CONTRIBUIÇÕES DO ENSINO DE FILOSOFIA AO ENSINO DE

Propaganda
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
CONTRIBUIÇÕES DO ENSINO DE FILOSOFIA
AO ENSINO DE NATUREZA DA CIÊNCIA
Caio S. Nagayoshi (Instituto de Biociências – USP)
Hamilton Haddad Jr. (Instituto de Biociências – USP)
Resumo
A importância da filosofia da ciência no ensino de ciências tem sido amplamente defendida há
décadas, sobretudo por sua contribuição para visões de Natureza da Ciência (NdC) menos
ingênuas, tanto no que se refere a alunos como a professores de ciências. Contudo, as
discussões sobre o tema parecem pouco informadas pela literatura existente em ensino de
filosofia. Defende-se que a abordagem da NdC por meio de listas de enunciados tão gerais
que podem ser considerados consensuais é empobrecedora e oculta diversos problemas que
merecem ser aprofundados em sala de aula. Partindo da literatura em ensino de filosofia,
propõe-se que o ensino de NdC procure não os consensos, mas aprofunde a discussão das
divergências sobre problemas filosóficos na ciência.
Palavras-chave: Natureza da Ciência, Filosofia da Ciência, Ensino de Filosofia
Introdução
A importância da presença da filosofia da ciência no ensino de ciências tem sido
amplamente defendida e aceita na literatura especializada há décadas (SCHEFFLER, 1973;
MATTHEWS, 1994, 2014). Atualmente, o reconhecimento de tal importância se manifesta
não só na existência de inúmeros pesquisadores ao redor do mundo que se dedicam à
temática, mas também de associações (como o InternationalHistory, Philosophyand Science
TeachingGroup, que realiza conferências internacionais periodicamente) e de publicações
específicas (como a revista Science &Education, dedicada a temas de história e filosofia da
ciência no ensino).
As questões relativas à filosofia da ciência se inserem no bojo de uma discussão que
engloba também outras disciplinas, como a história e a sociologia da ciência, e tem recebido o
1286
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
título de “Natureza da Ciência” (NdC). Pode-se dizer que há um consenso na comunidade da
área acerca do imperativo de que a educação científica tenha por objetivo não apenas fazer
com que o aluno tenha domínio de certos conceitos científicos, mas que ele também apresente
conhecimentos sobre a própria ciência como atividade humana, sua organização e seus
processos de produção e disseminação. De fato, podemos encontrar ecos de tal consenso no
texto da LDB (BRASIL, 1996, art. 36): “O currículo do ensino médio observará [...] as
seguintes diretrizes:I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado
da ciência...” (grifo nosso). Ainda que a expressão “significado da ciência” possa ser vaga, ela
parece sugerir certa compreensão do que pode vir a ser entendido como “ciência”, apontando
a necessidade de que sejam discutidos aspectos de NdC nas escolas.
É nesse contexto que se insere a importância da filosofia da ciência no ensino. Muito
embora seja possível encontrar questões relativas ao conhecimento do mundo natural já na
filosofia de autores da Grécia Antiga, como Aristóteles, quando falamos em filosofia da
ciência geralmente temos em mente autores e problemas que ganharam força desde a primeira
metade do século XX até os dias atuais. É nesse período que a filosofia da ciência se institui
como a disciplina que, hoje, procura abordar questões relativas à produção e validade do
conhecimento científico, as características da ciência, as relações entre conhecimento
científico, sujeito e mundo, entre outras. Assim, a filosofia da ciência constitui uma forma de
reflexão de segunda ordem, uma vez que é uma atividade de teorização (filosófica) sobre uma
atividade de teorização (científica) sobre o mundo; ou seja, uma meta-teorização (DÍEZ;
MOULINES, 1999; MOULINES, 1995). Na medida em que se debruça sobre a análise
conceitual da atividade científica, a filosofia da ciência contribui para as discussões sobre a
NdC, tendo papel fundamental na educação científica.
O artigo 36 da LDB (BRASIL, 1996) também estabelece a obrigatoriedade da
disciplina de filosofia no ensino médio. A filosofia da ciência pode ser considerada um ramo
ou uma especialização da filosofia, assim como a botânica pode ser considerada um ramo da
biologia. Assim sendo, a filosofia da ciência é parte integrante da formação inicial do
professor de filosofia, se fazendo presente nos cursos de graduação na área em todo o país.
Além disso, a importância de que o ensino de filosofia propicie uma reflexão acerca da
ciência na sala de aula é reconhecida nos documentos oficiais. Os PCN+ (BRASIL, 2002)
enfatizam o papel integrador da filosofia, na medida em que ela não possui um objeto de
estudo restrito como as demais disciplinas, abarcando-as e articulando-as. Segundo o
documento, não se trata de conferir alguma forma de superioridade à filosofia, mas, antes, de
1287
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
reconhecer que ela “abre o espaço por excelência para tematizar e explicitar os conceitos
quepermeiam todas as outras disciplinas, e o faz de forma radical, ou seja,buscando suas
raízes ou fundamentos e pressupostos” (p. 44). Ao fazê-lo, a filosofia contribui para que o
aluno reflita criticamente sobre os fundamentos da ciência como atividade humana. Nesse
sentido, os PCN+ dão continuidade ao que já havia sido colocado pelos PCNEM (BRASIL,
1999), ao afirmar que “[...] a Filosofia pode, por exemplo, levar o estudante àapropriação
reflexiva de conceitos, modos discursivos e problemas das CiênciasNaturais (questões de
método, estruturas discursivas lógico-matemáticas, aenunciação empírico-analítica etc.) [...]”
(p.56-57).
Os PCN+ também propõem, sob o eixo temático “O que é Filosofia”, o tema
“Filosofia, ciênciae tecnocracia”, que, por sua vez, se subdivide nos subtemas: “características
do método científico”; “o mito do cientificismo: as concepções reducionistasda ciência”; “a
tecnologia a serviço de objetivos humanos e osriscos da tecnocracia”; e “a bioética”. Também
as OCN (BRASIL, 2006) sugerem tópicos a serem trabalhados na sala de aula na interface
entre filosofia e ciências naturais, tais como: “Filosofia e ciência”; “teoria do conhecimento
nos modernos; verdade e evidência; ideias; causalidade;indução; método”; “epistemologias
contemporâneas; Filosofia da ciência; o problema da demarcação entre ciência e metafísica”.
O ponto a ser ressaltado aqui é o fato de que a aula de ciências não é a única via pela
qual a filosofia da ciência chega ao aluno da educação básica. A aula de filosofia também
pode e deve ser um caminho pelo qual a filosofia da ciência encontra o aluno, contribuindo de
maneira decisiva para seu conhecimento sobre NdC e, portanto, para sua educação científica.
Isso fica ainda mais evidente se observarmos o fato de que, enquanto livros didáticos de
ciências raramente tratam de questões filosóficas, os livros didáticos de filosofia dedicam
seções inteiras à filosofia da ciência. Segundo Fávero e colaboradores (2004), os livros
didáticos de filosofia mais utilizados pelos professores são Filosofando, de Maria Lúcia de
Arruda Aranha eMaria Helena Pires Martins, e Convite à filosofia, de Marilena Chaui, sendo
que ambos abordam a filosofia da ciência.
Dessa forma, uma vez que reconheçamos a importância da filosofia da ciência para a
educação científica, há que voltarmos nossa atenção para o ensino de filosofia, e buscarmos,
aí, elementos para pensar como tratar questões de NdC nas aulas de ciências. Contudo, essa
não tem sido a tendência na literatura internacional em ensino de ciências. Uma possível
explicação seria o fato de que, em muitos países, o ensino de filosofia na educação básica é
1288
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
uma exceção. Nos países de língua inglesa, por exemplo, o ensino de filosofia em nível préuniversitário é raro, sendo oferecido em poucas escolas e geralmente em caráter optativo
(UNESCO, 2007). É de se notar que muitos dos principais autores internacionais em ensino
de ciências dedicados a investigações relacionadas à NdC são justamente de países de língua
inglesa. Nesse sentido, o Brasil apresenta uma situação diferenciada: a presença da filosofia
nas escolas tem uma tradição que antecede até mesmo a obrigatoriedade legal atual. Tal
tradição deu origem a reflexões e pesquisas que levam em conta a especificidade do ensino de
filosofia para crianças e adolescentes, o que se manifesta hoje na forma de grupos de pesquisa
dedicados ao tema espalhados pelo país. Assim, o contexto brasileiro oferece condições
privilegiadas para um diálogo efetivo entre o ensino de ciências e o ensino de filosofia, com
ganhos para ambas as partes.
O presente artigo procura enfatizar a necessidade de se explorar o campo de pesquisas
que emerge da intersecção entre ensino de ciências e ensino de filosofia. Para tanto,
apresenta-se uma reflexão teórica que representa uma contribuição concreta do ensino de
filosofia para as discussões acerca da NdC na educação científica.Identifica-se uma
dificuldade reconhecida na literatura no que diz respeito à forma de tratar aspectos da NdC em
sala de aula e propõe-se uma abordagem oriunda do ensino de filosofia como caminho de
superação.
NdC: Consensos ou Divergências?
Ao revisar as pesquisas sobre NdC, Lederman (1992) aponta que diversas
investigações realizadas ao longo de décadas foram consistentes em reconhecer que os
estudantes apresentavam visões de NdC ingênuas ou inadequadas. Tal reconhecimento
estimulou o surgimento de novas linhas de pesquisa, incluindo o desenvolvimento de
abordagens e estratégias que pudessem favorecer o desenvolvimento de concepções de NdC
que seriam consideradas mais adequadas. Ao mesmo tempo, as concepções dos professores de
ciências também foram investigadas e apresentaram resultados igualmente preocupantes. Mas,
uma vez posta a necessidade de se trabalhar a NdC em sala de aula, a questão que surge é:
qual seria a visão adequada de NdC a ser ensinada? Afinal, o que os alunos devem saber sobre
a ciência?
Ocorre que, da perspectiva da filosofia da ciência, não há, atualmente, consenso sobre
tais questões. O que há são discussões em aberto sobre vários temas, com diversos
1289
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
posicionamentos filosóficos possíveis que engendram debates acirrados entre os filósofos da
ciência. Ao escrever sobre um debate fictício entre quatro filósofos da ciência – um
positivista, um realista, um pragmatista e um relativista –,LarryLaudan ilustra com clareza
este ponto, através da voz de um de seus personagens:
Se eu me dirigir a um realista como Popper e perguntar quais são os métodos
da ciência, ele me dará certa lista; se eu me dirigir a positivistas como
Carnap ou van Fraassen ou a um pragmatista como Peirce eu receberei
outras listas de regras. Agora, o que é interessante para um observadorparticipante da tribo filosófica como eu é que todas essas listas de regras
diferem drasticamente. E todas diferem do que eu poderia ler sobre „o
método científico‟ no capítulo de abertura de um texto de física ou biologia
de graduação.(LAUDAN, 1990, p. 95, tradução nossa)
Se os filósofos da ciência se encontram divididos, e cada um nos dá uma resposta
diferente para diversas questões referentes à NdC, como lidar com isso no contexto do ensino
de ciências? Lederman e colaboradores (2002) reconhecem a ausência de consenso.
Entretanto, segundo os autores, as divergências entre filósofos (assim como entre
historiadores e sociólogos) da ciência são “irrelevantes” para a educação. A proposta é a de
que tais divergências devem ser deixadas de lado, não sendo relevantes aos estudantes.
Porém, os autores defendem que há certos aspectos da NdC que, tomados em certo nível de
generalidade, podem ser considerados consensuais entre os filósofos da ciência. O resultado é
uma lista de consensos, que Matthews (2012) viria a chamar de “os 7 de Lederman”: a ciência
é empírica; a relação entre teorias e leis; o conhecimento científico é, em parte, fruto da
imaginação e criatividade; o conhecimento científico é guiado (ou impregnado) por teoria; a
ciência está inserida num contexto social e cultural; não há um único método científico; e a
ciência é tentativa.
A ideia de uma lista de consensos se mostrou amplamente influente, tornando-se,
inclusive, referência para a elaboração de diversos instrumentos de buscam avaliar as visões
de NdC de diversos públicos (estudantes de nível básico e superior, professores, cientistas,
etc). A premissa por trás da lista de consensos (seja a de Lederman ou qualquer outra) é a de
1290
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
que seria possível elencar aspectos da NdC relevantes e acessíveis aos alunos que
contornassem a dificuldade das controvérsias filosóficas por sua generalidade.
Todavia, tal noção recebeu críticas de diversos autores. Matthews (2012) argumenta
que uma lista de consensos tende a se tornar apenas mais uma lista de conteúdos a serem
memorizados pelos estudantes. Além disso, a lista apresenta uma visão fechada de ciência.
Segundo o autor, ao invés de fazer com que professores e alunos reflitam, analisem e
discutam aspectos da NdC, uma lista de consensos tende a oferecer respostas prontas,
desestimulando o exercício da crítica do aluno; o que, por sua vez, é justamente um dos
principais motivos pelos quais se advoga a inserção da filosofia da ciência nas aulas de
ciências. Também Hodson (2014) aponta que muitas das características presentes nas listas de
consensos são tão gerais que não contribuem significativamente para a compreensão do que é
a ciência. Dizer que a ciência é empírica, ou que ela envolve a criatividade e a imaginação,
por mais que seja correto, não se restringe à ciência, sendo válido para diversas atividades
humanas. Além disso, algumas distinções preconizadas por Lederman (2002), como a
diferença entre teorias e leis, parecem pouco relevantes no trabalho de cientistas e, muitas
vezes, também o são do ponto de vista filosófico. Também a distinção entre observação e
inferência, segundo Hodson (2014) não é tão clara, dependendo do nível de sofisticação do
conhecimento científico daquele que traça os limites entre uma e outra.
De maneira geral, é possível dizer que os itens presentes nas listas de consensos são
tão gerais que, uma vez que se investigue com maior cuidado e profundidade, começam a
apresentar fragilidades e a suscitar novas questões e problemas de ordem filosófica. Por
exemplo, tomemos a simples afirmação de que as teorias científicas mudam ao longo do
tempo. Sem dúvida, trata-se de um aspecto da ciência de fundamental importância e com o
qual o aluno deve se familiarizar. Contudo, aceitar simplesmente tal afirmação como fato,
sem maiores questionamentos, nos diz muito pouco sobre a ciência. Tão logo o sujeito se põe
a refletir sobre essa afirmação, surgem inúmeras questões, tais como: como se dá a mudança
das teorias científicas? O que leva o cientista a abandonar uma teoria e escolher outra? Que
critérios dizem qual teoria devemos escolher entre duas rivais? Ou o fato de que as teorias
mudam significaria que não há uma teoria melhor do que outra? Levantar e investigar a fundo
essas e outras questões é justamente a tarefa da filosofia da ciência. E é justamente no interior
dessasinvestigações que surgem as controvérsias. É importante reconhecer que as
controvérsias são inerentes à filosofia (em geral, e não só à filosofia da ciência). Portanto,
procurar contornar as controvérsias em tais discussões significa justamente se afastar do
1291
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
exercício filosófico por excelência. As listas de consensos também deixam de incluir alguns
temas que estão no centro de debates atuais em filosofia da ciência. Um exemplo é o debate
realismo x antirrealismo. Embora este seja um debate acalorado entre filósofos com diversos
posicionamentos possíveis, ele parece ser excluído das discussões acerca da NdC.
Contribuições do Ensino de Filosofia
Como apontado anteriormente, muitos dos principais autores internacionais dedicados
à pesquisa relacionada à NdC no ensino são de países anglófonos, onde é rara a presença da
filosofia na escola básica. No Brasil, por outro lado, onde a filosofia é disciplina obrigatória,
temos a possibilidade de nos valer de uma literatura especializada que pode nos ajudar a
pensar o caso particular da filosofia da ciência no ensino de ciências.
O primeiro aspecto a ser considerado é a existência de divergências entre filósofos. A
tentativa de mascarar as controvérsias com enunciados tão gerais que se tornam consensuais
soa artificial da perspectiva filosófica. O estudo da filosofia se configura justamente como
estudo de problemas filosóficos para os quais não há resposta consensual, bem como de
filósofos que apresentam sistemas filosóficos independentes e, não raro, em franca oposição.
A famosa colocação de Kant, “a filosofia não se ensina; ensina-se a filosofar”, implica o
reconhecimento de que não há uma filosofia como um corpo teórico único e coeso. O que há
são filosofias, ou sistemas filosóficos propostos por diferentes autores, o que também é
reconhecido pelos PCN+ (2002). Assim sendo, ao se trabalhar com filosofia da ciência no
ensino de ciências, há que se levar em consideração as controvérsias filosóficas e os
posicionamentos dos diferentes autores da filosofia.
Some-se a isso o fato de que um dos principais argumentos a favor da inserção da
filosofia em geral na escola, bem como da filosofia da ciência no ensino de ciências, é o
desenvolvimento da capacidade crítica do estudante. Ao refletir sobre a tarefa de ensinar um
aluno a ser crítico, Passmore (2010)argumenta que o desenvolvimento do espírito crítico
pressupõe a possibilidade de que o aluno questione aquilo que é recebido, como normas e
regras. O sujeito crítico, portanto, não é simplesmente aquele capaz de realizar determinada
tarefa de forma eficiente, mas é aquele capaz de colocar em questão inclusive os critérios de
eficiência e até mesmo o próprio sentido da tarefa. No contexto da discussão sobre NdC, o
aluno crítico não deve ser identificado com aquele capaz de apenas elencar uma série de
aspectos da ciência vagos e memorizados, mas sim de questioná-los, criticá-los e, quiçá,
1292
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
elaborar sua própria visão do que é ciência e defende-la com argumentos. Passmore também
acrescenta que o espírito crítico se desenvolve por meio do exercício da crítica. Isso significa
que é preciso que o aluno entre em contato com os diversos posicionamentos filosóficos
existentes nos debates da filosofia da ciência de modo que ele possa refletir sobre eles, para
então assumir sua posição.
O imperativo de se trabalhar na perspectiva das divergências, e não dos consensos, nos
coloca a questão de como introduzir o aluno à filosofia da ciência. Plastino (1986) sugere que
sejam trabalhadas noções de lógica antes de se introduzir questões de filosofia da ciência, uma
vez que muitos dos problemas da área envolvem estruturas lógicas. Note-se que tal tema
frequentemente faz parte dos programas de filosofia no ensino médio, o que pode contribuir
para as discussões nas aulas de ciências.
Um dos principais temas referentes à forma de se abordar a filosofia no ensino médio
diz respeito ao lugar da história da filosofia. Silva (1986, p. 154) defende que a “filosofia é,
de alguma maneira, a sua história”, no sentido de que a história da filosofia não deve ser
entendida como o percurso que levou a um corpo teórico acabado da filosofia (já que este não
existe), mas a própria filosofia são sistemas filosóficos propostos ao longo da história. Nessa
perspectiva, cada sistema filosófico só pode ser realmente compreendido quando inserido em
seu contexto histórico. Ao mesmo tempo, cada sistema filosófico continua atual, na medida
em que o leitor do texto filosófico dialoga com o filósofo e pensa, com ele, questões atuais,
como defendia Maugué (1955).
Como se vê, a filosofia é, em grande medida, inseparável de sua história e, portanto,
esta tem papel fundamental ao pensarmos a filosofia da ciência na escola. Silva (1986) aponta
que a história da filosofia pode assumir a posição de centro ou referencial no ensino. Ao
abordar a história da filosofia como centro, os conteúdos trabalhados se organizariam em
torno dos filósofos em sucessão histórica. Tal abordagem facilitaria o encadeamento das
ideias e as relações entre autores e temas no contexto histórico. No caso da filosofia da
ciência, por exemplo, seria possível trabalhar filósofos do círculo de Viena e, em seguida, a
filosofia de Popper como uma resposta àqueles. Também é possível estudar as ideias de
Thomas Kuhn e, na sequência, Lakatos, o que favoreceria a compreensão da relação entre
esses autores.
Em contraste, é possível trabalhar a filosofia da ciência por meio de temas ou
problemas filosóficos centrais. Poder-se-ia trabalhar, por exemplo, o problema da
1293
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
demarcação, ou o debate realismo x antirrealismo, entre tantos outros. Nesse caso, a história
da filosofia assumiria o papel de referencial, isto é, os temas seriam discutidos fazendo-se
referência aos autores da filosofia e sua participação nesse debate. Tal abordagem permitiria
atacar temas de interesse e daria maior liberdade de escolhas ao professor.
Há que se ressaltar, no entanto, alguns riscos de se optar por uma ou outra abordagem.
Ao optar pela história da filosofia como centro, não se trata de inventariar nomes de filósofos,
datas e motes filosóficos, sob a pena de se tornar a filosofia absolutamente estéril. Trata-se,
antes, de dialogar com os textos filosóficos, partir das questões históricas, para pensar as
questões atuais. Por outro lado, ao optar pela história da filosofia como referencial, não se
trata de abdicar do diálogo com os autores, transformando a aula numa mera troca de
opiniões. A referência aos filósofos é fundamental para que possamos pensar juntamente com
aqueles que se dedicaram a investigar aquelas questões em profundidade. Nesse sentido,
pode-se dizer que a referência aos autores da filosofia é necessária para que se possa refletir
sobre os problemas filosóficos, mas não se deve limitar aos mesmos autores, de maneira a
exercitar o espírito crítico, como diria Passmore (2010).
Conclusão
Colocamo-nos ao lado de Matthews (2012) e Hodson (2014) ao acreditar que o
próximo passo na pesquisa em NdC envolve elaborar em formas filosoficamente mais
informadas de se pensar sobre a ciência na sala de aula. Nessa direção, o contexto brasileiro
pode oferecer grande potencial para o desenvolvimento da área, se soubermos aproveitá-lo
através do diálogo com nossos colegas dedicados ao ensino de filosofia.
Uma primeira contribuição do ensino de filosofia para o ensino de ciências é o
reconhecimento de que não devemos buscar nos apoiar em consensos artificiais a respeito da
NdC. Devemos, antes, convidar nossos alunos a analisarem criticamente as divergências, os
diversos posicionamentos possíveis e os novos problemas que surgem conforme nos
aprofundamos na investigação. Tal tarefa pode ser realizada tomando-se a história da filosofia
da ciência como centro ou referencial. Dessa maneira, não só levaremos nossos alunos a uma
melhor compreensão da ciência como atividade humana, mas, também, contribuiremos para o
desenvolvimento de sujeitos críticos.
1294
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
Referências
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>.
Acesso em junho de 2016.
BRASIL, MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio:Ciências Humanas e suas
Tecnologias. Brasília: MEC, SEMTEC, 1999.
BRASIL, MEC. PCNs+ Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos
Parâmetros Curriculares Nacionais. Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília: MEC,
SEMTEC, 2002.
BRASIL. Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Ministérioda
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.
DÍEZ, J. A. e MOULINES, C. U. Fundamentos de Filosofía de la Ciencia. 2ª edición.
Barcelona: Ariel, 1999.
FÁVERO, A. A. et al. O Ensino da Filosofia no Brasil: um Mapa das Condições Atuais.
Cadernos Cedes. Campinas.Vol. 24, n. 64, p. 257-284, set./dez. 2004.
HODSON, D. Nature of Science in the Science Curriculum:Origin, Development,
Implicationsand Shifting Emphases. In: MATTHEWS, M. R. (Ed.) International Handbook
of Research in History, Philosophy and Science Teaching. Dordrecht: Springer, 2014.
LAUDAN, L. Science and Relativism: Some Key Controversies in the Philosophy of Science.
Chicago: The University of Chicago Press, 1990.
LEDERMAN, N. G. Students‟ and Teachers‟ Conceptions of the Nature of Science: A
Review of the Research. Journal of Research in Science Teaching. vol. 29, no. 4, pp. 331359, 1992.
LEDERMAN, N. G. et al. Views of Nature of Science Questionnaire: Toward Valid and
MeaningfulAssessment of Learners‟ Conceptions of Nature of Science. Journal of Research
in Science Teaching. Vol. 39, Nº 6, 2002. pp. 497–521
MATTHEWS, M. R. Changing the Focus: From Nature of Science(NOS) to Features of
Science (FOS). In: KHINE, M. S. (Ed.) Advances in Nature of Science Research: Concepts
and Methodologies. Springer, 2012.
1295
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016
VI Enebio e VIII Erebio Regional 3
MATTHEWS, M. R. (Ed.) International Handbook of Research in History, Philosophy
and Science Teaching. Dordrecht: Springer, 2014.
MATTHEWS, M. R. Science Teaching: The Role of History and Philosophy of Science.
New York: Routledge, 1994.
MAUGUÉ, J. O Ensino de Filosofia: suas Diretrizes. Kriterion.63, 1955.
MOULINES, C. U. La filosofía de la ciencia como disciplina hermenéutica. Isegoría. 12, p.
110-118. 1995.
PASSMORE, J. On Teaching to be Critical. In: PETERS, R. S. The Concept of Education.
London: Routledge&Kegan Paul, 2010.
PLASTINO, C. E.. O ensino de filosofia das ciências naturais no secundário. In: Henrique
Nielsen Neto. (Org.). O Ensino da Filosofia no Segundo Grau. 1ed.São Paulo: SEAF/ Sofia,
1986.
SCHEFFLER, I. Philosophy and the curriculum. In: SCHEFFLER, I. Reason and
Teaching.London: RoutledgeandKegan Paul, 1973.
SILVA, F. L. História da Filosofia: Centro ou Referencial? In: Henrique Nielsen Neto. (Org.).
O Ensino da Filosofia no Segundo Grau. 1ed. São Paulo: SEAF/ Sofia, 1986.
UNESCO. Philosophy: A School of Freedom. Translated by UNESCO. Paris: UNESCO,
2007.
1296
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Download