Os livros de Astrologia nos Índices da Inquisição - HCTE

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Os livros de Astrologia nos Índices da Inquisição portuguesa dos séculos XVI
e XVII
Gianriccardo Grassia Pastore
É mestre em História e Filosofia das Ciências pela Universidade de Lisboa,
Portugal. Contato: [email protected]
Resumo: o presente trabalho tem como intuito demonstrar que a Inquisição
portuguesa dos séculos XVI e XVII não tinha como objetivo impedir a circulação de
livros científicos. Quando isso se verifica são casos isolados. O objeto de sua
condenação são livros com conteúdo teológico e aqueles que atentassem contra o
livre-arbítrio, no caso desse estudo, a astrologia judiciária. Contudo, ainda assim,
devido a dificuldades de interpretações das normas, os censores tinham problemas
ao ter que censurá-las, tendo, muitas vezes, que fazê-lo com a sua própria
subjetividade.
Palavras-chave: Inquisição, astrologia, Portugal, livre-arbítrio.
Há muito debate-se o papel da Inquisição portuguesa com relação ao
desenvolvimento das ciências. Durante muito tempo a tradição tendeu a interpretar
que esta fora culpada por um suposto atraso ou defasagem lusa com relação ao
resto da Europa, contudo já há alguns anos essa visão tem sido revista pela
historiografia.
Estudos mais recentes mostram não só o quanto Portugal esteve a par das
descobertas científicas mais importantes que aconteciam além Pirineus, como
também muitas vezes os responsáveis pelo seu ensino ou divulgação eram
membros da própria Igreja, notadamente jesuítas, como é o caso elucidativo do
ensino das observações astronômicas de Galileu, por volta de 5 anos após a sua
divulgação, no mais importante centro de estudos de Portugal à época, o Colégio de
Santo Antão, em Lisboa (CAROLINO, 2001).
Quando observamos os Índices da Inquisição portuguesa dos séculos XVI e
XVII, uma surpresa nos aguarda, pois são poucos os livros científicos que ali
constam, tais como o As revoluções dos orbes celestes, de Nicolau Copérnico, já
muito tempo depois de seu lançamento.
O pesquisador que se debruça sobre esses mesmos Índices ficará talvez
surpreso por esperar uma grande lista de livros científicos, em sua maioria livros
com conteúdo teológico e livros de astrologia judiciária.
E para que tais livros constem nos índices é importante lembrarmos o período
pelo qual a Europa atravessava, o de guerras religiosas, em especial a Guerra dos
Trinta Anos. Era assaz importante para a Igreja não perder territórios e,
principalmente, fiéis para as religiões reformadas. Isso implicava que qualquer
ameaça, mesmo vindo do seio do catolicismo, deveria ser combatida com
veemência.
A explicação para que constem livros de conteúdo teológico nos índices
parece-nos óbvia, todavia para a astrologia judiciária a explicação talvez não seja
tão imediata.
Praticada pelos mais diversos extratos sociais, sendo o astrólogo comparado
àquilo que nos dias de hoje teria a função social do economista, segundo Anthony
Grafton (2002, p. 14), pois caberia a ele “ordenar os fenômenos caóticos da vida
cotidiana com modelos quantitativos”. Presença constante nas cortes e até mesmo
consultores papais, os astrólogos igualmente prestavam serviços às camadas mais
baixas da população, dificultando, inclusive, uma nítida separação entre cultura
erudita e cultura popular. Era muito comum, inclusive, um rei consultá-lo antes de
tomar qualquer medida, tais como o dia da própria coroação, a entrada em uma
guerra, dentre outros.
Não obstante essa maciça presença para consultas várias, ainda disputavam
espaço com os médicos, pois ambos faziam mapa astral. Nas universidades de
então era ensinada astrologia para os médicos, seguindo a cosmovisão aristotélicoptolomaica da influência do mundo superior, perfeito em si mesmo, no mundo
inferior, da geração e corrupção. Cria-se, então, que assim como influenciavam nas
marés, no caso da lua, e no crescimento das plantas, no caso do sol, influenciariam
na teoria dos humores humanos, sendo necessário, assim, saber qual seria o dia
mais propício para se fazer uma sangria, por exemplo. Era de igual importância um
agrônomo consultar um astrólogo para saber sobre a previsão do tempo, bem como
um navegador ter conhecimentos para a prática da náutica. Muito difundidos, ainda,
eram os prognósticos anuais. Quanto a isso nenhum problema. Enquanto a
astrologia não comprometesse o livre-arbítrio humano a Igreja não se colocava
contrária à mesma.
O problema residia justamente em previsões que envolvessem as ações
humanas e em um período de disputa pela verdade da fé isso tornar-se-ia ainda
mais perigoso, pois a Igreja católica defendia o livre-arbítrio, enquanto os
protestantes, a predestinação humana. A astrologia que não abordava a questão
sobre o livre-arbítrio era comumente chamada de natural, enquanto a outra era
chamada de judiciária e é essa que receberá especial atenção da Igreja romana.
Ainda que os ataques à astrologia não fossem novidade, talvez existam
desde que ela existe, podemos encontrar as raízes da defesa do livre-arbítrio em
Santo Agostinho, que também se colocará em oposição à astrologia. A base das
críticas eram muito parecidas, incidiam nos erros que a astrologia cometia – muito
comumente, como se é de esperar – bem como questões relativas ao destino
diferente que gêmeos tinham, por exemplo.
Durante o Renascimeto os ataques à astrologia receberam novo fôlego com o
lançamento das Disputationes de Giovanni Pico della Mirandola. Seu livro, tempos
depois receberá uma resposta vinda da Alemanha, por Stöefler, abrindo debate por
toda a Europa e encontrando ecos inclusive em Portugal. Para Pico della Mirandola
a dignidade do homem residia no seu livre-arbítrio.
Assim como para o Conde da Concordia e de Mirandola, a questão central
para a Igreja, como referimo-nos há pouco, é a defesa do livre-arbítrio. Em janeiro
de 1586, o papa Sisto V publica a bula Coeli et Terrae, na qual condena as artes
divinatórias e dentre as quais a astrologia judiciária. É interessante atentarmos que
permitia a prática da astrologia natural, pois o cerne da questão é justamente o livrearbítrio. Um outro fator que chama-nos atenção é o fato de essa ser a única bula
papal a ser traduzida para língua vulgar, muito provavelmente com intuito de alertar
o maior número possível de pessoas, tamanha era a popularidade da astrologia.
Trata-se já de uma normatização com relação à astrologia.
Continha na bula que era responsabilidade de bispos, prelados, superiores e
demais membros da Igreja proceder com severidade contra a astrologia judiciária. A
preocupação com as artes divinatórias era tamanha que recomendava-se a fixação
da mesma nas igrejas.
Contudo, essa norma da Igreja não chega de forma tão clara aos que
deveriam agir em defesa da fé e muitas cartas contendo dúvidas e reclamações são
feitas. Não ficava claro – como de fato não são – os limites que separavam a
astrologia natural da judiciária, dificultando o serviço dos inquisidores.
Se a Idade Média viveu com uma relativa tolerância nas relações entre a
Igreja e a astrologia, o início da Idade Moderna apontava para outros rumos com as
Reformas protestantes, como vimos. Já no século XVI, três documentos são muito
importantes para a relação da Igreja com a astrologia. O Índice de 1557 proibiu a
astrologia não como disciplina, mas enquanto arte divinatória. A distinção entre as
duas subdivisões clássicas da astrologia ficava assim subentendida, a proibição
incidia apenas em predições de eventos. Contudo ainda persistia uma ambiguidade
a qual tentou dirimir-se no Index de 1559, permitindo a astrologia que estivesse a
serviço da medicina, agricultura e navegação. A regra IX, em que Pio IV prefaciou o
Index de 1564, repetiu a formulação de 1559 e por mais de vinte anos foi a base da
proibição da Igreja.
É importante vermos que, mesmo com essas incessantes tentativas de
normatização da proibição da astrologia judiciária, as dúvidas e questionamentos
persistiam, pois era muito difícil para um inquisidor, em muitos casos, delimitar
astrologia natural da judiciária.
Segundo Ugo Baldini, muitos documentos comprovam os inúmeros pedidos
feitos pelos próprios membros da Igreja para que as regras fossem mais claras,
especialmente
aquelas
que
referiam-se
sobre
“inclinação”.
Dentro
das
Congregações e até mesmo pressões externas induziam uma harmonização dos
critérios que seriam utilizados pelos censores quando surgisse uma obra de
astrologia para análise. Esse tópico foi muito debatido dentre os cardeais das
Congregações e levado para considerações papais, especialmente no período entre
1590 e 1596.1
É curioso notar que as requisições feitas para que as regras fossem mais
claras requeriam também um abrandamento da bula de 1586, pois, segundo os
pedidos, era de difícil implementação. Como agiria o censor ante a dificuldade de
definição da astrologia natural e astrologia judiciária? A interpretação da bula e das
regras tridentinas afinal, acabavam por ficar sob a responsabilidade do próprio
censor.
Nesse ínterim, cabe uma explanação sobre a regra tridentina IX. Essa regra
versava sobre artes divinatórias, tais como a própria astrologia judiciária e não a
natural, quiromancia, hidromancia, piromancia, dentre outros. Jamais, em nenhum
momento, a Igreja colocou-se contrária às novidades, principalmente contra as
1 BALDINI, Ugo. The Roman Inquisition's Condemnation of Astrology: Antecedents, Reasons and
Consequences. In: FRAGNITO, Gigliola (ed). Church, Censorship and Culture in Early Modern
Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p. 93.
ciências. A preocupação da Igreja, vale repetir, era a questão do livre-arbítrio. A
liberdade é um dom dado por Deus.
Assim como a bula de Sisto V, a regra IX também não se coloca contrária às
inclinações, qualidades corporais e eventos condicionados, ou seja, nada que
pudesse afetar a alma, cerne da preocupação da Igreja. Também não proibia a parte
da astrologia judiciária que não tolhesse a liberdade humana, prognósticos
baseados nas estrelas e que servissem as coisas naturais, tais como agricultura e
medicina. Mas as dificuldades de delimitação permaneciam.
A regra IX, do Índice de 1564, foi interpretada como se proibisse somente
previsões que afirmassem coisas corretas, pois isso resultaria na necessidade da
vontade humana nos atos. Mesmo sendo reimpressa no índice de 1596 as
dificuldades de interpretação permaneceram, dessa maneira as dificuldades de
aplicação permaneceram.
Em 1617-18, o Inquisidor-geral de Portugal escreveu a Roma no intuito de
obter melhores esclarecimentos sobre as instruções. A resposta da Congregação
veio da pena do cardeal Roberto Bellarmino dizendo que a regra IX deveria ser
interpretada com base na constituição de Sisto V, entretanto o problema persistia,
pois não havia correspondência entre a bula e a regra.
Em 1631 nova tentativa de proibir a astrologia judiciária. É lançada uma nova
bula por Urbano VIII versando sobre o uso político da astrologia. Incrutabilis
iudiciorum Dei altitudo, esse era seu título, proibia previsões sobre a Igreja e o
Estado papal, a vida do papa e de seus consaguíneos. A motivação para tal foi a
previsão feita pelos espanhóis sobre uma possível morte do pontífice.
Conforme começamos esse trabalho, ao analisarmos os índices portugueses
dos séculos XVI e XVII, encontramos apenas obras que pudessem atentar contra o
catolicismo. Autores como Melanchton, Rheticus e Osiander constam devido à fé
protestante que professavam. Agrippa, devido aos seus estudos de magia,
astrologia e ocultismo. Cardano também era astrólogo. Muitos livros de geomancia,
quiromancia e astrologia, objeto desse estudo, estavam contidos no rol de livros
proibidos devido ao seu atentado ao livre-arbítrio, mas livros científicos stricto sensu
são menos comuns de serem encontrados.
Por fim, vale ainda questionar a eficácia e a preocupação da Inquisição
portuguesa quando observamos que seu único índice no século XVII – justamente
em um período no qual cresce a quantidade de livros – é uma cópia do índice
espanhol de 1612.2 O quanto de fato foi eficaz essa censura? O quanto puderam
agir em meio a tantas dúvidas de interpretação das normas romanas?
Bibliografia
BALDINI, Ugo. The Roman Inquisition's Condemnation of Astrology: Antecedents,
Reasons and Consequences. In: FRAGNITO, Gigliola (ed). Church, Censorship
and Culture in Early Modern Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
CAROLINO, Luís. Aristotelismo, qualidades ocultas e crenças astrológicas no
Portugal da Contra-Reforma. In: 1º CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE
HISTÓRIA DA CIÊNCIA E DA TÉCNICA, 2001, Évora. Anais... Évora: Universidade
de Évora, p. 83 – 94.
GRAFTON, Anthony. Il Signore del Tempo: I mondi e le opere di un astrologo del
Rinascimento. Roma e Bari: Editora Laterza, 2002.
GRASSIA PASTORE, Gianriccardo. Astrologia e Inquisição em Portugal nos
séculos XVI e XVII. 2014. 174 f. Dissertação de Mestrado (Secção Autónoma de
História e Filosofia das Ciências) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2014.
MARTINS, Maria Teresa Payan. O Índice Inquisitorial de 1624 à Luz de Novos
Documentos. Cultura. Vol. 28, p. 67 – 87.
MOREIRA DE SÁ, Artur. Índice dos livros proibidos em Portugal no século XVI.
Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1960.
PARDO TOMÁS, José. Ciencia y Censura: La Inquisición Española y Los Libros
Científicos en los siglos XVI e XVII. Madri: Consejo Superior de Investigaciones
Científicas, 1991.
2 MARTINS, Maria Teresa Payan. O Índice Inquisitorial de 1624 à Luz de Novos Documentos.
Cultura. Vol. 28, p. 67 – 87.
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