Jean-Claude Margueron “Mari condensa toda a Mesopotâmia e

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ID: 59092556
ENTREVISTA
03-05-2015
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Period.: Diária
Área: 25,70 x 30,75 cm²
Âmbito: Informação Geral
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Jean-Claude Margueron
“Mari condensa toda
a Mesopotâmia
e imaginá-la destruída
é muito triste”
Jean-Claude Margueron dedicou-se ao estudo da Mesopotâmia e dirigiu escavações
na antiga Mari, na Síria, durante 25 anos. Fala das cidades na Antiguidade e de como
um ataque à arqueologia no Médio Oriente é um ataque universal, uma catástrofe
Lucinda Canelas
J
ean-Claude
Margueron tem
80 anos, boa parte
deles passados a
trabalhar a partir
das campanhas
arqueológicas que,
entre 1979 e 2004,
dirigiu em Mari,
importante cidade
da Mesopotâmia fundada por
volta de 2900 a.C.. Define-se
como um historiador apaixonado
pela Mesopotâmia e foi nessa
qualidade que esteve em Lisboa
para participar no colóquio Na
Fronteira entre o Mito e a História
— Representações do Espaço e
do Poder na Antiguidade, na
Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de
Lisboa.
De uma energia que parece
inesgotável, Margueron, um dos
mais respeitados académicos
que se dedicam ao estudo das
sociedades que gravitaram em
torno dos rios Tigre e Eufrates, está
hoje oficialmente reformado, mas
isso não o impede de continuar
a escrever sobre a Mesopotâmia
e a ensinar na École Pratique des
Hautes Études, em Paris.
No colóquio de Lisboa, o
historiador falou dos lugares de
poder na Mesopotâmia, de como
são difíceis de identificar. E, para o
fazer, foi lançando perguntas como
“O que é um palácio?” e “O que
é que o distingue de um templo
se usa os mesmos dispositivos e
se nele o rei se faz adorar como
um deus?”. Os lugares de poder,
explicou, não são fáceis de definir
em arqueologia, nem mesmo
quando se cruza a informação que
nos dá a arquitectura com fontes
documentais, e na Mesopotâmia
evoluem à medida que as próprias
cidades se transformam, assim
como o papel do rei enquanto
líder político e militar.
Mari, a actual Tell Hariri síria, a
15 quilómetros da fronteira com
o Iraque, foi uma importante
metrópole do Eufrates médio
e é escavada por arqueólogos
franceses desde 1934. Foi o
primeiro director de escavações,
André Parrot, que levou pela
primeira vez Jean-Claude
Margueron para o Médio Oriente
e para o deserto. Sabê-la hoje
ameaçada pela guerra e em parte
destruída é, para o historiador
francês, “devastador”.
Como é que Mari aparece no
seu percurso?
Eu tinha 13 anos e estava de férias
numa pequena ilha, na praia.
Havia mais duas famílias para
além da minha e uma delas era a
de André Parrot. Foi assim que o
conheci e brinquei com os seus
filhos. Fiquei a saber o que fazia
pelas conversas dos adultos.
A princípio, claro, ele não se
interessou nada por mim, mesmo
nada. Só passou a interessarse quando percebeu que eu ia
assistir às suas conferências e que
tinha decidido fazer do Oriente a
minha vida. Foi aí que Parrot me
perguntou se estava interessado
em acompanhá-lo na próxima
campanha de escavações. Bom,
era uma aventura: viajar para
descobrir o Oriente aos 19 era tudo
o que eu queria. O meu pai só
aceitou quando lhe expliquei que
precisava de ir para ter a certeza
de que era aquilo que queria fazer
com a minha vida — e era.
Qual é a imagem que guarda
dessa primeira viagem?
A da chegada. É um cenário
impressionante, mesmo sem
construções espectaculares
em efeito. Houve um fascínio
pelo sítio, mas também pelo
Oriente, pelo deserto, pelo
vale do Eufrates. Havia ali um
mundo natural que, apesar de
transformado, estava ainda
muito próximo da Antiguidade.
E havia também aquela imensa
ruína capaz de produzir palácios,
templos, estátuas. Uma cidade
desaparecida que encerrava
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NUNO FERREIRA SANTOS
DR
Jean-Claude
Margueron
escavou
durante
25 anos
na cidade
circular de
Mari
um mundo inteiro, toda uma
sociedade.
O que é que faz dela uma
cidade singular no contexto da
Mesopotâmia? Muitos ouviram
já falar de Babilónia mas serão
poucos os que sabem o que é Mari
ou onde fica.
A Babilónia é um monstro que
não existe, um mito, ao passo que
Mari é verdadeira, é uma cidade
em que se pode fazer História. E
eu sou um historiador, não vivo no
mito. O que me interessa é saber
como se vivia ali, nas margens
do Eufrates, há cinco mil anos.
O que me apaixona no trabalho
que faço é a possibilidade de pôr
em evidência as características
da primeira sociedade urbana, da
primeira civilização urbana. Antes
de Mari isso não existe.
Mari é a primeira cidade?
Não, mas é uma das mais antigas.
É difícil identificar a primeira, mas
é do quarto milénio a.C., e Mari é
do princípio do terceiro.
Porque é que o homem sentiu
necessidade de construir
cidades?
Porque a vida se tornou mais
complexa, exigia mais organização,
e ele percebeu que, se queria que
as suas construções durassem —
falamos de construções em tijolo
cru, difícil de preservar num
território sujeito a cheias — era
preciso criar um meio urbano
harmonioso. E nesse meio urbano
as cidades nascem com ruas
radiais e canais que as atravessam
ou canais periféricos. Mari é
certamente uma das primeiras
cidades em meio urbano.
O que é que isso quer dizer?
Quer dizer que não está sozinha,
que funciona em rede com outras
cidades ligadas por canais e rotas.
Mari é uma grande cidade logo
no momento da fundação [as
escavações mostram três níveis
Babilónia no tempo
de Hammurabi
Rio Tigre
Mari
Rio
Eufrates
Rapiqum?
Sippar
Babilónia
1750 a.C.
1792 a.C.
100 km
Fonte: DR
Larsa
Ur
Eshnunna
Kish
Isin
Malgium?
Nippur
Lagash
Uruk
Eridu
de ocupação, mas sempre com
cidades] porque ela controla a
rota do cobre e de outros metais
que vem da Anatólia e se dirige
para a Babilónia. Ela assegura,
para seu benefício, o transporte
e até a transformação e venda
destes materiais. Nela a metalurgia
do cobre e do bronze é decisiva.
Mari é um dos sítios que melhor
nos permitem compreender a
civilização do Próximo Oriente
desta época.
E porquê?
Porque há muitas coisas bem
conservadas. Além disso foi um
lugar rico, com recursos, escavado
de forma sistemática desde 1934 —
houve mais de 40 campanhas em
Mari. É claro que os arqueólogos
não fizeram as coisas da mesma
maneira.
A arqueologia no período
colonial era orientada para o
objecto.
Claro. No princípio, escavou-se
sem parar à procura de peças
de grande espectacularidade e
depois, na segunda metade do
século XX, foi-se caminhando
para uma arqueologia mais
precisa, rigorosa, que fazia
depender a linha de investigação
das descobertas no terreno. Um
exemplo: em 2000, descobri
que as ruas eram feitas de uma
combinação de materiais que
permitia a absorção muito rápida
da água das chuvas, impedindo a
formação de poças e de lama. Mas
fiz esta constatação escavando
apenas uma rua. No ano seguinte,
escavámos todas as que tínhamos
já identificado à procura da mesma
combinação de materiais, isto para
que uma descoberta não se esgote
nela mesma, para que sirva para
ampliar o conhecimento.
Sendo tão importante, por que
é que Mari é menos conhecida
do que outras grandes cidades
do vale do Tigre e do Eufrates?
E aqui voltamos à Babilónia.
Não creio que seja. As pessoas não
conhecem a verdadeira Babilónia,
conhecem as diversas versões
ficcionadas, mágicas.
Que Babilónia é essa?
Quando falamos da Babilónia, há
que considerar várias babilónias.
Há a da Bíblia, com toda a sua
ambiguidade, que a mostra
ora como a grande cidade, ora
como, desculpe o termo, a puta.
Depois há o interesse que por
ela demonstra Alexandre, o
Grande, que tinha a intenção de
a transformar na capital do
c
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seu império, mostrando que, no
tempo de Alexandre [356-323 a.C.],
não é o mundo grego que aparece
como modelo, e também não é o
Egipto, é a Babilónia. E, por fim,
o mito criado pelos arqueólogos
alemães, que a vêem como um
projecto de império.
Qual império?
Um império figurado. A Alemanha
tinha de ter uma grande capital
para mostrar em Berlim, como
se de um programa político se
tratasse e não de investigação
científica. E a Babilónia foi
essa capital [grande parte dos
artefactos encontrados, incluindo
a célebre Porta de Ishtar, estão
no Museu Pergamon, na capital
alemã]. Os arqueólogos alemães
fizeram na Babilónia uma
coisa única — escavaram em
permanência durante 17 anos.
Escavaram todos os dias, até
serem expulsos pelos ingleses.
Hoje sabemos que este método é
totalmente desaconselhado porque
acaba por andar depressa de mais,
não deixa que o arqueólogo ganhe
distância das descobertas e reflicta
sobre elas. É uma abordagem
totalmente imbecil.
Qual era a relação entre Mari e a
Babilónia? Elas estão na mesma
rota de comércio, mas com
funções diferentes, imagino.
Essa é uma questão muito
interessante. Mari situa-se na rota
do Eufrates, vinda da Anatólia,
numa zona de confluência
absolutamente estratégia. Ora,
o rio continua e, mais à frente,
aparece a Babilónia, que também
é construída sobre o Eufrates.
Muitas pessoas pensam que a
Babilónia é que era a grande
cidade, e isto mesmo historiadores
que trabalharam sobre Mari, mas
que não vêem as coisas como
eu as vejo. Ora, Mari não estava
sob o controlo da Babilónia.
Tenho a certeza, de acordo com
informação histórico-geográfica,
que no terceiro milénico a.C. Mari
é dominante e a Babilónia só muito
lentamente começa a ganhar
espaço ao ponto de, no começo
do segundo milénio a.C., fundar
um império e esmagar Mari. Isto
é feito com Hammurabi — quando
ele desaparece, desaparece o
império. É preciso esperar pelo
primeiro milénio a.C., com
Nabucodonosor e durante apenas
60 anos, para que a Babilónia se
transforme de novo num império.
Quando pensamos no assunto,
chegamos à conclusão que não
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é muito. É por isso que, quando
reflicto sobre a natureza dos
impérios, sobre os reis que por lá
passaram e quanto tempo durou
o seu domínio, não posso deixar
de defender que é Mari que é
superior à Babilónia, mesmo que
tenha havido momentos em que
a segunda foi incontestavelmente
mais forte do que a primeira. Mari
é, sem dúvida, a grande cidade do
terceiro milénio da Mesopotâmia
do Norte.
Nessa época temos de dividir a
Mesopotâmia?
Sim, temos. A do Norte tem Mari
como centro e a do Sul, depois de
Uruk, tem Ur.
Há muitas diferenças entre o
Norte e o Sul?
Grosso modo, os elementos
fundamentais são os mesmos, com
pequenas diferenças regionais.
Ur é uma cidade circular como
Mari, que tem canais como Mari, e
que foi fundada sobre o comércio
como Mari.
Se Mari era assim tão
importante, por que é que
nunca foi o centro de um
império, como a Babilónia?
Porque Mari baseia a sua força
no comércio. A Babilónia é uma
cidade fundada para criar uma
junção onde os dois ramos da
Mesopotâmia — os rios Tigre e
Eufrates — estão o mais próximo
possível antes de se separarem
de novo. A Babilónia é construída
aí para assegurar a ligação à
rede do Tigre. É a esta função de
cruzamento de geografias que a
Babilónia vai buscar a sua força e
não apenas ao comércio. E é esta
posição de encruzilhada que dá à
Babilónia um papel extremamente
importante.
Escavou em Mari durante 25
anos. Qual foi a descoberta que
mais o fascinou?
É muito difícil de dizer e eu explico
porquê: eu não encontrei estátuas
nem fundações mirabolantes,
como Parrot, concentrei-me nos
factos do dia-a-dia. Por causa
da arquitectura, foquei-me
nas habitações, nos palácios,
nos templos, no conjunto das
estruturas urbanas. Eu andei à
procura da vida do quotidiano e
não de episódios extraordinários.
É claro que, se tivesse encontrado
estátuas teria dito “muito bem” e
não me passaria pela cabeça atirálas ao Eufrates, mas não encontrei.
Isto não significa que não tenha
encontrado coisas apaixonantes.
Como por exemplo...
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ARQUIVO DE LA MISIÓN DE MARI
ARCHIVO DE LA MISIÓN DE MARI
1938: Margueron a escavar em
Mari no depósito da fundação
do Templo dos Leões (em cima)
1965: campanha a Mari, com
Margueron, segundo à direita,
e André Parrot, quinto
(em baixo)
2007: missão arqueológica
ibérica na Síria (ao lado)
Há um momento particularmente
importante — aquele em que
percebi que as ruas de Mari
eram feitas de um material que
permitia escoar as águas. E isto
há cinco mil anos. É preciso um
pensamento coerente para pôr de
pé uma cidade em arquitectura
de terra em que isto acontece. E é
preciso também um conhecimento
técnico apuradíssimo. Foi quando
comecei a relacionar uma série
de elementos que me eram
dados pela arquitectura que senti
que tinha chegado à estrutura
urbana de Mari. Não se tratava
de identificar as ruas dispostas
em estrela, embora isso fizesse
parte, tratava-se de constatar
que a cidade dependia de uma
tecnologia extraordinária e, até
à data, desconhecida. Foi uma
descoberta incrível — não é tão
sexy como a estátua de uma
divindade, mas traz-nos muito
mais conhecimento.
Qual foi a principal dificuldade
que encontrou ao trabalhar em
Mari? A arquitectura em terra é
muito difícil de conservar.
Uma das coisas mais difíceis foi
garantir que o que era descoberto
não se deteriorava, precisamente.
Sabia o que Parrot tinha escavado
e o que tinha encontrado, mas
também queria fazer coisas novas.
Que coisas?
Uma leitura estatigráfica do
terreno, que Parrot nunca fizera,
por exemplo.
O que é que nos dá a
estratigrafia?
Uma leitura das fases de ocupação
daquele território. Se for bem feita,
mostra-nos como é que a vida
evoluiu naquele lugar, como se
transformou.
Quando se fala da Mesopotâmia
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ELOY TABOADA
é muito comum vê-la
descrita como uma terra
de transformações e até de
revoluções. A da escrita, a da
administração, a do urbanismo.
A partir de Mari, qual destas
revoluções é mais evidente?
É muito difícil de responder.
Temos sempre tendência a
sobrevalorizar as descobertas
que fazemos, sem as relativizar
por comparação às dos outros.
Um exemplo: quando encontrei o
grande espaço central do palácio
da primeira cidade de Mari [Ville
1], uma sala com 16 metros de lado
que deveria ter sido coberta sem
que tivesse quaisquer colunas,
uma proeza técnica assinalável,
fiquei estupefacto e disse para
comigo mesmo: “Esta gente de
Mari era, efectivamente, a melhor.”
Acreditava, nessa altura, e cheguei
a escrevê-lo, que ninguém noutro
ponto da Mesopotâmia tinha sido
capaz de tal coisa. Pois enganeime redondamente. Pouco tempo
depois, analisei as plantas de uma
outra cidade — Kish [fundada
por volta de 2500 a.C., a pouco
mais de 10 quilómetros da
Babilónia] — e percebi que, para
a mesma época, este centro na
Mesopotâmia central também
tinha espaços cobertos com 16
metros de largo. Mari não estava
sozinha, era simplesmente o
reflexo de um “saber fazer”
generalizado, e isto muda tudo
porque compreendemos que
estamos perante um fenómeno
de civilização e não perante algo
excepcional.
É por isso que Mari representa
uma grande oportunidade para
um arqueólogo — permite-nos ler
o que a civilização mesopotâmica
teve de melhor, embora nada nela
seja único. Quanto à escrita, em
Mari não sabemos praticamente
nada a não ser que, certamente,
houve logo desde o início. Não
encontrámos textos muito antigos
mas eu defendo que, se Mari foi
desde logo uma cidade comercial,
não podia existir sem escrita.
Deu-nos muitos documentos,
mas nada específico. Mas foi em
Mari que pude ver, pela primeira
vez, como nascia uma cidade na
Mesopotâmia.
Como?
Quando analisei a morfologia da
cidade cheguei à conclusão que
tinha sido criada artificialmente
e que não tinha começado, como
alguns historiadores pensavam
até aí, como uma pequena aldeia.
Eu escavei muito e não encontrei
aldeia nenhuma. E aí comecei a
interrogar-me: “Será que Mari é
caso único?” Apercebi-me, então,
que quando temos uma cidade
circular como Mari é impossível
que seja construída sobre as ruínas
de uma aldeia.
Porquê?
É preciso ter um plano horizontal
limpo em que possamos traçar
uma rede de linhas que nos
permitam formar um círculo. É
preciso um projecto definido. Há
quem não acredite nesta teoria,
mas eu defendo que, caso tenha
havido algo anterior a Mari, foi
arrasado para que a cidade como a
conhecemos fosse construída.
Mari e as outras cidades
semelhantes também não
poderiam ter sido construídas
sem um programa hidrológico
preciso — era preciso eliminar
com regularidade as águas da
chuva. A cidade era atravessada
por um canal que recebia estas
águas e as fazia desaparecer. Todo
o urbanismo na Mesopotâmia se
apoia neste princípio. Ninguém
conseguiria construir uma cidade
em arquitectura de terra sobre
ruínas em arquitectura de terra
e sem que houvesse um sistema
eficaz de eliminação das águas das
chuvas.
É por causa de conclusões como
esta que diz que a cidade é
riquíssima.
Sim, claro. É riquíssima em
informação. Foi com ela que
aprendi quais são os elementos
fundamentais que faziam uma
cidade na Mesopotâmia — e uma
cidade na Mesopotâmia é uma
primeira cidade em todo o mundo.
Não são os palácios, não são os
templos, é o conjunto, o projecto
urbanístico, o pensamento que
Há um momento
importante em que
percebi que as ruas
de Mari eram feitas
de um material que
permitia escoar as
águas
Uma cidade na
Mesopotâmia
é uma primeira
cidade em todo
o mundo
permite que ele nasça.
Fala em primeiras cidades. A
Mesopotâmia tem muito mais a
ver connosco do que o Egipto,
em que não conhecemos a
organização urbana, mas a
maioria das pessoas ignora
a sua importância para a
civilização ocidental e tem um
certo fascínio pela herança
egípcia.
É um erro dos nossos antepassados
e dos nossos historiadores [risos].
É claro que o Egipto é fascinante
por causa do esoterismo: há os
mortos, as pinturas riquíssimas
nos túmulos. Mas, quando
ouvimos a maioria das pessoas
falar do Egipto, é com grande
exotismo, como se fosse um
mundo muitíssimo diferente do
nosso. É uma visão totalmente
falsa. O Egipto é mais do que o
Livro dos Mortos e é preciso pensálo como um todo. A Mesopotâmia
é tão ou mais importante do que
o Egipto, mas menos conhecida.
Bom, se teve alguma fama, foi
com Alexandre e a Babilónia e
essa, como já vimos, é uma visão
desviante.
Como podemos, então, defini-la
em bom rigor?
A Mesopotâmia é um istmo — de
um lado, tem o Mediterrâneo
e, do outro, o golfo ArábicoPérsico. Depois tem os rios Tigre
e Eufrates, que vêm da Anatólia
para desaguarem no golfo. Foram
os dois rios, com a possibilidade
de transporte que oferecem,
que criaram as condições para o
desenvolvimento da civilização
mesopotâmica. Ela começa a
formar-se no fim do Neolítico,
grosso modo no sexto/quinto
milénio a.C., mas existe realmente
a partir do quarto milénio a.C., com
Uruk e, sem dúvida, as primeiras
cidades. Estas cidades nascem do
comércio e não vivem sozinhas.
A civilização mesopotâmica
funda-se pelo transporte de
mercadorias através de uma rede
hidrológica. Progressivamente, o
istmo transforma-se num espaço
de trocas e de transformação de
mercadorias do Norte para o Sul e
também no sentido inverso. Foi a
água que fez tudo isto graças a um
esforço de domesticação dos rios,
um trabalho longo e gigantesco.
É muito interessante que nos
venham dizer que a filosofia grega
criou tudo. Nada mais falso! É
certo que os gregos vieram depois
e trouxeram essa mesma filosofia
e tantas outras coisas que admiro,
mas não podemos dizer que o
mundo ocidental nasceu na Grécia.
É um erro histórico fenomenal — a
história do Ocidente começa na
Mesopotâmia.
É por isso que a destruição a
que hoje se assiste nos vídeos de
propaganda do autoproclamado
Estado Islâmico — a
acreditarmos que ela de facto
ocorreu — é tão preocupante.
Fico estupefacto. Sabemos que eles
não vão destruir tudo, mas que já
destruíram coisas que deveríamos
ter sido capazes de proteger. Agora
o mais urgente é documentar:
fazer vídeos, trabalhos teóricos
e de conservação no que ainda
existe. Temos um projecto para
fazer um levantamento rigoroso
em imagens do palácio de Mari.
Quero que se torne vivo na
imaginação das pessoas. Não sei
como proteger Mari ou outros
sítios arqueológicos de futuros
ataques sem ser através de
dispositivos que nos permitam
eternizá-los na nossa cabeça. Se
não somos capazes de os conservar
no terreno — infelizmente não
somos e os últimos tempos têm
mostrado isso —, temos de os
conservar na memória.
Não há outra maneira?
Se há não sei qual é. Temos de
continuar a trabalhar sobre Mari e
sobre todas estas cidades fabulosas
de uma civilização também ela
fabulosa. É preciso perpetuar
tudo o que é histórico e rigoroso, é
preciso não insistir nos mitos nem
nos fantasmas.
Mari também foi incluída
nestes raides de destruição dos
extremistas islâmicos? Não vi
qualquer notícia a respeito.
Vi imagens de satélite de Mari — é
de bater com a cabeça nas paredes.
Pensar que algumas das pessoas
que trabalharam connosco nas
escavações, que viram o cuidado
com que lidámos com cada peça,
com cada descoberta, estão agora
entre os que foram capazes de
arrasar estruturas em Mari é muito
doloroso. Inaceitável. Ali está
condensada toda a Mesopotâmia
e é por isso que imaginá-la
destruída é simplesmente muito
triste, devastador. Ainda não
vimos aparecer objectos no
mercado, mas isso não é estranho
porque nas escavações dos
últimos anos não encontrámos
praticamente nenhuns artefactos.
Mas estes sítios são uma tentação
permanente. E com quatro anos de
guerra... É uma catástrofe.
O que é que falta descobrir em
Mari?
Tanta, tanta coisa. Mari foi a
minha vida, mas deixei muito por
encontrar. Gostaria que a próxima
geração tivesse uma atitude
responsável e que não escavasse
para encontrar objectos, mas
para encontrar uma civilização. A
terra tem muitas memórias, mas
lembra-se apenas de excertos — a
terra não guarda o todo.
Chamei ao meu último livro
Cidades Invisíveis precisamente
porque eu não posso escavar e
encontrar uma cidade inteira,
mas posso identificar vestígios,
pistas. E é sobre estes traços que
eu posso construir as minhas
interpretações, as minhas cidades.
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Destruir a memória
da Mesopotâmia
será uma catástrofe
Entrevista com Jean-Claude
Margueron, historiador que
trabalhou na Síria p10 a 13
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