazer? Expressar? 14 Almeida, Fernando Afonso de. Entrevista Danilo Marcondes Como minha posição se vincula à pragmática, sobretudo às concepções de Wittgenstein de jogo de linguagem e de Austin de ato de fala, segundo essa visão, a linguagem é performativa, é uma forma de ação, de “fazer coisas com palavras” na expressão de Austin. 3) Haveria uma espécie de hierarquia entre as diferentes dimensões (linguística, social ou histórica) da linguagem? Considero que a linguagem é sempre um fato social, cultural, portanto historicamente determinado. Contudo, podemos analisá-la de um ponto de vista teórico, em busca de elementos comuns entre as diferentes línguas nos planos semântico e sintático. 4) Nas últimas décadas e, em particular, em nossos dias - marcados por grandes e inúmeras mudanças sucessivas, sobretudo por aquelas provenientes dos avanços da tecnologia – tem-se a impressão de que as ciências humanas em geral se encontram num processo de perda de prestígio e de terreno, enquanto que em outras áreas se verifica a emergência de conceitos e resultados que produzem um forte impacto social. Qual a importância das ciências da linguagem para o homem e, em especial, para o jovem atualmente? Não concordo que haja uma perda de prestígio das ciências humanas e da filosofia. Ao contrário, questões de ética, p.ex. têm sido cada vez consideradas mais importantes na discussão nas ciências, p.ex. na biologia com a bioética. Ao mesmo tempo, os estudos da linguagem desde o aspecto formal até o pragmático têm sido fundamentais também no desenvolvimento da informática (linguagens formais, interação homem-máquina) e nos meios de comunicação (linguagens da rede, internet). 5) Quais seriam as grandes questões dos estudos da linguagem nos dias de hoje? Há grandes questões p.ex. no campo das ciências cognitivas como encontramos discutidas pelo lingüista, psicólogo e filósofo norte-americano do MIT Steve Pinker. Do ponto de vista da antropologia a linguagem é igualmente central na interpretação da diversidade cultural, das experiências dos vários povos. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces, no 40, p. 13-16, 2010 15 6) De que maneira e em que medida as letras e a linguística podem enriquecer outros campos do saber? Na medida em que todos os saberes se constituem e se expressam linguisticamente, têm as suas linguagens, portanto a linguagem tem uma centralidade nesse processo. 7) Quais os territórios/espaços em que se pode perceber, de maneira mais evidente, formas regulação social pela linguagem? Seria possível um mundo estruturado sem linguagem? Na medida em que a linguagem diz respeito a significado, seria impossível um mundo estruturado sem linguagem (penso em linguagens verbais e não verbais). Como diz Lewis Carroll em Alice no país dos espelhos, o mundo seria como “a floresta escura em que as coisas não têm nomes”. A linguagem é a forma mesma de intermediação das relações sociais, nesse sentido sua importância é central. 8) Qual é o lugar da linguagem dentro do conjunto das práticas sociais? A linguagem, incluindo linguagens não verbais, é fundamental como constituidora e intermediadora das relações sociais. É através da linguagem, das várias linguagens que se constitui nossa visão de mundo e que interagimos, nos comunicamos. 9) Qual é o lugar dos estudos de linguagem dentro do conjunto das ciências? Como todas as ciências dependem de linguagem (em várias dimensões, desde o formal, p.ex. através de suas estruturas teóricas, até o comunicativo e o argumentativo), os estudos da linguagem têm uma importância central. 10) Barthes diz que o signo é algo que se repete. Sem repetição não há signo, pois ele não seria reconhecido. Que faltaria a essa afirmação para que pudesse ser considerada como uma definição do signo? 16 Almeida, Fernando Afonso de. Entrevista Danilo Marcondes Acho que o signo não é apenas aquilo que se repete, mas, sobretudo, como diz Santo Agostinho em A doutrina cristã, numa definição que se tornou clássica, “signo é tudo aquilo que remete a outra coisa”. O bater das ondas do mar na praia se repete, mas não é um signo (embora até possa vir a sê-lo). 11) Quais os passos dados pelos estudos da linguagem nas últimas décadas lhe parecem mais significativos? Sobretudo os usos que têm sido feitos de teorias da linguagem (penso na filosofia da linguagem) em outros campos do saber como as ciências cognitivas, a informática, mas também a teoria do Direito e a antropologia. 12) A que se deve o fato de, durante boa parte da vida, os indivíduos se encontrarem em processo de aprendizagem da linguagem? Seria por causa da complexidade da linguagem? Da organização social? De sua inserção em diversos tipos de atividades? Creio que o conceito wittgensteiniano de “jogo de linguagem” pode nos ajudar a responder. A linguagem consiste em um conjunto de “jogos” que aprendemos e de que nos apropriamos. Ao longo de nossa vida jogamos jogos diferentes, dependendo de nossos papéis sociais e lingüísticos. Deixamos de jogar alguns e passamos a jogar outros. Quanto mais jogos jogarmos, de quantos mais jogos nos apropriarmos, mais rica e diversificada será nossa experiência. Recebido: 12/04/2010 Aprovado: 09/06/2010