greg woolf

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GREG WOOLF
ROMA
A HISTÓRIA DE UM IMPÉRIO
Tradução
José Vala Roberto
Índice
Prefácio
11
1. A História Completa
2. Impérios da Mente
3. Senhores de Itália
4. Ecologia Imperial
5. Hegemonia Mediterrânica
6. Escravatura e Império
7. Crise
8. Às Ordens do Céu?
9. Os Generais
10. O Prazer do Império
11. Os Imperadores
12. Os Recursos do Império
13. Guerra
14. Identidades Imperiais
15. Recuperação e Queda
16. Um Império Cristão
17. Decadência
18. O Passado e o Futuro Romanos
17
33
54
74
93
116
133
152
173
193
213
240
260
282
300
326
347
365
Notas
Lista de Ilustrações
Lista de Mapas
Notas sobre Futuras Leituras
Bibliografia
Glossário
Créditos Fotográficos
Índice Remissivo
381
410
412
413
415
447
452
453
Prefácio
Todas as histórias de Roma são histórias de império. A ascensão ao
poder, a prolongada paz e o ainda mais prolongado declínio formam
em conjunto o cenário de todas as histórias contadas sobre os romanos. Contudo, o meu assunto é o próprio império. Como se desenvolveu? O que lhe permitiu resistir às derrotas e capitalizar com as
vitórias? Porque teve Roma sucesso quando os seus rivais falharam?
Como conseguiu o império sobreviver às crises, como logrou proteger-se e repor a estabilidade após as caóticas campanhas de conquista?
Como conseguiu o império coordenar os grandes fluxos de riqueza e
as populações de que dependia? Como evoluiu para enfrentar novas
necessidades e novas ameaças? Porque vacilou, recuperou o seu equilíbrio e depois se contraiu sob uma série de golpes militares até voltar a ser, mais uma vez, uma cidade-estado? Que tecnologias e que
circunstâncias tornaram possíveis a criação e a manutenção de um
império, naquele local e momento precisos? Que instituições, costumes e crenças se adaptavam a Roma para este papel? E que efeito teve
a realidade do império em todas as crenças, costumes e instituições
com os quais o mundo fora conquistado? Que papel desempenhou o
acaso nos seus sucessos e nos seus fracassos?
O longo arco que se estende desde um amontoado de aldeias, na
margem do rio Tibre, até uma cidade medieval, no estreito do Bósforo, que sonha com antigas glórias dura um milénio e meio. Contar
essa história num único volume é talvez um empreendimento insensato, mas sem dúvida estimulante. Talvez, entre os muitos períodos
do passado em que possamos pensar e que deram forma ao nosso
mundo, a história de Roma não tenha para nós um especial apelo.
Mas enquanto estudante senti-me fascinado por estudar algo tão
vasto, uma entidade que se propagou ao longo de tanto tempo e tanto
11
PREFÁCIO
espaço. O que poderá ter sustentado um empreendimento humano
concebido em tão larga escala? Como pôde algo de humano perdurar
tanto tempo? As experiências do nosso próprio mundo mudam com
uma velocidade extraordinária. Gerações anteriores, confiantes na
perenidade dos seus próprios impérios e na marcha ininterrupta do
progresso, sentiram-se fascinadas pelo declínio e queda de Roma.
Para nós é a sua longevidade que prende a imaginação. O meu próprio
fascínio não diminuiu desde os meus tempos de estudante. Mesmo
hoje, o mundo romano ainda me parece, por vezes, uma grande caixa
de areia onde posso brincar, ou então um enorme laboratório histórico em que todo o tipo de entidades e processos há muito vividos
podem ser estudados. Neste aspeto, a história de Roma é como a
astronomia, não se podem conceber nem realizar novas experiências, mas há uma massa vasta de fenómenos que é possível observar
através de minúsculos pacotes de informação residual, e as forças e
acontecimentos cataclísmicos que formaram o universo observável
podem ser reconstruídos. Tal como os astrónomos, os historiadores
da Antiguidade procuram padrões e procuram explicá-los. Este livro
é uma tentativa de o fazer em relação aos que observei.
O Império Romano convida à metáfora. Os antigos usavam frequentemente uma analogia biológica: cada império ou estado teve a sua
juventude, a sua maturidade e a sua velhice. Um historiador moderno
usou a metáfora do morcego-vampiro, vendo o império como o meio
através do qual os romanos sugavam a vida aos camponeses e escravos de cujo trabalho o império dependia. Quanto a mim, o Império
Romano não se assemelha muito a uma entidade orgânica, a não ser
que seja uma epidemia que contamina toda a população hospedeira,
esgotando as energias dos infetados até se extinguir. Creio que as analogias com as ciências naturais captam melhor o padrão do império.
O Império Romano foi como uma grande maré que arrastou consigo
ondas sucessivas de mais e mais água antes de dissipar a sua energia. Ou
então foi uma avalancha, que começou pequena, foi crescendo com os
fragmentos de neve e de rocha que arrastava, e depois voltou a diminuir
ao chegar ao sopé da encosta. Ambas as metáforas captam a noção de
um grande padrão que começa pequeno, arrasta consigo mais matéria
e mais energia, e depois se dissipa. Este padrão – o império – move-se
12
PREFÁCIO
no tempo, e durante alguns momentos arrasta outros padrões, até se
dissipar ou ser absorvido por movimentos maiores. O império cresce,
nem sempre sem problemas, domina durante algum tempo e depois
cai. Um antigo vice-reitor de St. Andrews sugeriu que eu penso este
assunto como se fosse um fenómeno de ressonância, o estabelecimento gradual de um padrão de vibração através de uma vasta massa
de pessoas e coisas que acaba por perder coerência e se fragmenta em
padrões mais pequenos. Isto parece captar com precisão a emergência
de uma ordem imperial e da sua subsequente dissipação. A essência
do império é a asserção de um grande padrão à custa de outros mais
pequenos. Esse padrão é caracteristicamente menos igualitário e mais
hierárquico do que a realidade anterior. Novos níveis de complexidade
significam que alguns dos mais ricos ficam mais ricos, alguns dos pobres
são submetidos a uma disciplina mais severa, embora a mobilidade
social estimulada pelo império compreenda a existência de vencedores
e vencidos em todos os níveis. Materialmente o padrão do império
envolve movimentos regulares de pessoas e bens, grandes fluxos de
impostos e mercadorias. Essas rotinas de movimento são agora refletidas pelos vestígios de estradas e portos, o esqueleto fossilizado que
outrora sustentou a matéria mole do império humano. Tenho procurado dar atenção à matéria sólida, mas uma das alegrias da história
de Roma é a de que também podemos escutar as vozes de tantos que
nela participaram ativamente. Tenho tentado, da mesma forma, captar
e relatar as suas perceções do império.
Ao escrever este livro procurei manter em mente esta noção
de que o império é um movimento através do tempo histórico, não
um conjunto fixo de instituições. Quase no fim da minha história,
em Bizâncio, tudo está mudado. Os romanos falam grego em vez de
latim, a capital é agora numa antiga província conquistada e os bárbaros governam na velha cidade de Roma, que tem um novo deus,
novos costumes e uma nova noção do seu passado e do seu futuro. Um
mundo de cidades transformou-se (novamente) num mundo governado por uma só cidade. Istambul deriva afinal da expressão medieval
grega eis ten Polin, «dentro da cidade». Porém, ainda era Roma.
Ainda assim, algumas instituições foram, no decorrer de longos
períodos, absolutamente decisivas para a longa história do império,
13
PREFÁCIO
e de muitas formas o mundo, dentro do qual o poder romano se
propagara e depois contraíra, era estável. Procurei captar esta combinação de evolução constante com estabilidade estrutural prolongada,
alternando capítulos que avançam com a história com outros que me
permitem recuar por um momento – como que fora do tempo – e
salientar algo que tenha um significado perene. Os leitores atentos irão notar, tal como eu, que esta divisão não tem sustentação.
Mas, ocasionalmente, os historiadores têm de fazer concessões ao
seu material. Outra concessão ao meu material é a das listas de datas
fundamentais que precede os capítulos ímpares: a jornada dos romanos foi tão complexa quanto longa e, como seguimos no lugar de
passageiro, o peculiar mapa de estradas pode, por vezes, ser útil.
As metáforas são um tipo de inspiração. O mesmo sucede com
a comparação. Este livro não é um exercício sistemático de história
comparativa, confrontando Roma com outros impérios antigos (ou até
modernos). A comparação é um método interessante, mas é extraordinariamente difícil dadas as lacunas no nosso conhecimento sobre
os antigos impérios e o inconveniente de que de um império para
outro as lacunas não são as mesmas. Mas o meu raciocínio é baseado
na reflexão sobre outros impérios, por vezes procurando descobrir
uma tendência, mais frequentemente como forma de discernir o
que é invulgar ou até único sobre o caso romano. As leituras amplas
e variadas ajudam, mas tenho perfeita consciência do quanto aprendi
ao participar em conferências e encontros nos quais especialistas em
outras disciplinas generosamente partilharam o seu conhecimento.
De tantas dessas ocasiões, gostaria de salientar uma conferência organizada por Susan Alcock, Terry D’Altroy, Kathy Morrison e Carla
Sinopoli, em Las Mijas, em 1997, generosamente patrocinada pela
Fundação Wenner-Gren – que pela primeira vez me deu a ideia para
este projeto – e também toda a série de workshops dedicada ao estudo
comparativo de impérios, organizada com uma energia extraordinária
por Peter Fibiger Bang, com o patrocínio da Fundação Europeia para
a Ciência, ao abrigo da Ação 36 da Cost European Cooperation in
Science and Technology, «Tributary Empires Compared».
O meu entendimento baseia-se também, evidentemente, na
pesquisa desenvolvida por outros numerosos historiadores de Roma.
14
PREFÁCIO
É impossível agradecer a todos aqueles cujos trabalhos foram para mim
inspirações ou guias essenciais, ou ambos. Este livro não é a história
completa de Roma, mas a exploração do tema império. Não obstante,
o império é de tal modo essencial na história de Roma que precisei de
me basear num grande número de obras publicadas para o escrever.
Nas notas e sugestões para Futuras Leituras, procurei indicar apenas
algumas às quais devo especial reconhecimento e tentei acima de tudo
referir trabalhos recentes, uma vez que possuímos hoje excelentes sínteses de estudos anteriores e a pesquisa neste campo conhece agora um
desenvolvimento extremamente rápido. Grande parte deste livro foi
escrita em St. Andrews, durante uma licença generosamente patrocinada pelo Leverhulme Trust. Mas partes dele foram esboçadas na unicamp, São Paulo, onde fui professor convidado, no início de 2011, por
iniciativa de Pedro Paulo Funari. O primeiro rascunho foi completado
mais tarde, naquele mesmo ano, no Max Weber Kolleg, da Universidade de Erfurt, onde Jörg Rüpke foi (uma vez mais) o meu anfitrião.
Muitos outros contribuíram para que fosse possível escrever este
livro. Gostaria de agradecer especialmente à minha agente Georgina
Capel, pelo encorajamento e muito mais; a Stefan Vranka e Matthew
Cotton, da Oxford University Press, pela sua paciência, aconselhamento e entusiasmo; a Stefan, mais uma vez, e a Nate Rosenstein,
pelos comentários detalhados sobre um primeiro esboço que me pouparam muitos erros e tornaram muito mais agradável a leitura deste
livro; a Emma Barber, Emmanuelle Peri e Jackie Pritchard, em Oxford,
pela sua ajuda nas várias fases da produção; à minha família, pela
tolerância e pelas chamadas à realidade. Esta não é, evidentemente, a
minha primeira tentativa para explicar os padrões mais importantes
que estão na origem da história imperial de Roma. A leitura e a reflexão são muito boas, mas todos os professores sabem que o verdadeiro
teste ao entendimento está em conseguir ou não explanar uma ideia a
alguém. Os historiadores profissionais procuram normalmente fazer
explanações uns aos outros, mas já sabemos muito e, enquanto ouvintes e críticos, somos frequentemente demasiado bondosos. Qualquer
aptidão que tenha adquirido nesse campo devo-a a sucessivas gerações
de estudantes em Cambridge e Leicester, Oxford e St. Andrews. Por
esta razão este livro lhes é dedicado, com os meus agradecimentos.
15
DATAS FUNDAMENTAIS NO CAPÍTULO I
753 a.C.
509 a.C.
264 a.C.
216 a.C.
146 a.C.
88 a.C.
44 a.C.
31 a.C.
14 d.C.
117 d.C.
212 d.C.
235–284 d.C.
284–305 d.C.
306–337 d.C.
313 d.C.
361–363 d.C.
378 d.C.
476 d.C.
527–565 d.C.
636 d.C.
711 d.C.
Data tradicional da fundação de Roma.
Data tradicional da expulsão dos reis e da fundação da república romana.
Pirro invade a Itália, mas não consegue quebrar a hegemonia
romana.
Batalha de Canas. A maior derrota de Roma às mãos de Aníbal.
Cartago e Corinto são pilhadas pelos exércitos romanos.
Sula marcha sobre Roma e proclama-se ditador.
Júlio César é assassinado nos idos de março.
A batalha de Áccio põe fim às guerras civis da república. Início convencionado do Império Romano ou principado.
Morte de Augusto e ascensão de Tibério.
Morte de Trajano marca a maior extensão do Império Romano
Caracala concede a cidadania à maioria dos habitantes do
império.
«A Anarquia», um período prolongado de crise militar.
Reinado de Diocleciano. Início convencionado do Império
Romano Tardio.
Reinado de Constantino.
Édito de Milão (ou da Tolerância), de Constantino.
Juliano não consegue restaurar o culto dos deuses ancestrais
Batalha de Adrianópolis. O Império do Ocidente é derrotado
pelos godos.
O último imperador do Oriente é deposto pelos ostrogodos
Justiniano procura reconquistar o Ocidente.
Os exércitos árabes derrotam as forças romanas em Jarmuque
Os árabes cruzam o estreito de Gibraltar e invadem a Hispânia
visigótica.
16
I
A HISTÓRIA COMPLETA
Honras sobre o que sucedeu antes da fundação da cidade, ou
enquanto estava a ser fundada, são mais adequadas à ficção poética
do que a registos fidedignos da história.
(Tito Lívio, do prefácio de Da Fundação da Cidade)
A história de Roma é longa. Este capítulo vai contá-la – a uma velocidade perigosamente vertiginosa –, tocando apenas nos pontos culminantes de uma história de um milénio e meio de anos de ascensão e
queda. Pretende-se que seja como um planeador de rotas para o livro,
ou um conjunto de imagens de satélite obtidas a longos intervalos,
para orientação do leitor.
Se já conhece o padrão do passado romano, sinta-se livre para
passar à frente.
Se não, desfrute a viagem!
Os Reis e a República Livre
Os romanos deste período histórico acreditavam que a sua cidade
tinha sido fundada por Rómulo, numa data correspondente ao nosso
ano 753 a.C. Rómulo foi o primeiro de sete reis. Os primeiros tiveram
honras de progenitores fundadores e os últimos foram desacreditados
17
A HISTÓRIA COMPLETA
como tiranos. O último dos reis, Tarquínio, o Soberbo, acabaria por
ser expulso de Roma e seria fundada a república na data que se convencionou ser 509 a.C. Depois de Eneias e de Rómulo, este acontecimento foi algo semelhante à terceira fundação de Roma. O seu herói
foi Bruto. Quando Júlio César se proclamou ditador vitalício, quase
500 anos mais tarde, foi na base das estátuas deste primeiro Bruto
que foram escritas frases a apelar ao seu descendente que pegasse em
armas e matasse o tirano.
Todos os relatos do período do reino de Roma que nos chegaram
têm esta característica mítica. Nenhum deles foi escrito antes de passarem no mínimo três séculos sobre a fundação da república. Roma,
nos finais do século VI, era ignorada pelos gregos, que só começariam a
escrever a sua própria história passado um século. Todavia, é bastante
provável que os romanos tenham vivido em monarquia. Outras cidades mediterrânicas tiveram monarcas no período arcaico, incluindo
numerosas urbes da Etrúria, ao norte de Roma. Muitas das instituições posteriores de Roma parecem entender-se melhor se explicadas
como relíquias de um estado monárquico: havia uma casa sagrada
no fórum chamada a Regia, que era a casa do sacerdote supremo, o
pontifex maximus. O funcionário que organizava as eleições, se houvesse um interregno entre magistrados, era o interrex. Mas poucos
dos pormenores que nos chegaram são merecedores de confiança.
Os reis eram recordados como fundadores de partes específicas do
estado romano. Rómulo criou a cidade e povoou-a; primeiro, declarando-a um asilo para criminosos e, depois, organizando o rapto de
sabinas em massa para obter mulheres para os seus seguidores. Numa,
o segundo rei, inventou a religião romana. Sérvio Túlio organizou o
exército, as tribos, criou o censo, etc. As histórias sobre os últimos
governantes recordam sobretudo as lendas que se contavam sobre
tiranos em todo o antigo território mediterrânico: eram governantes
arrogantes e cruéis, predadores sexuais, e a pais fortes sucederam
filhos fracos. Acusações deste género eram comuns nas repúblicas
aristocráticas do mundo mediterrânico primitivo e representam a
emergência de novas éticas de conduta civil. Os romanos também
recordavam os seus últimos reis como estrangeiros, especificamente
como etruscos. As histórias sobre reis contribuíram para a crónica do
18
A HISTÓRIA COMPLETA
que era fundamental e único em Roma, pelo menos na mente dos que
as contavam e as ouviam. O nosso único controlo sobre estes mitos
é arqueológico.
O período republicano durou cerca de cinco séculos, desde o
início do século VI até ao último século a.C. Foi mais tarde recordado
como uma era de liberdade e piedade. Aqueles que gozavam dessa
liberdade eram os ricos, especialmente as famílias aristocráticas, que,
juntas, monopolizavam o aparelho político e a liderança religiosa.
A nostalgia dos seus herdeiros fantasiou toda a história daquele
período. Algumas famílias – a gens Cornélia (de Cornélio Cipião)
acima de todas, mais tarde a gens Cicília (de Cecílio Metelo) – foram
tão bem-sucedidas que efetivamente chegaram a dominar o estado,
tal como os Médicis dominaram a Florença renascentista. Mas a fonte
da sua riqueza era muito diferente. Os que lideraram as conquistas
de Roma no mundo mediterrânico trouxeram de volta tesouros com
os quais puderam embelezar a cidade, dinheiro com que compraram
ou ocuparam terras e escravos com os quais puderam cultivá-las.
Roma, como muitas das cidades da Antiguidade, dependia de cidadãos-soldados. De início, muitos deles eram camponeses que se juntavam às campanhas organizadas, em períodos de relativa acalmia, no
ano agrícola. Muitos deles lucraram com a conquista e aqueles que
viviam suficientemente perto da cidade tinham alguma influência nas
assembleias políticas que elegiam os dirigentes de Roma e tomavam as
decisões mais importantes, como entrar ou não em guerra. Mas Roma
nunca esteve perto do tipo de democracia criado na Atenas clássica,
em que os ricos eram obrigados a encobrir as suas riquezas e a gastar
parte delas em projetos públicos. Em Roma, o poder permaneceu
nas mãos de uns poucos. As magistraturas duravam apenas um ano,
mas os antigos magistrados tinham lugar vitalício num conselho, o
Senado, que efetivamente dirigia o governo, a legislação, o culto do
estado e a política externa. Como conseguiu a aristocracia republicana manter-se tão dominante é uma das grandes interrogações da
história de Roma. Terá sido a instituição da clientela que minou a
sociedade romana? Ou a autoridade religiosa proveniente das funções sacerdotais? Houve outras cidades que enfrentaram revoluções
quando aristocratas descontentes fizeram erguer o povo contra os
19
A HISTÓRIA COMPLETA
seus rivais. Entre os nobres romanos havia tanta rivalidade como
em qualquer aristocracia, mas de algum modo conseguiram conter
as lutas internas até ao fim da república. Quanto a contenção ruiu,
o seu mundo desmoronou-se.
A república foi também a época em que Roma se transformou
de cidade-estado da Península Itálica em potência liderante no antigo
mundo mediterrânico. A monarquia terá deixado Roma relativamente poderosa. A escala das muralhas, a provável dimensão da
população, mas, acima de tudo, os primeiros êxitos militares sugerem
que Roma era já, cerca de 500 a.C., uma das cidades politicamente
mais poderosas da Itália Central. As histórias dos primeiros séculos
é nebulosa, mas no início do século III a.C., a influência de Roma
estendia-se através de toda a Península Itálica. As colónias pontuavam locais estratégicos nos Apeninos e na costa tirrena, ao mesmo
tempo que novas vias se abriam à comunicação com o Adriático. Ao
longo dos séculos III e IV, Roma viu-se envolvida em combate em
todas as frentes: com os galos, no Norte, os gregos, no Sul, e vários
povos de Itália, nas montanhas dos Abruzos e nas planícies áridas do
Mezzogiorno. Na década de 70 do século III, atraiu a atenção do rei
Pirro, do Épiro, que cruzou o Adriático com um grande exército.
Roma seria por ele derrotada em diversas batalhas, mas sobreviveu
à guerra. No final daquele século, os romanos tinham vencido duas
longas guerras (Púnicas) com a cidade fenícia de Cartago. A primeira
(264–241 a.C.) foi maioritariamente uma batalha naval com a qual
Roma ocuparia a Sicília e se tornaria senhora das cidades gregas e
púnicas na ilha, bem como dos povos sicilianos indígenas do interior.
A Segunda Guerra Púnica (218–201) foi travada na Hispânia e em
África, bem como na própria Península Itálica. Aníbal atravessou os
Alpes, em 217 a.C., e no ano seguinte infligiu a Roma uma aterradora derrota, na batalha de Canas. Mas não aproveitou a sua vantagem e permaneceu no Sul de Itália até 203, momento em que teve
de regressar a África para enfrentar o exército de Cipião Africano.
A derrota de Aníbal em Zama, no ano seguinte, marcou o fim do
poder cartaginês. Durante o século II a.C., os exércitos romanos
continuaram a sua progressão. Derrotaram e conquistaram os grandes reinos macedónicos do Oriente, governados pelos herdeiros
20
A HISTÓRIA COMPLETA
de Alexandre Magno. Cartago e a antiga cidade de Corinto foram
ambas arrasadas, em 146 a.C. Os exércitos romanos derrotaram as
tribos gálicas a norte e a sul dos Alpes, travaram a guerra na Meseta
Ibérica e resistiram às invasões germânicas. A cidade conheceu um
crescimento progressivo, foi dotada de aquedutos, basílicas e outros
monumentos pagos com os espólios da guerra. Os ricos ficaram mais
ricos e os exércitos de cidadãos começaram a passar cada vez mais
tempo longe da sua terra natal.
Os romanos dos períodos mais tardios imaginavam que no seu
auge a república era um sistema harmonioso, no qual as ambições dos
poderosos eram guiadas pela sensatez do Senado, com o apoio de um
povo deferente. A ruína da república foi atribuída (de diferentes formas) à luxúria e à arrogância trazida pelo império. Segundo o antigo
historiador romano Marco Veleio Patérculo:
O primeiro Cipião abriu caminho para o domínio de Roma, o
segundo abriu as portas à luxúria.1
Outros historiadores escolheram pontos críticos diferentes, mas o
padrão de uma ascensão virtuosa seguido por uma queda brutal foi
um lugar-comum. A verdade é mais complexa. Os conflitos sociais
de diversa índole sucederam-se ao longo da história de Roma, mas
a violência urbana e as guerras civis que tiveram início nos finais
do século II a.C. conheceram uma escala nova. O último século da
República Livre foi sem dúvida o período de maior expansão territorial, no qual a cultura intelectual e a literatura romana adotaram a
sua forma clássica, e também um período de 100 anos de sangrenta
guerra civil. Os conflitos entre os romanos e os seus aliados ítalos
combinaram-se com as lutas sociais entre os pobres (ou aqueles que
afirmavam representá-los) e os poderosos. As tradicionais rivalidades
entre aristocratas aumentaram substancialmente com os lucros do
imperialismo. Os políticos recrutaram inicialmente bandos e depois
exércitos para combaterem pelos seus territórios.
Gerou-se um ciclo de retorno destrutivo entre as rivalidades
internas e a agressiva manutenção da guerra no exterior. Os generais
pensavam a curto prazo, sempre atentos às oportunidades quando
21
A HISTÓRIA COMPLETA
regressavam. Correram riscos impressionantes, atacaram vizinhos de
Roma sem autorização do Senado ou do povo, alienaram territórios
conquistados para serem explorados pelos seus aliados políticos e
pouca atenção deram à segurança de Roma a longo prazo. Permitiu-se que aliados estrangeiros de lealdade duvidosa construíssem bases
enormes e poderosas nas fronteiras. Os romanos eram odiados nas
províncias. O ponto mais baixo foi atingido quando Mitríades, rei do
Ponto – um antigo aliado romano cujo poder fora criado por Roma e
cujas ações progressivamente mais agressivas tinham sido ignoradas
por um Senado preocupado com os assuntos internos –, invadiu a Ásia
Menor ocidental controlada pelos romanos. À ordem de Mitríades,
10 000 ítalos foram chacinados nas cidades gregas da província. Roma
perdeu temporariamente o controlo de todos os territórios a leste do
Adriático. Esta foi apenas mais uma oportunidade para os generais
romanos. O comando do exército foi inicialmente entregue a Sula
para posteriormente lhe ser retirado, mas o general recusou resignar e
em vez disso fez marchar os seus soldados sobre Roma. Correu sangue
no fórum, Sula conseguiu o que queria e, depois de organizar Roma
como lhe convinha, partiu para leste, onde saqueou Atenas, antes de
regressar para de novo invadir Roma. Proclamou-se ditador vitalício
e publicou uma lista de inimigos políticos «proscritos». Qualquer
um cujo nome estivesse na lista podia ser liquidado impunemente e
as suas propriedades confiscadas. Sula foi um modelo para todos os
generais que se lhe seguiram, incluindo o seu correligionário Pompeu,
o seu inimigo César e os que vieram depois de César, incluindo o
futuro imperador Augusto. Todos eles conseguiram grandes exércitos
para guerras no exterior e acabaram por usá-los em campanhas nas
províncias em que se combatiam entre si, ao mesmo tempo que em
Roma gastavam dinheiro para construir fações políticas e grandes
monumentos.
O conflito chegaria ao fim na batalha de Áccio, em 31 a.C., com
a derrota de Marco António e Cleópatra às mãos de Otávio, herdeiro
de César, mais tarde apelidado de Augusto, numa tentativa consciente
de fazer a história da guerra civil (e com ela conseguir a liberdade
aristocrática e o poder do povo).
22
A HISTÓRIA COMPLETA
O Principado do Império
O longo reinado do primeiro imperador, Augusto – falecido em
14 d.C. – é o fulcro da história de Roma. Antes dele houve a república; depois dela, apenas imperadores. Os 300 anos que se seguiram
são conhecidos como o principado do império, após o Senado ter
concedido a Otávio o título de príncipe (princeps).
Em grande medida, a forma como Augusto governou Roma foi
na realidade a continuidade das principais ideias da história republicana e era assim que Augusto queria que fosse vista. Logo que a sua
posição em Roma ficou segura e os exércitos da guerra civil foram
maioritariamente desmobilizados, Augusto envolveu-se em campanhas de conquista e de obras públicas numa escala que ultrapassou as realizações de Pompeu e de César. Sob o seu consentimento,
Roma dominou o Mediterrâneo através de uma rede de províncias
e alianças. Mas a guerra civil e as rivalidades aristocráticas tinham
originado muitos conflitos para além da região, que permaneciam
por resolver. Augusto estendeu a governação direta de Roma através
de meia Europa até aos rios Reno e Danúbio, fixou fronteiras e fez a
paz com o Império Persa. Aquando da morte de Júlio César, muitos
projetos de construção de edifícios tinham sido iniciados, mas ainda
não estavam terminados. Augusto completou-os e decidiu lançar mais
alguns novos, transformando o Campo de Marte numa espécie de
parque temático monumental e expropriando o monte Palatino para
construir um complexo de residências e templos imperiais, donde
provém o termo palácio.
De forma menos ostensiva, Augusto conseguiu tornar o estado
civil romano à prova de guerra. A complexidade bastante simbólica de expedientes governamentais e fiscais impostos por sucessivos
generais conquistadores transformou-se num sistema mais comum de
governo provincial. Roma tinha agora fundos financeiros totalmente
dedicados ao exército, que lhe permitiam manter tropas regulares e
profissionais. Aos membros das aristocracias romanas e itálicas foram
dados papéis de governadores e de comandantes militares na nova
ordem. Mas o dinheiro e a lealdade dos soldados foram firmemente
mantidos nas mãos de Augusto. Augusto, não o povo nem certamente
23
A HISTÓRIA COMPLETA
o Senado, decidia agora quais os aristocratas que deviam ocupar as
magistraturas e os postos sacerdotais. Na verdade, todas as decisões
importantes eram agora tomadas na corte imperial. À medida que
perdiam poder, o povo e o Senado de Roma começaram a receber
maiores honras, mas bustos e estátuas de Augusto eram visíveis por
toda a parte, retratando-o como general, como sacerdote e como
deus. Ele e os seus descendentes eram objeto de culto em todas
as cidades e províncias, lado a lado com as divindades ancestrais e
domésticas, bem como pelos soldados nos acampamentos.
A verdadeira marca do sucesso de Augusto foi ele ter sido capaz
de passar muitos dos seus poderes para uma série de sucessores.
Roma conseguiu evitar a guerra civil durante 100 anos após Áccio.
Nem todos os sucessores imediatos de Augusto foram igualmente
dotados: um (Calígula) foi assassinado e outro (Nero) suicidou-se por
julgar ter perdido o controlo do império. Mas, com algumas modificações, o sistema sobreviveu. O conflito entre generais só estalou,
após o desastroso reinado de Nero, apenas porque nenhum membro
da família deste sobrevivera para dar um novo imperador a Roma.
A guerra prolongou-se durante menos de dois anos (69–70 d.C.) e o
vencedor, Vespasiano, congeminou uma restauração muito ao estilo
de Augusto. O império sofreu um abalo, mas permaneceu incólume.
Sem qualquer instituição formal de uma nova constituição ou título,
o imperador tinha-se tornado efetivamente no chefe do governo do
estado romano. Os indivíduos fracos e incompetentes não podiam
agora desacreditar o sistema e não há qualquer sinal de que alguém
tivesse desejado passar sem os imperadores. Quando Calígula foi
assassinado, em 41 d.C., o Senado debateu brevemente um regresso
à república, mas passou mais tempo a pensar num possível sucessor.
Enquanto decorria o debate, a Guarda Pretoriana descobriu Cláudio, o tio de Calígula, escondido atrás de uma cortina, no palácio,
e nomeou-o imperador. A partir deste ponto, a questão foi sempre:
quem devia ser imperador?
E os imperadores sucederam-se. A dinastia Flaviana governou durante a parte final do século I d.C. As novas guerras de conquista vieram adicionar a Britânia e partes do Sudoeste da Germânia ao império, os reinos tributários foram engolidos e as fronteiras
24
A HISTÓRIA COMPLETA
fortificadas. Uma série de fóruns imperiais proliferou desde o velho
Capitólio republicano até ao vale do Coliseu. Gradualmente a cidade
adquiriu os aparatos de uma capital imperial. O assassínio, em 96 d.C.,
de Flávio Domiciano abalou o sistema, mas muito menos do que a
morte de Nero. Durante o segundo século, verificou-se uma série de
longos reinados de diversos imperadores num império relativamente
estável. Trajano (98–117) conduziu guerras de conquista a norte do
Danúbio e na região que hoje corresponde sensivelmente ao Iraque.
O seu sucessor, Adriano (117–138), viajou extensamente pelo império. Os imperadores tornaram-se mais abertamente monárquicos e
dinásticos, especialmente fora de Roma, onde não precisavam de se
preocupar com as sensibilidades senatoriais. Emergiu uma corte itinerante, em que os favoritos e as concubinas competiam por influência,
os eruditos e os poetas eram considerados e os prefeitos da Guarda
Pretoriana agiam como grão-vizires. As comunidades provinciais
enviavam correntes de embaixadores para descobrir o imperador onde
quer que ele estivesse. Podiam encontrar Adriano nas margens do
Nilo ou a supervisionar a construção da grande muralha que atravessava o Norte da Britânia, a ajudar a planear o seu novo grande templo
de Vénus, frente ao Coliseu, a fazer um discurso aos soldados em
parada, em África, ou a descansar no seu enorme palácio, no Tivoli,
ou na sua amada Atenas, o império era governado onde quer que o
imperador pudesse estar.
Nos seus primórdios, o Império Romano era um mundo de paz.
A guerra era menor em escala e os imperadores raramente sentiam
dificuldade em restringi-la às suas fronteiras. A economia e a população registavam crescimento. O número de romanos aumentava
à medida que a cidadania era concedida a aristocratas provinciais,
antigos soldados e escravos libertos: segundo um édito do início do
século III, do imperador Caracala (198–217), quase todos tinham
direitos civis. Subitamente, a lei romana abraçava todos. O jurista
Ulpiano escrevia, no rescaldo deste espetacular conjunto de benefícios imperiais, que os testamentos deviam ser válidos em qualquer
língua, celta ou siríaco tanto como em grego e latim. Os estilos de
vida romanos foram largamente adotados e as novas técnicas da arquitetura e de fabrico disseminaram-se pelas províncias. Os ricos, em
25
A HISTÓRIA COMPLETA
particular, decoravam as suas espetaculares mansões com mármores importados e ofereciam grandes edifícios às suas cidades natais.
A partilha da cultura dos banhos, da educação, da alimentação,
emergiu nas cidades do império. Até os mais pobres assistiam aos
combates de gladiadores, a caças às feras (venatio), festivais atléticos e outras cerimónias, frequentemente centradas na casa imperial.
O início do século III d.C. marcou o apogeu do urbanismo antigo.
Sem dúvida alguma que havia zonas do império em que nove em
cada dez pessoas ainda viviam no campo. Mas na Itália Central e na
Anatólia Ocidental, no Norte de África, na Síria e no Egito, provavelmente 30 por cento da população vivia em cidades e grandes vilas.
Muitos dos monumentos do Império Romano, que hoje tanto nos
impressionam quando viajamos pelas suas antigas províncias, foram
construídos neste período. A conquista da Dácia por Diocleciano foi
a última expansão permanente para o império. As guerras continuaram a travar-se ao longo do século II, mas geralmente nas condições
do imperador. Os imperadores, bem como as elites locais, tiveram
aparentemente uma relativa prosperidade, embora não seja claro até
que ponto isso resultou de crescimento genuíno ou da concentração
da propriedade em cada vez menos mãos.
As condições alteraram-se por volta da passagem do século II
para o século III d.C.
Pouco antes do ano 200 no Ocidente e pouco antes do ano 250
nas outras regiões, a construção urbana entrou em declínio. A partir
deste momento não se edificaram novos teatros ou anfiteatros, o
número de placas de sinalização cai a pique e as dedicatórias dos templos parecem diminuir. Pelo menos algumas cidades começaram a ver
reduzir as suas dimensões, mais uma vez especialmente no Ocidente.
Entretanto, as guerras na fronteira setentrional pareciam ter consumido mais tempo e mais recursos do imperador. Este panorama terá
tido início já durante o reinado de Marco Aurélio, quando a guerra
contra os marcomanos do médio Danúbio se fez sentir quase continuamente entre 166 e 180. Uma nova vaga de guerra civil seguiu-se
ao assassínio de Cómodo, filho de Marco Aurélio, em 192. A luta
entre os generais provinciais foi uma reposição do que sucedera após
o suicídio de Nero, e a dinastia Severa emergente governou Roma
26
A HISTÓRIA COMPLETA
de 193 a 235 de forma bastante tradicional. Mas o renascimento
do Império Persa sob a dinastia Sassânida, no início do século III,
colocou o exército (e o tesouro) sob nova pressão. No seculo e meio
seguinte, o império foi sujeito a sucessivas guerras no Danúbio e no
Reno e sofreu violentos assaltos aos seus territórios, que resultariam
no saque de cidades como Atenas e Tarragona, que em 300 anos quase
não tinham visto um soldado e tiveram de resistir às ofensivas persas
e lidar com secessões que, durante algum tempo, dividiram o império
em três territórios separados.
Muitos dos imperadores resistiram apenas alguns anos, alguns
apenas alguns meses, poucos morreram nos seus leitos. Progressivamente passaram a ser oriundos de meios militares e as suas ligações
com Roma e o Senado tornaram-se ainda mais ténues. A recuperação
militar começou na década de 60 de 200, mas o império só voltou
a ser um todo unificado cerca do fim do século. O longo reinado de
Diocleciano, declarado imperador em 284 e tendo abdicado em 305,
marca a sobrevivência do império.
O Império Romano Tardio
No início do século IV, o mundo romano era muito diferente. As cidades, em algumas regiões, tinham voltado às dimensões de diminutos
circuitos dentro de muralhas construídas apressadamente a partir de
monumentos arruinados. Alguns dos territórios mais recentemente
conquistados haviam sido abandonados. Em Roma, o Senado ainda
existia, mas os seus membros já não tinham grande papel na governação ou no comando militar. O império seguia uma nova religião, o
cristianismo, e uma nova capital, Constantinopla, com o seu próprio
Senado, as suas próprias sete colinas e o seu próprio palácio imperial.
O império tinha também uma nova moeda, com a qual se pagavam
impostos mais elevados do que nunca, precisava de sustentar exércitos maiores e uma burocracia crescente. Havia agora um colégio
que podia chegar a quatro imperadores em qualquer momento, os
seniores, intitulados como Augustos, e os juniores, como Césares.
Cada um tinha a sua própria corte e concentrava-se numa região
27
A HISTÓRIA COMPLETA
diferente do império, mas especialmente nas fronteiras setentrional
e oriental. A partir desse período, os imperadores tiveram de manter vigília constante sobre os bárbaros e gerir a difícil relação com o
império rival da Pérsia.
A história da Pérsia neste período decorre em muitos aspetos em
paralelo com a de Roma. Sapor II, o rei dos reis persas (309–379),
criou um império profundamente centralizado, no qual a burocracia
veio substituir as baronias quase feudais que frequentemente mal
reconheciam a autoridade dos reis partos. O Império Persa também
tinha uma religião estatal, o zoroastrismo. Ao longo do período final
da Antiguidade a fronteira quase não sofreu alterações. Ambos os
impérios tinham de lidar com minorias religiosas e príncipes poderosos. As guerras eram frequentes e algumas cidades mudavam regularmente de mãos dentro de uma grande zona de fronteira, que se
estendia da Arménia ao Norte e ao longo da Síria até ao mundo árabe.
Mas houve também períodos de relativa acalmia, e os mercadores,
missionários, espiões e emissários movimentavam-se perfeitamente
entre os dois impérios irmãos. Esta situação durou até ao século VII
quando as conquistas árabes derrubaram o Império Sassânida e quase
também o Império Romano.
Escrever a história do império tardio revelou-se sempre difícil.
De início, o problema residia nos pontos de vista rivais de pagãos
e cristãos, depois de Constantino I (306–337) ter substituído a
perseguição pela tolerância e de posteriormente ter começado a
patrocinar a Igreja em grande escala. Todos os seus sucessores foram
cristãos exceto Juliano, que procurou reverter a reforma de Constantino durante o seu breve reinado (361–363). No final do século,
a tolerância geral fora substituída por ataques aos templos politeístas e os imperadores dedicavam cada vez mais energia ao combate
contra a heresia. Sobreviveram politeístas suficientemente influentes
para culpar a nova religião pelos desastres do século V. As nossas
fontes históricas encontram-se amargamente divididas. Depois, há
o problema da retrospeção. Como podemos ignorar o facto de a
perda das províncias da Dácia, de Trajano, ter sido apenas a primeira
de muitas perdas de território, que viram a Britânia e o Norte da
Gália escaparem-se ao controlo romano, em meados do século V, e
28
A HISTÓRIA COMPLETA
a substituição do último imperador por uma série de reis bárbaros
antes de 500?
Não obstante, o século IV foi em alguns sentidos uma era de
otimismo que conheceu alguma recuperação da vida intelectual,
muita construção (embora agora de igrejas e palácios em vez dos
monumentos tradicionais da cidade clássica) e, no Oriente, alguma
efetiva prosperidade. Mesmo quando um grande grupo de ostrogodos foi autorizado a atravessar o Danúbio, em 376, os romanos
podiam ainda lembrar-se razoavelmente de outros povos estabelecidos no interior do império como aliados. Mas a derrota do exército oriental pelos godos em 378, na batalha de Adrianópolis, pôs
em movimento um conjunto de migrações e manobras diplomáticas que no espaço de um século conduziram à perda total do
Ocidente. Desde o início do século V, novos grupos começaram a
entrar no império, procurando a sua própria parcela de terra como
«convidados» de Roma, e talvez a segurança face aos seus próprios
inimigos, como era o caso dos ferozes hunos. A própria cidade de
Roma foi saqueada duas vezes; a primeira pelos godos, em 410, e
depois, pelos vândalos, em 455. O último imperador no Ocidente
foi deposto em 476, embora na época talvez isso não parecesse
um ponto de viragem. Cerca de 500, os vândalos dominavam um
reino baseado em Cartago, os visigodos e os suevos controlavam a
Hispânia e a Gália, os burgúndios e os francos, o resto do que hoje
é a França, e um rei ostrogodo reinava na anterior capital imperial
de Milão. Os imperadores do Oriente – atingidos pela bancarrota,
sem um exército e preocupados com a Pérsia – foram obrigados
a aquiescer. De igual modo, as elites romanas ficaram, de certo
modo, retidas atrás das linhas inimigas. Durante algumas gerações,
os bispos e intelectuais romanos serviram os novos reis do Ocidente,
ajudando a criar sociedades nas quais romanos e bárbaros dividiam
os papéis e a riqueza. Os vestígios arqueológicos provam bastante
claramente que o comércio no Mediterrâneo não foi severamente
atingido e, em certas zonas, a vida urbana e até a literatura latina
conheceram alguma prosperidade. Os governantes destes reinos
eram cristãos (embora aos olhos dos bispos romanos do Oriente
fossem maioritariamente heréticos arianos). Muitos procuraram
29
A HISTÓRIA COMPLETA
preservar elementos da civilização romana, reconstruindo até os
seus monumentos e contraindo matrimónios com membros das suas
famílias aristocráticas. Muitos dependiam dos burocratas romanos
para gerir os complexos sistemas fiscais que tinham herdado, preservando os seus bandos de guerreiros como um exército para defender
as suas conquistas. Os seus reis viviam em palácios romanos nas
maiores cidades dos seus reinos, emitiam moeda com legendas em
latim, concebiam códigos de leis e, inclusivamente, alguns assistiam
aos combates de gladiadores.
Posteriormente, no início do século VI, o Império Romano do
Ocidente contra-atacou. Durante o reinado de Justiniano (527–
–565), os seus generais arrebataram África aos vândalos e mantiveram uma longa e devastadora guerra ao longo de toda a Itália, que
culminaria com o fim do reinado ostrogodo. A Hispânia visigótica
foi invadida. Em Constantinopla, foram lançados grandes projetos
de construção, um enorme código de leis civis romanas foi instituído e concretizaram-se reformas administrativas (as queixas de
um velho burocrata, João, o Lídio, mostram como a nova burocracia,
criada por Diocleciano e Constantino, era então olhada pelos seus
membros como um conjunto de instituições antigas e veneráveis!).
Durante uma geração, o Império Romano mediterrânico pareceu ter
renascido. Depois, voltou a falir. Os lombardos invadiram a Itália,
os francos expandiram o seu poderio e, à exceção de uma testa-de-ponte em torno de Ravena, o território romano ficara confinado ao
Norte de África e à Sicília. Entretanto, os imperadores estavam de
novo envolvidos em guerra com a Pérsia. O imperador persa Cosroes II voltou a atravessar a fronteira síria e desta vez conquistou
Jerusalém. As forças persas assaltaram o Norte pela Anatólia e o
Sudoeste rumo ao Egito, onde Alexandria viria a cair, em 619. Os
imperadores pouco podiam fazer porque a invasão coincidiu com
a dos ávaros por noroeste. Constantinopla, cercada por ambos os
lados, podia ter caído em 626. Um novo imperador, Heráclio, conseguiu negociar com os ávaros, derrotar os persas e levar a guerra até
às suas capitais, no Sul da Mesopotâmia. Humilhado pela derrota,
Cosroes seria assassinado, em 628. Heráclio triunfaria em Jerusalém
e Constantinopla.
30
A HISTÓRIA COMPLETA
E então o mundo mudou. Entre os muitos povos arrastados para
o longo conflito romano-persa estavam as tribos da Península Arábica.
Durante o processo, tinham conseguido desenvolver uma experiência
militar considerável e o conhecimento de ambos os lados, mas foi o
movimento religioso iniciado pelo profeta Maomé que os galvanizaria
para a ação concertada. Na batalha de Yarmouk, em 636, as forçss
romanas sofreram uma devastadora derrota. Em 642, Egito, Síria e
Palestina estavam sob domínio árabe e jamais seriam recuperados.
O império tinha encolhido até um terço da sua dimensão, um estado
balcânico com território na Anatólia Ocidental e algumas remotas
províncias ocidentais, a maioria das quais perderia à medida que os
exércitos árabes avançaram para ocidente, através do Norte de África,
e para norte, pela Hispânia, e também à medida que se assenhoravam
do mar. Isolada do Egito, a população urbana de Constantinopla caiu
a pique. Os persas não tiveram tanta sorte. Também eles sofreram
uma derrota devastadora, em 636, em Cadésia. A sua capital, Ctesifonte, foi ocupada no ano seguinte. O que restava do seu exército foi
destruído, em 642, na batalha de Nahavand e o seu último imperador
pereceria durante a fuga, em 651.
Fixar o fim do Império Romano não é fácil. Certamente que
os imperadores que defenderam Constantinopla quando os árabes a
cercaram, em 717, se consideravam romanos. O mesmo se passou
com os seus sucessores até Constantinopla acabar por sucumbir, não
aos árabes, mas aos turcos, no século XV. Não temos de concordar
com eles, mas qualquer outra data que selecionemos é arbitrária.
Grande parte das civilizações romana e persa sobreviveu à conquista
árabe. As cidades da Síria floresceram sob o califado e os sistemas de
impostos de Cosroes II tiveram uma segunda vida no Irão, tal como os
dos romanos nos reinos bárbaros do Ocidente. Carlos Magno sonhou
ser imperador romano e, no ano 800, o seu sonho tornou-se realidade
numa cerimónia realizada, em Roma, pelo Papa Leão III. Terá Bizâncio
especial direito a ser mais herdeira de Roma do que o cristianismo
ocidental ou o islão medieval? Não tenho a certeza disso, e assim,
para mim, a história do Império Romano acaba aqui.
31
A HISTÓRIA COMPLETA
Futuras Leituras
Existem muitas e excelentes narrativas sobre a história de Roma. Apresento
seguidamente a minha pequena lista de preferências. Duas muito boas e recentes são The Birth of Classical Europe (Londres, 2010), de Simon Price e Peter
Thonemann, e The Inheritance of Rome, de Chris Wickham (Londres, 2009),
respetivamente o primeiro e o segundo volumes de Penguin History of Europe.
Dois excelentes guias para a história social e económica de pelo menos parte
do período são The Roman Empire: Economy, Society, Culture (Londres, 1987),
de Peter Garnsey e Richard Saller, e The Evolution of the Late Antique World
(Cambridge, 2001), de Peter Garnsey e Caroline Humfress. The Roman Republic (Londres, ed. rev. 1992), de Michael Crawford, é um modelo de como a
história de Roma pode e deve ser escrita, argumentativamente e com base em
todo e qualquer tipo de provas arqueológicas, moedas e inscrições de documentos
contemporâneos e literatura posterior.
32
II
IMPÉRIOS DA MENTE
Depois, Rómulo, orgulhoso sob o manto dourado da loba que o amamentou, assegurará o futuro do povo e erguerá as muralhas de Marte
e pelo seu próprio nome os chamará de romanos. Não imponho fronteiras aos seus domínios, nem termo à sua governação, dei-lhes um
império sem fim. E até a acerba Juno, que agora inunda de medo a
terra, o mar e o céu, deles pensará melhor e a meu lado velará pelos
romanos, senhores do mundo, o povo da toga. Assim o decreto.
(Virgílio, Eneida, 1.275–83)
O império enfeitiçou a imaginação romana. Também a nossa. Qualquer estudo sobre a Roma antiga, seja sobre os seus poemas de amor
ou festivais, a sua arte monumental ou os hábitos familiares, invoca
hoje o império como um – por vezes como o – contexto crucial. Mas
nem sempre o que os romanos entendiam e nós entendemos como
«império» é coincidente. Este capítulo explora alguns dos diferentes
entendimentos enredados no coração das nossas histórias de Roma.
Um Povo Imperial
Por vezes parece que o império estava inscrito no ADN romano. Os
romanos do período clássico acreditavam definitivamente em algo
33
IMPÉRIOS DA MENTE
semelhante. Quando os poetas épicos ou historiadores imaginaram
os primeiros tempos da história da cidade, pintaram-nos como se
estivessem já predestinados para a grandeza. O advento do império é
o tema central da Eneida, um grande poema épico escrito por Virgílio
na corte de Augusto.1 A epígrafe deste capítulo foi retirada da profecia de Júpiter sobre a futura grandeza de Roma, que se encontra quase
no início daquele poema épico. Se de início foi concebido para servir
as necessidades políticas imediatas do poeta e do seu patrono, teve
posteriormente uma influência muito maior. A Eneida foi o ponto
de partida da educação em Itália e nas províncias ocidentais para os
séculos vindouros. Ocupou um lugar na cultura romana comparável ao
que a Declaração da Independência e a Constituição têm nos Estados
Unidos, ou ao de Shakespeare, na Grã-Bretanha. Constantemente
citados e imediatamente reconhecíveis, os versos da Eneida são até
omnipresentes na forma de grafitos por todo o império. Muitos provêm do primeiro livro do poema épico, o que sugere que a maioria dos
alunos não chegou muito longe na sua leitura. Mas os filhos dos notáveis das províncias terão lido os famosos versos de Júpiter enquanto
se esforçavam para aprender latim, e durante o processo aprenderam
também o que significava ser romano.
A Eneida não relata a história da ascensão ao poder de Augusto,
nem sequer da conquista da Itália e do Mediterrâneo por Roma. Em
vez disso, a ação da história é situada na era heroica, o período que se
seguiu ao das duas grandes epopeias de Homero, Ilíada e Odisseia.
Conta-nos como o príncipe Eneias conduziu um bando de refugiados
das ruínas em chamas de Troia, depois de esta ter sido saqueada pelos
gregos. Os primeiros seis livros acompanham as progressivas deambulações rumo ao Ocidente, conduzidos pelo medo e depois arrastados
pelo destino para um estranho (e estranhamente moderno) mundo
novo. Monstros, nativos hostis e deuses em fúria procuram frustrar a
sua jornada. Depois, surgem tentações pelo caminho. Nenhum lugar é
mais atrativo do que Cartago, que os troianos vão encontrar em construção e governada por Dido, a bela rainha fenícia, e outros refugiados
do Mediterrâneo Oriental. Claro que Dido e Eneias se apaixonam e
o seu amor é, evidentemente, amaldiçoado: afinal, trata-se de uma
epopeia e não de um romance, embora Eneias demore algum tempo
34
IMPÉRIOS DA MENTE
a disso tomar consciência. Porque os deuses têm um plano, e o plano
é Roma, Eneias conduz os seus homens, o seu pai e o seu filho, e os
objetos de culto sagrado de Troia, até à costa do Lácio, na Itália Central. Aí, a guerra, a profecia e o matrimónio acabarão por lhes permitir
estabelecerem-se na cidade de Alba Longa, donde o descendente
afastado de Eneias – Rómulo – partirá para descobrir a cidade.
Eneias era filho de uma deusa, Vénus, adorada em Roma como
Vénus Genetrix, Vénus a nossa Mãe. Júlio César decidiu erguer-lhe
um templo no coração do novo fórum, que pagou com o espólio das
guerras da Gália. Depois do seu assassínio, o seu herdeiro, o futuro
imperador Augusto, concluiria o projeto. O templo foi terminado
pouco antes de a Eneida ter sido escrita.
Fig. 1. Estátua de Augusto de Prima Porta exposta no Braccio Nuovo, ala nova
do Museo Chiaramonti, Museus do Vaticano, Roma, Itália
35
IMPÉRIOS DA MENTE
Estes dois trabalhos monumentais marcam estádios de evolução
no processo através do qual foi criada uma única versão autorizada da
história de Roma, a partir de uma massa de conhecimentos contraditórios. Uma das suas razões determinantes foi a passagem de uma
forma de governo republicana para uma monarquia. Muitos conhecimentos estavam ligados a determinadas famílias, mas naquele tempo
havia uma que dominava a cidade. Júlio César, bem como Augusto,
afirmava ser descendente direto de Eneias e de Vénus. Uma outra
razão foi o facto de os historiadores romanos estarem apenas no início da construção de uma cronologia fiável do seu próprio passado.
Os eruditos da última geração da República Livre, incluindo Varrão,
Nepos e Ático, amigos de Cícero, tinham trabalhado arduamente
para estabelecer uma correlação entre os acontecimentos na tradição
romana e os meridianos estabelecidos pelos historiadores gregos. As
suas conclusões – embora frequentemente baseadas naquilo que nos
parecem argumentos bastante frágeis – nunca foram verdadeiramente
postas em causa na Antiguidade. Era mais importante Roma ter uma
história genuína e unânime do que ter a verdadeira. Augusto estava
igualmente preocupado em fixar o passado. O historiador Tito Lívio
recorda laconicamente como o próprio Augusto se empenhou na
pesquisa da história antiga para estabelecer que nenhum oficial subordinado poderia receber a honra excecional da spolia opima, atribuível
apenas a um general que matasse o seu oponente em duelo.2 Menos
controversas foram as grandes placas de bronze criadas para registar
os fasti, a exata sequência de cônsules desde o começo da república até à atualidade. Os cônsules eram o par de magistrados anuais
a partir do qual cada ano era tradicionalmente designado. César e
Augusto promoveram pesquisas para a fixação de um calendário e
publicaram-no.3
Fixado pela epopeia de Homero no final da era heroica, Eneias
vivera muito antes de poder encontrar a cidade de Roma. Eruditos
gregos calcularam a data da queda de Troia em 1183 a.C., enquanto a
da fundação de Roma foi calculada em 753 a.C., o que significava um
lapso importante. Mas a epopeia de Virgílio concedeu a Eneias várias
visões do futuro – ou seja, do presente de Virgílio – como uma era
imperial, na qual, sob o governo de Augusto, os romanos dominariam
36
IMPÉRIOS DA MENTE
o mundo de acordo com as sentenças de Júpiter. Bastante impressionante é a descida ao inferno, onde o pai de Eneias lhe mostra os
grandes heróis romanos da história, que aguardam o seu nascimento, e
lhe dá pistas sobre os seus destinos. Eneias viaja também até ao Tibre
para visitar o local onde surgirá a cidade de Roma, ainda um idílio
pastoral povoado por outros refugiados do Oriente, desta vez gregos
da Arcádia, que lhe contam a história de como Hércules passara por
aquele mesmo local e ali derrotara o aterrador monstro Caco. Virgílio
urdiu as muitas lendas da antiga Roma para delas fazer uma narrativa
que só podia culminar em Augusto.
A fundação da própria cidade de Roma foi deixada a um dos
descendentes de Eneias, Rómulo, que, tal como o seu irmão Remo,
era filho de uma princesa da linhagem de Eneias e também do deus
Marte, oferecendo assim convenientemente aos romanos um segundo
imperador divino. Quando Augusto construiu os seus próprios fórum
e templo dedicou este último a Marte e colocou imagens de Vénus,
Marte e Júlio César (agora também um deus) no frontão do templo.4
Tito Lívio, que escreveu as suas obras não muito depois de Virgílio,
abriu a sua história Da Fundação da Cidade com a declaração de que,
se havia alguma nação com o direito de reivindicar a descendência de
Marte, o deus da guerra, essa nação era Roma.5 Os romanos encontravam nos mitos da Roma antiga mais do que a simples justificação
para a grandeza do seu tempo. A história de como Rómulo assassinou
Remo porque este ousou pisar a muralha que o irmão acabara de
construir para a nova cidade, era entendida como um sinal de que
também a guerra civil estava escrita no espírito romano. A Roma de
Augusto encontrava-se, afinal, a recuperar de quase um século de
guerras civis. Quando Virgílio descreve o levantamento dos africanos contra Dido depois de esta escolher um príncipe estrangeiro, o
ataque dos povos itálicos aos troianos quando Eneias ganha a mão
da princesa local, ou quando Tito Lívio conta como Rómulo rapta
as mulheres e as filhas do reino vizinho das Sabinas e as entrega aos
seus seguidores, podemos ver como os romanos procuravam uma
explicação para as suas aparentemente arreigadas tradições de violência.6 Essa tenebrosa procura decorre lado a lado com as repetidas
narrativas do quanto custara a fundar o estado romano e a cumprir
37
IMPÉRIOS DA MENTE
o destino divino da cidade. As atrocidades do período final da república – com os seus tumultos, linchamentos e assassínios políticos
a sangue-frio – devem ter tornado impossível contar uma história
convincente de Roma que não fosse em termos de sucessivos atos
de heroísmo e piedade.
A Transformação em Império
Os mitos do passado profundo foram-se acumulando com o tempo e,
evidentemente, reescritos à medida que o Império Romano crescia.
Se compararmos histórias como estas com as dos mitos de outras
cidades do antigo Mediterrâneo, torna-se imediatamente claro que
muitos dos costumes de Roma não eram assim tão invulgares. Um
surpreendente número de cidades afirmava descender de refugiados gregos ou troianos.7 Presumivelmente isso devia-se ao facto de
a epopeia de Homero ter enorme prestígio e de se conhecer tão
pouco sobre os primórdios do primeiro milénio a.C. Outras cidades
afirmavam descender de heróis errantes, especialmente Hércules,
mas também de Odisseu (ou Ulisses), Perseu, Antenor e outros.
Muitas das colónias gregas clamavam possuir aprovação divina para
se apropriarem de territórios e os expropriarem aos seus anteriores
habitantes. Essa aprovação podia assumir a forma de sinais, oráculos
ou acontecimentos miraculosos. Muitas prestavam culto aos seus
fundadores, tal como os romanos veneravam Rómulo sob o nome de
Quirino. Princípios violentos, batalhas com os povos indígenas e casamentos entre os invasores e as mulheres nativas são também características permanentes.8 Até o órfão que se transforma em vencedor
conheceu diversos exemplos paralelos. Provavelmente estes eram
os elementos fundamentais das primeiras versões das lendas sobre a
origem de Roma. Só numa fase posterior as profecias começaram a
incluir o domínio do mundo e as lendas a explorar o lado mais negro
da natureza romana.
Infelizmente, sabemos muito pouco sobre o que os romanos pensavam acerca de si mesmos antes de se tornarem uma potência imperial. A primeira literatura latina surgiu em finais do século III a.C.9
38
IMPÉRIOS DA MENTE
Nessa época, Roma era sem dúvida a maior potência na bacia do
Mediterrâneo Ocidental e há gerações que dominava a Península
Itálica. Os primeiros historiadores romanos, Quinto Fábio Pictor, que
escreveu em grego, e Catão, o Velho, que escreveu em latim, começaram desde logo a explicar como Roma conquistara Cartago. Quinto
Fábio Pictor participara na guerra contra os galos do Norte da Itália,
em finais do século III, e integrou a delegação de senadores seniores
que visitaram o oráculo de Delfos, na Grécia, em busca de conselho, após a grande vitória de Aníbal em Canas, no ano de 216 a.C.
Catão (234–149 a.C.) assistiu à derrota de Aníbal e também participou nas primeiras guerras contra os grandes reinos do Mediterrâneo
Oriental. A sua obra Origens foi fruto da profunda pesquisa em estudos gregos de informações sobre a pré-história dos povos de Itália. A
maior parte do conhecimento que reuniu deverá ter sido sobre lendas
de fundação semelhantes às de Roma. Os primeiros historiadores
gregos do período clássico pouco sabiam sobre Roma, mas pouco
do que tinham para dizer sobreviveu. Roma parece assim saltar para
a história completamente organizada como uma potência imperial,
espetacularmente agressiva, com instituições bem desenvolvidas para
sobreviver a derrotas ocasionais e converter as vitórias militares num
domínio político duradouro.10
Os romanos deste período sentiam já a sua história como uma
ascensão para a grandeza. Um contemporâneo de Catão, Quinto Énio
(239–169 a.C.), escreveu um poema épico que era, com efeito, a
história de Roma desde o início até ao seu próprio tempo. Intitulava-se Anais, e foi a base do ensino nos últimos tempos da república, tal
como Eneida o foi durante o império. Cícero era um admirador da
obra, mas até aos nossos dias sobreviveram apenas alguns fragmentos.
Apesar disso, temos uma boa noção do enredo de Énio. Os primeiros
três livros contam a história de Roma desde a queda de Troia, atravessam a fundação da cidade e a governação dos sete reis até à criação
da república. Depois, seguem-se 12 livros que relatam as guerras de
Roma contra outras comunidades itálicas; contra Pirro, rei da Macedónia; contra Cartago, culminando na conquista de cidades gregas em
Itália e na Sicília. Seguem-se as primeiras guerras na Hispânia e as
que se travaram nos Balcãs, durante o início do século II a.C., contra
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IMPÉRIOS DA MENTE
os grandes reinos do Oriente. Énio produz ainda mais três volumes
que descrevem as vitórias do seu patrono, o general Marco Fúlvio
Nobilior, a quem acompanhara na campanha no Norte dos Balcãs, em
189–188 a.C. No seu regresso, Nobilior mandou erigir um grande
templo no Campo de Marte, dedicado a Hércules e às musas. Um
modelo dos fasti de Augusto foi também aí exposto. Assim, desde
sempre a guerra e a poesia andaram de mãos dadas e a história de
Roma era a história do imperialismo romano. O poder romano foi
ampliado, guerra justa após guerra justa, até que a sequência completa
acabou por ser encarada como aprovada pelos deuses de Roma.11
Nunca se podiam considerar como garantidas as suas aprovações,
mas através de repetidos atos de devoção o povo romano conservava
o mandato divino. Triunfo após triunfo, o apoio dos deuses era proclamado.12 E enquanto estas histórias e epopeias (e também dramas,
embora poucas tenham sobrevivido) eram escritas, a cidade enchia-se
de templos à vitória, muitos prometidos durante as batalhas e fundados com os espólios doados por cada um dos generais, os mesmos
que decoravam as suas casas com troféus.
Isto dá-nos então um sentido romano de império. O domínio
de um povo, o povo da toga, sobre aqueles a quem tinham vencido
na guerra: um domínio aprovado pelos deuses de Roma como uma
marca da sua preferência por um povo que era incomparavelmente
devoto. Só no último século da república os romanos encontraram
meios de descrever a grande entidade política que tinham criado.13
O nosso termo «império» deriva da palavra latina imperium. O seu
significado fundamental era «autoridade» e até ao fim da república
este permaneceu o seu sentido primário. Só mais tarde, no tempo de
Júlio César, a palavra imperator (a raiz do nosso «imperador») passou
a significar simplesmente um general, alguém investido de autoridade.
Os soldados no campo de batalha podiam gritar o título após
um combate como forma de honrar o seu comandante. Imperium era
um poder a prazo e pessoal, que lhe era concedido com ritos solenes
pelo tempo que durava uma campanha. O regresso à cidade, o que
tinha de cumprir, se quisesse celebrar um triunfo, traduzia a renúncia a este poder. Um significado que a palavra imperium só viria a
adquirir muito tarde neste processo foi o da totalidade do território
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