O Universo visto pelas lentes gravitacionais

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Uma das consequências mais espetaculares
do desvio da luz pela gravidade é o fenômeno
de lente gravitacional. Mais que uma curiosidade
da teoria da relatividade geral, esse efeito proporciona
um instrumento poderoso para a astrofísica e a cosmologia.
As lentes gravitacionais permitem enxergar alguns
dos objetos mais distantes do cosmo, detectar a presença
de matéria invisível, sondar a estrutura em grande escala
do universo e até descobrir novos planetas.
Martín Makler
Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica,
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ)
O universo visto pelas
EINSTEIN ARCHIVE/JEWISH NATIONAL AND UNIVERSITY LIBRARY/HEBREW UNIVERSITY OF JERUSALEM
lentes gravitacionais
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Pode-se dizer que os fundamentos da área de lentes gravitacionais foram estabelecidos há exatos 90 anos, quando foi medida, pela primeira vez,
a deflexão da luz por um campo gravitacional. Como é comum
na história da ciência, os caminhos das grandes descobertas são,
por vezes, atribulados. Os primeiros cálculos conhecidos sobre
o desvio da luz pela gravidade remontam ao século 18. Uma
versão mais moderna deles foi feita, em 1911, pelo físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955), com base em ideias que
quatro anos mais tarde fariam parte de sua teoria da gravitação,
conhecida como relatividade geral.
Para comprovar esse desvio, Einstein sugeriu a astrônomos
que se medisse a mudança na posição aparente de estrelas próximas à borda do Sol, o que teria que ser feito durante um
eclipse solar total, quando as estrelas podem ser vistas perto
desse astro. Nesse teste, a ideia é medir um ângulo extremamente pequeno, formado entre a posição aparente e real desse astro.
O esquema da figura 1 mostra essa diferença.
Ao longo da década de 1910, ocorreram várias expedições
com esse propósito. Uma delas já em 1912, em Cristina (MG).
Mas uma forte chuva impediu a observação do eclipse. A ironia
é que Einstein contou com boa dose de sorte na ocasião, pois
seus cálculos para esse desvio estavam incorretos: davam o
mesmo valor do desvio obtido com base na teoria da gravitação
do físico inglês Isaac Newton (1642-1727).
Outras tentativas não tiveram melhor sorte. Em 1914,
os integrantes alemães de uma expedição internacional
acabaram presos na Crimeia (Rússia), com seus equipamentos confiscados, devido à eclosão da Primeira Guerra
Mundial, que colocou os dois países em lados opostos
do conflito.
Em 1915, após completar a sua teoria da relatividade geral, Einstein recalculou o desvio da luz e obteve
o valor correto, que é o dobro do valor obtido anteriormente, diferindo, portanto, da previsão newtoniana.
O desvio da luz por um campo gravitacional só
acabou medido em 1919, quando equipes britânicas
foram enviadas para a ilha de Príncipe, na África, e
Sobral, no Ceará, para observar outro eclipse total do
Sol. Na ilha da costa ocidental africana, o tempo ficou
ruim. E, em Sobral, o Sol se abriu – para depois se escurecer –, e as fotografias do fenômeno obtidas em território brasileiro concordaram com a nova – e definitiva –
previsão de Einstein.
Einstein tornou-se uma celebridade mundial. Sua teoria
havia desbancado a de Newton, que reinava por cerca de dois
séculos e meio.
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MIRAGENS GRAVITACIONAIS
O desvio dos raios de luz pelo campo gravitacional
é um fenômeno análogo àquele sofrido pela luz ao
atravessar um meio material, como a água ou o vidro. Assim, a gravidade pode exercer sobre a luz efeito muito semelhante ao de uma lente, alterando a forma de objetos que estão atrás da lente. Esse fenômeno
é chamado lente gravitacional.
Qualquer massa pode ser uma lente gravitacional. Até mesmo você, leitor, neste instante, está
desviando os raios de luz que passam nas proximidades de seu corpo e agindo como uma lente! O problema é que só é possível detectar algum efeito quando a massa e as distâncias (entre a fonte emissora
de luz, a lente e o observador) são suficientemente grandes. Os objetos mais ‘leves’ detectados por
seu efeito de lente gravitacional são planetas – mas
eles estão a milhares de anos-luz da Terra (cada anoluz equivale a 9,5 trilhões de km).
As lentes gravitacionais, diferentemente das
usuais (como as de óculos, lunetas etc.), podem
produzir imagens múltiplas das fontes e/ou distorcer sua forma, dando origem aos chamados arcos
gravitacionais. Tanto arcos quanto imagens múlti plas são denominados ‘miragens gravitacionais’.
Já em 1912, Einstein percebeu que a deflexão da luz
causada por uma estrela daria origem a imagens duplas
(figura 2A) de uma estrela mais distante. Percebeu
também que essas imagens seriam magnificadas (ou
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seja, seu brilho aparente seria aumentado). Mas essas
ideias não foram publicadas na época.
O primeiro artigo sobre o efeito de lente gravitacional foi do físico russo Orest Chwolson (1852-1934),
em 1924. Além da ‘estrela dupla fictícia’, Chwolson
previu que o alinhamento perfeito entre fonte, lente
e observador daria origem a uma imagem com forma
de anel em volta da lente (figura 2B).
Einstein só publicou o primeiro artigo sobre lentes gravitacionais em 1936, prevendo as imagens
duplas e a magnificação das imagens, bem como a
possibilidade de o fenômeno formar anéis (hoje, anéis
de Chwolson-Einstein). Curiosamente, Einstein parecia
desconhecer o trabalho de Chwolson – embora este
tivesse sido publicado na mesma página da revista em
que havia saído outro de seus artigos.
DIFERENTES VISÕES
Se uma estrela pode fazer o papel de lente gravitacional, então por que não vemos no céu uma série
de imagens duplas de outras estrelas que estejam
atrás da primeira? Uma primeira resposta: porque, para
que o efeito de lente seja detectável, é preciso, como
foi dito, um alinhamento quase perfeito entre a fonte,
a lente e o observador (ou seja, entre a estrela mais
distante, a mais próxima e a Terra), o que é extremamente improvável. Em seu artigo de 1936, Einstein
concluiu: “obviamente, não há muita esperança de se
observar esse fenômeno diretamente”.
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Em 1937, o astrônomo suíço Fritz Zwicky (18981974) publicou um trabalho no qual estudava o efeito
de lentes gravitacionais de galáxias por galáxias e
por aglomerados de galáxias. Como as massas e as
distâncias envolvidas eram muito maiores, os efeitos de imagem múltipla poderiam ser observados
diretamente.
Zwicky previu que as lentes poderiam ser utilizadas em três aplicações: i) para ver objetos distantes, agindo como ‘telescópios gravitacionais’; ii) para medir a massa de galáxias e aglomerados; iii)
para testar a relatividade geral por meio da deflexão
da luz. Ele concluiu: “A probabilidade de que galáxias agindo como lentes gravitacionais sejam encontradas torna-se praticamente uma certeza.”
MICRO E MACRO
O efeito de lente é tanto maior quanto maiores forem
a massa da lente e as distâncias entre ela, a fonte e o
observador. O efeito é máximo se a distância do observador até a lente é aproximadamente igual àquela
da lente até a fonte – ou seja, se a lente está ‘no meio’
do caminho. Se dois desses três elementos estiverem
próximos, o efeito é nulo.
Se a massa da lente é pequena (uma estrela, por
exemplo) e a distância dela até a fonte for ‘curta’
(dentro dos limites da Via Láctea, por exemplo), o
efeito causa uma separação angular entre as imagens da ordem de um microssegundo de arco (para
ANDREW FRUCHTER (STSCI) ET AL., WFPC2, HST, NASA
D
se ter uma ideia, isso equivale a dividir um ângulo
de apenas um grau em um bilhão de partes iguais!).
Essa separação não pode ser detectada nem mesmo com
as mais avançadas tecnologias atuais – isso também
responde à nossa pergunta sobre por que não vemos
estrelas duplas fictícias no céu.
No entanto, mesmo sem ver as imagens duplas,
podemos detectar o efeito de aumento do brilho. Em
seu movimento pela galáxia, se houver um alinhamento quase perfeito entre observador, lente e fonte, esta
última pode ser magnificada centenas de vezes. Esse
é o efeito de microlentes gravitacionais.
Fenômeno semelhante ocorre para quasares distantes que sofrem o efeito de magnificação por estrelas
em outras galáxias. Nesses casos, a separação angular
típica é de milissegundos de arco, mas novamente
o efeito pode ser detectado pela variação do brilho
do quasar.
Agora, se as lentes são galáxias ou aglomerados de
galáxias (que têm massas um bilhão ou até um trilhão
de vezes maiores que as do Sol), é possível detectar a
separação das imagens, os arcos ou os anéis. Esse é o
chamado efeito de macrolente gravitacional.
Como a lente não é mais um objeto pontual, ela
pode gerar mais de duas imagens – muitas vezes, são
visíveis quatro imagens (figura 2C). Também po dem ser gerados arcos (figura 2D). E, se a lente
for quase esférica e o alinhamento entre observador,
lente e fonte for quase perfeito, anéis de ChwolsonEinstein podem ser formados.
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P VU VCSPEF oCIÊNCIA HOJEo 3 1
A S T R O F Í S I C A
FORTE E FRACO
meio do efeito de microlente... A lista hoje é vasta, e voltaremos a falar um pouco sobre alguns de
seus itens.
Nas três últimas décadas, vivemos a ‘era das descobertas’ com lentes gravitacionais, que passaram a
ser usadas para sondar o universo.
Mas o que proporcionou essa sequência de descobertas e suas posteriores aplicações? Além do
interesse científico, foram fundamentais avanços
tecnológicos. Telescópios de grande porte situados
em locais com excelentes condições atmosféricas
têm sido capazes de detectar fenômenos de baixo
brilho, distorções sutis e estruturas pequenas, características determinantes, por exemplo, para a
detecção de arcos. A captação das imagens é feita na
forma digital com altíssima eficiência – esse mesmo
tipo de tecnologia, os chamados CCDs, está hoje
embutido nas câmaras fotográficas digitais.
Outro aspecto importante: o complexo tratamento
computacional da imagem para corrigir todos os
efeitos relativos à atmosfera e aos causados pelos
próprios instrumentos, algo fundamental para a detecção da sutil distorção causada pelo efeito fraco
de lente gravitacional. A análise computadorizada
também permite avaliar com precisão o brilho de
centenas de milhões de estrelas na busca do efeito
de microlente – algo impensável na época em que
Einstein apresentou sua conclusão pessimista!
Os efeitos de macro e microlentes gravitacionais são
ditos fortes, porque produzem grandes magnificações, fortes distorções ou imagens múltiplas. Isso
significa que, na prática, podem ser detectados
para uma única fonte. Fenômenos fortes de lente
gravitacional são raros, pois requerem que observador, fonte e objeto estejam não só muito separados
uns dos outros, mas quase perfeitamente alinhados.
Por sua vez, o efeito fraco de lente gravitacional
causa apenas leves distorções e uma pequena variação no brilho das fontes. Uma galáxia, por exemplo,
teria sua aparência levemente rodada e seu tamanho
ligeiramente aumentado. Como o tamanho e a orientação de cada galáxia não são conhecidos a priori,
não é possível medir esse efeito para uma única
fonte, sendo preciso observar grande número delas
para se detectar esse efeito na média.
A ERA DAS DESCOBERTAS
A primeira miragem gravitacional foi descoberta por
acaso em 1979. A partir daí, as lentes gravitacionais
colecionaram descobertas: arcos gravitacionais; anéis
de Chwolson-Einstein; efeito de microlente em quasares; distorção fraca de lentes por aglomerados de
galáxias; microlente de estrelas por objetos da nossa
galáxia; efeito de lentes pela estrutura em grande escala do universo; descoberta
de planetas extrassolares por
FOTO LUCAS WERNECK
APLICAÇÕES DE INTERESSE
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3 2oCIÊNCIA HOJEoWPM oO ’ Por depender apenas da gravitação, o efeito de lente
gravitacional é ideal para ‘pesar’ objetos astronômicos, independentemente de seu conteúdo luminoso. Por exemplo, a combinação entre observações
da matéria visível e do efeito de lente gravitacional
em galáxias e aglomerados fornece uma das evidências mais fortes sobre a presença de matéria escura,
componente de natureza ainda misteriosa e responsável por um quarto da composição do universo –
o restante do universo é formado por matéria ‘normal’ (5%) e energia escura (70%), esta última igualmente enigmática.
Outras aplicações das lentes gravitacionais:
i) ao estudar propriedades das lentes, conseguimos
determinar a estrutura de galáxias e aglomerados,
algo fundamental para compreender a formação e a
evolução desses objetos ao longo de história cósmica;
ii) ao investigarmos as propriedades de fontes muito
distantes, graças ao efeito de ‘telescópio gravitacional’, podemos entender a evolução das galáxias – por
sinal, a observação de algumas das galáxias mais
remotas conhecidas ocorreu devido à magnificação
causada pelas lentes; iii) ao sondarmos a estrutura
do universo em grandes escalas – por meio do efeito
SIMULAÇÃO E BUSCA DE ARCOS
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fraco de lente, uma das formas mais ‘limpas’ e diretas para fazer isso –, obtemos informações fundamentais para a cosmologia, como a abundância de
energia escura; iv) ao medirmos a defasagem temporal entre imagens múltiplas, é possível determinar
a taxa de expansão do universo; v) ao buscarmos,
por meio do efeito de microlente gravitacional,
planetas menos massivos e mais distantes de suas
estrelas do que aqueles detectados por métodos
mais tradicionais, ajudamos na procura desses corpos com características semelhantes às da Terra.
LSST CORPORATION
DA TERRA AO ESPAÇO
Apesar da vasta lista de descobertas e de aplicações
na cosmologia e astrofísica, os fenômenos de lentes
gravitacionais são difíceis de serem observados e,
em muitos casos, raros. Para aumentar o número
conhecido de arcos e imagens múltiplas, bem como
permitir o mapeamento da distribuição de matéria
em grandes escalas no universo, é necessário fazer
imagens de alta resolução de vastas áreas do céu.
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EPUFMFTDËQJP-445
Isso é precisamente o que será feito por grandes
projetos observacionais que entrarão brevemente
em operação.
Um dos objetivos da colaboração internacional
Dark Energy Survey (DES) é o estudo das lentes gravitacionais. Formada por instituições norte-americanas
e consórcios do Reino Unido, da Espanha e do Brasil,
o DES mapeará uma vasta área (cerca de 1/8 de toda
a esfera celeste) com um telescópio de espelho de 4m
de diâmetro, situado na cordilheira dos Andes, no
Chile (figura 3). Para isso, está sendo desenvolvida
uma câmera extremamente sensível e de grande cobertura angular, com 500 megapixels (uma câmera
fotográfica profissional de boa qualidade tem cerca
de 20 megapixels).
O DES colherá seus primeiros dados científicos
a partir de 2012. Com eles, milhares de arcos gravitacionais podem ser descobertos.
Em um futuro mais distante, o LSST (sigla em
inglês para Grande Telescópio para Levantamentos
Sinópticos), também no Chile, irá mapear uma área
ainda maior e em mais profundidade que o DES.
Espera-se que esse instrumento leve à descoberta de
dezenas de milhares de arcos e quasares múltiplos
– já há grupos brasileiros interessados em participar
do projeto (figura 4).
A etapa seguinte é observar as lentes a partir
do espaço. Até agora, os estudos mais detalhados
foram feitos com o telescópio espacial Hubble, que,
no entanto, tem área muito pequena para mapear a
estrutura em grande escala e descobrir uma quantidade significativa de arcos. Futuras
sondas espaciais dedicadas à cosmologia, como a JDEM (sigla, em inglês,
Sugestões para leitura
para Missão Conjunta para a Energia
EINSENSTAEDT, J.; VIDEIRA, A.
Escura), da Nasa (agência espacial
A. P. ‘A prova cearense das
teorias de Einstein’. Ciência
norte-americana), e o Euclid, da ESA
Hoje, v. 20, n. 115 (1995).
(agência espacial europeia), prometem combinação sem precedentes enNa internet:
DES-Brazil (em português):
tre área coberta e resolução angular,
http://www.des-brazil.org/
levando à descoberta de centenas de
LSST (em inglês): http://www.
lsst.org/lsst/public/dark_
milhares de arcos.
matter
Uma nova era começou: a das apliLentes gravitacionais (em
cações das lentes gravitacionais em
inglês):
http://gravitationallensing.
quase todas as escalas astrofísicas."p
pbworks.com/
Semana de Matéria e Energia
Escura (em português):
http://www.des-brazil.org/
semana/
SOGRAS (em português e
inglês) : http://www.icra.
cbpf.br/sogras
P VU VCSPEF oCIÊNCIA HOJEo 3 3
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