Artigo Original Análise dos percursos assistenciais de pacientes com tuberculose por equipes de saúde em três capitais brasileiras. Que lições os profissionais podem tirar? Analysis of assistance for patients with tuberculosis by health teams in three Brazilian capitals. What can professionals take away from this? Carlos Eduardo Aguilera Campos1, Ana Carla Freitas Fonseca2, Mara Lucia Pessini3 Resumo Este estudo objetivou colher, sistematizar e utilizar informações do percurso assistencial de pacientes com tuberculose em três capitas do Brasil para a discussão dos problemas encontrados com as equipes de saúde envolvidas. A assistência de 27 pacientes da rede do Sistema Único de Saúde (SUS), em Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador, foi avaliada, desde o início dos sintomas até o início do tratamento, através de fluxogramas organizadores. A seguir foram identificados os nós críticos de cada um dos casos. Foram selecionados cinco casos para serem avaliados por equipes de saúde municipais envolvidas na assistência à tuberculose, através de grupos focais. Os principais nós críticos foram: busca por serviços de urgência, alto número de diagnósticos equivocados, sem suspeita de tuberculose, demora na realização de pesquisa de bacilos álcool-ácidos Resistentes (BAAR) e da confirmação diagnóstica, falta de garantia de continuidade da assistência nos demais níveis de assistência, centralização excessiva das ações de controle. Estes padrões diferiram em maior ou menor graus de uma capital para a outra. Quanto à discussão dos casos entre as equipes, esta se mostrou uma ferramenta útil para a reflexão e avaliação crítica com vistas a possíveis mudanças em seus processos de trabalho. Essa metodologia parece contribuir para o desenvolvimento de dinâmicas participativas de autoavaliação dos processos de trabalho visando a integralidade e a melhoria da qualidade da assistência. Palavras-chave: tuberculose; assistência ambulatorial; diagnóstico. Abstract This study aimed to collect, organize and use information from the path of care of tuberculosis patients in three Capitals in Brazil to discuss the problems encountered with the health teams involved. The care of 27 patients from local health care systems in Porto Alegre, Rio de Janeiro and Salvador was evaluated from the symptoms until the start of treatment through flowchart organizers. Then, we have identified the critical issues in each of the cases. Five cases were selected to be evaluated by health teams involved in municipal assistance with tuberculosis, through focus groups. The main critical matters were: seeking emergency services, high number of misdiagnoses, without suspicion of tuberculosis, failure to perform isolation of an acid-alcohol resistant bacillus (BAAR) spur and diagnostic confirmation, lack of guarantee of continuity of care in other levels of the health system, excessive centralization of control actions. These patterns differ to a greater or lesser extent from a Capital to another. As for the discussion of cases between teams, this proved to be a useful tool for reflection and critical assessment with a view to possible changes in work processes. This methodology seems to contribute to the development of dynamic participatory self-assessment of work processes to improve the completeness and quality of care. Keywords: tuberculosis; ambulatory care; diagnosis. Trabalho realizado no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. 1 Médico, Professor Adjunto do IESC/UFRJ - Rio de Janeiro (RJ), Brasil. 2 Farmacêutica do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) – Salvador (BA), Brasil. 3 Enfermeira da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre – Porto Alegre (RS), Brasil. Endereço para correspondência: Carlos Eduardo Aguilera Campos – Rua Otaviano Hudson, 24, apto. 201 – Copacabana – CEP: 22030-030 – Rio de Janeiro (RJ), Brasil – E-mail: [email protected] Fonte de financiamento: Fundo Global Tuberculose Brasil (FGTB), Edital Fundo Global Tuberculose Brasil/Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec)/Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp)/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)/Ministério da Saúde (MS) nº 1/2009. Conflito de interesse: nada a declarar. 188 Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 188-194 Percursos assistenciais de pacientes com tuberculose INTRODUÇÃO A despeito dos avanços alcançados na última década por meio das ações de controle da tuberculose, esta endemia permanece um problema no Brasil, especialmente nas regiões metropolitanas1,2. Em 2006, foram notificados 83.977 casos novos no país3. O Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) prevê a descentralização e a horizontalidade das ações de vigilância, prevenção e controle, buscando utilizar, especialmente, a Estratégia Saúde da Família (ESF), com o fortalecimento da educação permanente4. No Brasil, existe uma baixa cobertura do programa na rede básica do Sistema Único de Saúde (SUS), denotando uma descentralização inconclusa, agravada por problemas de natureza mais estrutural, como desorganização da rede, com contornos dramáticos nas áreas metropolitanas5. Dentre as dificuldades encontradas para o controle da tuberculose em nosso contexto atual, destacam-se dois grupos de problemas, um relativo à falta de recursos financeiros e humanos e outro, ligado à gestão do programa4. A debilidade qualitativa e quantitativa dos recursos humanos e a visão centralizada e fragmentada das ações são destacadas6. Tem sido evidenciado que a disponibilidade de recursos e a organização da atenção podem influenciar na acessibilidade ao tratamento7. Ainda assim êxitos foram alcançados, como a redução da incidência da tuberculose e aumento da cobertura da estratégia Tratamento Supervisionado (TS-DOTS)8. O Ministério da Saúde (MS) tem como metas diagnosticar 90% dos casos esperados e curar 85% destes2. O Fundo Global Tuberculose Brasil é uma iniciativa que abrange 57 municípios das regiões metropolitanas, onde se concentram 45% dos casos de tuberculose no país, e visa acelerar o alcance das metas definidas para o PNCT9. No nível da atenção à saúde, o melhor recurso de prevenção, de modo a interromper a cadeia de transmissão, continua sendo a detecção precoce e o tratamento2. Para alcançar esse objetivo, é necessário, ainda, superar os seguintes problemas: insuficiência na formação de profissionais, falta de incentivo a pesquisas operacionais para a solução de problemas encontrados nos serviços de saúde4. De fato, considerando os padrões de qualidade da prática assistencial e do trabalho em equipes de saúde, o controle da tuberculose pode ser considerado um marcador para a qualidade da atenção à saúde. Para isso são necessários estudos mais aprofundados que possam encontrar as melhores evidências sobre as boas práticas organizacionais e assistenciais para superar as dificuldades atuais. A alegação de que mais recursos aplicados para implantar novos modelos irão solucionar antigos problemas parece não ter efeito prático, como demonstra um estudo recente em cinco municípios brasileiros. Esse não encontrou diferenças significantes quanto ao desempenho do PCT para algumas características da atenção, tais como o modelo adotado na Atenção Primária à Saúde (APS) ou acesso aos serviços10. Mesmo quando há evidências de que mudanças nos serviços de APS permitiram um maior acesso à população, persistem, porém, problemas relacionados à baixa efetividade, tais como horários inapropriados, insuficiência de exames diagnósticos e falta de apoio aos pacientes (vale transporte, acompanhamento domiciliar)11. Ainda que a consolidação da ESF tenha levado a avanços e melhorias, parte-se aqui do pressuposto que medidas na gestão, por si só, não são suficientes para alcançar as mudanças almejadas. Melhores padrões de qualidade dependem de mudanças em processos de trabalho e em fluxos assistenciais, aspectos relacionados à formação profissional e à cultura organizacional. No campo da qualidade em saúde, trabalha-se com a premissa de que bons processos de trabalho podem levar a bons resultados. Esses processos incluem a análise da relevância, suficiência ou, por outro lado, da redundância de procedimentos e rotinas relacionados à anamnese, ao exame físico, a investigação laboratorial, ao diagnóstico e tratamento, bem como das demais ações realizados na unidade, tais como o acolhimento, as atividades de grupo, vacinações, curativos, exames, visitas domiciliares, ações fundamentais para a detecção precoce, o início do tratamento e o aconselhamento12. A habilidade dos profissionais em identificar problemas de saúde e realizar a ação mais apropriada deve ser considerada não apenas dirigida aqueles que utilizam o serviço, mas também aos que não o demandam. Rastreamentos, a busca de casos e de grupos sob-risco são importantes13. Constata-se que portadores de tuberculose têm inúmeras passagens pela rede e são atendidos para outros males, permanecendo ocultos. Perde-se tempo precioso para o diagnóstico e tratamento, prolongando o período de infecção. Esses aspectos não são monitorados, pois se prioriza apenas o cumprimento de condutas clínicas e aqueles ligados à aderência e acompanhamento14. Para melhorar processos de trabalho, recorrem-se a capacitações segundo um ‘modelo escolar’, na expectativa que informações adquiridas serão incorporados às práticas. Infelizmente tem sido demonstrado que a aplicação prática desses conhecimentos não alcança os resultados esperados11. Não se leva em conta a resistência às mudanças, as dificuldades do trabalho em equipe, contextualizado à realidade em que se trabalha, no cotidiano dos serviços. A educação permanente pode ser entendida como o processo que busca a mudança nas práticas e na organização da equipe de saúde de Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 188-194 189 Carlos Eduardo Aguilera Campos, Ana Carla Freitas Fonseca, Mara Lucia Pessini modo a alcançar soluções para dificuldades reais vividas; é a forma de aproximar a educação da vida cotidiana de forma a se ter a percepção que no trabalho também se aprende15. JUSTIFICATIVA São muitos os problemas enfrentados pelos pacientes no processo de diagnóstico e tratamento. Entre as medidas de controle, enfatiza-se a detecção precoce pela baciloscopia de escarro. Esta deve ser realizada em sintomáticos respiratórios a partir de três semanas de duração. Essa detecção é fundamental para se iniciar a quimioterapia específica, alcançandose assim dois outros objetivos: a diminuição das sequelas da doença e a manutenção da vida ativa do indivíduo16. A demora no diagnóstico acarreta a permanência da cadeia de transmissão, facilitando sua disseminação e o aparecimento de formas graves da doença. Portanto, a ênfase dada ao diagnóstico precoce e às ações de vigilância aumenta a detecção de casos e a cura e diminui o abandono ao tratamento17. O primeiro desafio consiste em superar a dicotomia das ações dos setores envolvidos na assistência à saúde. Além de mudanças teóricas e metodológicas, que permitem a ampliação de tecnologias para fazer frente aos problemas de saúde, a Vigilância da Saúde propõe que os agentes sociais sejam os responsáveis pelo processo de definição de problemas e pelo encaminhamento das soluções18,19. A premissa de que a APS deve atuar no território com o olhar sobre determinantes e riscos devem resultar em melhores processos diagnósticos, incluindo menor tempo e custo. Neste aspecto, melhores padrões de qualidade são ainda uma meta a ser atingida19. A identificação e a análise de nós críticos podem ser promovidas utilizando-se de ferramentas usualmente utilizadas na área da qualidade20. O fluxograma analisador foi utilizado neste estudo21,22. A existência de problemas no atendimento é conhecida por todos; apesar disso, as relações e as hipóteses que as fundamentam nem sempre estão claras. A análise pelas equipes constitui o objetivo dos fluxogramas, por permitir a visibilidade do processo de trabalho. Busca-se, em suma, discriminar cada uma das etapas e ações, tornando público, para os diversos agentes, os jogos instituintes e instituídos que a dinâmica organizacional contém20. Busca-se assim uma oportunidade de reflexão. OBJETIVOS Analisar percursos assistenciais de pacientes, desde os sintomas iniciais, até o diagnóstico e início do tratamento. Estes tiveram como delimitadores a percepção de necessidade, a 190 Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 188-194 demanda e a utilização de serviços. Buscou-se problematizar os processos de trabalho nos estabelecimentos aos quais os pacientes tiveram acesso. Dessa forma foram avaliados o grau de integração entre os níveis assistenciais, as portas de entrada usualmente utilizadas e a integralidade do cuidado. Como desdobramento levantou-se a percepção de equipes que participaram do cuidado, a respeito dos processos analisados. Buscou-se com isso uma reflexão crítica com vistas a possíveis mudanças nos processos de trabalho. MATERIAL E MÉTODOS Este estudo envolveu três capitais: Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, cidades prioritárias para o controle da tuberculose3, e que foram escolhidas por representarem as diversas regiões do país e suas peculiaridades. Foram considerados elegíveis pacientes que nos últimos seis meses do início da pesquisa tinham sido diagnosticados como casos de tuberculose pulmonar primária (caso novo pulmonar positivo), com idade superior a 18 anos, de ambos os sexos e moradores dos municípios do Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre e que tivessem iniciado o seu tratamento. Foram critérios de exclusão: idade inferior a 18 anos, presença de coinfecção de Tuberculose e HIV (TB-HIV), retratamento da doença. Os sujeitos foram selecionados junto a serviços municipais, conforme os seguintes critérios: unidades com grande número de casos notificados, informação disponível para a análise dos critérios de elegibilidade, possibilidade da marcação de entrevistas com o paciente e os seus acompanhantes. A partir da eleição dos casos, cumpriu-se os seguintes passos: obtenção das informações por meio das entrevistas, coleta de informações de prontuários e outros registros disponíveis, consulta aos membros das equipes envolvidas no cuidado do paciente. A sequência de eventos foi ordenada cronologicamente. As informações foram sistematizadas e confeccionaram-se fluxogramas com a seguinte convenção, Elipse: início, fechamento, conclusões parciais ou final, saída de uma unidade produtiva; Retângulo: atividades ou ações, tais como realização de consultas, exames, procedimentos, tratamentos; Paralelogramo: informações relevantes, como diagnósticos com base em exames; Losango: inflexão para decisões segundo informações novas, sintomas, queixas, resultados que acarretem mudanças de condutas ou diagnósticos. Documento: resultados de exames, pareceres/solicitações. Confeccionado o fluxograma, identificaram-se os nós críticos no processo do cuidado. Foram analisados aspectos como: integração entre os profissionais e serviços responsáveis Percursos assistenciais de pacientes com tuberculose pelo diagnóstico, atendimento, hipóteses diagnósticas, condutas e procedimentos, orientações, encaminhamentos. Embora os pacientes tenham transitado por diversos níveis, grupos focais foram realizados em equipes no nível primário ou no nível da coordenação. Buscou-se um posicionamento dos sujeitos a respeito dos nós críticos identificados. Seguiram-se os seguintes passos: apresentação, síntese dos objetivos e metodologia da pesquisa; apresentação de um fluxograma analisador; discussão dos resultados. As questões norteadoras foram: análise do processo de trabalho identificando as não conformidades e reconhecimento dos aspectos que pudessem ser melhorados. Evidenciação dos nós críticos identificados no conjunto dos casos e como esses se refletiram no trabalho23,24. As entrevistas foram gravadas após consentimento livre e esclarecido, preservando-se o sigilo e a confidencialidade. Os grupos focais foram previamente agendados com os integrantes das equipes e seu objetivo foi descrito a todos os membros do grupo. Esclareceu-se que não havia um caráter de avaliação individual. A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o número CAAE-0020.0.239.000-09. RESULTADOS Vinte e sete casos cumpriam os critérios para inclusão com a seguinte distribuição: Porto Alegre, 9, Rio de Janeiro, 10, Salvador, 8. Quanto à análise das trajetórias e dos nós críticos, destacaram-se aspectos que podem ser agrupados em três dimensões: organização do sistema; profissionais e seu processo de trabalho; ações de controle propriamente ditas. No primeiro grupo, notou-se que a porta de entrada usual do paciente sintomático respiratório é constituída, na sua maioria, pelos serviços de urgência. Ainda que esse padrão de utilização seja compreensível, uma vez que esses serviços são uma das portas de entrada do sistema de saúde, notou-se que essa primeira abordagem não permitiu uma investigação correta para a suspeita de tuberculose, nem a continuidade e a coordenação da atenção que pudesse facilitar o seu acesso aos demais níveis. Assim, o que se percebeu foi um atendimento pontual, sintomático, com tendência a medicalização, não orientado ao diagnóstico e tratamento. No Rio de Janeiro, a porta de entrada mostrou-se fragmentada com o paciente recorrendo a vários tipos de serviços, públicos e privados, todos com tendência a uma abordagem sintomática. Ainda com relação ao sistema de saúde, ressalta-se a tendência à centralização do atendimento ao paciente com tuberculose, particularmente em Porto Alegre. Parece haver uma orientação de encaminhamento para o serviço especializado de todo o paciente sintomático respiratório, como uma questão a ser resolvida por serviços de referência. No segundo grupo de problemas, relacionado ao processo de trabalho e ao profissional, nota-se um recorrente esquecimento da hipótese diagnóstica tuberculose entre sintomáticos respiratórios atendidos. Foram muito frequentes os diagnósticos de gripe, resfriado, pneumonia, alergia. Em casos atípicos havia uma conduta orientada para a solicitação de exames de imagem, ao invés da rotina preconizada para a tuberculose. Raramente foi solicitada a pesquisa de Bacilos álcool-ácidos resistentes (BAAR). Quanto a aspectos relacionados ao terceiro grupo, isto é, ao programa propriamente dito, constataram-se, especialmente em Salvador, falhas relacionadas à provisão e ao acesso a alguns exames e procedimentos. Também foram constatados equívocos por parte dos profissionais quanto ao cumprimento das normas preconizadas pelo programa. Houve uma recorrência de casos em que o paciente, a despeito de vários contatos com os serviços de saúde, não foi orientado quanto aos sintomas da doença e como poderia buscar o atendimento adequado. Também houve pouquíssimos casos em que se utilizou a abordagem domiciliar ou comunitária. Todos esses nós críticos tiveram como consequência um tempo de diagnóstico bastante tardio, considerando o início dos sintomas. Essa realidade é bastante crítica quando se considera o risco de transmissão. Porto Alegre apresentou um melhor desempenho, enquanto, o Rio de Janeiro, o pior. A existência de muitos casos com tempo superior a um mês entre o sintoma e o diagnóstico demonstra uma grande desarticulação das ações e uma rede fragmentada, com profissionais pouco atentos às características epidemiológicas da população a que servem. Que lições os profissionais tiraram da análise dos casos Foram realizados grupos focais em Porto Alegre e Salvador, com a participação de profissionais da assistência e da coordenação do Programa. No Rio de Janeiro, foram realizados três grupos focais com equipes de saúde da família. Os participantes reconheceram grande parte das falhas; em concordância com a análise prévia produzida pela pesquisa. O que mais chamou a atenção dos participantes foram aquelas relacionadas à atenção aos usuários. A paciente ficou esperando o resultado da TC que achava que era o exame mais importante. Não só pra ela, mas para o médico também. (A1-Porto Alegre). Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 188-194 191 Carlos Eduardo Aguilera Campos, Ana Carla Freitas Fonseca, Mara Lucia Pessini Que absurdo, ainda não se pensou em exame de escarro. (A1-Porto Alegre). O médico em questão, se preocupa com o diagnóstico da doença da moda (H1N1) e se esquece de uma doença básica e comum no nosso meio, como a tuberculose. (B4-Rio de Janeiro). A história é sempre a mesma, vai no posto ou UPA... emergência particular ou pública aí não pedem nada, dá um diagnóstico assim...uma alergia, manda pra casa e fica nesse vai e volta até que chega no ponto que descobre que é tuberculose. (C3-Rio de Janeiro). Falhas relacionadas à organização dos serviços foram identificadas, destacando-se o acolhimento dos casos suspeitos, a priorização do atendimento médico em detrimento de uma atuação multiprofissional, a não utilização dos protocolos, referência dos suspeitos para a realização de procedimentos complementares. Para mim o grande problema disso tudo é a triagem, pois tem um volume absurdo de pessoas, ficando uma pressão das pessoas do lado de fora para serem atendidas. (A5-Rio de Janeiro). [...] e não há classificação de risco em todas as unidades. Em muitas só há a triagem. (A1-Salvador). Chamou-me a atenção no caso exposto, que este paciente só passou pela consulta médica, em nenhum momento foi acolhido por outro profissional, reflete que a equipe não está preparada recaindo tudo sobre o médico. (A2- Porto Alegre). [...] não existe um protocolo do centro de saúde. Ninguém olha o protocolo do Ministério. O termo procurar no manual não existe. As pessoas seguem a “norma de fulano”, “norma de beltrano”, “norma de ciclano”. (A3-Rio de Janeiro). No centro de saúde só se inicia tratamento com BAAR positivo, mesmo com o paciente claramente sintomático. Isso gera uma angústia para nós e para o paciente muito grande. (A4-Rio de Janeiro). Uma coisa que me incomoda muito é uma pessoa ter que esperar quatro dias para fazer um RX. (A3-Rio de Janeiro). Evidenciaram-se falhas relacionadas à gestão do sistema, em especial àquelas relacionadas aos tipos de procedimentos oferecidos nas unidades de pronto atendimento para o diagnóstico da tuberculose, a baixa cobertura da ESF que limita a busca ativa dos casos e a acessibilidade aos serviços. Duas semanas de evolução? Aí você vai dar como sugestão [...] tinham que pedir um escarro. Até hoje não tem [...] todos os exames dele são só de imagem. (C1-Rio de Janeiro). 192 Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 188-194 Pacientes e familiares dificilmente vão a outros lugares para consulta. Eles vão a sua unidade em busca de consulta e se lá não faz diagnóstico dificilmente irão a outro local. (A2- Porto Alegre). Apesar do reconhecimento das falhas relacionadas aos profissionais e à gestão, em alguns momentos, alguns participantes tenderam a responsabilizar os usuários, aspecto contestado dentro do próprio grupo. A paciente procurou vários médicos, chegando muitas vezes a procurar dois médicos num mesmo dia, por isso não sei se é um paciente fácil de lidar. (B4-Rio de Janeiro). A paciente não tem culpa de nada, ela não tem como adivinhar o que está acontecendo com ela, o problema é que o serviço que a atendeu comeu mosca. (B3-Rio de Janeiro). O que acontece com muitos pacientes é o seguinte, eles não querem nunca esperar. Ele não quer esperar para ser atendido, nem para fazer exame. Olha aí, ela conhecia alguém, e através deste alguém conseguiu. (A1-Salvador). Dentre as intervenções apontadas para enfrentamento dos problemas, destacou- a ampliação da ESF de forma a permitir a descentralização das ações e uma atenção que vá além da identificação do caso. Acho que o ESF se preocupa não só com o paciente e sim com a investigação dos familiares. (A2-Porto Alegre). Acho que o caminho é descentralizar o diagnóstico e o tratamento. (A3-Porto Alegre). Destacou-se a necessidade de capacitação, em particular dos profissionais das equipes da rede básica e do pronto atendimento. A equipe da ESF deve estar mais preparada para investigação dos sintomáticos respiratórios. (A2-Porto Alegre). Deve haver uma melhor capacitação dos agentes de saúde, pois eles de certa forma são nossos membros dentro da comunidade. Deveria ter uma melhor legitimidade dessa categoria profissional, porque muitas vezes eles apenas servem de mensageiros para os médicos. (B3-Rio de Janeiro). [...] a gente tem previsto para este ano um encontro, e a gente já vai fazer com este tópico. Daí, seria até interessante neste evento, apresentar isso. Pois é Percursos assistenciais de pacientes com tuberculose interessante que diretores médicos e de enfermagem vejam o que está se passando nestes pronto atendimentos [...]. (A2-Salvador). Houve uma abertura para a reflexão sobre as falhas encontradas. No grupo com profissionais, explicitou-se a importância do momento como espaço de aprendizado. Acho que esta discussão foi muito produtiva, retomou o tema tuberculose, parabéns pelo ótimo trabalho. (A4-Porto Alegre). Esse processo de trabalho devia ser mantido, pois foi muito produtivo. Adorei este grupo, é melhor que as sessões clínicas que fazemos na rotina do serviço. (A3-Rio de Janeiro). CONCLUSÃO A avaliação deve ter como foco a utilização dos seus resultados, com metodologias direcionadas a esse propósito, devendo essas serem desenhadas e desenvolvidas considerando-se como as pessoas vivenciarão tal processo e a sua aplicação. Trata-se de conceber a avaliação como dispositivo de mudança, a partir da incorporação dos principais grupos de interesse e a valorização das possibilidades de utilização dos resultados pelos envolvidos na reformulação de suas práticas25. Este estudo incorporou alguns desses pressupostos. Evidenciou-se na técnica dos grupos focais, os quais envolveram diversos sujeitos do processo de construção das intervenções relacionadas ao enfrentamento da tuberculose, que a oportunidade de refletir sobre suas práticas geram bons resultados. Isto pode ser constatado com concordância das análises externas (pesquisadores avaliando cada caso) e das reflexões realizadas pelos profissionais. No que tange a situação do controle da tuberculose, o estudo evidenciou que ainda há muito a se fazer, e que essas mudanças só virão a partir do envolvimento das equipes e de sua ação efetiva para o aprimoramento das ações. O recém-lançado Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica26 prevê uma série de incentivos às equipes que desenvolverem ações de avaliação e propostas de melhoria do seu desempenho, em moldes muito semelhantes as ações desenvolvidas neste estudo. É possível assim antever melhores perspectivas para a correção de rumos visando as ações integrais à saúde voltadas para o controle da tuberculose. REFERÊNCIAS 1. WHO. Global Tuberculosis Control. Surveillance, planning, financing: WHO Report- 2005. Geneva: WHO; 2005. 2. Rodrigues L, Barreto M, Kramer M, Barata RCB. Resposta brasileira à tuberculose: contexto, desafios e perspectivas [editorial]. Rev Saúde Pública. 2007;41(Suppl 1):1-2. 3. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim SVS/MS em Rede, nº 57 janeiro de 2009. [cited 2009 Feb]. Available from: http://portal.saude.gov.br/portal/ saude/visualizartexto.cfm?Idtxt= 30123 4. Ruffino-Netto A. Tuberculose: a calamidade negligenciada. Rev Soc Bras Med Trop. 2002;35(1):51-8. 5. Hijar MA. Tuberculose: desafio permanente. Cad Saúde Pública. 2005;21(2):348-9. 6. Monroe AA, Gonzales RIC, Palha PF, Sassaki CM, Netto AR, Vendramini SHF, et al. Envolvimento de equipes de Atenção Básica à Saúde no controle da tuberculose. Esc Enferm USP. 2008;42(2):262-7. 7. Arakawa T, Arcêncio RA, Scatolin LM, Scatena LM, Ruffino-Netto A, Villa TCS. Acessibilidade ao tratamento da tuberculose: avaliação de desempenho de serviços de saúde. Rev Latino-Am Enfermagem. 2011;19(4):994-1002. 8. Santos J. Resposta brasileira ao controle da tuberculose. Rev Saúde Pública. 2007;41(Suppl 1):89-94. 9. Fundo Global Tuberculose Brasil [cited 2010 Mar 11]. Available from: http://www.fundoglobaltb.org.br/site/home/index.php 10.Scatena LM, Villa TC, Netto AR, Kritski F, Figueiredo TMRM, Vendramini SHF, et al. Dificuldades de acesso a serviços de saúde para diagnóstico de tuberculose em municípios do Brasil. Rev Saúde Pública. 2009;43(3):389-97. 11. Marcolino ABL, Nogueira JA, Rufino-Netto A, Moraes RM, Sá LD, Villa TCS, et al. Avaliação do acesso às ações de controle da tuberculose no contexto das equipes e saúde da família de Bayeux-PB. Rev Bras Epidemiol. 2009;12(2):144-57. 12.Donabedian A. The definition of quality and approaches to its management. Explorations in quality assessment and monitoring. Vol. I. Ann Arbor, Michigan: Health Administration Press; 1982. 13. Watkins CJ. The measurement of the quality of general ractitioner care. London: The Royal College of General Practitioners; 1989 (Occasional Paper 15). 14. Campos CEA. Estratégias de avaliação e melhoria contínua da qualidade no contexto da Atenção Primária à Saúde. Rev Bras Saude Mater Infant. 2005;5(Suppl 1):s63-9. 15. Davini MC. Enfoques, problemas e perspectivas na educação permanente dos recursos humanos de saúde. In: Política nacional de educação permanente. Série Pactos pela Saúde. 2006, v.9. Brasília; 2009. 16. Job JRPP, Gozzano JOA, Bernardes Junior OR, Garcia RH, Miralhes OJC, Miranda MAP. Informações que antecederam o diagnóstico de tuberculose pulmonar e tempo decorrido até o início do tratamento em pacientes matriculados em Centro de Saúde, São Paulo (Brasil). Rev Saúde Pública. 1986;20(1):21-5. Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 188-194 193 Carlos Eduardo Aguilera Campos, Ana Carla Freitas Fonseca, Mara Lucia Pessini 17. Brasil. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Controle da Tuberculose. Normas técnicas, estrutura. Operacionalização. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002. In: Merhy EE, Miranda Junior H, Rimoli J, Franco TB, Bueno WS. O Trabalho em Saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 161-98. 18.Campos CEA. O desafio da integralidade segundo as perspectivas da vigilância da saúde e da saúde da família. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(2):569-84. 23.Iervolino SA, Pelicione MCF. A utilização do grupo focal como metodologia qualitativa na promoção da saúde. Rev Esc Enferm USP. 2001;35(2):115-21. 19.Palomer RM. Garantía de calidad en atención primaria de salud. Monografias Clinicas en Atencion Primaria, n. 13. Barcelona: Doyma; 1993, p. 19-32. 24.Neto OC, Moreira MR, Sucena LFM. FIOCRUZ/ENSP/DCS. Grupos focais e pesquisa social qualitativa: o debate orientado como técnica de investigação. Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ouro Preto, MG; 2002. 20. Campos CEA. Perspectivas da utilização do fluxograma analisador no ensino de administração em saúde na Faculdade de Medicina da UFRJ. Rev Bras Ed Med. 2005;29(3):191-200. 21. Silva Jr AG, Merhy EE, Carvalho LC. Refletindo sobre o ato de cuidar da saúde. In: Pinheiro R, Mattos R, orgs. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, Abrasco; 2003. p. 113-28. 22. Franco TB. Fluxograma descritor e projetos terapêuticos para análise de serviços de saúde, em apoio ao planejamento: o caso de Luz (MG). 194 Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 188-194 25. Patton MQ. Utilization-focused evolution: the new century text. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage, 1997. 430 p. 26. Brasil, MS-DAB. Programa de melhoria do acesso e qualidade da AB [cited 2012 Mar 02]. Available from: http://dab.saude.gov.br/ sistemas/Pmaq Recebido em: 12/06/2011 Aprovado em: 17/04/2012