Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 CONTRIBUIÇÕES DO ENSINO DE FILOSOFIA AO ENSINO DE NATUREZA DA CIÊNCIA Caio S. Nagayoshi (Instituto de Biociências – USP) Hamilton Haddad Jr. (Instituto de Biociências – USP) Resumo A importância da filosofia da ciência no ensino de ciências tem sido amplamente defendida há décadas, sobretudo por sua contribuição para visões de Natureza da Ciência (NdC) menos ingênuas, tanto no que se refere a alunos como a professores de ciências. Contudo, as discussões sobre o tema parecem pouco informadas pela literatura existente em ensino de filosofia. Defende-se que a abordagem da NdC por meio de listas de enunciados tão gerais que podem ser considerados consensuais é empobrecedora e oculta diversos problemas que merecem ser aprofundados em sala de aula. Partindo da literatura em ensino de filosofia, propõe-se que o ensino de NdC procure não os consensos, mas aprofunde a discussão das divergências sobre problemas filosóficos na ciência. Palavras-chave: Natureza da Ciência, Filosofia da Ciência, Ensino de Filosofia Introdução A importância da presença da filosofia da ciência no ensino de ciências tem sido amplamente defendida e aceita na literatura especializada há décadas (SCHEFFLER, 1973; MATTHEWS, 1994, 2014). Atualmente, o reconhecimento de tal importância se manifesta não só na existência de inúmeros pesquisadores ao redor do mundo que se dedicam à temática, mas também de associações (como o InternationalHistory, Philosophyand Science TeachingGroup, que realiza conferências internacionais periodicamente) e de publicações específicas (como a revista Science &Education, dedicada a temas de história e filosofia da ciência no ensino). As questões relativas à filosofia da ciência se inserem no bojo de uma discussão que engloba também outras disciplinas, como a história e a sociologia da ciência, e tem recebido o 1286 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 título de “Natureza da Ciência” (NdC). Pode-se dizer que há um consenso na comunidade da área acerca do imperativo de que a educação científica tenha por objetivo não apenas fazer com que o aluno tenha domínio de certos conceitos científicos, mas que ele também apresente conhecimentos sobre a própria ciência como atividade humana, sua organização e seus processos de produção e disseminação. De fato, podemos encontrar ecos de tal consenso no texto da LDB (BRASIL, 1996, art. 36): “O currículo do ensino médio observará [...] as seguintes diretrizes:I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência...” (grifo nosso). Ainda que a expressão “significado da ciência” possa ser vaga, ela parece sugerir certa compreensão do que pode vir a ser entendido como “ciência”, apontando a necessidade de que sejam discutidos aspectos de NdC nas escolas. É nesse contexto que se insere a importância da filosofia da ciência no ensino. Muito embora seja possível encontrar questões relativas ao conhecimento do mundo natural já na filosofia de autores da Grécia Antiga, como Aristóteles, quando falamos em filosofia da ciência geralmente temos em mente autores e problemas que ganharam força desde a primeira metade do século XX até os dias atuais. É nesse período que a filosofia da ciência se institui como a disciplina que, hoje, procura abordar questões relativas à produção e validade do conhecimento científico, as características da ciência, as relações entre conhecimento científico, sujeito e mundo, entre outras. Assim, a filosofia da ciência constitui uma forma de reflexão de segunda ordem, uma vez que é uma atividade de teorização (filosófica) sobre uma atividade de teorização (científica) sobre o mundo; ou seja, uma meta-teorização (DÍEZ; MOULINES, 1999; MOULINES, 1995). Na medida em que se debruça sobre a análise conceitual da atividade científica, a filosofia da ciência contribui para as discussões sobre a NdC, tendo papel fundamental na educação científica. O artigo 36 da LDB (BRASIL, 1996) também estabelece a obrigatoriedade da disciplina de filosofia no ensino médio. A filosofia da ciência pode ser considerada um ramo ou uma especialização da filosofia, assim como a botânica pode ser considerada um ramo da biologia. Assim sendo, a filosofia da ciência é parte integrante da formação inicial do professor de filosofia, se fazendo presente nos cursos de graduação na área em todo o país. Além disso, a importância de que o ensino de filosofia propicie uma reflexão acerca da ciência na sala de aula é reconhecida nos documentos oficiais. Os PCN+ (BRASIL, 2002) enfatizam o papel integrador da filosofia, na medida em que ela não possui um objeto de estudo restrito como as demais disciplinas, abarcando-as e articulando-as. Segundo o documento, não se trata de conferir alguma forma de superioridade à filosofia, mas, antes, de 1287 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 reconhecer que ela “abre o espaço por excelência para tematizar e explicitar os conceitos quepermeiam todas as outras disciplinas, e o faz de forma radical, ou seja,buscando suas raízes ou fundamentos e pressupostos” (p. 44). Ao fazê-lo, a filosofia contribui para que o aluno reflita criticamente sobre os fundamentos da ciência como atividade humana. Nesse sentido, os PCN+ dão continuidade ao que já havia sido colocado pelos PCNEM (BRASIL, 1999), ao afirmar que “[...] a Filosofia pode, por exemplo, levar o estudante àapropriação reflexiva de conceitos, modos discursivos e problemas das CiênciasNaturais (questões de método, estruturas discursivas lógico-matemáticas, aenunciação empírico-analítica etc.) [...]” (p.56-57). Os PCN+ também propõem, sob o eixo temático “O que é Filosofia”, o tema “Filosofia, ciênciae tecnocracia”, que, por sua vez, se subdivide nos subtemas: “características do método científico”; “o mito do cientificismo: as concepções reducionistasda ciência”; “a tecnologia a serviço de objetivos humanos e osriscos da tecnocracia”; e “a bioética”. Também as OCN (BRASIL, 2006) sugerem tópicos a serem trabalhados na sala de aula na interface entre filosofia e ciências naturais, tais como: “Filosofia e ciência”; “teoria do conhecimento nos modernos; verdade e evidência; ideias; causalidade;indução; método”; “epistemologias contemporâneas; Filosofia da ciência; o problema da demarcação entre ciência e metafísica”. O ponto a ser ressaltado aqui é o fato de que a aula de ciências não é a única via pela qual a filosofia da ciência chega ao aluno da educação básica. A aula de filosofia também pode e deve ser um caminho pelo qual a filosofia da ciência encontra o aluno, contribuindo de maneira decisiva para seu conhecimento sobre NdC e, portanto, para sua educação científica. Isso fica ainda mais evidente se observarmos o fato de que, enquanto livros didáticos de ciências raramente tratam de questões filosóficas, os livros didáticos de filosofia dedicam seções inteiras à filosofia da ciência. Segundo Fávero e colaboradores (2004), os livros didáticos de filosofia mais utilizados pelos professores são Filosofando, de Maria Lúcia de Arruda Aranha eMaria Helena Pires Martins, e Convite à filosofia, de Marilena Chaui, sendo que ambos abordam a filosofia da ciência. Dessa forma, uma vez que reconheçamos a importância da filosofia da ciência para a educação científica, há que voltarmos nossa atenção para o ensino de filosofia, e buscarmos, aí, elementos para pensar como tratar questões de NdC nas aulas de ciências. Contudo, essa não tem sido a tendência na literatura internacional em ensino de ciências. Uma possível explicação seria o fato de que, em muitos países, o ensino de filosofia na educação básica é 1288 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 uma exceção. Nos países de língua inglesa, por exemplo, o ensino de filosofia em nível préuniversitário é raro, sendo oferecido em poucas escolas e geralmente em caráter optativo (UNESCO, 2007). É de se notar que muitos dos principais autores internacionais em ensino de ciências dedicados a investigações relacionadas à NdC são justamente de países de língua inglesa. Nesse sentido, o Brasil apresenta uma situação diferenciada: a presença da filosofia nas escolas tem uma tradição que antecede até mesmo a obrigatoriedade legal atual. Tal tradição deu origem a reflexões e pesquisas que levam em conta a especificidade do ensino de filosofia para crianças e adolescentes, o que se manifesta hoje na forma de grupos de pesquisa dedicados ao tema espalhados pelo país. Assim, o contexto brasileiro oferece condições privilegiadas para um diálogo efetivo entre o ensino de ciências e o ensino de filosofia, com ganhos para ambas as partes. O presente artigo procura enfatizar a necessidade de se explorar o campo de pesquisas que emerge da intersecção entre ensino de ciências e ensino de filosofia. Para tanto, apresenta-se uma reflexão teórica que representa uma contribuição concreta do ensino de filosofia para as discussões acerca da NdC na educação científica.Identifica-se uma dificuldade reconhecida na literatura no que diz respeito à forma de tratar aspectos da NdC em sala de aula e propõe-se uma abordagem oriunda do ensino de filosofia como caminho de superação. NdC: Consensos ou Divergências? Ao revisar as pesquisas sobre NdC, Lederman (1992) aponta que diversas investigações realizadas ao longo de décadas foram consistentes em reconhecer que os estudantes apresentavam visões de NdC ingênuas ou inadequadas. Tal reconhecimento estimulou o surgimento de novas linhas de pesquisa, incluindo o desenvolvimento de abordagens e estratégias que pudessem favorecer o desenvolvimento de concepções de NdC que seriam consideradas mais adequadas. Ao mesmo tempo, as concepções dos professores de ciências também foram investigadas e apresentaram resultados igualmente preocupantes. Mas, uma vez posta a necessidade de se trabalhar a NdC em sala de aula, a questão que surge é: qual seria a visão adequada de NdC a ser ensinada? Afinal, o que os alunos devem saber sobre a ciência? Ocorre que, da perspectiva da filosofia da ciência, não há, atualmente, consenso sobre tais questões. O que há são discussões em aberto sobre vários temas, com diversos 1289 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 posicionamentos filosóficos possíveis que engendram debates acirrados entre os filósofos da ciência. Ao escrever sobre um debate fictício entre quatro filósofos da ciência – um positivista, um realista, um pragmatista e um relativista –,LarryLaudan ilustra com clareza este ponto, através da voz de um de seus personagens: Se eu me dirigir a um realista como Popper e perguntar quais são os métodos da ciência, ele me dará certa lista; se eu me dirigir a positivistas como Carnap ou van Fraassen ou a um pragmatista como Peirce eu receberei outras listas de regras. Agora, o que é interessante para um observadorparticipante da tribo filosófica como eu é que todas essas listas de regras diferem drasticamente. E todas diferem do que eu poderia ler sobre „o método científico‟ no capítulo de abertura de um texto de física ou biologia de graduação.(LAUDAN, 1990, p. 95, tradução nossa) Se os filósofos da ciência se encontram divididos, e cada um nos dá uma resposta diferente para diversas questões referentes à NdC, como lidar com isso no contexto do ensino de ciências? Lederman e colaboradores (2002) reconhecem a ausência de consenso. Entretanto, segundo os autores, as divergências entre filósofos (assim como entre historiadores e sociólogos) da ciência são “irrelevantes” para a educação. A proposta é a de que tais divergências devem ser deixadas de lado, não sendo relevantes aos estudantes. Porém, os autores defendem que há certos aspectos da NdC que, tomados em certo nível de generalidade, podem ser considerados consensuais entre os filósofos da ciência. O resultado é uma lista de consensos, que Matthews (2012) viria a chamar de “os 7 de Lederman”: a ciência é empírica; a relação entre teorias e leis; o conhecimento científico é, em parte, fruto da imaginação e criatividade; o conhecimento científico é guiado (ou impregnado) por teoria; a ciência está inserida num contexto social e cultural; não há um único método científico; e a ciência é tentativa. A ideia de uma lista de consensos se mostrou amplamente influente, tornando-se, inclusive, referência para a elaboração de diversos instrumentos de buscam avaliar as visões de NdC de diversos públicos (estudantes de nível básico e superior, professores, cientistas, etc). A premissa por trás da lista de consensos (seja a de Lederman ou qualquer outra) é a de 1290 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 que seria possível elencar aspectos da NdC relevantes e acessíveis aos alunos que contornassem a dificuldade das controvérsias filosóficas por sua generalidade. Todavia, tal noção recebeu críticas de diversos autores. Matthews (2012) argumenta que uma lista de consensos tende a se tornar apenas mais uma lista de conteúdos a serem memorizados pelos estudantes. Além disso, a lista apresenta uma visão fechada de ciência. Segundo o autor, ao invés de fazer com que professores e alunos reflitam, analisem e discutam aspectos da NdC, uma lista de consensos tende a oferecer respostas prontas, desestimulando o exercício da crítica do aluno; o que, por sua vez, é justamente um dos principais motivos pelos quais se advoga a inserção da filosofia da ciência nas aulas de ciências. Também Hodson (2014) aponta que muitas das características presentes nas listas de consensos são tão gerais que não contribuem significativamente para a compreensão do que é a ciência. Dizer que a ciência é empírica, ou que ela envolve a criatividade e a imaginação, por mais que seja correto, não se restringe à ciência, sendo válido para diversas atividades humanas. Além disso, algumas distinções preconizadas por Lederman (2002), como a diferença entre teorias e leis, parecem pouco relevantes no trabalho de cientistas e, muitas vezes, também o são do ponto de vista filosófico. Também a distinção entre observação e inferência, segundo Hodson (2014) não é tão clara, dependendo do nível de sofisticação do conhecimento científico daquele que traça os limites entre uma e outra. De maneira geral, é possível dizer que os itens presentes nas listas de consensos são tão gerais que, uma vez que se investigue com maior cuidado e profundidade, começam a apresentar fragilidades e a suscitar novas questões e problemas de ordem filosófica. Por exemplo, tomemos a simples afirmação de que as teorias científicas mudam ao longo do tempo. Sem dúvida, trata-se de um aspecto da ciência de fundamental importância e com o qual o aluno deve se familiarizar. Contudo, aceitar simplesmente tal afirmação como fato, sem maiores questionamentos, nos diz muito pouco sobre a ciência. Tão logo o sujeito se põe a refletir sobre essa afirmação, surgem inúmeras questões, tais como: como se dá a mudança das teorias científicas? O que leva o cientista a abandonar uma teoria e escolher outra? Que critérios dizem qual teoria devemos escolher entre duas rivais? Ou o fato de que as teorias mudam significaria que não há uma teoria melhor do que outra? Levantar e investigar a fundo essas e outras questões é justamente a tarefa da filosofia da ciência. E é justamente no interior dessasinvestigações que surgem as controvérsias. É importante reconhecer que as controvérsias são inerentes à filosofia (em geral, e não só à filosofia da ciência). Portanto, procurar contornar as controvérsias em tais discussões significa justamente se afastar do 1291 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 exercício filosófico por excelência. As listas de consensos também deixam de incluir alguns temas que estão no centro de debates atuais em filosofia da ciência. Um exemplo é o debate realismo x antirrealismo. Embora este seja um debate acalorado entre filósofos com diversos posicionamentos possíveis, ele parece ser excluído das discussões acerca da NdC. Contribuições do Ensino de Filosofia Como apontado anteriormente, muitos dos principais autores internacionais dedicados à pesquisa relacionada à NdC no ensino são de países anglófonos, onde é rara a presença da filosofia na escola básica. No Brasil, por outro lado, onde a filosofia é disciplina obrigatória, temos a possibilidade de nos valer de uma literatura especializada que pode nos ajudar a pensar o caso particular da filosofia da ciência no ensino de ciências. O primeiro aspecto a ser considerado é a existência de divergências entre filósofos. A tentativa de mascarar as controvérsias com enunciados tão gerais que se tornam consensuais soa artificial da perspectiva filosófica. O estudo da filosofia se configura justamente como estudo de problemas filosóficos para os quais não há resposta consensual, bem como de filósofos que apresentam sistemas filosóficos independentes e, não raro, em franca oposição. A famosa colocação de Kant, “a filosofia não se ensina; ensina-se a filosofar”, implica o reconhecimento de que não há uma filosofia como um corpo teórico único e coeso. O que há são filosofias, ou sistemas filosóficos propostos por diferentes autores, o que também é reconhecido pelos PCN+ (2002). Assim sendo, ao se trabalhar com filosofia da ciência no ensino de ciências, há que se levar em consideração as controvérsias filosóficas e os posicionamentos dos diferentes autores da filosofia. Some-se a isso o fato de que um dos principais argumentos a favor da inserção da filosofia em geral na escola, bem como da filosofia da ciência no ensino de ciências, é o desenvolvimento da capacidade crítica do estudante. Ao refletir sobre a tarefa de ensinar um aluno a ser crítico, Passmore (2010)argumenta que o desenvolvimento do espírito crítico pressupõe a possibilidade de que o aluno questione aquilo que é recebido, como normas e regras. O sujeito crítico, portanto, não é simplesmente aquele capaz de realizar determinada tarefa de forma eficiente, mas é aquele capaz de colocar em questão inclusive os critérios de eficiência e até mesmo o próprio sentido da tarefa. No contexto da discussão sobre NdC, o aluno crítico não deve ser identificado com aquele capaz de apenas elencar uma série de aspectos da ciência vagos e memorizados, mas sim de questioná-los, criticá-los e, quiçá, 1292 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 elaborar sua própria visão do que é ciência e defende-la com argumentos. Passmore também acrescenta que o espírito crítico se desenvolve por meio do exercício da crítica. Isso significa que é preciso que o aluno entre em contato com os diversos posicionamentos filosóficos existentes nos debates da filosofia da ciência de modo que ele possa refletir sobre eles, para então assumir sua posição. O imperativo de se trabalhar na perspectiva das divergências, e não dos consensos, nos coloca a questão de como introduzir o aluno à filosofia da ciência. Plastino (1986) sugere que sejam trabalhadas noções de lógica antes de se introduzir questões de filosofia da ciência, uma vez que muitos dos problemas da área envolvem estruturas lógicas. Note-se que tal tema frequentemente faz parte dos programas de filosofia no ensino médio, o que pode contribuir para as discussões nas aulas de ciências. Um dos principais temas referentes à forma de se abordar a filosofia no ensino médio diz respeito ao lugar da história da filosofia. Silva (1986, p. 154) defende que a “filosofia é, de alguma maneira, a sua história”, no sentido de que a história da filosofia não deve ser entendida como o percurso que levou a um corpo teórico acabado da filosofia (já que este não existe), mas a própria filosofia são sistemas filosóficos propostos ao longo da história. Nessa perspectiva, cada sistema filosófico só pode ser realmente compreendido quando inserido em seu contexto histórico. Ao mesmo tempo, cada sistema filosófico continua atual, na medida em que o leitor do texto filosófico dialoga com o filósofo e pensa, com ele, questões atuais, como defendia Maugué (1955). Como se vê, a filosofia é, em grande medida, inseparável de sua história e, portanto, esta tem papel fundamental ao pensarmos a filosofia da ciência na escola. Silva (1986) aponta que a história da filosofia pode assumir a posição de centro ou referencial no ensino. Ao abordar a história da filosofia como centro, os conteúdos trabalhados se organizariam em torno dos filósofos em sucessão histórica. Tal abordagem facilitaria o encadeamento das ideias e as relações entre autores e temas no contexto histórico. No caso da filosofia da ciência, por exemplo, seria possível trabalhar filósofos do círculo de Viena e, em seguida, a filosofia de Popper como uma resposta àqueles. Também é possível estudar as ideias de Thomas Kuhn e, na sequência, Lakatos, o que favoreceria a compreensão da relação entre esses autores. Em contraste, é possível trabalhar a filosofia da ciência por meio de temas ou problemas filosóficos centrais. Poder-se-ia trabalhar, por exemplo, o problema da 1293 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 demarcação, ou o debate realismo x antirrealismo, entre tantos outros. Nesse caso, a história da filosofia assumiria o papel de referencial, isto é, os temas seriam discutidos fazendo-se referência aos autores da filosofia e sua participação nesse debate. Tal abordagem permitiria atacar temas de interesse e daria maior liberdade de escolhas ao professor. Há que se ressaltar, no entanto, alguns riscos de se optar por uma ou outra abordagem. Ao optar pela história da filosofia como centro, não se trata de inventariar nomes de filósofos, datas e motes filosóficos, sob a pena de se tornar a filosofia absolutamente estéril. Trata-se, antes, de dialogar com os textos filosóficos, partir das questões históricas, para pensar as questões atuais. Por outro lado, ao optar pela história da filosofia como referencial, não se trata de abdicar do diálogo com os autores, transformando a aula numa mera troca de opiniões. A referência aos filósofos é fundamental para que possamos pensar juntamente com aqueles que se dedicaram a investigar aquelas questões em profundidade. Nesse sentido, pode-se dizer que a referência aos autores da filosofia é necessária para que se possa refletir sobre os problemas filosóficos, mas não se deve limitar aos mesmos autores, de maneira a exercitar o espírito crítico, como diria Passmore (2010). Conclusão Colocamo-nos ao lado de Matthews (2012) e Hodson (2014) ao acreditar que o próximo passo na pesquisa em NdC envolve elaborar em formas filosoficamente mais informadas de se pensar sobre a ciência na sala de aula. Nessa direção, o contexto brasileiro pode oferecer grande potencial para o desenvolvimento da área, se soubermos aproveitá-lo através do diálogo com nossos colegas dedicados ao ensino de filosofia. Uma primeira contribuição do ensino de filosofia para o ensino de ciências é o reconhecimento de que não devemos buscar nos apoiar em consensos artificiais a respeito da NdC. Devemos, antes, convidar nossos alunos a analisarem criticamente as divergências, os diversos posicionamentos possíveis e os novos problemas que surgem conforme nos aprofundamos na investigação. Tal tarefa pode ser realizada tomando-se a história da filosofia da ciência como centro ou referencial. Dessa maneira, não só levaremos nossos alunos a uma melhor compreensão da ciência como atividade humana, mas, também, contribuiremos para o desenvolvimento de sujeitos críticos. 1294 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3 Referências BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em junho de 2016. BRASIL, MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio:Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília: MEC, SEMTEC, 1999. BRASIL, MEC. 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