a noção de interioridade - Laboratório de Psicopatologia Fundamental

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Antônio Henrique Silva Santos
“É que Narciso acha feio o que não é espelho”: a noção de
interioridade e o amor.
A noção de interioridade foi o grande combustível para a subjetivação do homem
moderno. A partir dessa noção o indivíduo se diferencia do outro, se pune, julga e é
julgado, se identifica, se descobre, se liberta, sustenta o suposto saber de um setting
analítico, entre muitas outras coisas. A interioridade modificou e criou muitas práticas,
mas algumas ainda estão em processo de transformação. Um delas é o relacionamento
amoroso. Na sociedade contemporânea parece existir um mal-estar no amor, onde há
queixas e mais queixas de desencontros. Pares são formados e trocados numa fluidez e
rapidez que, se na superficialidade demonstra tranqüilidade e desapego, no fundo há um
grande sofrimento. Assim faz-se a questão: o que mudou nas formas das pessoas se
relacionarem? Verifica-se que com a interioridade o homem muda a relação consigo
mesmo e consequentemente a relação com o outro começa a ser revista. Assim como
outras práticas foram modificadas a partir do interesse pela interioridade, as relações
amorosas estão em processo de transformação. Primeiramente vamos verificar como
surgiu essa noção de interioridade. Vejamos.
Santo Agostinho é considerado o “pai da interioridade”. Em uma de suas obras, - As
Confissões - Agostinho se dedica a demonstrar como se deve fazer para se conhecer a
Deus. Nesse savoir-faire para se conhecer a Deus, Agostinho cria uma teoria chamada
teoria da iluminação. Nessa teoria ele demonstra que Deus está no homem e o homem
está em Deus e encara Deus como a própria/única verdade e luz que habita em cada um
dos homens. Portanto, todo homem, feito à imagem e semelhança de Deus, deve buscar
a verdade no seu interior. Sendo Deus a própria verdade que já reside dentro de cada
natureza humana, resta a ação de qualquer homem que é buscar a verdade realizando
uma escavação dentro de si para encontrá-la. Para Agostinho, na relação do homem com
Deus encontra-se o interior - lugar que se encontra o caminho que leva a Deus. Deus é a
fonte de luz que ilumina o interior obscuro que habita em cada homem, e para enxergar
a Deus é preciso enxergar a si. Uma parte de sua obra “As Confissões” relata bem isso:
No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos
a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós
reside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é
consultado ensina verdadeiramente e este é Cristo, que habita, como foi
dito, no homem interior. Quando, pois, se trata das coisas que percebemos
pela mente, isto é, através do intelecto e da razão, estamos falando ainda em
coisas que vemos como presentes naquela luz interior de verdade, pela qual
é iluminado e frui o homem interior; mas também neste caso quem nos
ouve, conhece o que eu digo por sua própria contemplação e não através de
minha palavras, desde que ele também veja por si a mesma coisa com olhos
interiores e simples (Agostinho, 2003, p. 186)
A partir do primeiro modelo de auto-exploração para se chegar à verdade de si, criado
por Agostinho, a noção de interioridade nasce e se tornará a condição sine qua non para
a construção da subjetividade moderna:
Em certo sentido, aqueles dois séculos XVI e XVII, podem ser vistos como
um imenso florescimento da espiritualidade agostiniana ao longo de todas as
diferenças de crenças, que continuou em seu próprio caminho pelo
iluminismo. (Taylor, 1997, p. 186)
Um exemplo de uma das práticas que foram modificadas e que mais ajudaram nessa
busca, nessa vontade de buscar a verdade de si, é a leitura. Foi nela onde se criou mais
simbolizações entre os séculos XVI e XVIII. A leitura deixou de ser para ouvintes e
passou a ser valorizada na intimidade, na individualidade de cada um, uma leitura para
si, onde o íntimo poderia ser mais bem tocado. E para isso algumas habilidades foram
surgindo, como ler de boca fechada, em silêncio, onde facilitava uma leitura mais rápida
e mais fácil dando lugar a reflexões sobre si. A leitura passa a ser uma das práticas
constitutivas da intimidade individual, remetendo o leitor a si mesmo, a seus
pensamentos ou a suas emoções, na solidão e no recolhimento. (Corbin,
1991, p. 413).
Começa a surgir também uma literatura confessionária de autores como Montaigne e
Rousseau e no século XIX com o autor anônimo de My Secret Life. Na psicanálise e na
sociedade moderna, o falar de si traz uma idéia de libertação no sentido de tornar
público a si próprio o que é privado de si. É com a necessidade de se escrever diários
que o escrever de si se instaura. Os séculos XVIII e XIX foram uma explosão de diários,
cartas e romances onde cada um falava do seu íntimo e lia o do outro à procura do
conhecimento do homem. O homem começa a ser o “observador desinteressado” dele
mesmo.
Com o advento da interioridade o homem começa a estar mais voltado para si. E é nesse
terreno que as relações humanas se colocam na contemporaneidade. Para falar um
pouco do amor nos dias atuais, invoco um encontro onde o amor é o tema central no
diálogo: O Banquete de Platão. Ali, onde todos se propõem a falar sobre o amor,
ressalto um mito que Aristófanes conta. Ele diz que na humanidade existiriam três
gêneros que seriam o masculino, o feminino e o andrógino. Sobre a forma de cada
homem, Aristófanes conta que
inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em
círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois
rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre
os dois rostos opostos um ao outro era um só, e quatro orelhas, dois sexos, e
tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. (Platão, 1995, p. 125)
Eram de muita força e vigor, mas como acabaram voltando-se contra os deuses,
receberam um castigo de Zeus que os cortam em dois. E a conseqüência desse ato é a
sensação de incompletude humana que só poderia ser sanada com o encontro da sua
outra metade, da sua alma gêmea:
É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos
homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um
só de dois e de curar a natureza humana. Cada um de nós, portanto é uma
téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de
um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento.
(Platão, 1995, p.126)
É essa noção do amor complementar que esse artigo articula com a noção de
interioridade. É sabido que muitas histórias têm sido contadas sobre o amor e a grande
maioria vem embutida dessa noção de amor complementar. Aquela alma gêmea, aquele
outro complemento que faltava para a constituição de uma pessoa. Aquele que sem o
qual não se vive; aquele que foi cortado de mim em tempos remotos e preciso
reencontrá-lo. Novelas, contos, filmes e peças ainda colocam esse ideal de amor alma
gêmea, como indica Gutman:
O fato é que nos discursos presentes em O banquete - especialmente no
discurso do personagem Aristófanes - a sensibilidade contemporânea
reconhece, no mito por ele recriado, algo muito característico do modo
como apreendemos os sentimentos amorosos.” (Gutman, 2009, p. 539)
Mas há uma contradição. No ápice da interioridade, o homem se descobre cada vez
mais, se constrói, se complexifica, se produz tanto sobre si que ele chega ao ponto de se
perceber como diferença radical, como único entre outros. Ao se voltar para si, se
descobre e se constrói de uma forma que quando olha para fora, para os outros, não
consegue enxergar nenhum outro igual a si. E realmente não há. Aliás, é isso que a
noção de interioridade traz para a modernidade. Ajuda a perceber cada homem como
único. A relação do homem com ele próprio é modificada. Assim, a noção de amor
complementar nos dias de hoje cai por terra uma vez que há um descompasso entre a
idéia que ela traz do amor como completude no encontro com o outro, e a noção de
interioridade que faz o homem olhar para si e perceber que ele é único no mundo e que
não há ninguém que seja igual a ele.
(...) desde a noite dos tempos, nenhuma sociedade jamais deu tanta
importância à singularidade do sujeito, mas nenhuma, igualmente, tão pouco
preparou o sujeito para sustentar essa posição cujo advento ela no entanto
torna possível. É esse paradoxo que atesta a crise atual da sociedade.
(Lebrun, 2008. p. 31)
Esse paradoxo pode fazer do amar um transtorno, um sofrimento psíquico. Fazer par no
singular: tarefa subversiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. de Oliveira Santos/ Ambrósio de Pina.
Coleção Pensamento Humano. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco,
2003.
CORBIN, A. Bastidores. In Perrot, M. História da Vida Privada, vol. 4, São Paulo: Ed.
Schwarcz, 1991
TAYLOR, Charles .As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo:
Loyola. 1997
LEBRUN, J. A perversão comum: viver juntos sem o outro. Tradução: Procopio Abreu.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008
GUTMAN. Guilherme. Amor celeste e amor terrestre: o encontro de Alcibíades e
Sócrates em O banquete, de Platão. Rev. Latinoam. Psicopatol. Fundam. [online]. 2009,
vol.
12,
n.3
[citado
2010-07-30],
PP.
539-552.
Disponível
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141547142009000300009&lng=pt&nrm=iso
PLATÃO. O banquete; ou Do amor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
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