I ORIGEM DA IGREJA (Introdução) I - A origem da Igreja no acontecimento de Jesus Cristo Bibliografia: KEHL M. A Igreja, 239-286. KÜNG H. La Iglesia, 57-128. VELASCO R. A Igreja de Jesus, 17-52. CODINA V. Para compreender a Eclesiologia... 37-43. SAUTER G. “L’Origine della Chiesa dalla parola e dallo Spirito di Dio”, em: KERN-POTTMEYERSECKLER (org.), Trattato sulla Chiesa, Queriniana, 1990, pp. 226-242. HOFFMANN J. l’Église et son Origine. Em: LAURET-REFOULET (org.), Initiation à la Pratique de la Théologie III, Cerf, 1983, pp. 55-141. SARTORI L. Chiesa, Nuovo Dizionario di Teologia, Ed. Paoline, 1977, pp. 122-148. ESTRADA Juan A. Para compreender como surgiu a Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005. A Igreja tem sua origem no acontecimento de Jesus Cristo. Esta afirmação tão ampla constitui um dos pontos decisivos de qualquer eclesiologia cristã. Todos estão de acordo em afirmar que a Igreja tem sua raiz e fundamento em Jesus Cristo. Mas há desacordo no modo de ver como a Igreja se liga a Jesus Cristo. Como fazer a ligação entre a comunidade eclesial pós-pascal e o ministério do Jesus terreno? Não é preciso muito para compreender que tal questão se liga estreitamente a outra, que na modernidade tomou conta da cristologia, ou seja, a relação entre o Cristo da fé e o Jesus terreno ou histórico[1]. Além da razão estritamente teológica para abordar tal questão, há outra que, de certa forma, é mais preocupante: muitas vezes, se passa por cima da questão teológica fundamental, ou seja, da referência básica com as fontes primeiras da fé. Prefere-se um discurso no mero nível de uma apologia do poder hierárquico da Igreja, ligando-a em linha direta com o Jesus terreno. Por isso, nossa pretensão é, justamente, enfrentar essa questão fundamental, sem a qual o edifício teórico da eclesiologia deixaria de ter sentido, ficaria sem suporte, sem referência constitutiva à palavra viva e pessoal de Deus em Jesus Cristo. A constituição dogmática Lumen Gentium, do Vaticano II, afirma que “o Senhor Jesus iniciou sua Igreja pregando a boa-nova, isto é, o advento do Reino de Deus. Este Reino manifesta-se lucidamente aos homens na palavra, nas obras e na presença de Cristo. A Igreja recebeu a missão de pregar o Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo em todos os povos e deste Reino constitui na terra o germe e o início” (nº 5). Essa afirmação magisterial deve ser fundamentada pela teologia bíblica. A Igreja pode apelar para a pregação de Jesus de Nazaré para se afirmar historicamente? Jesus de Nazaré teve mesmo a intenção de fundar uma Igreja no sentido que hoje entendemos? Como seria então essa comunidade chamada Igreja na intenção primordial de Jesus Cristo? Numa observação inicial prévia, pode-se dizer sem receio que o tema próprio da pregação de Jesus é, segundo os próprios Evangelhos, o Reino. Mas na redação dos mesmos Evangelhos e na vivência das primeiras comunidades vai tomando importância e espaço o tema da Igreja. Ou seja: a realidade da própria comunidade constituída na fé começa a ser objeto da reflexão da comunidade. Define-se a origem, o seu sentido salvífico, o seu horizonte escatológico. Os vários elementos vão então fazendo parte essencial de sua identidade histórica, uma identidade referida ao fundamento que é Jesus Cristo na força do Espírito. Prosseguimos em 4 passos: 1) a Igreja como acontecimento da fé e questão teológica; 2) a problemática da origem da Igreja; 3) o enraizamento da Igreja no ministério de Jesus de Nazaré; 4) a Igreja dos cristãos enquanto constituída no poder do Espírito. [1] Para uma visão dessa questão cf. CODINA V. Para compreender a Eclesiologia a partir da América Latina, Paulinas, 1993, pp. 37-43. Aí se trata da passagem do Jesus histórico à Igreja. 16:03 | I - ORIGEM DA IGREJA: I - Fé e Teologia 1. A Igreja como acontecimento de fé e como questão teológica[1] Antes de introduzir a questão fundamental da origem da Igreja, queremos estabelecer o fato experiencial mais evidente para o cristão. A Igreja, como expressão social da salvação, é acontecimento da fé e objeto da reflexão histórica. Trata-se da fé que procura compreender (fides quaerens intellectum). 1.1 Acontecimento da fé A afirmação da Igreja está ligada à própria afirmação do Verbo Encarnado, Morto e Ressuscitado, e à força do Espírito. Pertence, pois, é estrutura necessária da salvação em Jesus Cristo. Não podemos pensar nem a Igreja sem Cristo nem Cristo sem Igreja. Alguns elementos nos ajudam refletir essa realidade da fé: a - Quanto ao termo “Igreja”, “Ekklesia”. Aparece apenas 2 vezes nos Evangelhos, mais especificamente em Mateus (16, 18 referida a Pedro; 18,16 ligada à correção fraterna), em contexto claramente eclesiológico. Pressupõe já uma comunidade cristã formada, que começa a tomar consciência de suas origens. É quando se dá a passagem do discurso sobre o Reino para o discurso sobre a Igreja. De fato, o termo mais freqüente nos Evangelhos é “Reino” “Basileia”. São 100 vezes, na maioria com a especificação “de Deus” ou “dos céus”. Nas primeiras comunidades se desenvolve a compreensão de que nelas chegou o Reino porque nelas se dá o Cristo de Deus. Toda a comunidade, unida a Cristo na fé, é “de Deus”, é” “qahal Jahwe”. Como a Igreja é um “acontecimento”? Ela o é enquanto constituída aqui e agora pela presença de Cristo pelo Espírito, enquanto é construída historicamente por essa mesma Palavra, nesse alicerce, e faz-se comunidade existente no dinamismo do Espírito que a anima. Isso significa, além do mais, que a constituição do "sujeito" da fé tem prioridade sobre a constituição do sujeito que "faz teologia" sobre a Igreja, enquanto, tocado pela fé, reflete sua existência partilhada. b- O conteúdo fundamental da “ekklesia” é, pois, o próprio mistério de Deus revelado em seu Filho, Jesus Cristo (ele, de fato, não tem sentido a não ser referido ao mistério de Deus uno e trino. Ele é pessoalmente o mediador dessa presença de Deus na história). Deve-se prestar bem atenção para não identificar a Igreja com o Reino. Na sua relação com Cristo a Igreja ao mesmo tempo em que está a ele ligada pela sua realidade sacramental, conserva certa distância. Ela não é o Cristo, mas o seu “sacramento”: sinal constituído em sua visibilidade histórica pela acolhida da Palavra e pelo testemunho vivo da fé[2]. Essa realidade “escondida” e revelada - o conteúdo fundamental da Igreja - foge a uma definição estrita. Na verdade, não nos é possível definir o que seja Igreja. Seu conteúdo mistérico é inacessível. Nós desconhecemos, de forma “demonstrativa”, apodítica, o seu “ser escatológico”, o seu “dever-ser”. Só Deus mesmo é que lhe pode dar a plena realização. Agora nós a vemos - mistério como por espelho. Como realidade mistérica nós a vemos na fé. Por isso nós cremos “a Igreja” por que cremos na Palavra de Deus que a cria. “Crer a Igreja” faz parte essencial do “crer em Deus e em sua Palavra”. Só Deus é objeto de nossa fé. Nele é que confiamos[3]. O próprio Vaticano II, na Lumen Gentium, não nos dá uma “definição”, mas apenas descrições ou abordagens aproximativas da realidade da Igreja, sem um conceito “global”. O que o Concílio nos fornece é uma imagem “diretiva”: “Povo de Deus”[4]. O Povo de Deus do NT é o Corpo Místico, a presença histórica de Cristo. As tentativas de definir a Igreja vão se substituindo na história da eclesiologia[5]. 1.2 A Igreja como questão teológica Trata-se de ver aqui não mais a Igreja enquanto é compreendida como mistério de Deus na experiência cristã, mas de se perceber o itinerário da reflexão teológica sobre a Igreja. A sistematização do discurso teológico sobre a Igreja (= eclesiologia) não surgiu de repente já completa. Foi sendo articulada no horizonte da consciência histórica dos cristãos frente a conjunturas concretas que exigiam uma resposta, ou seja, uma justificação da Igreja, uma legitimação de sua existência, de sua pretensão frente à revelação em Jesus Cristo e de sua posição frente ao mundo. Esse discurso, num primeiro momento mais jurídico, depois apologético, foi desembocar nos últimos 50 anos, incluindo o Vaticano II, numa busca do sujeito histórico da Igreja: quem é a Igreja e o que ela é? Aí vai se definir com maior clareza na consciência cristã a auto-compreensão da fé em torno da Igreja. Vamos enunciar rapidamente, em alguns passos, os tópicos mais importantes dessa evolução eclesiológica. Prescindimos daquela época em que o discurso sobre a Igreja não era ainda sistematizado, mas apenas implícito nos discursos sobre outras realidades da fé. O discurso explicitamente articulado sobre a Igreja nasce no s. XIV. a) A Eclesiologia, como reflexão articulada e sistematizada, nasce num contexto de legitimação do poder eclesiástico frente ao poder nacional emergente nos países da cristandade medieval (reis) e frente ao mundo dos leigos (fiéis). É uma questão de direito do poder eclesiástico frente ao poder civil na cristandade. Quem manda na cristandade medieval? É uma eclesiologia para justificar o poder hierárquico na Igreja. Numa expressão curta: é uma eclesiologia “da parte pelo todo”, onde a parte é a hierarquia e o todo a comunidade dos fiéis batizados[6]. b) Já no s. XVI, como reação à reforma protestante, se traça uma eclesiologia preocupada em legitimar a Igreja católica em sua forma confessional, representada pela sua hierarquia, diante da expansão do protestantismo em suas mais variadas formas. Numa Igreja “dividida em confissões”, a preocupação é a de afirmar a representação exclusiva da salvação. A verdadeira Igreja de Jesus Cristo não é outra senão a Igreja católica. Ela representa a salvação de forma legítima. Fora dela não há salvação, mas só perdição. Aí começa a apologética anti-protestante (os protestantes afirmam uma Igreja “invisível”, da Palavra, contra uma Igreja “visível”, dos sacramentos, a Igreja católica). c) Frente à sociedade moderna e ao estado burguês moderno, secular e laico, a Igreja católica tende a se afirmar, seguindo a eclesiologia já delineada por Belarmino, como uma “sociedade perfeita”, que não deve nada ao estado secular e laico. Ela inicia um processo de “duplicação” de serviços na sociedade (escolas, hospitais, partidos... católicos...) para fazer frente à evolução do mundo moderno e assim se afirmar como a única tábua de salvação para o mundo (visto dentro de um quadro de referência apocalíptico: fora da unidade visível com a Igreja hierárquica, leia-se o papado, não há salvação para o mundo. Essa vai ser a ideologia eclesiástica da restauração do s. XIX, que desemboca no Vaticano I. Este concílio supera, por um lado, o tradicionalismo rígido; por outro, o racionalismo da ilustração do s. XVIII). À apologética anti-protestante acrescenta-se, no novo contexto, a apologética anti-moderna, anti-racionalista do s. XIX (basta ver o Syllabus, uma coleção de erros contra os modernos, de 1864 e a célebre Encíclica Pascendi Dominici Gregis, de Pio X, 1907, contra os modernistas). d) A eclesiologia jurídica da “societas perfecta” foi praticamente a eclesiologia dominante até os anos 40 desse século (passando pela crise modernista, crise de assimilação dos pressupostos científicos e hermenêuticos modernos para abordar questões referentes à fé e à exegese. Cf. Loisy e outros). Mas a Encíclica de Pio XII, Mystici Corporis Christi (1943) ultrapassa os padrões de uma eclesiologia jurídica (hierarcologia, na expressão de Y. Congar), que organiza um discurso sobre a parte (hierarquia) no lugar do todo (a “communitas fidelium”). Nesta encíclica o papa tenta um discurso global, uma reflexão que tem como ponto de partida a participação de todo batizado no “corpo místico” de Cristo, pela fé. (Daí decorre um discurso 1) sobre os carismas (a primeira vez, depois de séculos, que se fala disso para o simples cristão); 2) sobre a participação litúrgica. Mais tarde o mesmo Pio XII vai aprofundar essa orientação na sua encíclica “Mediator Dei” (1947) sobre a liturgia e a participação mística de todo o cristão no corpo da Igreja (apenas uma observação: o movimento tradicionalista já naquela época levantava reservas a essa carta encíclica papal! O que depois se explicita com a rejeição prática do Vaticano II). e) O Vaticano II é o resultado de todos os movimentos de renovação da Igreja que a partir do final do s. XIX e início desse vão influenciando a consciência católica em várias direções. A eclesiologia conciliar move-se substancialmente em 3 direções: 1. na direção da auto-compreensão da Igreja como povo de Deus, cujo conteúdo essencial é o mistério de Cristo. Aí temos a Lumen Gentium; 2. na direção dos outros cristãos organizados em Igrejas, ecumenismo, e de outras religiões, no diálogo inter-religioso. Essa nova fase da eclesiologia envolve uma concepção de Igreja diversa do passado, mais aberta, não exclusivista, mas de fronteiras abertas a partir de sua identidade fontal; 3. na direção do mundo de hoje, compreendido como espaço onde necessariamente ela deve exercer sua missão evangélica. Temos então a Gaudium et Spes. f) Um concílio pastoral. O Vaticano II havia se definido não como um concílio dogmático, interessado em proclamar novos dogmas, como expressão insuperável da identidade histórica da Igreja. Ele se definiu como um concílio pastoral, ou seja, um concílio de “aggiornamento” (João XXIII), de atualização da face da Igreja e de sua mensagem à nova realidade do mundo, depois de 4 séculos de fixismo em torno de Trento. Sendo assim, e diante da nova situação da Igreja, especialmente no terceiro mundo, incluindo a AL, era de se esperar alguma evolução eclesiológica posterior. Foi o que aconteceu na AL, através de uma leitura do concílio a partir da periferia dos países centrais do cristianismo ocidental (especialmente europeus, que com o vigor de sua teologia, foram os principais responsáveis pelo bom êxito do concílio). A emergência dos pobres dentro da Igreja, no quadro atual das transformações sócio-eclesiais, se expressou na AL, com força, nos documentos episcopais de Medellín (1968), de Puebla (l979) e de Santo Domingo (1992), aprovados respectivamente pelo papa (Paulo VI e J. Paulo II). A visão da Igreja (e da sociedade) que se esboça, mesmo com algumas contradições, parte do “reverso” da história, do “não- homem”, ou simplesmente do pobre, reconhecido não simplesmente como objeto da solicitude pastoral da hierarquia ou dos cristãos burgueses, mas como sujeitos de sua fé, capazes de uma resposta plena ao Evangelho de Jesus Cristo, portanto, capazes de se organizarem como “ekklesia”. Essa emergência dos pobres dentro da Igreja e o reconhecimento dessa emergência pela hierarquia são acontecimentos eclesiológicos mais importantes nos últimos tempos. Devem produzir transformações profundas na forma histórica da Igreja se articular dentro do mundo (não vamos agora detalhar essa forma histórica possível, pois isso será objeto de atenção mais adiante). g) As controvérsias atuais em torno da vida eclesial, no início do s. XXI mostram, por um lado, o risco de discursos incompletos e não plenamente amadurecidos; por outro, quanto é difícil para as pessoas de Igreja assimilar um discurso crítico sobre ela e dar tempo até que a própria teologia amadureça criticamente as novas abordagens. Hoje cada vez mais se coloca a questão da relação entre teologia e discurso crítico das ciências humanas, entre discurso teológico e o discurso das ciências do social sobre a Igreja. De fato, a Igreja como realidade teologal pertence ao processo revelatório do mistério de Deus uno e trino no mundo. Insere-se, pois, na visão de conjunto da “economia” da salvação. Todavia, essa mesma Igreja como realidade histórica só subsiste como instituição social. Aí ela cai sob o crivo da razão histórica e do saber científico. O discurso crítico é necessário também para abordar a realidade histórica da igreja como forma de desvelar os interesses históricos que se escondem por detrás de todo e qualquer fenômeno histórico. Serve para torná-la mais autêntica e fiel à sua missão divina. Não devemos ter medo desse tipo de discurso. Mais do que isso, devemos temer todo discurso que esconde, camufla e sacraliza os reais interesses históricos de um dado projeto eclesial. Na verdade, o problema do discurso crítico não está nele mesmo, mas nos seus portadores ou nos que o recebem, os receptores. Ele cai normalmente dentro de um espaço de interpretação já previamente definido, produzindo reações divergentes. O discurso crítico, por sua natureza, é polêmico, controvertido. Ele mesmo deverá sujeitar-se a critérios próprios da fé. Deve, pois, situar-se frente à tradição da fé e à experiência fundante dessa tradição. Dizendo de outra forma: deve submeter-se ao crivo e ao juízo do Evangelho. Ora, a substância do Evangelho é a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, como revelação do projeto do Pai (Reino) de salvação universal. A referência a esse acontecimento histórico-escatológico é necessária como forma de situar a vida da Igreja (hoje) frente à experiência fontal (Jesus Cristo é a “norma normans”, enquanto a Igreja é “norma normata” do ser cristão hoje). O último parágrafo (g) nos devolveu, a partir da atual controvérsia eclesiológica, à experiência fundante da Igreja, a partir de Jesus Cristo, o pregador do Reino, enviado de Javé. [1] Cf. HOFFMANN J. 57-82. [2] Cf. BOFF L. Igreja: carisma e poder, Vozes, 1981, pp. 16-17. O A. faz uma breve reflexão sobre a correta articulação entre Reino-mundo-Igreja. [3] Cf. BARREIRO A. "Povo Santo e Pecador”. A Igreja questionada e acreditada, Loyola, 1994, pp. 66-79. [4] Cf. Lumen Gentium, cap. II, sobre o Povo de Deus. Antes Pio XII, na Encíclica Mystici Corporis Christi, 1943, havia se fixado na imagem do “Corpo Místico”. [5] Cf. GRANFIELD P. “Surgimento e queda da ‘Societas Perfecta’”, Concilium 177 (1982) 7-14. [6] “Pars pro toto”. Cf. Egídio Romano, Sobre o Poder Eclesiástico, Vozes, 1989, coleção “Clássicos do Pensamento Político”. Segundo os especialistas na história da Igreja, o tratado “De Ecclesia” tem seu nascimento com a obra de Tiago de Viterbo, De Regimine Christiano, 1301-1302. 16:01 | I - ORIGEM DA IGREJA: II - A questão da origem 2. A questão da origem da Igreja A Igreja é mais do que uma simples experiência histórica. Ela é um quadro de referência de uma visão da vida para os cristãos. Diz a Gaudium et Spes: “Todo o bem que o Povo de Deus, no tempo de sua peregrinação terrestre, pode prestar à família dos homens, deriva do fato de ser a Igreja “o sacramento universal da salvação”, manifestando e ao mesmo tempo operando o mistério do amor de Deus para com o homem” (45). Nossa tarefa mais importante será, pois, desvendar a relação da Igreja com o mistério da revelação de Deus na história: Jesus Cristo. Essa fundamentação tem como objetivo demonstrar que o Cristianismo e, portanto, a igreja, como expressão histórica privilegiada, não se fundamenta num mito de origem, mas num acontecimento histórico. Por isso o cristianismo se organiza como religião histórica. porque se fundamenta numa história vivida e experimentada por Jesus Cristo e, a partir dele, continuada no seu seguimento. A Igreja é, por isso mesmo, o capítulo essencial do seguimento de Jesus Cristo. Sem ela não há como “ser Cristão”. Para essa tarefa de fundamentação seguimos alguns passos imprescindíveis: 1. A Igreja é substancialmente uma realidade pós-pascal. Pertence à estrutura do testemunho do NT sobre Jesus Cristo; 2. Como tal, só se compreende como referida à obra histórica de Jesus de Nazaré, isto é, enraizada em sua vida e missão junto com o círculo dos discípulos; 2.1 A Igreja como acontecimento pós-pascal Como realidade escatológica a Igreja tem sua existência e identidade expressa pela Páscoa e pelo Pentecostes. Isso quer dizer que sua existência e identidade estão fundamentalmente referidas à morte e ressurreição de Jesus Cristo e à missão do Espírito. Por um lado, a Igreja nasce da entrega de Jesus na Cruz, acolhida por Deus que o ressuscita dos mortos e o eleva à condição de Senhor da história (Kyrios, isto é, o Cristo no Espírito). Por outro lado, o ponto culminante da formação da Igreja se situa na vinda do Espírito. Ela é fruto da cruz de Cristo que se torna capaz de enviar o Espírito para dar continuidade à sua obra histórica, ao seu ministério do Reino. O Espírito renova a missão de Jesus na convocação dos discípulos. Por isso, a comunidade que se reúne a partir dessa convocação começa a se chamar justamente de “ekklesia”. Se for verdade o que acabamos de afirmar, resta saber qual a relevância da história de Jesus de Nazaré para a Igreja. Como fazer a ligação entre o Jesus que prega o Reino e o Jesus que é pregado pela Igreja, cuja missão é continuar a sua missão? é célebre a afirmação de A. Loisy, no início deste século, em plena da crise modernista: Jesus anunciou o Reino, mas o que veio foi a Igreja. A distância entre Igreja e Reino é marcada pela ruptura ou pela continuidade na diferença? Neste contexto, o que significa afirmar que Jesus fundou a Igreja? Do ponto de vista dogmático o raciocínio corre mais ou menos assim: de um lado, a ressurreição não se explica sem a cruz; por outro, nem a cruz e nem a ressurreição falam por si mesmas. Os dois acontecimentos (se é que se pode falar aqui em dois e não um só acontecimento em duas faces) se inserem na intenção divina transcendente de salvar a todos os homens. Dito de outro modo, o acontecimento pascal só adquire seu sentido pleno como consumação (perfeição) da encarnação do Verbo. Ou seja: a Igreja se insere na própria estrutura do “auto-testemunho” de Deus, de sua auto-comunicação aos homens. é obra, pois, do Deus uno e trino (“ad extra”). Sendo assim, faz parte do raciocínio sobre a igreja pensá-la a partir da missão do Filho e do Espírito[1]. Vista como continuação da intenção de Deus desde sempre, podemos dizer que a missão da Igreja tem sua raiz e origem no mistério intratrinitário. Expressa-se historicamente na realização da missão de Jesus de Nazaré (o Verbo encarnado). Jesus consuma sua vida (conduz sua vida à perfeição = teleiosis, plenitude) na cruz, isto é, na sua entrega pelos pecadores. A comunidade cristã (=Igreja) deve ser percebida na relação fundante com essa entrega de vida pelos pecadores. 2.2. A Igreja está referida à obra histórica de Jesus Essa passagem é de suma importância para a fundamentação teológica da Igreja. Trata-se do enraizamento da Igreja no ministério de Jesus e no círculo dos discípulos, ou seja: na comunidade messiânica como expressão do Reino que vem. Pressuposto. A ressurreição não pode ser compreendida como princípio isolado da Igreja, mas como a culminância da história pessoal de Jesus de Nazaré. Portanto, como acontecimento de sua história pessoal, no horizonte “históricoescatológico”, pensando Jesus enquanto ele se entrega a Deus na cruz por nós como ápice da trajetória de sua vida referida a Deus. O mistério desse Jesus, vivo diante de Deus, é experimentado na fé pelos discípulos como força nova. É um novo começo: a comunidade estrutura sua vida a partir dessa experiência e se apropria dos gestos e palavras de Jesus, de sua prática histórica na situação da vida. A Igreja, assim, se constitui como seguimento de Jesus Cristo. Referida à obra histórica de Jesus de Nazaré, a comunidade cristã de primeira hora começa logo a se compreender na continuidade dos gestos e palavras de Jesus. Isso acontece pela apropriação desses mesmos gestos e palavras, de sua maneira de ser e de agir, de sua missão. Essa penetração faz-se na pregação, na catequese e na própria edificação da comunidade, isto é, na sua organização ministerial. Evidentemente que tal maneira de organizar a comunidade tem uma dupla intenção: 1- de afirmar que a experiência atual da comunidade adquire sentido a partir da obra histórica de Jesus; 2- de afirmar a própria auto-compreensão da comunidade como sendo o lugar de sua presença viva e atual. Assim foi se formando o grupo dos discípulos e as várias comunidades. Hoje essa formação de “grupos” apostólicos e de comunidades continua, mostrando a eficácia da vida e morte de Jesus, abrindo-nos à esperança numa vida nova. Ligado à própria vida de Jesus, adquire importância fundamental o grupo dos “Doze”, as colunas da Igreja, escolhidos por ele para fazerem parte do “grêmio” dos “apóstolos”. São as testemunhas qualificadas da vida, paixão e morte de Jesus. Daí vai surgir a “tradição etiológica”: “Apresentar Jesus como a origem histórica da Igreja é, para uma comunidade eclesial, uma forma de dizer que ele é o Senhor atual”[2]. Ou seja: “Apresentar a Igreja, ou seus ministérios, como se preformando no grupo dos discípulos é, para uma comunidade, afirmar sua convicção de ser fiel às intenções de Jesus, mais ainda, afirmar sua vontade de permanecer através de uma referência constantemente mantida em relação ao seu testemunho e ao ensinamento daqueles que o mesmo Jesus estabeleceu como suas testemunhas”[3]. Resumimos em algumas proposições as conseqüências dessa referência à totalidade de Jesus Cristo para a compreensão da Igreja e para a eclesiologia: 1- O discurso sobre a Igreja (eclesiologia) deve construir-se a partir do acontecimento pascal. Nessa experiência ela tem acesso à totalidade do acontecimento de Jesus Cristo (vida, paixão, morte e ressurreição)[4]. 2- Estar referida à obra histórica de Jesus e à sua pregação implica nessa outra afirmação: o discurso sobre a Igreja deve integrar o projeto evangélico de Jesus. 3- A continuidade entre a obra histórica de Jesus e a Igreja primitiva exige um discurso sobre sua legitimidade. “Em que medida a pregação do Reino era tal que permitia e legitimava o relançamento pós-pascal pelos discípulos, sob a forma de Igreja”. Esse discurso não se situa imediatamente em nível apologético, mas teológico. Ele procura a razão intrínseca da continuidade entre a Igreja que prega Jesus e Jesus que prega o Reino. O elo chama-se Espírito Santo[5]. [1] Cf. LG 2-4: aí se trabalha a derivação da Igreja da Trindade pela missão do Filho e do Espírito. Para o conceito de revelação como "auto-comunicação" de Deus, ver DV 2. [2] Initiation à la Pratique de la Théologie, III, 88s. [3] Assim deve-se compreender Mt 16,17s. Ibidem, 89 [4] Ibidem, 89. [5] Para um aprofundamento cf. KEHL M. A Igreja, pp. 241-286. HOFFMANN J. “La question de l’origine de l’Église”. Em: Initiation à la Pratique de la Théologie, pp. 85-91. Catecismo da Igreja Católica, ns. 758-769. 15: I - ORIGEM DA IGREJA: III; No ministério de Jesus de Nazaré (1) 3. A origem da Igreja no ministério de Jesus de Nazaré, o Cristo Situar corretamente a relação da Igreja com o ministério (a vida e a obra) de Jesus é uma das tarefas mais fundamentais e urgentes da eclesiologia. O enraizamento da Igreja em Cristo - a totalidade do evento Cristo - do ponto de vista teológico exige uma distinção entre o Cristo glorioso e o Jesus terreno. Na verdade, a questão da derivação da Igreja só se resolve satisfatoriamente situando a Igreja em relação a essa totalidade do único acontecimento do Verbo Encarnado. A diferenciação em “dois tempos” define a Igreja em relação ao específico de cada tempo. Na referência ao Jesus histórico se define melhor a relação da Igreja com o Reino. Na referência ao Cristo glorioso se define melhor a relação da Igreja com o Espírito Santo. Na prática, estamos afirmando: não há eclesiologia sem cristologia (implícita e explícita). “A Igreja deve ser interpretada a partir de Cristo e não a partir de qualquer conceito geral de sociedade”[1]. Para melhor aprofundarmos esse parágrafo enfrentamos dois tópicos: 1. O horizonte da prática de Jesus de Nazaré: o Antigo Testamento 2. A pregação e a prática de Jesus de Nazaré 3.1. Horizonte da prática de Jesus de Nazaré Cf. FÜGLISTER N. Formas de existência da ekklesia do Antigo Testamento. Em: FEINERLOEHRER, Mysteriurm Salutis, IV/1, 11-78. KERTELGE K. La realità della Chiesa nel Nuovo Testamento. Em: KERN-POTTMEYER-SECKLER, Trattato sulla Chiesa, Queriniana, 1990, pp. 107-110 (lembra o uso do termo ekklesia e sua ligação com Israel). Não é preciso refazer todo esse capítulo, sob outros aspectos, importante também na Cristologia. Basta-nos rever alguns elementos básicos que constituem o horizonte e contexto da prática de Jesus. Trata-se, antes de mais nada, do AT como expressão complexa e histórica do projeto de Deus a respeito do homem. Esse projeto se realiza de forma paradigmática em Israel. É a Israel que se dirige fundamentalmente a pregação de Jesus (cf. Mc 1,15). Essa obra fundamental de Jesus se realiza no contexto de um judaísmo marcado por um projeto de poder histórico bem definido: uma sociedade ao mesmo tempo nacional e religiosa. Há uma forte articulação ideológica entre o projeto político nacional e o projeto religioso do judaísmo (numa linguagem cristã: era um regime de “cristandade”, no sentido que esse termo assume na historiografia da Idade Média). Jesus quer superar essa estreiteza, abrir o judaísmo ao projeto universalista de Deus quer em relação aos gentios (os demais povos) quer em relação às camadas marginalizadas dentro da estrutura social do seu tempo. Para nós aqui interessa saber o que significa o projeto “ekklesia” em relação ao ministério de Jesus e seu aceno às raízes do AT. Para isso vamos aprofundar a relação entre Javé, Israel e sua missão entre os povos. a) O projeto “ekklesia” no AT[2]. Afirma-se costumeiramente que a Igreja foi preparada no AT. O que significa isso? O problema pode ser assim enunciado: se a Igreja se liga à própria vontade salvífica e universal de Deus, a compreensão do que seja Igreja deverá também ser buscada no próprio acontecimento revelador de Deus. A Igreja pertence ao próprio projeto de Deus de salvar-nos. Devemos captá-la na revelação progressiva de Deus no AT, nas estruturas pedagógicas que vão surgindo da acolhida dessa revelação. Nessa perspectiva, a questão mais importante está em saber como de fato se liga essa vontade salvífica de Deus, revelada na história da salvação, suas estruturas mediadoras, como se afirma a pretensão de uma comunidade histórica concreta, que nós chamamos “Igreja”, de ser a “representação histórica da salvação”. Essa tarefa faz-se, por um lado, explorando os elementos fundamentais de Israel no AT; por outro, definindo especificamente o papel de Jesus Cristo como centro da história. De forma sintética a Lumen Gentium expressa essa relação da Igreja com o mistério da vontade salvífica universal de Deus: “Assim estabeleceu (o Pai) congregar na santa Igreja os que crêem em Cristo. Desde a origem do mundo a Igreja foi prefigurada. Foi admiravelmente preparada na história do povo de Israel e na antiga aliança. Foi fundada nos últimos tempos. Foi manifestada pela efusão do Espírito. E no fim dos tempos será gloriosamente consumada, quando, segundo se lê nos santos Padres, todos os justos desde Adão, do justo Abel até o último eleito, serão congregados junto ao Pai na Igreja universal” (LG 2). Neste texto deve-se observar a seqüência “prefigurada”. “preparada”, “fundada”, “manifestada” e “consumada”. Ela marca um crescendo que temos que explorar. Mostra já uma continuidade ou mesmo uma identidade profunda do mesmo povo de Deus através de todos os tempos. Um só povo de Deus no Antigo e no Novo Testamento[3]. É o mesmo “Logos” divino a fonte dessa unidade. b) A relação de Israel com Deus[4]. Faz parte da autoconsciência de Israel sua especial ligação com Javé. Essa relação se expressa das mais variadas maneiras, mas especialmente em 3 formas: - pela relação de propriedade; - pela relação de parceria; - pela relação de presença especial em Israel, templo de Javé e lugar de sua manifestação no mundo aos povos. No nível da linguagem, a relação de propriedade ou pertença expressa a iniciativa de Javé de convocar um povo para si. Javé “fez Israel”, “formou-o”, “tomou-o pela mão”, “tomou-o para si”, “resgatou”, “escolheu”, “separou para si um povo”, “santificou” e outros termos que significam sempre uma “eleição” e uma “vocação” de Israel da parte de Javé, para constituir com ele um “povo de Javé. Nem é preciso insistir sobre isso. Todo o AT fala dessa relação. A segunda relação fala de parceria. Para sermos didáticos, na compreensão da aliança (berith) devemos distinguir dois aspectos: uma “diatéke”: disposição definitiva de Javé a favor do povo de Israel, que significa ao mesmo tempo a “fundação do povo”. uma “obrigação” permanente entre as partes que fazem entre si uma aliança. Essa obrigação mútua se expressa pelas palavras do êxodo: “Eu serei o Deus deles. Eles serão meu povo” (6,7). Essa relação de parceria se expressa em 3 palavras: “conhecer”. Javé conhece seu povo e o povo conhece a Javé (cf. Jo 10, parábola do Bom Pastor, retoma essa linguagem). “amar”: tomado no sentido de “desejo apaixonado de estar próximo”, comprometido com o sujeito amado, no caso o seu povo para Javé e Javé para Israel. “ser fiel”: tem o sentido de amor como lealdade e solidariedade entre Javé e seu povo. A terceira é a relação “sacramental”: Israel como lugar da presença de Javé, seu templo. Ele se “encarna” no seu povo, é o “Emmanuel”, o “Deusconosco”, que habita no meio de seu povo e o faz santo. Esse é o tema da Shekinah: Deus faz sua tenda no meio de nós (João vai falar no NT do “Verbo que se fez carne e habitou entre nós”: fez sua tenda entre nós). Israel torna-se então a residência de Javé. Ele se faz o seu templo. A ekklesia, mesmo no AT, não é nunca um mero edifício, mas sempre o povo de Deus que se reúne para o louvor de Javé, para o culto ao seu Deus. Nessa reunião Israel toma consciência do ser “presença de Javé” no culto, na oração, na ação de graças, na expiação dos pecados e no perdão. No culto divino Deus manifesta sua glória (kabod) e sua salvação (shalom) no mundo e para o mundo. Partindo dessa relação sacramental de Javé com Israel chega-se a outra questão: qual é então a missão de Israel em relação aos demais povos? c) A missão de Israel entre os povos. Citamos acima At 15,14 (Deus chamou para si dentre os povos - gojim-ethne - um povo - am=laos). Agora se faz necessário discernir a relação entre esse povo escolhido e os demais povos da humanidade. Como explicar a singular relação de um povo com Javé frente a outros povos? Seria um privilégio ou uma responsabilidade histórica? - Um povo dentre os povos. O ponto de partida é o “princípio de eleição” do povo de Israel para a maior glória de Javé. Ele é distinguido entre os demais povos, “separado”, “santificado” e, por estar ligado a Javé, “santo”. Um povo mediador. Ele é escolhido dentre os povos não simplesmente para se gloriar, como se fosse mero “status”, fruto de um merecimento seu. Ele é escolhido para os povos. Ele assume, pois, uma função salvífica. Deve ordenar-se, organizar-se, para essa função: Israel só se realiza como Israel se cumprir sua missão “sacerdotal” de mediação salvífica para os demais povos (“sereis minha propriedade dentre todos os povos... um reino de sacerdotes e um povo santo”: Êx 19,5ss; cf. 1Pd 2,9; Ap 1,6; 5,10). Para a salvação do mundo. Na sua experiência de Javé como salvação para todo o povo, Israel descobre que esse Deus que salva é também o Deus que cria o mundo e os homens, portanto, o criador do mundo e o Deus da aliança “é o Deus do universo” (Eichrodt). Essa representação universal de Israel não se dá, porém, pela sujeição dos demais povos a ele, nem mesmo pela inserção deles no povo de Israel, mas pela participação no culto libertador de Israel. De fato, Isaías já dizia: “E quanto aos estrangeiros que se entregaram a Javé para servi-lo... e que se mantêm fiéis à minha aliança, vou trazê-los ao meu monte santo e os cobrirei de alegria na minha casa de oração. Os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão bem aceitos no meu altar. Com efeito, a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (Is 56, 3.7. Cf. Também 1Rs 8,41s. Quando Jesus purifica o templo, cita Isaías 56,7. A versão de Mc 11 parece mais fiel ao Jesus histórico. Já Mt 21,12s parece mais conservador: tira a referência aos povos e tenta salvar a “teologia do templo” própria do judaísmo). Essa mensagem significa que o apelo de Javé a Israel é o apelo a todos os povos, numa visão universalista e escatológica do homem e do mundo. Essa visão ampla pode ser lida e rezada no salmo 87: Sião, mãe de todos os povos, numa visão aberta e universalista, diríamos nós, ecumênica: “De Sião será dito: todo homem ali nasceu, e foi o Altíssimo que a firmou. Javé inscreve os povos no registro: este homem ali nasceu”. Para concluir: pode-se observar como esse restolhar as formas da Ekklesia do AT pode ser altamente compensador para a compreensão da Igreja hoje. Todas essas formas pertencem ao “espaço simbólico” coletivo da Igreja de Jesus Cristo. Elas são continuamente retomadas e reinterpretadas nas mais variadas situações, mas conservam sua força de expressão na medida em que se referem ao evento fundante da Palavra de Deus, válida para todos os crentes em todos os tempos e lugares. Fazendo o estudo hoje destas formas, podemos perceber que a nova prática eclesial, mesmo encontrando novas formas de expressão, se reencontra na radical práxis do povo de Deus, desde o AT[5]. [1] M. SCHMAUS, A Fé da Igreja, vol 5, Vozes, 1980, p 25. [2] Cf. “Formas de existência da ekklesia do Antigo Testamento”, em FEINER-LOEHRER, Mysteriurm Salutis, IV/1, 11-78. [3] Deve-se, pois, manter a continuidade e a identidade de um só povo de Deus. Nós estamos incluídos na vocação e na missão de Israel. Cf. LG 16. [4] Sobre o tema da eleição ver QUEIRUGA A. T. O Diálogo das Religiões, Paulus, 1997, pp. 37-43. A eleição “não é ‘favoritismo’, pois sua destinação é intrinsecamente universal” (p. 39). [5] Há um conceito interessante para entender a posição de Jesus de Nazaré e sua visão, o “universalismo escatológico”. O que se concretiza necessariamente na história tem seu sentido pleno no horizonte escatológico. Cf. para isso Mysterium Salutis IV/1, p. 59s. I - ORIGEM DA IGREJA: III - No ministério de Jesus de Nazaré (2) 3.2 A pregação e a prática de Jesus de Nazaré[1] Estamos agora em busca do projeto de Jesus. Nós já procuramos inserir a intenção fundamental de Jesus no próprio projeto de Deus de salvar a todos os homens. Vamos repetir de outra forma esse raciocínio fundamental: o ponto de partida teológico da eclesiologia. A encarnação do Verbo está intrinsecamente ligada ao projeto salvífico universal de Deus. Diz respeito, portanto, à vocação específica de Israel e ao núcleo central do AT. Por isso a intenção primeira de Jesus não poderia ser diferente do que a realização plena da missão de Israel em relação à Javé e aos demais povos. O discurso sobre a Igreja se encaixa dentro dessa orientação fundamental da vontade salvífica de Deus. Não vamos entrar aqui em detalhes sobre, por exemplo, os partidos políticoreligiosos do tempo de Jesus e sua expectativa messiânica, sobre o movimento batista (no qual se situa João Batista) e outros detalhes, já vistos na cristologia. Mais do que isso, interessa-nos aqui uma visão global do projeto de Jesus e de sua pregação do Reino, percebendo Jesus na sua relação com o povo, como pregador do Reino. a) O projeto de Jesus e a Igreja. Que tem a ver uma coisa com outra? Eis a questão. Pode-se afirmar sem receio que hoje a relação entre Jesus e a Igreja é um dos pontos que perpassa toda a discussão sobre o tema Igreja entre os cristãos. Trata-se do esforço de estabelecer hoje a legitimidade da Igreja e de sua pretensão de ser representação da salvação em Cristo. Essas discussões não são apenas teóricas, mas sobretudo práticas: estão ligadas à questão sempre quente do poder, de sua fonte, de sua legitimidade histórica e de sua articulação no tempo. Por isso tentamos olhar essa questão à luz não de nossas pretensões (a partir de nossos interesses de afirmar uma forma ou outra de “poder eclesiástico”, no mais das vezes já encarnada num quadro ideologicamente já definido), mas à luz do próprio projeto de Jesus. A leitura do projeto de Jesus deve ser realizada no contexto do “conflito de interpretações” que se configura frente à sua prática, dentro do judaísmo de seu tempo. Jesus era judeu e se reconhecia dentro da tradição religiosa do judaísmo. Esse é um ponto de partida aceitável para todos os cristãos. É, pois, dentro desse judaísmo que Jesus, iniciando o seu ministério do Reino, toma posição frente às várias correntes que fazem sua própria releitura do AT. Evidentemente, os vários movimentos religiosos, as várias correntes de pensamento dentro do judaísmo, tinham como ponto de referência comum as Escrituras do AT. Nem todos os grupos religiosos, porém estavam unidos na interpretação das mesmas. Acontece assim com os cristãos hoje e mesmo entre católicos. Todos lemos o mesmo NT, que nos fala da mesma “tradição” dos ditos e feitos de Jesus. Mas a leitura em certo momento nos divide. Como hoje, naquele tempo havia os desencontros entre as várias teologias e interpretações dos textos sagrados. No contexto de tais tendências interpretativas e de teologias diversas, Jesus coloca-se decididamente dentro de uma tradição, privilegia uma tendência dentro do conjunto das Escrituras, a tradição profética. Vale lembrar que Jesus não levanta nenhuma pretensão sacerdotal. Como judeu era leigo. Rejeitou toda tentação davídica, forte entre os zelotes e outros. Ao redor da pregação e da prática de Jesus cria-se um conflito de interpretações. Enquanto, por exemplo, saduceus privilegiam a tradição sacerdotal (são mais ligados à teologia do templo), os fariseus, partindo da mesma tradição, vão se ligar mais ao povo (os fariseus são leigos, como Jesus). Jesus vai interpretar a Lei na tradição do radicalismo profético. Assume, pois, uma posição definida dentro das diversas interpretações da Lei. Qual seria a intenção de Jesus, sua pretensão? Numa fórmula breve, poder-se-ia enunciar essa pretensão assim: Jesus queria conduzir o povo de Israel de novo às fontes da fé; libertar o rosto de Javé das muitas máscaras que as interpretações parciais e menores dos homens lhe impuseram, afirmar que o Deus que salva não é o Deus feito ídolo pelos chefes, mas o Deus da grande tradição, desde Abraão, até Moisés e os profetas; que esse é um Deus de vivos e não de mortos. Trata-se, portanto, de redescobrir o verdadeiro espírito da aliança, indo além dos próprios profetas. Jesus prega, desta forma, um mandamento novo: do amor sem limites quer a Deus quer ao próximo. Prega por isso mesmo um Deus que não está distante, mas que se aproxima do homem como Pai, um Deus próximo de cada um dos homens, especialmente dos pequenos. Esse é o Deus do Reino. Esse amor misericordioso de Javé é o conteúdo próprio da pregação do Reino. Jesus vem falar não de um Deus para cima de nós, mas de um Deus para nós, que se faz um de nós: “Deus conosco”. Além de pretender reconduzir Israel às fontes da fé, Jesus assume uma segundo dimensão da tradição profética: em sua pregação, realiza a abertura do judaísmo aos povos, uma abertura universal. O judaísmo, para ser fiel a Javé, tem que se abrir aos povos. Essa é sua grande missão. Esse é o significado do encontro de Jesus com o Centurião, com a samaritana e tantas outras passagens do NT. Trata-se de um gesto exemplar de acolhida dos pagãos no povo de Deus. Essa atitude desenvolve-se, mais tarde, no seio da primeira comunidade cristã. Neste sentido é que se deve tomar toda a temática da Jerusalém celeste, mãe de todos os povos. Ela adquire um significado escatológico de “metrópolis”, a cidade mãe de todos os povos. Pelo que ficou dito até agora, o que aparece é que o projeto histórico de Jesus não era simplesmente fundar uma “nova comunidade” diferente do Israel histórico. Como entra então a Igreja nisso? Já foi dito acima que Jesus viveu dentro do judaísmo. Seu objetivo não era sem mais “fundar” uma outra “religião”, mas conduzir à perfeição (à plenitude, “teléiosis”) a fé original do AT. Sob esse aspecto não se pode afirmar que Jesus tivesse a intenção de fundar uma “ekklesia”, fora de Israel. O que ele pretendia era uma renovação radical do judaísmo, abrindo-o aos novos tempos e à nova revelação de Javé (que acontecia nele e em sua pregação), explicitando o amor universal de Javé para além das fronteiras do judaísmo histórico, na direção dos gentios. Foi com esse objetivo que Jesus estruturou o grupo dos discípulos, como representantes escatológicos de todo o povo de Israel. Dentro desse grupo escolheu Doze, como expressão da totalidade de Israel e de sua vocação e responsabilidade particular. São representação das Doze tribos de Israel. Nessa disposição de Jesus revela-se a intenção fundamental de Deus, de dar continuidade ao AT. Os discípulos deviam continuar a tarefa de renovar Israel e abri-lo aos povos. A última ceia, lida nessa luz, reforça essa intenção fundamental de Jesus. Sob esse aspecto, pode-se afirmar que, do ponto de vista de uma leitura histórica do Jesus terreno, uma Igreja distinta do judaísmo foi como que “um acidente de percurso”. Não estava “previsto como veio”. Foram os acontecimentos históricos de sua vida, tal como se deram, que o levaram até a essa ruptura com essa intenção fundamental, melhor dizendo, conduzir essa intenção fundamental por outros caminhos. Para esse desfecho joga um papel fundamental a rejeição de Jesus por parte dos chefes do povo. A Igreja da primeira comunidade segue o apelo de Jesus. Ela é uma instituição humana, por um lado, que se torna lugar privilegiado da ação do Espírito de Jesus. Por isso mesmo ela é também uma instituição divina, nascida da cruz de Cristo e de sua gloriosa ressurreição. Na distância do tempo, essa ruptura entre o grupo de Jesus e o judaísmo não era uma necessidade histórica. Ela é também fruto da responsabilidade histórica da primeira comunidade cristã que não conseguiu convencer os judeus sobre a verdade de Jesus Cristo (nem nós hoje conseguimos convencer nossos irmãos judeus e outros!). Refletindo as relações entre judaísmo e cristianismo nesse nível e nessa direção, não se fecha o caminho do ecumenismo. O caminho da unidade de fé entre judaísmo e cristianismo fica aberto: há sempre a esperança de que todos possamos reconhecer juntos a mediação universal de Jesus Cristo, descobrindo que o Deus revelado por Jesus de Nazaré é o mesmo Deus de nosso Pais comuns da fé, desde Abraão. b) Afinal: Jesus fundou uma Igreja? Metodologicamente nós partimos da Igreja como realidade pós-pascal referida à obra histórica de Jesus de Nazaré (cf. acima). Agora partimos do Jesus histórico para a plena realidade pascal do Cristo glorioso. Essa questão articula os resultados da exegese histórico-crítica com a afirmação dogmática: Jesus fundou a Igreja. Quer saber como compreender essa afirmação. Recordando: uma resposta suficiente a essa questão só é possível mediante a resposta a uma questão prévia: quais os limites entre história acontecida com Jesus (Jesus histórico) e a interpretação dessa história de Jesus no NT a partir da proclamação da fé pascal (Kerigma: Cristo da fé); isto é, qual a relação entre o que aconteceu antes da páscoa e o que foi depois reconhecido após a páscoa? Ninguém pode desconhecer o influxo que a Igreja nascente exerceu na redação dos Evangelhos. Diante disso os exegetas também divergem na interpretação dos textos mais significativos a respeito da Igreja (os textos explicitamente eclesiológicos, como Mt 16,18 e 18,16). Descontadas as divergências de maior monta, a maioria dos exegetas modernos e os teólogos, mesmo não tão avançados coincidem nalguns pontos: Primeiro: Jesus de Nazaré não fundou em vida, no sentido em que tomamos hoje o termo, uma “Igreja”. Deve-se logo de início prevenir contra “mal-entendidos” sobre essa tese. Vejam-se bem os termos em que ela é redigida. Mesmo repetindo algumas noções e conceitos, devemos lembrar que a preocupação fundamental de Jesus durante sua vida não era a de se dirigir a algum grupo a parte, mas a todo Israel. Ele se compreendia como representante de Deus para todo Israel. Isso o diferencia de outros pregadores e o distancia do pensamento religioso de outros grupos. Na verdade, Jesus protesta contra qualquer tipo de separação ou privilégio religioso. Ele mesmo não era afiliado a algum partido nem pertencia ao corpo sacerdotal. Era “leigo” piedoso, temente a Deus, que descobriu sua missão. Nesse Contexto, a vocação dos Doze não significava nenhuma separação, mas o chamamento simbólico de Israel. Os Doze discípulos apóstolos - são, pois, representantes de Israel. A única coisa que Jesus exigia especificamente era a submissão à vontade de Deus, pela conversão: mudança de mentalidade e modo de agir. O discutido texto de Mateus 16,18 é seguramente uma retroprojeção da figura do Cristo pascal. Enquanto Jesus não ressuscitou não se fala de Igreja. Ela é grandeza pós-pascal e não depende da autenticidade ou não do “lógion” acima. O fato da palavra “ekklesia” ter sido usada duas vezes nos Evangelhos nada diz. Aqui não está em questão um ou outro termo, mas o conteúdo pleno do seguimento de Jesus Cristo, do discipulado a que todos são convocados, de modo especial, aqueles que compartilharam com Jesus de seu caminho histórico, sua experiência apostólica, são testemunhas qualificadas de seus ditos e feitos, de sua morte e ressurreição. Quando entra em jogo a “rejeição” do Messias por parte dos chefes do povo é que o grupo dos Doze assume nova função. Então a comunidade escatológico-messiânica que se reúne ao redor de Jesus começa a se compreender como o “resto de Israel”. Desse “resto” ressurge o “novo Israel”, o povo novo[2]. Segundo: Jesus de Nazaré colocou em vida os fundamentos da Igreja pós-pascal. Essa segunda tese completa a primeira, matiza a sua afirmação fundamental. Recuperar o conteúdo explicitamente teológico da vida de Jesus. Jesus pregou a Israel o Reino presente em sua pessoa e em sua pregação. No meio do conflito suscitado pela sua pregação e prática, Jesus foi percebendo a força do mal, do pecado, presente nas estruturas de poder, na opressão histórica, na alienação em que o povo vivia. Esse poder opressor o rejeita como enviado de Javé. Mas não é a rejeição histórica do enviado que dá coerência à sua vida messiânica. A intenção profunda de Jesus liga-se ao projeto salvífico de Javé que transcende a própria rejeição histórica de seu enviado. Agora ela vai se revelar na formação da “comunidade messiânica” ao redor de Jesus. O novo povo haverá de ser formado por todos os deserdados: todos eles convidados ao banquete escatológico. Na parábola, os convidados não vieram. Então o Senhor mandou seus empregados pelas praças. Eles convidam os desempregados, os pobres, os humildes... Nessa mesma direção, pode-se argumentar teologicamente a partir da Encarnação do Verbo. A encarnação é fundamento para a Igreja na medida em que o Verbo “adquire” corpo, isto é, capacidade de comunicação humana que se dá no corpo e pelo corpo. A intenção profunda de Jesus de ser fiel ao projeto de Javé se revela na formação da comunidade messiânica (na ceia de despedida...) e, “a posteriori”, tomamos conhecimento dessa intenção na encarnação. Dizemos “a posteriori” porque o processo de conhecimento da intenção profunda de Deus vem depois da obra histórica de Jesus. Terceiro: Há Igreja quando há fé na ressurreição. Essa terceira tese capta o sentido estrito em que se toma o termo Igreja. A Igreja é realmente constituída na experiência do ressuscitado, pelo Espírito. Ela só se forma mediante a experiência pascal, uma vez que a ressurreição, como acontecimento que diz respeito à pessoa de Jesus Cristo, é o princípio histórico e teológico da Igreja. Partindo da ressurreição, do ponto de vista teológico, não se pode afirmar que tenha havido um período inicial sem Igreja. Há Igreja porque há o Senhor ressuscitado. Ela é obra do poder de Deus (Espírito) que congrega uma nova comunidade, antes dispersa (os discípulos fogem depois do Getsêmani...). A Igreja dos primórdios acentua essa relação criadora de Deus com expressões como Igreja de Deus (“ekklesia tou Theou”), povo de Deus (“laos tou Theou”) e outras. Quarto: Finalmente, a afirmação mais abrangente: a Igreja tem sua origem no acontecimento de Jesus Cristo. Essa quarta tese quer expressar que a legitimação da Igreja não se faz apelando simplesmente para um acontecimento particular da vida de Jesus, ou mesmo para uma palavra explícita que ele teria dito a algum discípulo, mas para a totalidade do acontecimento de Jesus Cristo como revelação histórica plena do projeto de salvação universal de Deus na história dos homens. Assim, pode-se afirmar sem receio: tudo o que se realizou em Jesus Cristo anunciou a Igreja. Isso vai matizado com outra afirmação. Pode-se dizer: o que converteu o grupo dos discípulos em Igreja não foi sem mais a pregação pré-pascal de Jesus de Nazaré, mas a vontade de Javé, à qual Jesus se submete, de ressuscitá-lo dos mortos e de derramar sobre eles o dom escatológico do Espírito como vocação para todos. “Historicamente a raiz da Igreja não está em determinadas palavras de Jesus nem propriamente em sua doutrina, mas em sua pessoa (humano-divina)” (H. Küng). Bem o diz o Concílio Vaticano II: O Senhor Jesus iniciou sua Igreja pregando a boa-nova, isto é, o advento do Reino de Deus, prometido nas Escrituras havia séculos: ‘Porque completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo (Mc 1, 15. Cf. Mt4, 17)’ (Lumen Gentium, 5) Como resultado do processo histórico da formação da consciência cristã a partir da morte e ressurreição do Senhor, a Igreja se compreende como o novo Israel. Essa é nossa última tese dessa série. Essa afirmação recupera, para além do Israel histórico, a fidelidade de Javé ao seu projeto salvífico, realizado em Cristo e continuado no ministério da Igreja. Mas não detalhamos agora essa tese. Ela tem que passar pela mediação do desenvolvimento histórico iniciado por Jesus dentro do Israel histórico. [1] [2] Cf. KEHL M. A Igreja, pp. 241-249. Cf. SCHMAUS, p. 26. I - ORIGEM DA IGREJA: IV – A Igreja dos Cristãos 4. A Igreja dos cristãos: no poder do Espírito Bibl.: KÜNG H. La Iglesia, Herder, 1968, pp. 131-313; VELASCO R. A Igreja de Jesus, Vozes, 1996, pp. 23-42; KERTELGE K. La Realtà della Chiesa nel Nuovo Testamento. Em: KERN-POTTMEYER-SECKLER, Trattato sulla Chiesa, Queriniana, 1990, pp. 106-135. A Igreja dos cristãos, ou seja, dos seguidores de Jesus, vai se constituindo a partir da experiência pascal (1), toma assim corpo histórico (2), como lugar e mediação da presença do Senhor ressuscitado (3). 4.1. A experiência pascal Entre o tempo da vida de Jesus e o tempo pós-pascal, da Igreja, há um corte, uma ruptura significada pela morte na cruz. A retomada da missão de Jesus depois da páscoa está referida não à iniciativa dos discípulos. Estes abandonaram o mestre. Mas ao próprio Deus, pelo Espírito. A partir desse “reencontro” dá-se uma “releitura eclesial” das palavras e gestos de Jesus. A experiência com Jesus é lida e revista a partir da fé pascal. A passagem de um tempo a outro é refletida nos “relatos de aparições”. A “aparição” é uma categoria própria do “ver” da fé e na fé. Fala da experiência desse “ver” da fé. Nela e por ela, os discípulos se sentem re-convocados para continuar a missão e o ministério de Jesus de Nazaré. Jesus agora vai agir e falar pelos gestos e palavras deles. Seguir a Jesus significa viver no espírito desses gestos e palavras. Horizonte dessa experiência inebriante é a escatologia. O Espírito que lhes é dado é o Espírito dos últimos tempos. O tempo definitivo já chegou, isto é, o Reino já chegou para eles em Jesus Cristo. Aí se explica aquela atmosfera vivida pelos primeiros cristãos do fim próximo, iminente (só mais tarde é que se chega à consciência de um tempo “intermédio” entre a primeira e a segunda vinda de Jesus, cria-se um espaço para a história da comunidade eclesial, no qual ela deve organizar sua vida, sua celebração e sua ação no mundo em conformidade com a experiência da fé: o Cristo morto/ressuscitado, na linguagem paulina). No próximo parágrafo tentamos abordar dois aspectos ou passos da “constituição” histórica da Igreja, ou seja, de seu nascimento “sócio-histórico” (o seu nascimento teológico, se é que se possa falar assim, sua “constituição” teológica dá-se no entroncamento com o mistério do Cristo enquanto revelação plena de Deus: Palavra histórica de Deus): A Igreja toma corpo histórico; e se torna lugar e mediação da presença do Senhor ressuscitado. 4.2. A Igreja toma corpo histórico Trata-se do processo pelo qual a comunidade cristã encontra sua identidade a partir de Jesus Cristo e do Espírito derramado (fé), uma identidade historicamente eficaz, marca a consciência dos que pertencem à nova comunidade. Mas não é só de identidade que se deve falar, mas também de “diferença” histórica. A comunidade cristã nasceu dentro do judaísmo, do Israel histórico. Ao mesmo tempo em que cresce a consciência de sua identidade específica, cresce o sentimento de diferenciação do Israel histórico. Os dois conceitos são, pois, correlatos. Outro título para essa parte poderia ser: o processo de emancipação progressiva do movimento em torno de Jesus de Nazaré de seu cepo judaico. Tal processo se consuma praticamente nos anos 70, com a destruição de Jerusalém. O pequeno grupo dos seguidores de Jesus, no início, não se distinguia de outros grupos religiosos existentes no judaísmo. Era mais uma “seita” do judaísmo do tempo. Mais uma não constituía problema (cf. At 24,5.14;26,22). Mesmo depois de Pentecostes, os discípulos apareciam como um partido religioso na comunidade judaica. Era uma “haeresis” = heresia ou partido. Reuniam-se no templo (At 2,26). Participavam dos sacrifícios do templo (Mt 5,23s). Pagavam tributo ao templo (Mt 17,24-27). Submetiam-se à jurisprudência da sinagoga (Mc 13,9; Mt 10,17). Exigiam a circuncisão e a observância da Lei (At 10). Pode-se concluir que o grupo dos cristãos se compreendia no início como membro do povo de Israel. O processo de tomada de consciência de ser um grupo novo requer tempo, como em qualquer grupo humano. Requer uma práxis histórica nova, como base para sua auto-definição, sua auto-compreensão. “Foi necessário certo tempo e várias experiências históricas para que os discípulos se sentissem não só como o verdadeiro Israel, mas também como o novo Israel” (Küng, 133). a) Experiências de pertença ao novo grupo: num clima tenso e forte de expectativa da parusia próxima, a comunidade primitiva viveu e celebrou sua fé pascal em novas práticas: A experiência do batismo no nome de Jesus para a conversão e purificação dos pecados como condição de entrar no Reino. Pelo batismo se entra na nova comunidade. Ele é a porta. Por ele se expressa uma forte relação de pertença à Igreja e nela a relação salvífica com Jesus. A experiência do “dom do Espírito” do fim dos tempos. Com ele chega a plenitude (7 dons!). A celebração da ceia escatológica da comunidade, seguindo o modelo ritual da ceia da despedida de Jesus (1Cor 11, 20-29). Significava a separação desse grupo da maioria do povo de Israel, que permaneceu incrédulo frente ao testemunhando profeta de Nazaré. A celebração eucarística já é testemunho e índice da consciência de rejeição por parte do Israel histórico. A oração em comum começa a se organizar nas casas dos seguidores de Jesus (At 2,26; 12,12). Principalmente se começa a invocar Jesus como “Senhor” o “Kyrios”. A comunidade viva de amor e de serviço começa a se diferenciar pelo modo de se relacionar dentro dela e de prestar serviço ao “irmão”. A diaconia era o ator de relacionamento entre os cristãos em todas as situações existenciais paradigmáticas (At 2,42). Enfim vem a organização da direção e do governo (kybernéseis) da comunidade. Ela se estrutura aos poucos. Não vem pronta como muitos ingenuamente imaginam Em função da experiência com o Jesus terreno e com o testemunho do ressuscitado (“viram” na fé) sobressai nessa tarefa o grupo dos Doze, tendo à frente Simão/Pedro. Ele ocupava uma posição dominante (cf. Gl 1,18ss; 2,9 e outras passagens bem conhecidas). A organização eclesiástica se desenvolveu pouco na Igreja primitiva. A razão está em que o espaço da imaginação e da criatividade estava ocupado pela expectativa próxima da parusia, como advento glorioso do Reino escatológico. De qualquer forma, esses elementos foram progressivamente preparando a estrutura organizativa da Igreja. Na medida e que se reforça o progressivo distanciamento do judaísmo e se cria a consciência do adiamento da parusia, torna-se necessária uma organização com tudo o que ela comporta. b) As duas “cristandades” do cristianismo primitivo A pregação apostólica se inicia em Jerusalém. Ela anuncia a ressurreição e o cumprimento das promessas a Israel. Desta forma, nasce logo a comunidade judeo-cristã, palestinense. Cria-se uma “cristandade” culturalmente marcada pela tradição religiosa judaica. Não interessa neste ponto detalhar como era essa tradição, mas apenas ressaltar que assim começou o cristianismo[1]. Logo, porém, começa outro tipo de comunidade marcada pela cultura helênica. Havia muitos judeus de língua e cultura helênica, e mesmo pagãos que simpatizavam com o judaísmo, os “prosélitos”. A expansão do cristianismo se deve fundamentalmente à passagem da Igreja do espaço cultural judaico para o espaço cultural grego, helênico. A Igreja agora vai se apresentar também e, sobretudo, como uma “Igreja de gentios”. Essa passagem acelera a diferenciação entre judaísmo e cristianismo, Israel histórico e Igreja. Ela vem reforçar a “identidade” cristã frente a um cristianismo interpretado como mera forma de viver o judaísmo. O cristianismo da gentilidade, livre da Lei mosaica e distante de Jerusalém (a grande obra pastoral de Paulo), unido ao fim do culto no templo de Jerusalém (destruído pelos romanos, ano 70, junto com os grupos ligados ao templo. Os que restaram, praticamente os fariseus, leigos, não ligados ao culto do templo: o farisaísmo se constitui o judaísmo normativo do final do s. I). Esses fatos são socialmente decisivos para completar o processo de desprendimento do cristianismo nascente. O cristianismo - e a Igreja que o representa - já não mais vão se apresentar como “heresia” do judaísmo, mas como caminho próprio, pelo reconhecimento do Jesus-Messias. Na compreensão da relação entre Israel e a comunidade cristã, a questão que resta, é saber quem é o verdadeiro Israel. c) Quem é o verdadeiro Israel? A primeira missão da comunidade apostólica visa a constituição do Israel escatológico pelo reconhecimento de Jesus-Messias. A própria comunidade cristã vai se reconhecendo como tal. Mas é justamente nesse processo que se desvela o significado histórico-escatológico da rejeição do Messias por parte do Israel histórico. A fé no Jesus-Messias coloca em questão a relação entre Israel escatológico e o judaísmo histórico. Diante disso: qual é o significado da Lei? Qual a sua relação com a salvação? Pode-se pertencer ao Israel escatológico sem passar pelo Israel histórico, pela Lei Mosaica? Paulo, analisando a experiência da Igreja dos gentios responde que sim. Os gentios se sentem convocados pelo Espírito a seguirem Jesus de Nazaré como Messias sem passar pela circuncisão e pelas práticas religiosas judaicas. A fé em Jesus Cristo legitima o movimento missionário iniciado pelo seu ministério terreno. A Igreja, de ora em diante, vai se compreender como o verdadeiro Israel: o novo povo de Deus. Nele as esperanças de Israel vão se verificar porque ele é o lugar e a mediação da presença do Senhor ressuscitado. 4.3 Igreja: lugar e mediação da presença do Senhor Ressuscitado O testemunho do NT sobre a Igreja é que ela é uma realidade local. Realizase num lugar e num tempo. “Ela nasce e existe onde os homens acolhem o Evangelho como boa-nova de salvação para eles... A realidade da ressurreição do Cristo é atestada no testemunho e na comunhão (koinonia) que ela suscita e determina”[2]. O fato é que no tempo da Igreja o Cristo está “ausente” como “alteridade visível”. “É impossível agora tocar seu corpo real. Não podemos tocá-lo a não ser como corpo simbolizado no testemunho que a Igreja dá dele, isto é, na palavra que ela anuncia, que ela celebra e tenta viver”[3]. Bem entendido: não encontramos Cristo a não ser na Igreja, lugar e mediação de sua presença. Mas como chegar à compreensão desse distanciamento de Jesus para compreender sua presença de forma sacramental, mediatizada num “corpo simbolizado”. Essa passagem é operada pelos “relatos de aparições” dos Evangelhos. Eles operam a passagem dos que “viram” o Jesus terreno e creram para os que crêem “sem ter visto” o Jesus terreno, através da categoria-chave do testemunho dos seguidores de Jesus. Através do testemunho da Igreja, “corpo-palavra” (“corps de parole”), pelo qual Jesus se faz ver. “Não se chega à fé a não ser pela mediação eclesial multiforme da ‘figura’ do Cristo”[4]. Observe-se, neste contexto, que se deve superar uma compreensão da Igreja como “encarnação continuada”, prolongamento do Cristo na história, na direção de um compreensão sacramental: sinal e instrumento, lugar e mediação de uma presença que é o segredo” escondido da Igreja mistério. Aqui surge uma pergunta: quais são as mediações constitutivas da Igreja? Ou seja: aquelas mediações que expressam a fé, sem a qual a Igreja não é tal, apenas uma enumeração: Um corpo de Escrituras que expressam a “tradição” testemunhal da fé comum: a “retomada eclesial da mensagem de Jesus”: a palavra anunciada, partilhada confessada... - Os sacramentos da fé, em especial o batismo e a eucaristia. A caridade vivida como fruto da fé: isto é, a prática dos cristãos, seu serviço de comunhão e de participação. Esse é o testemunho vivo do cristão no mundo. É insuperável e insubstituível. O ministério pastoral da Igreja: que tem como tarefa “presidir” a comunidade. Deve-se observar que essas mediações não são originais da comunidade cristã. Toda religião, mais do que isso, todo grupo humano fundamentado num sistema de valores gera: a) um corpo de doutrinas e de ritos; b) um código que regula a conduta de seus membros; c) instituições de referência para exprimir a unidade do grupo. O original do cristianismo é a fé (relação) fundante com Cristo, como ressuscitado e senhor da história. Portanto, nessa direção, “a Igreja se apresenta como uma rede complexa de palavras, de gestos, de papéis que, juntos, são como que a mediação da figura e da presença do Ressuscitado, e como tal representam esse ‘instituído eclesial’ que faz e modela o crente”[5]. [1] Aqui é bom lembrar a tese de K. Rahner sobre as 3 fases da história da Igreja. Cf. Schriften zur Theologie, XIV. METZ J. B. Theologie in neuen Paradigma: Politische Theologie. Em: KÜNG - TRACY (org.), Das neue Paradigma von Theologie, Benziger Verlag, 1986, pp. 119-128. 126. [2] Initiation à la Pratique de la Théologie, III, 121. [3] Idem, 121. [4] [5] Idem, 122. Idem, III, 123. O Espírito Santo e a Igreja 1: A Igreja como obra do Espírito O Espírito Santo e a Igreja[1] Este texto visa nos introduzir numa compreensão mais aprofundada da ação do Espírito Santo no mundo, em cada pessoa humana e em cada um dos seguidores de Jesus Cristo. Cremos firmemente que o Espírito Santo gera sempre novas formas de seguir a Jesus Cristo no coração dos batizados. Entre os muitos aspectos a aprofundar, um dos mais importantes é a relação entre o Espírito Santo e a Igreja. Essa reflexão se faz necessária como parte do esforço para superar muitos equívocos quer referentes à compreensão do Espírito Santo e de sua experiência na vida quotidiana dos batizados quer quanto à própria compreensão da comunidade eclesial, de sua presença no mundo e de sua missão. Numa Igreja fortemente hierarquizada o que mais aparecia ao olhar do observador é que o clero exercia o monopólio do Espírito Santo e de seus carismas. Mas no decorrer especialmente do século 20 - o assim chamado século da Igreja - muita coisa mudou. Os vários movimentos de renovação nos fizeram compreender melhor a Igreja como comunidade dos fiéis, ungidos pela graça do batismo, como comunidade de vocações, carismas e ministérios, em vista do Reino de Deus. O Concílio Vaticano II deu impulso a esse movimento renovador com uma visão da Igreja a partir do batismo e a doutrina sobre os carismas[2]. No final desse século - e do milênio - a situação parece inverter-se. De fato, a concentração na estrutura jurídica cede cada vez mais espaço à liberdade do Espírito dentro da Igreja, a despeito de certas tendências de retorno ao passado. Cada vez mais grupos reivindicam como própria a experiência do Espírito e o exercício de seus dons, como forma de seguir Jesus Cristo, de ser cristão. Em muitos grupos os carismas são até ansiosamente desejados; mais, até presumidos. Há os que buscam mais: querem dons espetaculares como manifestação estrondosa do Espírito, como prova de uma relação privilegiada com ele. Essa explosão carismática na Igreja, é claro, não pode ser analisada apenas sob o ponto de vista eclesial, interno à vida da Igreja. Há uma nova conjuntura planetária, gerada pela crise da modernidade, em seus vários aspectos, pelas transformações do Leste europeu, pela nova revolução tecnológica em curso, entre outras coisas. A onda carismático-pentecostal chega justamente numa época em que as instituições tradicionais estão enfraquecidas pela crítica constante a que estiveram submetidas nos tempos modernos. Como instituição histórica a Igreja se vê debilitada, abrindo enormes espaços para eclosão dos carismas, algumas vezes até de forma anárquica, sem a exigida submissão à ordem eclesial, suscitada pelo mesmo Espírito. Por outro lado, não é menos significativo o fato de que a atual busca da experiência do Espírito responde às novas formas de experiência da subjetividade, manifestadas nessa nova fase da modernidade no final desse século, que alguns estão chamando de pós-modernidade. Na mudança epocal que estamos vivendo, a nova experiência da subjetividade tem como núcleo não mais a razão crítica e histórica, mas a emoção, o cuidado de si mesmo, a busca do prazer de viver, do estar bem consigo mesmo. Neste quadro, a religião que é buscada é a religião da emoção, do cuidado de si mesmo, do prazer de viver e de estar bem com a vida. A experiência que é buscada é a que chega com esses ingredientes muito humanos, com boa dose de individualismo e de narcisismo. Tudo isso em nome do Espírito Santo! Esse quadro nos sugere, por isso mesmo, uma reflexão sobre alguns pontos que nos ajudem a compreender melhor a relação do Espírito Santo com a Igreja, entendida como comunidade de batizados. Essa reflexão visa justamente superar certos traços individualistas e narcisistas dessa assim anunciada “era do Espírito”, oferecendo-lhe uma compreensão do Espírito Santo que passa pelo seguimento histórico de Jesus, concretizado na comunidade eclesial, pela articulação tensa e dinâmica entre unidade e diversidade, entre instituição e carisma, em vista da missão evangelizadora. Seguem alguns pontos de reflexão. 1. A Igreja como obra do Espírito A Igreja é, antes de tudo, obra do Espírito[3]. Evidente que ela não pode ser considerada como mera obra humana. Ela é graça e expressão histórica da graça. Mas a graça de que se fala aqui não pode ser entendida “graça de Cristo” sem o Espírito. O esquecimento do Espírito é, talvez, a maior lacuna da eclesiologia do Ocidente. Por isso mesmo ela é freqüentemente acusada de “cristomonismo”. Ela acentuou, ao longo da história, a presença e ação de Cristo na origem e desenvolvimento da Igreja, deixando na penumbra, ofuscada, a presença e ação do Espírito. Isso constitui certamente um desequilíbrio doutrinal, fruto da prática eclesial do Ocidente, que sublinha a instituição jurídica em detrimento da liberdade carismática. Na verdade, o agir de Deus no mundo é o próprio Espírito. Ele conduz homens e mulheres, culturas e povos para a realização do projeto do Pai. O próprio Jesus age no poder desse Espírito que faz novas todas as coisas. É fundamental, pois, buscar as raízes mais profundas da Igreja no mistério trinitário. Afirmar o enraizamento da Igreja na vida e obra histórica de Jesus de Nazaré ainda não é tudo. A própria vida e obra histórica de Jesus não têm explicação em si mesma, mas no mistério trinitário que transborda para o mundo na forma de “comunhão missionária”, ou seja, o mistério do Deus cristão não se esgota nele mesmo, mas se exprime no envio missionário do Filho e do Espírito para a libertação do mundo. Assim é que Deus age desde sempre e em toda parte no hoje de cada geração. A Igreja nada mais é do que sinal privilegiado desse envio missionário para nós, na força do Espírito de Jesus Cristo. O que Jesus é para nós vem do Pai pelo Espírito. Este o acompanha em sua jornada terrena. O que Jesus faz é dar testemunho desse amor transbordante da Trindade, que chega até nós. De fato, na Trindade, a comunhão entre as três pessoas divinas se torna possível pelo dom que é comum a elas, que é o dom do amor. Por esse amor misericordioso, testemunhado por Jesus na força do Espírito, a história é recriada a partir da solidariedade e da comunhão. Assim nos tornamos “nova criatura”. Por isso que a tradição sempre afirmou que a Igreja é fruto da missão do Filho e do Espírito. Essa história de Deus no mundo e para o mundo se fundamenta na intenção salvífica do Pai, desde sempre, e tem início no tempo pela Encarnação do Verbo. O testemunho do amor salvífico e libertador de Deus chega ao seu ápice na plena articulação entre o mistério da cruz e ressurreição e do envio do Espírito. A plenitude da obra de Jesus Cristo é o Espírito Santo derramado no coração dos fiéis, como princípio da comunhão que nos faz Igreja. Podese dizer que a Igreja é o acontecimento do Espírito de Jesus Cristo em nós e entre nós. Assim dizendo, quer-se afirmar, primeiro, que a Igreja como comunidade dos batizados não existe sem a vida, paixão, morte e ressurreição do Filho de Deus; segundo, que ela não existe sem a manifestação do Espírito enviado pelo Pai e pelo Filho em Pentecostes. No acontecimento do Espírito de Jesus Cristo, em Pentecostes, a comunidade dos discípulos de Jesus sai animada de coragem apostólica para a missão. Adquire assim visibilidade histórica, justamente quando o Espírito é experimentado com dom dos últimos tempos[4]. Dizendo de outra forma, o Espírito constitui a Igreja na história como grandeza escatológica: sinal e instrumento da consumação dos tempos em Cristo. Neste contexto, a Igreja se revela não como uma espécie de apêndice da ação do Espírito, mas como criação do Espírito. Ele mesmo, como Espírito operante no mundo, cria um espaço histórico privilegiado - que chamamos Igreja, comunidade dos batizados - onde opera a obra de Deus por excelência, a salvação. Se prestarmos bem atenção, o Credo apostólico, que recitamos nas nossas celebrações eucarísticas, une a fé no Espírito à fé na Igreja. “Creio no Espírito Santo, na santa Igreja católica...” Isso significa que não se pode acolher Cristo e o Espírito como dons inefáveis do Pai sem aceitar a sua obra por excelência, a Igreja. Aceitar a Igreja faz parte da nossa fé em Deus. Ser nela recebido, acolhido, é graça que nos faz “povo de Deus”, “corpo de Cristo” e “templo do Espírito Santo”. [1] Esse texto originalmente constituiu uma contribuição do autor para a Comissão Episcopal de Doutrina da CNBB. Suas principais idéias podem ser encontradas no Relatório da CED na Assembléia Geral da CNBB de abril de 1998, com o título: A teologia do Espírito Santo e os Carismas. Cf. também O Espírito Santo e a Igreja. Convergência, 313, 1998, 264-271. [2] Cf. LG, 12c. [3] Importante distinguir entre “creio no Espírito Santo” e “creio na Igreja católica”. O ato de fé se orienta diretamente a Deus uno e trino, enquanto a fé na Igreja supõe a fé no Espírito Santo. Algumas confissões de fé batismais antigas diziam: “creio no Espírito Santo dentro da Igreja...”, para indicar justamente a diferença. Na verdade, a Igreja é a primeira obra do Espírito. Seguem-se as outras: comunhão dos santos, remissão dos pecados, ressurreição da carne e vida eterna. [4] Cf. At 2, 1-36. O Espírito Santo e a Igreja: O Espírito Santo e o seguimento de Jesus 2. O Espírito Santo e o seguimento de Jesus A referência ao Espírito abre o horizonte da Igreja àquela liberdade que a faz nova, livre e criativa em todos os tempos e lugares. Afirmar isso, no entanto, não significa compreender o Espírito como algo solto, sem exigências, sem compromisso, apenas para nosso gozo interior e para a satisfação de necessidades religiosas de ordem subjetiva, mesmo legítimas do ponto de vista humano. O Espírito Santo, na visão bíblico-cristã, está ligado à transformação do mundo, ou seja, à superação da injustiça, do pecado, do mal no mundo. Daí a necessária referência a Jesus de Nazaré, o Cristo e Senhor, como critério do ser cristão no mundo. Não falamos de qualquer Espírito, mas daquele que nos compromete com Jesus, sua pessoa e obra histórica, e que nos chama a segui-lo. O caminho de Jesus nos orienta para a missão e nos compromete com o próprio projeto de Deus. Por isso mesmo, o Reino de Deus é o centro da vida e da pregação de Jesus e da Igreja. Somos convidados a participar, por graça, do projeto de Deus ao acolher a fé. O mesmo chamado à fé nos chega pela voz do Espírito. Ele é o evangelizador invisível que prepara o coração dos homens e mulheres para acolher a Palavra da vida e responder com a fé. De fato, o Espírito dá testemunho no coração dos fiéis do mistério trinitário. Esse mistério não é algo vazio de sentido, mas a plenitude do amor entre o Pai e o Filho, que é o Espírito. Por isso, Agostinho afirmava que o Espírito Santo é como que “a comunhão inefável entre o Pai e o Filho”. A partilha que Jesus faz conosco dessa comunhão íntima com o Pai e o Espírito nos constitui seus seguidores, como testemunhas dessa comunhão de vida no mundo. Essa partilha da comunhão trinitária nos une como fiéis no caminho de Jesus e une as comunidades cristãs entre si, ou seja, essa partilha da comunhão trinitária em Cristo Jesus nos faz Igreja. A fé cristã, assim vivida e refletida, nunca pode ser uma fé vivida apenas na intimidade do indivíduo, no espaço privado, como se fosse possível viver plenamente a fé cristã destituída de sua dimensão pública e transformadora do mundo. Essa afirmação implica noutra: não é possível viver plenamente a fé cristã sem Igreja, ou seja, sem o sinal visível e historicamente eficaz do poder do Senhor ressuscitado. Deve ficar claro, pois, que a fé cristã sempre há de implicar duas coisas inseparáveis: primeiro, ela sempre tem a ver com o reconhecimento do outro, o próximo, como irmão, sem discriminação de raça, sexo, condição social...; segundo, ela é sempre fé eclesial, ou seja, envolve, por ela mesma, a pessoa e a comunidade contra todo individualismo e narcisismo. Por isso a tradição cristã sempre atribuiu ao Espírito a tarefa de gerar e alimentar a fé comum como resposta à Palavra de Deus. Pode se afirmar, pois, que sem o Espírito não há fé em Jesus Cristo. Entra, assim, o Espírito na vida dos batizados e da comunidade dos fiéis como libertador. Por ele somos libertados de nossos próprios limites, da nossa falta de horizontes e de perspectivas, de nosso pecado. Colocando-nos em comunhão de vida e de destino, suscita em nós a força necessária para a transformação do mundo. Ele é, por isso mesmo, o Espírito da profecia, antecipador da plena realização do fiel, da comunidade cristã e de toda história humana em Deus. O Espírito de Jesus Cristo edifica a Igreja como comunhão e solidariedade histórica, como dinamismo gerador de unidade entre os fiéis e entre as Igrejas (comunidades de fiéis) que vão nascendo pela história afora. A Igreja é assim edificada como comunhão de Igrejas, como comunidade de comunidades. Constituída, assim, no poder do Espírito, a Igreja é realmente sacramento, ou seja, sinal e instrumento da salvação (cf. LG 1). Dizendo isso de outro jeito: a experiência do Ressuscitado como ponto de partida da fé pascal não pode, de forma alguma, ser dissociada da experiência do Espírito em Pentecostes. Não são, na realidade, duas experiências, mas uma só e mesma experiência do mistério de Cristo. Essa experiência nos leva a viver a plena comunhão com Deus e com os irmãos, ao mesmo tempo em que nos compromete com o mandato de Cristo de pregar a Boa-Nova a todas as nações, em vista do Reino. Enfim, Separar Páscoa e Pentecostes seria o mesmo que separar a missão do Filho e do Espírito, como se fossem duas ações paralelas de Deus em favor do mundo. Ao contrário, essas missões são mais bem compreendidas como “missão” conjunta do Filho e do Espírito. Elas têm a mesma origem, O Pai; o mesmo objetivo, a salvação como obra conjunta da Trindade Santa. O Espírito Santo e a Igreja: Unidade e diversidade 3. Unidade e diversidade têm sua raiz no mesmo Espírito O discurso sobre a unidade e a diversidade na Igreja hoje não está isento de ambigüidades. Aparece, muitas vezes, dissociado de uma abordagem teológica coerente, como se unidade e diversidade fossem dimensões resultantes apenas de sua realidade histórica, prisioneiras de uma compreensão sociológica, corolários do exercício do poder na Igreja, entendida apenas como instituição social. Vista apenas sob o ângulo histórico, numa sociologia da instituição, a Igreja se apresenta como resultante do exercício do poder histórico e de seus objetivos. É próprio da instituição disciplinar pessoas e grupos dentro dela, orientando-os para o que ela entende como sua missão. No entanto, a Igreja não pode ser compreendida apenas sob esse ângulo. Ela é, acima de tudo, realidade da fé que obtém seu pleno sentido no horizonte das realidades últimas e definitivas da existência humana, ou seja, no horizonte de Deus. Nesse horizonte, unidade e diversidade são igualmente dimensões originárias da Igreja. Elas já chegam na sua raiz divina trinitária. De fato, há uma relação intrínseca entre a comunhão trinitária e a comunhão eclesial. Essa relação é estabelecida pelo dom que é comum que, de maneira análoga, diz respeito tanto à Trindade quanto à Igreja. Esse dom comum é o Espírito Santo. Ele é o fio que une as três pessoas numa unidade que não anula a diferença entre as pessoas divinas e, ao mesmo tempo, faz reconhecer a identidade específica de cada uma delas. Da mesma forma, a comunhão eclesial, resultante da efusão do Espírito, é produzida pelo dom do Espírito. Há uma diferença entre a relação do Filho e do Espírito com a história. No mistério da Encarnação o Verbo eterno se une a um sujeito histórico concreto e único, formando uma identidade historicamente reconhecida, Jesus de Nazaré, confessado como o Ungido de Deus, ou seja, o Messias e Senhor. Já o Espírito Santo se revela como dom partilhado à multidão dos fiéis. Como afirma E. Mühlen, ele é “uma pessoa em muitas pessoas”. Cada uma delas é reconhecida em sua diferença, em sua alteridade. As pessoas não são iguais entre si, mesmo as pessoas que professam a fé em Jesus Cristo. Elas são diferentes umas das outras. Mas, pelo Espírito Santo, formam uma comunhão tão profunda que elas são um só “corpo” do Senhor. Nesse corpo vivo cada qual preserva sua maneira de ser e, ao mesmo tempo, concorre para a edificação da comunidade, no exercício de sua própria liberdade resgatada. Neste ponto é importante distinguir, sem separar, comunhão eclesial de comunhão hierárquica. A comunhão eclesial é decorrência imediata da ação do Espírito Santo em cada um e no conjunto dos batizados. A docilidade a essa presença do Espírito de Jesus Cristo resulta no mistério da comunhão, dom inestimável repartido na comunidade dos fiéis. Essa comunhão eclesial mais profunda antecede e, de certa forma, fundamenta a comunhão hierárquica, colocando-a a serviço do bem maior da comunidade dos fiéis, para que possam aprofundar sua fidelidade à missão. A Igreja enquanto toda ela ministerial, a serviço do Evangelho, tem o dever de se organizar para que sua ação no mundo, como comunhão de dons, carismas e ministérios, seja eficaz para a causa do Reino de Deus. Os servidores do Evangelho na Igreja, em qualquer nível de atuação, devem submeter-se à ordem necessária querida pelo mesmo Senhor e seu Espírito em benefício de toda a família humana. Em suma, podemos dizer ainda que a Igreja, enquanto corpo histórico que manifesta a vontade de Cristo, não resulta apenas do princípio cristológico, tomado como fundamento da unidade da Igreja, deixando a dimensão da diversidade para o princípio pneumatológico. Isso significaria criar de novo o dualismo que queremos superar. Uma compreensão coerente com os princípios da fé cristã deve articular a dimensão cristológica e pneumatológica, formando como que um único princípio gerador da Igreja, sacramento da ação de Deus na história humana. Noutras palavras, isso quer dizer que a unidade na Igreja não anula a diversidade e, vice-versa, a diversidade não anula a unidade. Uma e outra dimensão, no dinamismo da fé, concorrem para fazer a Igreja cada vez mais fiel a seu Fundador. Enfim, não se explica a origem da Igreja em Cristo sem o Espírito nem a origem da Igreja no Espírito sem Cristo. O Concílio Vaticano II, consciente dessa dialética entre unidade e diversidade, retoma a inspiração pneumatológica da compreensão patrística da Igreja como “comunhão de Igrejas”. A Igreja é una e ao mesmo tempo plural. Só na diferença, na pluralidade é que se diferenciam e se expressam as Igrejas locais. Elas são, na sua diversidade, a Igreja “católica”, “universal”. Elas expressam num determinado espaço humano o projeto de Deus para pessoas e grupos humanos concretos[1]. Nesse ponto é oportuno manter a tensão entre unidade e diversidade, entre a dimensão cristológica e pneumatológica: nem a precedência da unidade em relação à diversidade, nem a precedência da diversidade em relação à unidade. Ambas as dimensões são originalmente radicadas no mesmo Espírito que opera no corpo de Cristo, a Igreja, numa dialética de “edificação” da Igreja como comunhão. Não se trata de um “equilíbrio” que funcionalmente manteria a casa em ordem, mas de uma tensão gerada pelo Espírito, capaz de superar interesses subjetivos, particulares, entre os membros da Igreja, pelo reconhecimento das diferenças, da alteridade entre pessoas e grupos, pelo diálogo, em vista da missão. Na fé e pela fé chegamos assim a uma compreensão mais profunda da Igreja como espaço privilegiado da ação do Espírito no mundo. Apesar das divisões e separações empíricas, das fraquezas e do pecado, a Igreja é una na diversidade de pessoas, grupos e comunidades, por obra do Espírito Santo. Ela continua misteriosamente como o único povo de Deus, o único corpo do Cristo, sacramento da única comunhão trinitária. [1] Cf. LG 23. O Espírito Santo e a Igreja 4: Instituição e carismas 4. O Espírito como fundamento da instituição e dos carismas Já nos referimos acima à relação entre instituição e carisma na Igreja. Essa continua sendo uma questão de inegável atualidade. Trata-se de compreender a Igreja não apenas no nível histórico, mas também no nível teológico, ao mesmo tempo como instituição e carisma. É na articulação dessas duas dimensões que ela é realmente expressão da ação de Deus no mundo. Nessa tarefa há, no entanto, uma dificuldade. As estruturas eclesiais, mesmo divinamente originadas, são desenvolvidas na história e sociologicamente condicionadas. Frente à razão crítica caem sob suspeita ideológica. Não há como fugir a essa questão, especialmente nos dias de hoje. Como superar essa dificuldade? O caminho a seguir consiste justamente na leitura teológica da dimensão institucional da Igreja. Como pressuposto, devemos afirmar que essa leitura não pode e não deve legitimar expressões ideológicas que se manifestam nas diferentes figuras históricas da instituição. Essas figuras históricas ou modelos de Igreja assimilam formas de exercício do poder histórico próprias de cada tempo e cultura. Esse é um limite e, ao mesmo tempo, condição para existir no mundo. Uma leitura teológica da instituição, por isso mesmo, se torna ponto de partida para purificar as figuras históricas da Igreja. Não se pode fugir do esforço de definir um referencial crítico para o discernimento na Igreja, sob pena de nos tornarmos prisioneiros das diferentes formas históricas, dos diferentes modelos de Igreja. Seria cair no fatalismo eclesiológico: na Igreja não há mudança possível! Para sair desse fatalismo eclesiológico é fundamental considerar a dimensão institucional integrada na própria compreensão da Igreja como sacramento da comunhão com Deus. Na raiz divina da Igreja está implicada a dimensão histórica como corpo social, sacramento do mistério de Deus no mundo. Por isso mesmo, a afirmação de que o Espírito Santo se manifesta na Igreja pelos carismas é deficiente. Deve ser complementada. Na verdade, o Espírito Santo, como ação de Deus na Igreja, se expressa na sua totalidade, enquanto Igreja visível e invisível, instituição e carisma. Não apenas os carismas, mas também os elementos institucionais da Igreja manifestam o dinamismo do Espírito[1]. Assim pensada, a dimensão institucional da Igreja se apresenta como sinal histórico e eficaz de uma identidade cristã produzida pelo Espírito. Vimos acima, na reflexão sobre origem da Igreja, que o Espírito do Ressuscitado é sempre o Espírito de Jesus de Nazaré, o Crucificado. Isso faz parte essencial da identidade cristã, como sua “marca” que não pode ser anulada. Trata-se de uma identidade que não nos tira da história, mas nos faz solidários e comprometidos com todos os demais seres humanos na transformação do mundo. A identidade cristã, deste modo, não pode ser compreendida como identidade estática, pronta, acabada, como uma mercadoria que se adquire pelo batismo, como se fosse um “carimbo”, uma “griffe” . Ela deve ser constantemente buscada, na obediência ao Espírito, no seguimento de Jesus, no seu caminho de vida e destino. Ela é uma identidade dinâmica, sempre em processo até a consumação. Sem a dimensão institucional, a identidade cristã seria abstrata, distante do quotidiano, correndo o risco de tornar-se uma forma anárquica de experiência de fé. Isso acontece quando critérios subjetivos para definir as normas de vida, a vivência eclesial e as regras da fé prevalecem sobre a herança comum da tradição eclesial. Por outro lado, sem o dinamismo carismático, a Igreja se transforma em instituição burocrática, preocupada em se reproduzir e se auto-promover. Se a presença operante do Espírito de Jesus Cristo produz uma identidade histórica confessante, expressa historicamente pela instituição eclesial, ela produz também a unidade entre os fiéis e as comunidades cristãs. A dimensão institucional é, pois, sinal daquela unidade produzida pelo Espírito, que introduz os fiéis e as várias comunidades de fiéis na “Comunhão dos Santos”. A Comunhão dos Santos faz parte da profissão de fé. Por ela se indica, por um lado, a profunda unidade entre os que foram santificados pela graça do batismo; por outro, a partilha dos bens do Reino. Por fim, a dimensão institucional da Igreja, sob o dinamismo da fé e da Palavra de Deus, é sinal eficaz da libertação operada pelo Espírito. O Espírito de Jesus Cristo se une a nós para superar a nossa fraqueza e indigência. Não podemos por nós mesmos assegurar a salvação. Ele nos liberta da busca da salvação por nós mesmos, abre-nos ao mundo de Deus, ao seu projeto de amor, faz-nos sair de nós mesmos para tomar o caminho de Jesus. Numa sadia compreensão da Igreja não há carisma sem instituição, nem instituição sem carisma. A relação entre essas duas dimensões da realidade eclesial é a relação que existe entre letra e espírito. A letra sem espírito é morta. O espírito sem a letra não tem como se expressar e se articular historicamente. Do mesmo modo, o carisma sem a instituição eclesial não tem como se expressar. Não tem base para alimentar a chama que ele acende no coração do discípulo de Jesus. O carisma precisa de estruturas históricas para expressar o dinamismo do Espírito. A instituição sem o carisma corre o risco de se transformar numa realidade vazia, meramente burocrática, sem força histórica. O importante é manter a tensão dinâmica e criativa entre carisma e instituição, buscando a fonte originária de ambos no acontecimento do Espírito de Jesus Cristo. [1] Cf. LG 8a. O Espírito Santo e a Igreja 5: Missão 5. O Espírito nos compromete na missão Como conclusão, é útil reafirmar o significado pleno da missão do Espírito, superando interpretações subjetivas da experiência do Espírito Santo. Antes de mais nada, é importante distinguir o Espírito Santo de sua experiência. O Espírito desde sempre é comunicação de Deus no mundo e para o mundo, conduzindo a história para o conhecimento da Verdade plena (cf. Jo 16,13). A ação do Espírito não tem limites, ele age como quer, quando quer e onde quer. A experiência humana do Espírito, no entanto, é sempre parcial. Ela é vivida no limite da apreensão subjetiva do fiel, tem seus condicionamentos históricos, culturais e humanos próprios da criatura. A experiência do Espírito deve, pois, ser constantemente submetida ao Evangelho de Jesus Cristo, como norma suprema que deve orientar a própria vivência subjetiva da fé. Deste modo é possível superar a alienação que pode estar implicada em certas formas de busca de experiências do Espírito sem os parâmetros da tradição da fé e da atualização do mistério da Igreja no mundo de hoje (cf. LG 12 c). Para verificar a autenticidade da experiência do Espírito não se pode ficar apenas nos critérios de evidência subjetiva, absolutizando a subjetividade crente. É preciso confrontar-se com a comunidade de fé. O Cristo e o Espírito estão na comunidade de fé, como seu único princípio gerador de vida e santificação. Esse princípio de objetividade para a fé cristã tem como ponto de partida, na feliz expressão de Paulo VI, “o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus” (EN 22). Na comunidade dos fiéis o Espírito é desde sempre o princípio dinâmico do testemunho. Ele é o ator principal da ação evangelizadora no mundo. Ele leva adiante a missão, corrigindo desvios, alimentando o ardor missionário, suscitando a ação profética dos batizados e das comunidades. Em Pentecostes, o Espírito manifesta a Igreja aos povos, faz com que os discípulos vençam o medo, suscita o ardor pela pregação do Evangelho de Jesus Cristo. Hoje, no limiar de um novo milênio cristão, a Igreja continua sendo sacramento da ação transformadora do Espírito. Ela suspira pela continuidade de sua obra em novos tempos, frente a novos desafios. É ele que pode transmitir aquela “energia” que faz superar o medo frente ao mundo em transformação. O grande desafio da Igreja na passagem do milênio nada mais é do que renovar na própria fonte a coragem apostólica. Um novo Pentecostes impulsionará a Igreja na missão, com o olhar atento ao futuro, sem medo de jogar para o “museu” da história expressões culturalmente ultrapassadas da fé. O passo a dar é abrir-se docilmente à ação do Espírito que torna possível a missão.