2º CENTENÁRIO DAS INVASÕES FRANCESAS (PARTE II) A neutralidade portuguesa no conflito franco – inglês Estratégia política e diplomática nas vésperas das invasões A embaixada do general Lannes. Pacificada a Europa, após dez anos de guerras, a paz de Amiens foi apenas uma trégua. Esse curto período de tranquilidade aproveitou-o a França em fazer acreditar os seus novos representantes diplomáticos nas Cortes até há pouco em litígio, procurando, obviamente, com essas missões, alcançar o máximo de proveito para si. Bonaparte, restabelecidas as relações com Portugal, enviava para a Corte de Lisboa, como ministro da República francesa, o general João Lannes, comandante da guarda consular, que muito se distinguira em Marengo tendo sido o vencedor da batalha de Montebelo, nome que lhe veio a dar o título de conde. Dada a amizade que existia (ou existiu?) entre Napoleão e o novo representante da França junto do Governo de Portugal, e o prestígio militar que este gozava, parecia, de facto, que a nomeação de Lannes para Lisboa, representava uma prova de alta consideração para com o nosso País. No entanto, Thiers na sua «Histoire du Consulat» explica a decisão pelo desejo de Bonaparte afastar de Paris o general. Napoleão acabara de firmar a concordata com a Santa Sé, e restabelecera por esse tratado em França a religião católica, sem sacrificar a liberdade de consciência. Porém, o general organizou, entre os seus camaradas tenaz resistência, ou antes, «más disposições». Lannes, Augereau, etc. educados na escola revolucionária, tendo por conseguinte um grande ódio aos padres e aos emigrados, censuravam altamente, em linguagem áspera, a atitude do governo, e diziam até inconveniências. Podia, ainda, aduzir-se um autêntico feixe de razões que teriam determinado a escolha de um militar totalmente estranho à diplomacia e seus usos. Por conseguinte, o envio de Lannes para Lisboa, deve entender-se como um afastamento, derivando mais de uma vontade de rejeição do que de um verdadeiro plano e o certo é que … a sua escolha não foi feliz para Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 1 Portugal como representante da França junto do Príncipe Regente, o que viria a ser sobeja e lamentavelmente constatado. Entretanto o Governo de Lisboa enviava também para Paris, como nosso ministro, D. José Maria de Sousa, o morgado de Mateus, um dos mais hábeis diplomatas, que já fora destinado a outras comissões e conhecia os assuntos que diziam respeito à política francesa. D. José Maria de Sousa chegou a Paris em 7 de Abril de 1802 e a sua primeira entrevista com Napoleão decorreu num clima de grande cordialidade, ainda que da parte do Primeiro Cônsul houvesse motivo para, de algum modo, “torcer o nariz”: é que o Governo português esquecia-se (ou fazia-se esquecido) em dar cumprimento ao estipulado no Tratado de Madrid quanto à indemnização de guerra devida à França. A inteligência e o tacto diplomático permitiram a D. José M. de Sousa moderar alguns incidentes que se lhe iam deparando. O seu casamento com uma senhora francesa, uma mulher distinta e que gozou de certa reputação literária, escreveu o célebre romance «Ourika» e era íntima de Beauharnais, facilitou-lhe, sem dúvida, a sua missão na capital francesa, tendo sido conhecida no mundo literário pelo nome de Madame de Sousa. Complicação nas relações bilaterais luso-francesas. Afrontas ao Governo português. Lannes chega a Lisboa em 2 de Maio de 1802 e desde logo se convenceu que devia impor a prepotência francesa no nosso País. Era um homem conflituoso, irascível, que apesar do tratamento de excepção proporcionado, cometeu os maiores atropelos no que diz respeito à sua conduta arbitrária e prepotente; arrogante, de expedientes infames, faltando-lhe estatura de diplomata, exigia descaradamente que Portugal cedesse a todos os seus caprichos e imposições. Completamente estranho ao uso da diplomacia, soldadesco, «entrou em Lisboa como um verdadeiro temporal» e, muito em breve, cortaria relações com o nosso ministro dos Estrangeiros, D. João de Almeida de Melo e Castro, que era acusado de fazer o jogo da Inglaterra, bem como Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro e secretário de Estado, presidente do Real Erário, considerado como chefe do «partido inglês». E assim parecia ser, tanto mais que nenhum deles escondia a sua simpatia para com a Grã-Bretanha e sofrendo também da influência de Fitz Gerald, embaixador da Inglaterra em Lisboa, que odiava a França Aberto o conflito com o ministro dos Estrangeiros, e com o propósito de intimidar e violentar o Gabinete, Lannes só recorria directamente ao Príncipe Regente que, temendo o impulsivo general, procurava satisfazer-lhe as exigências, quase sempre à custa do prestígio Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 2 nacional. Diz-se que, quando ia ao Palácio da Ajuda, não perguntava pelo Príncipe Regente ou pelo Príncipe do Brasil; dizia, simplesmente: «M. du Brésil está em casa?». Aproveitando-se das imunidades diplomáticas, chegou ao ponto descaradamente, de um estabelecer verdadeiro e dirigir, corpo de contrabandistas, recebendo, enquanto esteve em Lisboa, três navios carregados, e quando partiu já estava quarto navio no Tejo. De facto, Lannes não vinha senão para enriquecer, sabendo bem que não era apto para as funções de que o encarregavam e, se veio, foi unicamente para ceder às instâncias de Napoleão e Josefina, a qual para o convencer deu a madame Lannes um presente de 60.000 francos. Semelhante comportamento do enviado francês não podia prolongar-se. As queixas do Príncipe Regente referiam que Lannes exorbitava em desprestígio do seu país, e o governo francês de modo nenhum podia conformar-se com a actividade do seu representante. Repetidas vezes reclamámos, por intermédio do nosso ministro em Paris, dos actos que entre nós praticava o representante da França. Porém, apesar das reclamações Portugal ia-se curvando a todas as exigências do general Bonaparte, o que fez dizer a Pinheiro Chagas: «Lannes praticava em Lisboa insolências que não ousaria praticar no principado do Mónaco, porque a Corte portuguesa, pelo carácter do Príncipe Regente e pela fraqueza dos seus ministros, chegara a um tal grau de abatimento e aviltamento que tudo se lhe podia fazer impunemente». Perante as constantes chamadas de atenção de D. José Maria de Sousa, Talleyrand respondia: «não ser caso de preocupação do embaixador e da Corte portuguesa, e, movido pelo rancor que tinha ao general, admirava-se de Lannes não fazer pior, prometendo substituílo». Assim informava D. José M. de Sousa, participando a Melo e Castro a opinião de Talleyrand e acrescentando: «o homem é susceptível de interesse pecuniário». Isto significava que Lannes considerava a sua estadia em Lisboa como ocupação dum lugar de alta rentabilidade, acolhendo de bom grado os favores dos portugueses para moderar as suas maneiras e a sua actividade, cobiçoso como era de ricas benesses. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 3 Uma das pessoas contra quem o ministro francês mais se movimentava, não disfarçando a sua cólera, era o Intendente Geral da Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique. A principal razão do ódio que lhe votava tinha a sua origem no impedimento que o Intendente pusera, como Administrador Geral das Alfândegas, ao despacho de grossa mercadoria descaminhada aos direitos, e não da acusação de ter prendido alguns franceses e mandado agredir um seu ajudante como ele declarava. Diogo Inácio de Pina Manique Perante estas práticas, destinadas, em princípio, a combater o contrabando, comentava Lannes que tais práticas não se aplicavam aos paquetes ingleses que descarregavam no cais de Lisboa, quatro vezes ao mês, as suas mercadorias. Esta não era a opinião de José Maria de Sousa, o representante do Príncipe Regente em Paris, que explica a Talleyrand numa nota de 29 de Maio: «A maneira como os ministros estrangeiros são tratados em Lisboa é indubitavelmente a mais vantajosa para eles do que a de todas as cortes, visto que lhes entregam com isenção de direitos, à chegada e durante todo o tempo de residência, tudo o que reclamam e asseguram ser para seu uso, desde que esses bens entrem pela Alfândega e sejam aí examinados para evitar o abuso do contrabando, que sem o saberem, se poderia aí introduzir. Os ministros de S. A. R. (Sua Alteza Real) nas cortes da Europa jamais pretenderam uma reciprocidade deste privilégio de que não desfrutam». Este texto enumerava, ainda, as diversas causas do descontentamento do futuro D. João VI a respeito de Lannes: «reclamações e ameaças contínuas, desdém manifesto pelos usos e regras de etiqueta, pretensão a não tratar a não ser com o Príncipe, sem passar pelos ministros competentes». Mesmo depois de aconselhado por Talleyrand, recomendando-lhe o apaziguamento, Lannes não renunciava ao seu objectivo imediato: a repetida exigência da demissão dos cargos que ocupava, Intendência e Alfândega, declarando explicitamente, que não admitia meio termo Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 4 na alternativa que propusera, isto é, ou que o Intendente fosse demitido dos dois referidos cargos, ou que ele, general Lannes, deixaria Portugal «para cujo efeito pedia desde logo os passaportes, acrescentando que a sua residência em Lisboa nem lhe convinha por maneira alguma, nem lhe sendo agradável, ele a deixava em virtude da autorização, que tinha do primeiro cônsul para se retirar, quando muito bem lhe parecesse». A insistência na demissão de Pina Manique levou o Príncipe Regente a ordenar ao magistrado que fizesse uma alegação por escrito, uma espécie de defesa contra as alegações que Lannes lhe tinha dirigido. Assim procedeu, remetendo-se a referida defesa ao enviado da França, acompanhada por uma nota redigida «nos termos mais atenciosos e lisonjeiros possíveis». Todavia, esta atitude de consideração do Príncipe Regente e demonstrativa da deferência que a Corte de Lisboa tinha pelo representante da República francesa, foi completamente inútil. Não houve esforços que se não empregassem para que ele desistisse do seu projecto, ou ao menos para que tivesse audiência de despedida. Efectivamente, o nosso Governo ainda pretendeu obstar a tão estranho procedimento, cujo resultado não podia deixar de ser desagradável, pondo a Nação em sobressalto, e em dúvida para com a França a boa amizade que o Governo português tanto desejava manter com ela. Os ministros visitaram-no, o Príncipe envia-lhe o seu retrato enfeitado a diamantes e «armas muito belas» e, por intermédio do visconde de Balsemão, instava para que comparecesse na audiência de despedida. O Governo português pretendendo esgotar todos os meios possíveis para suspender a partida do ministro francês, ainda recorreu à mediação do Núncio Apostólico a fim de reconsiderar a sua atitude, ao que Lannes respondeu «com os excessos da sua ira, dizendo que já então não ficaria se não fosse o Intendente demitido dos seus empregos por um decreto, que em nada lhe fosse airoso». A tanto não anuiu o nosso Governo. Lannes, irritado, pediu em seguida que lhe fossem dados os passaportes dentro de vinte e quatro horas, acabando por sair de Lisboa no dia 10 de Agosto, sem ter tomado audiência de despedida. Dois dias antes, a 8 de Agosto, o Príncipe D. João escrevia ao Cônsul para lhe dar conta da sua estupefacção: «Os sentimentos de confiança e amizade que sempre tive o prazer de manter convosco, não me deixam a liberdade de me dispensar de vos comunicar a partida do general Lannes que acaba de deixar a minha corte duma forma inusitada e que eu não devia esperar depois dos testemunhos públicos e constantes do meu afecto pelo governo francês e os sinais de consideração e estima pessoais que me esforcei por prodigalizar ao seu ministro plenipotenciário». Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 5 Reacção e exigências de Napoleão Bonaparte. A vergonhosa situação desencadeada pelo general Lannes parece não ter agradado a Napoleão, se considerarmos o facto do enviado francês ter sido afastado de Paris durante algum tempo. Porém, não será de rejeitar que esta atitude pretendesse, apenas, fazer acreditar na imparcialidade do Primeiro Cônsul, ou / e tivesse sido tomada para “português ou inglês ver”, visto que, como se verificará, passados poucos meses, a 12 de Março de 1803, Lannes está novamente em Lisboa na qualidade de plenipotenciário do governo francês. Ao futuro Imperador nada interessava a muita ou pouca razão que assistia ao Príncipe Regente D. João nas queixas que lhe fazia contra os desmandos, grosserias e afrontas do general. Perante Napoleão, o único delito de Lannes foi ter abandonado o seu cargo sem ordem do governo francês. As fraudes, as incorrecções, as humilhações infligidas ao nosso País, que o acolhera com excessiva deferência, não tinha qualquer valor no comportamento do seu enviado. Napoleão odiava Portugal pela sua fidelidade à aliança inglesa, por dispor de óptimos portos de que a esquadra britânica se servia livremente e, ainda, porque uma esquadra portuguesa contribuíra para a derrota francesa no Mediterrâneo. Napoleão iria aproveitar-se da situação que lhe era proporcionada pela precipitada retirada de Lannes, com a finalidade de substituir, em Lisboa, a influência francesa à influência inglesa. Assim, alegando que o ministro dos Estrangeiros, D. João de Almeida de Melo e Castro, era o chefe do «partido inglês», além de que concedera os passaportes ao ministro francês e ter publicado, por meio de uma circular ao corpo diplomático, o que se tinha passado, exigia a demissão de D. João de Almeida. Em 14 de Setembro, dá, nesse sentido, instruções a Talleyrand: «deve-se censurar Lannes, que faltou a todos os usos e ao dever de funcionário público, e fazê-lo lembrar disso; deve-se pedir a demissão de Almeida e comunicar a Sousa (nosso embaixador em Paris) que esta exigência será apoiada por uma declaração de guerra, se tal for necessário…» Naturalmente preocupado, D. José Maria de Sousa esforça-se por demonstrar a Talleyrand a injustiça de se exonerar um ministro que, para mais, cumulara o representante de Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 6 França das maiores atenções, ao mesmo tempo que pede, de imediato, uma audiência a Napoleão para tratar directamente do assunto. Segundo o relato oficial, o Primeiro Cônsul insistiu tenazmente na demissão do referido ministro e, visando igualmente o próprio Intendente Pina Manique, tornava nulos todos os argumentos do nosso representante em favor do Governo português: «… É portanto, essencial manter a boa harmonia e paz, que todo o mudo deseja… Não acredito que Portugal queira uma ruptura com a França; mas vejo que em Lisboa se obrou como se a quisessem, e que os franceses são lá bastantemente maltratados. Olhai: sua alteza real deve também desviar de si aquele administrador-geral das alfândegas, porque na verdade muitos negociantes há no Havre de Grâce, aliás boas pessoas e sensatas, que me dirigiram queixas, por terem sido vexados em Lisboa e tratados por diferente modo dos ingleses e, finalmente, como se Portugal estivesse ainda em guerra com a França. Isto não é bom; porque nós tratamos aqui muito bem os portugueses… Estas duas nações devem ser amigas; é isto o que convém a ambas elas, porque aqui não há Bourbons que Portugal possa temer. E, por certo, ainda que sejamos aliados da Espanha, jamais consentiríamos que ela invadisse Portugal, coisa a que muito nos oporíamos, protegendo-o com todas as nossas forças. Em vista disto, é necessário reconciliarmo-nos, sendo uma ofensa para nós que Mr. de Almeida nos queira desunir». A isto replicou D. José Maria de Sousa, afirmando que o Príncipe Regente estimava em extremo a amizade da França, não querendo por modo algum ofendê-la, ao que Napoleão retorquiu: «Assim será; mas é duro que, por causa de uma circular de D. João de Almeida, as gazetas estrangeiras dêem o ministro de França em Portugal como sendo o primeiro dos contrabandistas. Isto é insuportável, mas não era assim que devia proceder uma nação amiga… Mr. de Almeida é muito exagerado e muito violento: ele parece ter feito um estudo para publicar o que devia ficar em segredo. Quanto ao administrador das alfândegas, eu não falo senão como de um homem inimigo dos franceses, e de quem todo o mundo no Havre faz queixas; mas não peço a destituição de um empregado subalterno. O príncipe regente reprimirá os seus abusos, que provavelmente desconhece, o que também sucede em toda aparte… Comunicai, pois, à vossa corte que eu desaprovo a conduta do general Lannes, e que não voltará lá. Na verdade, estou arrependido de o ter para lá mandado; julguei que o seu carácter ardente o não levasse tão longe. Ainda que o estime, acho má a sua conduta, mas lá também obraram diferentemente com ele, desde que, por loucura, lhe enviaram daqui pela posta a carta não cifrada em que eu não o apoiava e lhe ordenava de restabelecer a correspondência…Enviarei um outro ministro com quem vivereis em bem. Que o príncipe Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 7 regente exonere Mr. de Almeida do ministério, não o pondo em desgraça, o que de certo não peço. Pode ser colocado em qualquer outro lugar, podendo-se fazer isto em segredo como sua alteza real julgar mais conveniente. Que fora do ministério não haja pessoa que saiba os motivos disto, porque pela minha parte nada direi, guardando um profundo silêncio. Mas é necessário que eu seja informado de que isto foi executado, e então os negócios tomarão o seu curso… Espero, pois, que se não optará por uma ruptura.» Ao fim e ao cabo as imposições humilhantes de Napoleão, que não eram mais que um «ultimatum», foram comunicadas para Lisboa em 17 de Novembro de 1802. No dia 10 de Janeiro de 1803 recebeu D. José Maria de Sousa os despachos de Lisboa e, juntamente com eles, uma carta do Príncipe Regente para o Primeiro Cônsul que lhe foi entregue no dia seguinte. Lendo-a na mesma audiência que lhe foi entregue, D. João resistia e afirmava que estava em jogo a sua dignidade e o crédito do País, visto que o Cavaleiro de Almeida obedecera a ordens suas. Bonaparte, depois de ler o documento, irritado, disse para o nosso embaixador: «Tudo são demoras e retardamentos de conclusão, quando eu tinha dito positivamente que queria que fosse destituído M. de Almeida, e que o primeiro correio me trouxesse a notícia de tudo ficar feito. Não o fizeram, não quero saber de mais nada do que tinha pedido, pois que nada se fez. Vou dar ordens ao ministro das relações exteriores (Talleyrand), para que ordene ao general Lannes que, imediatamente, parta para Lisboa, para tornar a exercer as funções do seu antigo posto». Não recebendo a resposta conforme ao que exigira, não esteve com meias medidas e, sem mais cerimónias, despediu-se do ministro português, demonstrando grade irritação, declarando que a sua resolução era irrevogável. E assim foi. De facto, resolve, apesar do aviso em contrário de Talleyrand, «a soldo de Sousa», reenviar Lannes para Lisboa, o mais rapidamente possível: «Creio os seus serviços úteis em Portugal», escrevia a Talleyrand a 12 de Janeiro de 1803. Insistindo nas suas exigências na resposta ao Príncipe Regente, a 14 de Janeiro, desejava, além do mais, que ficaria satisfeito se acolhessem o seu enviado «de maneira a fazer-lhe esquecer os desprazeres que alguns ministros lhe fizeram passar». Não havia dúvida que Napoleão pretendia provocar atritos e, como já se havia verificado anteriormente, ninguém melhor o podia fazer do que um homem sem formação diplomática, sem princípios, nem escrúpulos de consciência, como o general Lannes. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 8 Logo que ficou decidida a partida de Lannes para Lisboa, o embaixador português escreveu a D. João de Almeida, aconselhando o Governo português ao procedimento a ter com tão insolente criatura: «Lannes vai partir imediatamente para Lisboa, e terão aí o desgosto de o ver…O mais essencialmente necessário é não lhe mostrarem medo, tratá-lo com uma civilidade muito séria e com uma firmeza inabalável. Usar para com ele de toda a distinção própria a um ministro estrangeiro; mas sem diferença dos outros em coisa alguma. Assim se me é lícito acrescentar, convirá que sua alteza real o receba somente nas audiência públicas, e nunca conceder-lhe particulares, nunca tratar com ele, sem ser pelo canal do ministro. Isto me parece muito importante, aliás considero tudo perdido, e que este homem virá a romper a harmonia…Ainda sem contemplar a insinuação do primeiro cônsul sobre o Manique, me parece prudente afastálo, antes de chegar o general Lannes, do lugar da alfândega, e isto por prudência, para os não por em colisão. Como o Manique está velho, pode fazer-se isso com decência, e de maneira que não pareça receio de Lannes ou insinuação daqui». Efectivamente, perante tais circunstâncias, o que se aconselhava ao Governo português como mais conveniente era adoptar uma linha de conduta que pudesse evitar tudo quanto fosse susceptível de trazer graves confrontações com o general, de quem muito se temia, olhando ao procedimento que tivera da primeira vez na Corte de Lisboa. Assim, o Príncipe Regente, numa atitude de fraqueza e / ou conveniência, sem outras alternativas, e antes de Lannes chegar a Lisboa, demitiu Pina Manique do lugar de Director da alfândega pelo seguinte decreto: «Havendo-me representado o doutor Diogo Inácio de Pina Manique, do meu Conselho, Desembargador do Paço, e Intendente Geral da Polícia da Corte do Reino, que os muitos e laboriosos lugares e comissões que dele tenho confiado e a sua idade lhe não permitem atender, como sempre praticou, com o cuidado e zelo que necessita a importante administração geral da alfândega do açúcar, e tendo consideração ao referido, e tê-lo promovido ao lugar de chanceler mór do Reino, hei por bem deferir-lhe, aliviando-o da dita administração geral da alfândega do açúcar vencendo os mesmos ordenados, que levava na folha da dita alfândega e as tiras e marcas. O conselho da fazenda o tenha entendido e faça executar com os despachos necessários. Palácio de Salvaterra de Magos em 14 de Março de 1803». Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 9 Regresso do general Lannes a Lisboa e… à insolência. Paz precária. A 8 de Fevereiro de 1803, Lannes, agora apoiado claramente por Napoleão, viajou para Rochefort de onde embarcou a bordo de uma fragata de guerra francesa, tendo chegado a Lisboa a 12 de Março. Desde o seu regresso, Lannes dá novamente nas vistas por via de uma conduta inconveniente, chegando a Lisboa ainda mais arrogante do que partira, porquanto sentia bem a nossa fraqueza, demonstrando em todos os seus actos o maior desprezo pelo país onde estava acreditado. Diz Eduardo Brazão que «o representante da França considerava-se como um verdadeiro procônsul do seu país em Portugal». De facto, assim que chegou a Lisboa mandou desembarcar e conduzir para sua casa todas as fazendas que trouxe consigo sem passar pela alfândega, fechando-se, mais uma vez, os olhos a tal excesso, sem que nada se lhe dissesse, não obstante serem até proibidas muitas daquelas mercadorias. A demissão de Pina Manique do lugar de Director Geral das Alfândegas estava longe de o satisfazer, porquanto teria dito a um ministro estrangeiro que o havia fazer demitir do lugar de Intendente da Polícia. E mais disse, que estava decidido a pedir outras demissões, pretendendo referir-se a D. João de Almeida de Melo e Castro, ministro dos Estrangeiros e do Presidente do Real Erário, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, «enfim de todos os homens afectos ao partido inglês», na certeza de que em caso de recusa partiria, novamente, dentro de vinte e quatro horas para fora de Portugal, sem pedir audiência de despedida. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 10 Logo, após, a sua entrada em Lisboa, recusa-se a cumprir o protocolo para as audiências, anunciando a sua chegada por escrito ao Ministro do Reino em vez de se dirigir, como era costume, ao ministro dos Estrangeiros. Como, naturalmente, lhe tivesse recusado os ofícios, foi ele próprio entregá-los a Queluz para lhe não serem rejeitados, numa ocasião em que D. João tinha vindo para Lisboa. Perante a firme decisão de se lhe devolverem os despachos que não fossem enviados directamente ao ministro dos Negócios Estrangeiros, depressa verificou que não havia forma de corresponder-se com o Governo senão através daquele ministro, razão porque se resolveu a mandá-los pelas vias competentes. Lannes não só não cumpria as regras da diplomacia como sujeitava D. João a suportar situações humilhantes, nomeadamente, nas audiências que lhe concedia, só porque se tratava de uma potência com poderes sem limites sobre os pequenos estados. Logo na audiência da recepção, em que foi admitido pelo Príncipe Regente, indo contra todas as etiquetas, e numa falta de respeito pela Corte de que era hóspede, aproveitou a ocasião para fazer um discurso insultuoso e violento, acusando o Governo português de servir com parcialidade a Grã-Bretanha, formulando com a maior insolência e os mais grosseiros termos uma série de queixas e ameaças descabidas e extemporâneas. O Príncipe Regente, intimidado com o despropósito do embaixador, tentou com calma e cordialidade aconselhá-lo a pedir que formulasse por escrito todas as suas queixas para serem apreciadas com justiça, o que prometeu, mas nunca cumpriu. Pouco tempo depois, conseguiu uma segunda audiência do Príncipe, onde «mais desabrido do que nunca», proferiu, ou vociferou, queixas e invectivas contra o ministério existente, não se tendo coibido de dizer que todos os ministros se achavam vendidos à Inglaterra, sendo inimigos declarados da França. Logo de seguida pediu as demissões já referidas, D. João de Almeida de Melo e Castro e Rodrigo de Sousa Coutinho e a de «todos os mais indivíduos que lhe passaram pela cabeça», esperando ver atendidas imediatamente as suas reclamações. Pacientemente, D. João respondeu-lhe que «os seus ministros eram todos portugueses, e portanto natural e constantemente dirigidos pelo interesse do seu soberano e do seu país, e Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 11 por conseguinte isentos de toda a influência estrangeira nas suas opiniões e conduta». O Príncipe Regente repetiu-lhe pela última vez a necessidade de o formular por escrito, uma vez que esta era a prática de todas as Cortes para se tratarem negócios internacionais e que «esta forma era absolutamente necessária, e em semelhante mais do que nunca, para assim se prevenirem as desinteligências a que se estava exposto nas questões e respostas verbais». A isto replicou, irritado: «semelhantes negócios não são de natureza a serem postos por escrito». Tudo isto, e muito mais, foi transmitido a Napoleão Bonaparte, dando motivo a que D. José Maria de Sousa lhe pedisse definitivamente a remoção de Lannes. A este pedido o Primeiro Cônsul deu ordem a Talleyrand que respondesse às reclamações do representante português apenas verbalmente, nada de declarações escritas que pudessem tornar-se comprometedoras. Talleyrand ia entretendo D. José Maria de Sousa com meros paliativos sem conduzir a alguma coisa de concreto, até que por fim, o diplomata obteve do próprio Bonaparte a seguinte consideração: «que os ministros do Príncipe Regente eram todos ingleses e antifranceses; que Mr. de Almeida era todo inglês; e finalmente que as circunstâncias deviam desculpar os erros, que o general Lannes pudesse ter cometido; mas que o ponto mais importante, depois daquela ruptura, era saber a decisão que Portugal tomaria naquela conjuntura». Que conjuntura? Portugal entre dois fogos A paz de Amiens entre a França e a Inglaterra, em que os interesses portugueses não foram, nem de perto, nem de longe, salvaguardados, não trouxeram tranquilidade à Europa. Os círculos internacionais aperceberam-se facilmente de que Napoleão Bonaparte não quisera senão obter uma pausa na luta, para reorganizar o seu prestígio interno de salvador da República e da Pátria e proceder depois à execução do plano que, engrandecendo a França, satisfizesse, igualmente, as suas ambições pessoais. A paz de Amiens foi para a Europa apenas uma trégua, tanto mais que, pouco depois, em Maio de 1803, a França e a Inglaterra viriam a envolver-se novamente em litígio. Conquanto a ocupação de Malta tivesse constituído o “pomo da discórdia”, o contencioso entre as duas grandes potências apontava para objectivos de maior envergadura. Na realidade, o que estava em causa era a disputa pela hegemonia europeia. Pressentiam-se acontecimentos políticos graves, que punham em jogo a estabilidade e o futuro da Nação portuguesa. Perante tais circunstâncias Portugal teria que definir posições em tão difícil conjuntura. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 12 Depois de termos conseguido que a França nos aceitasse a neutralidade no conflito em que a República se envolvera com as outras Potências europeias, conflito que, afinal, só veio a terminar em Waterlow, o Príncipe Regente pôs todo o empenho em manter essa neutralidade. O futuro D. João VI não deixava de tentar tudo o que lhe era possível para manter as melhores relações com a França e a Espanha, embora o equilíbrio dos laços de amizade com estes dois países fosse dos mais difíceis em virtude dos tratados de aliança luso – britânicos, velhos de séculos e da posição assumida pelo Gabinete londrino, de declarado inimigo da França. De modo algum nos conviria sair de uma política de neutralidade negociada à custa de pesada indemnização, além de que a situação militar do país não permitiria repelir os frequentes atropelos de que Portugal era vítima e, muito menos, garantir com possibilidade de êxito a defesa nacional em caso de ataque: «vivia-se em Portugal sob a influência da fraqueza do tesouro, copiosamente sangrado, já pelas despesas da guerra, já e sucessivamente por elevadas somas para peitas e, mais ainda, para pagamento de anuidades das grossas indemnizações à França». A própria concessão e o reconhecimento da neutralidade portuguesa, que representava o sossego da Nação foram obtidos à custa de quantiosas “luvas” e duma importante indemnização, de que a França exigia rigorosamente o pagamento das prestações, por vezes até com antecipação. Dificuldades de toda a ordem punham em “xeque” a estabilidade da política externa nacional, subordinada ao procedimento desleal de Madrid, às insolências e ameaças da França e ainda a ter que suportar o despotismo das exigências dos interesses britânicos e as infidelidades da Corte londinense. Portugal situava-se entre dois fogos: Optando pela Inglaterra, como anteriormente foi sublinhado, garantia a defesa dos seus portos, mas tornava-se vulnerável à invasão por terra pelos franceses; alinhando no bloco francês, garantia a protecção das fronteiras, mas os seus portos e domínios coloniais ficariam expostos ao poderio naval britânico. Assim, a solução mais viável e a única conveniente seria pronunciar-se pela neutralidade e defendê-la a todo o custo e… que custo! No dia 12 de Maio de 1803 os embaixadores dos dois países em litígio abandonavam os respectivos postos e, cinco dias depois, a 17, a Grã-Bretanha declarava formalmente guerra à França. E como os dois adversários estavam a postos, a guerra iniciou-se de imediato. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 13 De novo na mais embaraçosa situação, este acontecimento exigia do nosso País uma atitude definida. Portugal decidiu-se, como não podia deixar de ser, por uma política de neutralidade para com as duas potências em litígio, embora Napoleão ainda tentasse alcançar o apoio do Príncipe D. João que lhe foi recusado, tendo a Inglaterra acordado nessa neutralidade que o nosso País desejava manter. Procurando com todo o empenho ficar neutral no meio de uma luta que se previa prolongada e de consequências incalculáveis, o Príncipe Regente, logo nos primeiros dias de Junho, proclamou a neutralidade do nosso País, conforme, pouco depois, se publicou na «Gazeta de Lisboa»: «Tendo sido o constante objecto dos meus paternais desejos e das minhas reais disposições manter inviolavelmente as relações de paz, que felizmente subsistem entre mim e as potências minhas aliadas e amigas, e convindo nas presentes circunstancias da Europa estabelecer os princípios, que devem regular o inviolável sistema de neutralidade, que me proponho fazer observar, quando suceda, o que Deus não permita, suscitar-se a guerra entre potências minhas aliadas e amigas; tendo em vista quanto importa ao bem da humanidade e tranquilidade dos meus domínios e vassalos remover todas e quaisquer contestações que poderiam resultar da falta de conhecimento das regulações, tendentes a obter os fins que me proponho: sou servido declarar que os corsários das potências beligerantes não sejam admitidos nos portos dos meus estados e domínios, nem as presas, que por eles, ou por naus, fragatas, ou por quaisquer outras embarcações de guerra se fizerem, sem outra excepção, que a dos casos em que o direito das gentes faz indispensável a hospitalidade; com a condição porém, que nos mesmos portos se lhes não consentirá vender ou descarregarem as ditas presas, se a eles nos referidos casos, nem demorarem-se mais tempo que o necessário para evitarem o perigo ou conseguirem os inocentes socorros que lhes forem necessários, instaurando assim e pondo em todo o seu vigor a observância do decreto de 30 de Agosto de 1780, pelo qual se determinou a mesma matéria. O conselho de guerra o tenha assim entendido e o faça executar, expedindo logo as ordens necessárias aos governadores e comandantes das províncias, fortalezas e praças nesta mesma conformidade. Palácio de Queluz, em 30 de Junho de 1803. Com a rubrica do príncipe regente nosso senhor». Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 14 Julgo que D. João (ou o Ministério) estava plenamente convencido que as coisas não eram assim tão fáceis pretendendo, apenas, demonstrar o seu desejo de tranquilidade no País, através de uma proclamação que a França contestaria, ou não daria a menor importância. O Príncipe Regente punha, e Napoleão… dispunha. Vejamos. Obviamente, Bonaparte não estava resolvido, assim de pé para a mão, a conceder a Portugal o carácter de potência neutral sem novas contrapartidas, pois considerava que desde o começo da nova guerra entre a França e a Inglaterra, o nosso País era obrigado a fechar os seus portos à Grã-Bretanha, segundo o estipulado no Tratado de Madrid. De facto, achando-se rota a paz de Amiens, entendia que as coisas tinham regressado ao ponto de partida, subsistindo, portanto, as antigas disposições, que ligavam as diferentes potências com a França. Assim, a guerra passava a ser a mesma que era antes daquela ruptura, e então não podia haver meio termo para Portugal entre fechar os portos aos ingleses, ou continuar em guerra com a França. Deste modo, Portugal via inteiramente anulados os grandes e pesados sacrifícios que a paz de Badajoz e Madrid lhe tinham custado, colocando-nos no mesmo dilema em que, durante anos a fio, nos vimos envolvidos, isto é, ou continuar a aliança com a Grã-Bretanha, constituindo-se Portugal, por este motivo inimigo da França, ou vice-versa, de romper a referida aliança para se declarar amigo da França e inimigo da Inglaterra. Posteriormente, Napoleão conceder-nos-ia a neutralidade se lhe pagássemos dois milhões de francos por mês enquanto durasse a guerra, acrescentando que, se o Governo português se recusasse a este acordo, um exército francês invadiria Portugal, com a colaboração da Espanha. Ora, a Portugal era impossível satisfazer tão excessiva soma, não podendo, assim, pagar o pesado tributo que Napoleão lhe exigia. Viragem na política externa O Governo português receando o perigo iminente que o ameaçava (e tinha razão de sobra para isso), pois era evidente que a França, de um momento para o outro, poderia enviar os seus exércitos contra Portugal, resolveu requerer ao Gabinete londrino uma informação clara e concreta do que pensava da nossa neutralidade e sobre os socorros com que devíamos contar, se não pudéssemos fugir à contingência da França nos declarar guerra. O nosso ministro em Londres, D. Domingos António de Sousa Coutinho, obteve em resposta de Lord Hawkesbury que a Inglaterra se regozijava com a nossa situação de neutralidade, garantindo que ela seria absolutamente respeitada pela sua parte, declarando ser sua intenção não somente respeitar aquela neutralidade e também já ter dado ordens rigorosas a Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 15 esse respeito aos seus oficiais… Além disto, prometia expedir, como de facto expediu, um correio ao ministro inglês em Madrid, fazendo saber ao governo espanhol que «Sua Majestade Britânica considerava a entrada de quaisquer tropas francesas em Espanha como uma declaração de guerra daquele reino à Grã-Bretanha, devendo o referido ministro entender-se também com o de Portugal naquela Corte sobre as providências a tomar para conjurar o perigo». A respeito dos socorros militares, quando porventura a França declarasse guerra a Portugal, S. M. B. não podia, no caso em que o seu exército se encontrava, decidir sobre tal assunto, enquanto não fossem postas em prática as providências militares, que haviam determinado para a defesa dos seus próprios domínios. Sobre o subsídio pecuniário, que também era referido, seria impossível que o governo inglês pudesse dar uma resposta definitiva sobre tal assunto, enquanto não se fixassem definitivamente as finanças do país para o ano que então corria. Finalmente, a rematar, em atitude de desinteresse pela sorte do seu aliado, lord Hawkesbury transmitia ao nosso embaixador, Domingos Sousa Coutinho: «Tendo-vos comunicado os sentimentos do governo de Sua Majestade nos pontos mais essenciais, que contém o vosso memorandum, resta-me só pedir-vos que, comunicando-os à vossa Corte, queirais acompanhá-los com a expressão, que Sua Majestade justamente espera, que o governo de Portugal se não fie somente nos auxílios externos; mas lembrando-se que a segurança de cada estado deve depender essencialmente dos seus próprios esforços, não perca tempo em preparar aquelas medidas internas, que possam pô-lo em estado de repelir qualquer agressão hostil, que contra ele se intente». É dentro deste quadro que a decepção provocada pela posição inglesa poderá, em parte, explicar a viragem para a política francesa, já que a Portugal, sentindo-se humilhantemente desamparado, não lhe restaria qualquer outra alternativa, que não fosse a de interceder junto de Lannes para que Bonaparte nos reconhecesse e respeitasse a neutralidade. Com efeito, perante este (mais um) abandono da Grã-Bretanha, e uma vez verificada a completa impossibilidade do Governo português poder resistir por si só a uma nova coligação entre a Espanha e a França, foi necessário contemporizar com Lannes, dando-lhe sobre a Corte de Madrid a preferência na negociação da nossa neutralidade, esperando Portugal que, com essa “distinção”, o fizesse ser mais moderado em relação aos nossos interesses. Porém, não aconteceu assim nas primeiras conversações entabuladas sobre a questão da neutralidade. Lannes apresenta queixas pelo facto de se encontrarem navios de guerra ingleses nos portos do Reino e que o duque de Sussex, filho do rei de Inglaterra, alimentava conluios subversivos na própria Lisboa. A 22 de Agosto, reclamando, de modo brusco, os passaportes, ameaça fazer logo entrar na Espanha o exército francês, que estava em Baiona, aguardando Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 16 apenas as suas ordens para se pôr em marcha. É imediatamente recebido em Queluz e, nesse mesmo dia, 23 de Agosto de 1803, consegue que D. João de Almeida Melo e Castro abandonasse o Governo «como preliminar indispensável, dizia Lannes, para o Príncipe Regente se congraçar com Napoleão, sem todavia dizer como». Esta demissão foi, sem perda de tempo, comunicada, por ofício de 25 de Agosto, para Paris a D. José Maria de Sousa, participando que Melo e Castro tinha sido substituído na repartição dos Negócios Estrangeiros por Luiz Pinto de Sousa Coutinho, a quem se dera o título de visconde de Balsemão como prémio das negociações da paz de 1801. Acrescentava, «haver-se levado a efeito a citada demissão por deferência de Sua Alteza Real para com as exigências do general Lannes». D. Rodrigo de Sousa Coutinho que, como se sabe, estava igualmente na mira dos ódios do representante francês, viu-se demitido da presidência do Real Erário, por decreto de 31 de Agosto, sendo substituído nesta repartição por Luís de Vasconcellos e Sousa. Distanciando-nos dos acontecimentos, numa perspectiva do tempo, julgo poder aceitarse que o Príncipe Regente não sentiria verdadeira inclinação por qualquer dos partidos (inglês ou francês). Naquele momento, certamente, interessava-lhe muito mais aquele que se considerava poder oferecer maior utilidade à Nação. Defendera, com grandes esforços e com os fracos meios de que dispunha, a aliança com a Inglaterra da qual esperaria o mais sólido apoio. Porém, depois do desapontamento provocado pela resposta de Lord Hawkesbury, que nos deixava em maus “lençóis” (e, posteriormente, não foram poucas as ocasiões em que tratou Portugal como potência de 3ª classe) o Príncipe Regente voltou-se para a França, sofrendo, resignadamente, as afrontas de Lannes, lisonjeando-o, mesmo conhecendo mais que ninguém a sua venalidade e brutalidade. Regressando às demissões, poder-se-á concluir que «a orientação seguida pelo Regente, acabando por afastar do governo os ministros que desagradavam ao embaixador francês – vista mais tarde como desonrosa e ilustrativa da fraqueza moral do Príncipe – seguia o caminho apontado pelos conselheiros mais próximos, o qual se escudava naquele que geralmente se toma como o mais indiscutível dos argumentos: o da necessidade». Na verdade, com o desejo, de certo modo, desesperado, de salvação, o Príncipe Regente resolvia mudar as principais pedras do xadrez político, sendo evidente o facto de agradar mais à França do que à Inglaterra. Reacção Britânica. Como era de prever, o regresso do «impulsivo e arrebatado» Lannes, bem com a demissão de D. João de Almeida Melo e Castro, causaram, naturalmente, o maior Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 17 desapontamento em Fitz Gerald que, dias depois, a 28 de Agosto escrevia ao Príncipe Regente manifestando «despeito e impertinência». Questionando D. João, perguntava «se a demissão do ministro poderia alterar, de algum modo, as relações de paz e amizade entre Portugal e a Grã-Bretanha; se o Príncipe estava resolvido a manter, inteiramente, na guerra a neutralidade declarada na forma do decreto de 13 de Junho do mesmo ano de 1803; se o Príncipe resolvera firmemente não admitir no continente, ou nos domínios ultramarinos, tropas estrangeiras e inimigas da Inglaterra; se tinha a intenção de resistir com força armada à marcha de tropas francesas para os seus estados, no caso de ela chegar a efectuar-se, e em tal emergência recorreria ao auxílio inglês; se o Príncipe resistiria a todo o pedido de encerramento dos seus portos ao comércio britânico; e, por último, se, apesar da demissão de D. João de Almeida, tencionava continuar a permitir que o Enviado de França (Lannes) tratasse, separada ou pessoalmente, de negócios com Sua Alteza, ou exigir que este Enviado se conformasse aos usos estabelecidos e seguidos pelos outros ministros estrangeiros em Lisboa». Em Novembro desse mesmo ano de 1803, Lord Fitz Gerald, tirando partido do descontentamento reinante na Corte portuguesa, provocado pelas constantes e arbitrárias exigências da parte de Lannes e da intolerância do seu procedimento, lembrava ao Governo português, em nota ao visconde de Balsemão, ser difícil na actual conjuntura a manutenção das possessões europeias de Portugal. Nesta circunstância, Sua Majestade Britânica pretendia providenciar à salvação das colónias portuguesas e assegurar assim, em caso de necessidade, os meios de uma retirada honrosa ao seu aliado que, de certo, «antes quereria sacrificar o seu sossego e cómodo pessoal, que demorar-se inutilmente na Metrópole, em risco de perder a honra, a liberdade e talvez a Coroa». Acrescentava não estar nos planos da Grã-Bretanha propor uma retirada prematura, já que S.M.B. desejaria mobilizar todos os esforços possíveis no sentido de defender Portugal pelo lado do mar. No entanto, a Inglaterra chega mesmo a propor a retirada da Corte para o Brasil, possibilitando, assim, aos súbditos de S. M. B. campo livre em Portugal e, a pretexto de protecção, o domínio de territórios coloniais. Ao fim e ao cabo, Lord Fitz Gerald esforçava-se por neutralizar a influência de Lannes junto da Corte portuguesa recorrendo ao almirante Campbell, então ao serviço de Portugal e diligenciando pela intervenção dos duques de Kent e Sussex, filhos de Jorge III, residentes entre nós. Porém, resultaram infrutíferas as “démarches” no sentido de esfriar as relações entre o Príncipe Regente e Lannes, bem como a convencê-lo a transferir-se para o Brasil, o que…não tardaria a acontecer. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 18 A compra da neutralidade. O pagamento dos subsídios. Daqui para à frente, o chamado «partido francês», que Lannes controlava, começa a preponderar na Corte, de tal modo que foram expedidas ordens para o nosso embaixador recomendando-lhe que não se insistisse mais na remoção de Lannes. Efectivamente, Lannes parecia gozar do favor pessoal do Príncipe Regente que o tratava com muitos obséquios, o cumulava de presentes e o convidava para caçadas. «Desde então – esclarece Luz Soriano – Lannes foi tido por D. João como o seu melhor amigo, coisa para que muito concorreu o locupletar-se à custa de Portugal, como se vê pelas queixas que sobre este ponto fez para Lisboa o nosso embaixador em Paris, D. José Maria de Sousa, em ofício de 2 de Agosto». O insolente militar-diplomata, aproveitando a boa fé e consciente dos receios da Corte portuguesa, ia exigindo adiantamentos, garantindo que, por seu intermédio, a França e a Espanha deixariam de insistir com o Governo português para que se declarasse inimigo da Inglaterra, e que Napoleão reconheceria a neutralidade portuguesa. O Príncipe mostra-se tão benevolente para com Lannes que se prontificou e sua esposa, D. Carlota Joaquina, a apadrinharem-lhe um filho, baptismo que se realizou com toda a pompa e solenidade na real capela da Bemposta, na presença da família real e dos vultos mais grados da Corte. O padrinho, além de dar ao afilhado o seu próprio nome, ofereceu-lhe presentes no valor de 12.000 libras, sendo obrigado a declarar, na «Gazeta de Lisboa» de 18 de Setembro, que a dádiva não tinha significação política. Para celebrar o malogro do atentado contra Napoleão, Lannes manda rezar uma missa solene e um Te Deum Laudamus na igreja do Loreto onde acorre largamente a nobreza portuguesa, os grandes comerciantes e todo o corpo diplomático – exceptuando os ingleses, obviamente. À noite deu uma ceia, baile e grande concerto, em que cantaram e tocaram a famosa Catalani, Gafforini, Monhelli, Nalsi, Matucei, Olivieri, Angelleli e Violani, sendo directores os mestres Fioravanti e Marcos Portugal. O luxo e esplendor deram a esta festa um brilho de tal modo elevado, que não deixou de causar grande “azia” ao embaixador inglês, Lord Fitz Gerald, pois bastante azedado já andava ele pelo facto que se narra a seguir. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 19 D. João mostrava com Lannes uma condescendência a toda a prova, chegando por sua exigência a mandar publicar num suplemento da «Gazeta de Lisboa» um artigo do «Moniteur» francês, que lança sobre a Inglaterra a responsabilidade do atentado dirigido contra Napoleão. Lord Fitzgerald irrita-se com isso e queixa-se num despacho rude e cheio de insolências, despacho que comunica a todo corpo diplomático. O Governo português sofre mais esta afronta e só obtém o perdão do referido embaixador, fazendo publicar também na «Gazeta de Lisboa», para mostrar imparcialidade, os artigos em que a imprensa oficial inglesa desmente as asserções do «Moniteur» francês. Lannes privilégio de chega a gozar os alcançar o jardins e propriedades reais, quando e como lhe agradasse, convidando o Príncipe Regente a passar alguns dias em Mafra a seu lado. Perante estes preliminares parecia que a negociação do tratado não teria dificuldade em ser levada a bom termo, só que…quando estava prestes a concluirse, e tudo se dava por ajustado, houve uma reunião mais acesa que provocou a deterioração das relações entre o plenipotenciário francês e nosso governo, pedindo Lannes novamente os passaportes, na intenção de abandonar a embaixada. Num momento incerto da nossa política externa, o Príncipe Regente, recebendo-o em audiência privada, consegue com a sua afabilidade convencê-lo a reiniciar as negociações e três meses depois estava concluída a convenção franco – portuguesa de neutralidade. Efectivamente, em 19 de Março de 1804 assinava-se uma convenção de neutralidade e subsídios entre Lannes, representante da França, e o Governo de Portugal. O Primeiro Cônsul da República Francesa, elevado por senatus – consultus de 18 de Maio ao trono imperial, permitia que as obrigações impostas ao Príncipe Regente pelo Tratado de paz assinado em Madrid a 29 de Setembro de 1801, fossem convertidas em subsidio pecuniário de dezasseis milhões de francos. Este subsídio seria pago de mês a mês a contar de 1 de Dezembro de 1803, obrigando-se o Príncipe Regente a mandar «pagar em espécies, um mês depois da troca das ratificações, no Tesouro Público de França, a parte que então tiver vencido do subsídio ajustado; e quanto ao resto do subsídio por pagar, mandará entregar imediatamente, depois da troca das ratificações pelo seu ministro plenipotenciário em Paris, ao tesoureiro do governo, obrigações de um milhão de francos, que se satisfarão Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 20 sucessivamente de mês em mês até total pagamento». Além do subsídio, o Príncipe Regente concedia, ainda, à França mais facilidades comerciais do que aquelas que já usufruía no nosso país. Napoleão anuía em aceitar o estatuto de neutralidade a Portugal durante o conflito, e prometia não impugnar quaisquer medidas que pudessem ser tomadas relativamente às «nações beligerantes, em consequência dos princípios e leis gerais de neutralidade». Portugal procurava por todos os meios ao seu alcance evitar qualquer conflito que pudesse bulir, de algum modo, com a sua condição de potência neutral, ainda que para a consecução desse fim se tivesse sujeitado, por vezes, a situações vexatórias. E, até à transferência da Corte para o Brasil, a política externa da Nação tomou sempre como directriz dominante a «declaração persistentemente renovada a todos os governos estrangeiros, nomeadamente à França, à Espanha, à Inglaterra e à Rússia, que a neutralidade cujo reconhecimento tão caro havia custado, seria mantida a todo o transe, só saindo Sua Alteza dela no caso de ter de repelir qualquer violência contrária aos direitos de soberania da Coroa portuguesa». Reforço do “partido francês” Como no princípio de 1804 o Ministério se encontrasse reduzido apenas a dois ministros, pois que Luiz Pinto de Sousa tinha adoecido gravemente, o Príncipe D. João, em 10 de Fevereiro, «tendo tido repetidas provas do zelo, fidelidade e inteligência do conde de Vila Verde» e pretendendo demonstrar o quanto lhe eram particularmente agradáveis os seus serviços, nomeia D. Diogo de Noronha (Conde de Vila Verde), ministro Assistente ao Despacho. Espera S. A. R. que neste novo cargo o continue a servir com «o mesmo acerto, fidelidade e amor com que sempre se tem distinguido no régio serviço». Obviamente, Vila Verde era um homem afecto ao “partido francês” Alguns meses depois, Vila Verde participa a António Araújo de Azevedo que o Príncipe Regente «houve por bem nomeá-lo ministro secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra». Inequivocamente, a nomeação de Araújo de Azevedo para o referido cargo significava uma viragem na política externa de Portugal, até então excessivamente ligada à orientação do Gabinete londinense. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 21 Araújo de Azevedo estava alicerçado numa base de relacionamento pessoal em que sobressaíam «os mais eminentes vultos da política parisiense, nomeadamente Talleyrand (ministro das Relações Exteriores), na simpatia que à Corte de Carlos IV e ao governo francês, deviam merecer os direitos da coroa portuguesa, e a franqueza e sinceridade que se punham na posição de Portugal perante aquelas nações». Que a entrada de Araújo para o Ministério, em substituição de um ministro anglófilo implicava objectivos conducentes a manter com a França relações amistosas, demonstra-o a declarada oposição de Lord Strangford, representante da Inglaterra em Lisboa Elucidativo: com o conde de Vila Verde, ministro Assistente ao Despacho, Araújo de Azevedo nos Negócios Estrangeiros e Guerra, o visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá, sobraçando a pasta da Marinha e Luiz de Vasconcelos e Sousa no Erário, o Ministério fica completo em Junho de 1804, «todos – dizia-se – muito bem vistos pelos franceses». Este Governo de personalidades afectas ao «partido francês», se por um lado deixava transparecer uma orientação correspondente a uma plataforma de entendimento entre as duas nações, por outro parece corresponder a uma falta de apoio por parte da Inglaterra. Pouco depois, certamente por influência, ou imposição, de Lannes o ministro português em Paris, D. José Maria de Sousa, foi substituído por D. Lourenço de Lima, homem dedicado ao partido francês. A este propósito, António de Araújo de Azevedo, conhecido politicamente por Araújo, escreveu a Talleyrand a participar-lhe que o Príncipe Regente resolvera enviar um embaixador extraordinário a Paris para felicitar Bonaparte pela sua elevação ao trono imperial, e que a escolha recaíra em D. Lourenço de Lima «que vous avez connu a Paris» e se fazia recomendável pelo nascimento ilustre e qualidades pessoais, «qui ont captivé la bienviellance du Marechal de l’Empire Lannes»; pedia o assentimento de S. M. I.: «par delicatesse et par égard pour S. M. l´Emp., souhaite avoir la certitude que ce choix lui est agreable» … Os termos em que Araújo de Azevedo se exprimira eram, claramente, propícios a lisonjear Napoleão no momento culminante da sua carrreira ascensional. Em 7 de Julho, o mesmo Araújo, oficiava ao nosso embaixador em Londres no sentido de justificar perante o Gabinete de S. James, a modificação operada na diplomacia portuguesa. O empenho manifestado por António de Araújo para que não houvesse qualquer espécie de alarme por parte da Inglaterra, compreende-se e pode filiar-se no facto de D. Lourenço de Lima ser «personna non grata» ao “partido inglês” e ter sido considerado como Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 22 «grande amigo da França». Então, participava ao nosso embaixador, Domingos de Sousa Coutinho: «…o Príncipe Regente nosso senhor determinou mandar a Paris D. Lourenço de Lima como embaixador extraordinário para cumprimentar Bonaparte (Napoleão ia ser coroado Imperador). O marechal Lannes tinha escrito há muito tempo ao seu governo, solicitando que lhe desse o carácter de embaixador, e indicou para Paris D. Lourenço de Lima, julgando que ele poderia, mais do que qualquer outro, fazer-se agradável a Bonaparte». A 18 de Maio de 1804, Napoleão é proclamado Imperador satisfazendo uma das maiores ambições da sua vida. Entre outras solenidades marcantes para celebrar o evento, Bonaparte criou dezoito marechais, sendo um deles o general Lannes, que assim recebia a recompensa de ter servido a sua política de intimidação utilizando os processos mais torpes e condenáveis. Pouco tempo depois, a 1 de Agosto de 1804, a fim de assistir à coroação de Napoleão, Lannes saía de Portugal, onde jamais voltaria, mas… curioso, e que me parece algo estranho, é o que estaria por trás da decisão do Príncipe Regente quando pouco depois, a 28 de Setembro lhe dirige uma carta no sentido do seu regresso a Portugal… nem mais, nem menos. D. João, afirmando-se sensível aos «sentimentos que unem os nossos dois governos», pede a Lannes que apresente a «S. M. o meu afecto à sua pessoa e dizer-lhe que será um testemunho da sua amizade por mim o vosso pronto regresso aqui como embaixador». De facto, era uma ideia singular renovar o lugar de embaixador a uma pessoa que, para além de ser contestada, era um militar estranho à diplomacia e ignorante dos complexos problemas portugueses. Lannes chega a receber novas cartas credenciais que seriam enviadas ao Príncipe a 21 de Dezembro. Porém, após várias insistências de Napoleão para que aceitasse a embaixada de Lisboa e o marechal mantendo persistentemente a recusa, o Imperador tomou a decisão de confiar a referida embaixada ao general Junot. Durante os nove meses que mediaram entra a saída de Lannes e a chegada de Junot, Serurier, que era comissário geral das relações comerciais de França em Lisboa, ficou, interinamente, como encarregado de negócios. . Junot, embaixador em Lisboa. Recepção ao general-diplomata. Napoleão ao aceitar o estatuto de neutralidade a Portugal durante o conflito, prometia não impugnar quaisquer medidas que pudessem ser tomadas relativamente às «nações beligerantes, em consequência dos princípios e leis gerais de neutralidade», porém, algum tempo depois, a Corte de Lisboa, via-se confrontada com as mais embaraçosas situações Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 23 para fazer face aos projectos congeminados por Napoleão, de que Junot seria rigoroso executor em Lisboa. Em 19 de Fevereiro de 1805, Napoleão escrevia ao Príncipe Regente participando-lhe a substituição de Lannes por Junot, como seu representante diplomático em Portugal. Partindo de Paris a 25 de Fevereiro, além de sua mulher, Laura St. Martin Permont, futura duquesa de Abrantes, faziam parte da comitiva o secretário da legação M. de Rayneval, o seu ajudante de campo, coronel Laborde e ainda um seu particular amigo, M. de La Iard. Viajando por Espanha, onde se demorou algum tempo com objectivos bem definidos (conluios com Godoy, primeiro-ministro espanhol), ao entrar a fronteira portuguesa foi recebido com todas as honras militares. O próprio cerimonial da recepção foi prudentemente rodeado de todas as cautelas e etiquetas inerentes à sua embaixada, para que se evitasse tanto quanto possível as «Questões e sensaborias que com justa razão deve recear-se». O Governo português recordando ainda todas as complicações surgidas quando Lannes entrou desabridamente em Lisboa, procurava legitimamente evitar tudo aquilo que pudesse dar azo a situações delicadas. A chegada de Junot constituiu na rea1idade motivos de preocupação, não descurando o Gabinete lisbonense qualquer pormenor que pudesse ter influência na recepção ao novo embaixador. . Assim, devia comunicar-se a D. Lourenço de Lima (embaixador em Paris), em oficio separado, para que procurasse junto de Talleyrand (Relações Exteriores) combinar o cerimonial com que devia ser recebido o general-diplomata, «para evitar todas as desordens, que sucederam, quando chegou Lannes, que quis atropelar e com efeito atropelou, o cerimonial, e uso desta Corte na recepção dos Ministros Estrangeiros, o que causou escândalo público, e foi uma das primeiras causas, que o indispôs contra o Ministro e Secretário dos Negócios Estrangeiros Dom João de Almeida». Devia D. Lourenço ponderar que Junot vinha para Portugal com o carácter de embaixador, o que Lannes não tinha, e deste modo «não pode ter a mesma familiaridade, por que o carácter pede mais cerimónia; que como ele D. Lourenço é também embaixador, deve haver em tudo uma reciprocidade». Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 24 O embaixador francês chegou a Lisboa no dia 12 de Abril, tendo sido transportado na real galeota de doze remos desde Aldeia Galega (Montijo) até ao Cais de Belém. Neste ponto era aguardado pelo Conde de Castro Marim, o qual servia de introdutor, visto que reunia as condições exigidas pela pragmática: «era novo, tinha casado há pouco tempo, falava francês e parece próprio para isto». Embora tivesse chegado a 12 de Abril, Junot só foi recebido em Queluz a 24 do mesmo mês (a família real encontrava-se em Salvaterra de Magos), entregando então as suas credenciais de embaixador. Conquanto Junot não fosse mais diplomata que Lannes mostrou-se, todavia, mais cortês e menos insolente, tendo sido recebido pelo Príncipe Regente com a maior afabilidade. Objectivos da missão Junot. O pagamento dos subsídios foi sempre rigorosamente exigido pela França, constituindo a recolha das prestações em atraso um dos objectivos da missão Junot, conquanto a essência da comissão diplomática do general fosse colocar Portugal contra a Inglaterra aderindo ao bloco franco - espanhol. No sentido de alcançar tal finalidade, Junot empregaria durante o espaço de quinze dias todos os seus recursos persuasivos reforçados por solicitações constantes, tanto pelo lado de Paris como pelo de Madrid, ainda que ambos os Governos usassem de certa cortesia. Caso não conseguisse concretizar os objectivos pretendidos, Junot abandonaria Lisboa. Logo, após ter sido acreditado como representante da França no nosso País, Junot entregava a S. A. R. uma carta pessoal de Napoleão, na qual eram bem evidentes as intenções do Imperador. Declaradamente, Bonaparte pressionava o Príncipe Regente tentando persuadi-lo a desligar-se da órbita britânica. A 19 de Fevereiro de 1805, Napoleão escrevia ao Príncipe Regente de Portugal, a seguinte carta: «Sereníssimo e muito amado bom irmão e primo, aliado e confederado. A presente carta será entregue a Vossa Alteza Real pelo general Junot, meu ajudante de ordens, comandante dos meus hussards e embaixador junto de V. A.. Encarreguei-o muito especialmente de afirmar a V. A. R. o interesse que dedico à prosperidade da Coroa de Portugal, e a esperança que tenho de que os nossos dois estados hão-de caminhar conformes, para chegarem ao grande resultado do equilíbrio dos mares, ameaçado pelo abuso do poder e pelas vexações que os ingleses cometem, não só para com a Espanha, mas ainda para com Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 25 todas as potências neutrais. As promessas que tenho recebido de V. A. R. em todas as ocasiões, são um seguro penhor de que nos entenderemos para fazer o maior dano à Inglaterra e obrigá-la assim a ideias mais sãs e mais moderadas. Fique V. A. convencido dos meus sentimentos de estima e de inviolável amizade; além de que, sereníssimo e muito amado bom irmão e primo, aliado e confederado peço a Deus que vos tenha em sua santa guarda. Vosso bom irmão e primo, e confederado. Napoleão. Malmaison, 30 Pluviôse, ano 13». Poucos dias antes da resposta do futuro D. João VI para Napoleão, Junot procurava, persistentemente, demonstrar junto de Araújo de Azevedo, que a única e conveniente opção para Portugal seria o alinhamento no bloco fanco-espanhol. Oficiando a 3 de Maio ao mesmo Araújo de Azevedo, chamava-lhe a atenção para o facto de, certamente, já ter reflectido sobre o caminho a seguir por Portugal em face da conjuntura militar europeia e que, assim, «não deixaria o ministro de considerar que Portugal, pela sua posição geográfica, devia naturalmente ficar aliado de Espanha e França; a conduta atroz da Inglaterra com Espanha deveria ter provado ao Governo português que, como qualquer país neutro, não poderia confiar em que a Grã-Bretanha lhe respeitasse a neutralidade senão enquanto isso conviesse a seus interesses». Ocupando, indiscutivelmente, o lugar de primeira potência militar terrestre no continente europeu, mas não dispondo de uma esquadra suficientemente forte para aniquilar o poderio naval inglês, interessava à França a adesão luso-espanhola, uma vez que a união das três esquadras com o encerramento dos nossos portos modificaria, sem dúvida, o desenrolar dos acontecimentos. Sem quebra de dignidade e em carta datada de Queluz, aos 7 de Maio, respondia D. João ao Imperador, argumentando que «Faltaria a todos os deveres que o Céu impõe a um soberano para com os seus súbditos, se eu, depois de os ter obrigado a contribuir para a manutenção da neutralidade, os expusesse a uma guerra que não pode deixar de ter resultados funestos. Vossa Magestade sabe que a monarquia portuguesa se compõe de estados espalhados nas quatro partes do globo, que ficariam inteiramente expostos, no caso de uma guerra com a Grã-bretanha». Durante a permanência de Junot em Madrid concertara-se entre o Príncipe da Paz (Manuel Godoy) e o representante da França a acção a desencadear: alguns dias após a chegada de Junot a Lisboa, o rei espanhol deveria escrever ao Príncipe D. João para que fizesse «causa comum» com a Espanha e a França. Em carta datada de 20 de Março e redigida em termos semelhantes à enviada pelo Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 26 Imperador, Carlos IV acusava a Inglaterra de ter violado uma neutralidade cimentada sobre bases propostas por ela própria, ao aprezar e incendiar navios espanhóis que navegavam na confiança da Paz. E acrescenta: «A esta razon se unen otras rasones para estimular a V. A., de acuerdo con la Francia, a que una sus fuerzas con las nuestras para reducir a la Inglaterra aI deseado termino de una Paz decorosa». Tal como acontecera na resposta para Napoleão, também a posição e oposição portuguesas ficaram definidas em relação ao convite de Carlos IV. D. Lourenço de Lima em Paris e o Conde da Ega em Madrid, devidamente instruídos por Lisboa, e com a finalidade de diminuir os efeitos da negativa, deviam invocar uma série convincente de razões por motivos das quais Portugal não podia, nem devia, aceder às solicitações do bloco franco-espanhol. Assim, o nosso embaixador em Paris tirando partido do excelente relacionamento pessoal existente entre Araújo de Azevedo e Talleyrand, faria ver a este a inexequibilidade de tal projecto da parte de S. A. R., por via do estado em que se encontrava o real erário e também «pelo perigo a que exporia as suas colónias, pela interrupção absoluta do comércio com grave prejuízo dos seus vassalos e das rendas da sua Coroa, pela forma a que Lisboa seria exposta com o bloqueio a que logo procederiam os ingleses e por todos os motivos que são óbvios e que V. Ex.ª não ignora». De igual modo, conforme instruções recebidas pelo Conde da Ega em Madrid, as razões aduzidas por D. Lourenço de Lima junto de Talleyrand deveriam ser repetidas, e expostas, pelo nosso representante diplomático a S. M. Católica e ao seu influente ministro Manuel Godoy. Ao contrário do que sucedeu com Paris, Madrid aceitou, de certo modo, as explicações de Lisboa dadas directamente pelo nosso embaixador; a este facto parece não ter sido estranha a interferência da Rainha D. Maria Luiza, «ingeniosa y autoritaria, disponia a su antojo de la voluntad de su marido», cessando por algum tempo as pressões para a concretização da projectada e tão desejada Liga. Em relação a Paris a negativa previa a invasão do nosso território pelos exércitos franceses, o que só não se terá verificado devido à vitória inglesa de Trafalgar, onde Nelson infligiu rude golpe às esquadras franco-espanholas abortando e adiando, assim, a entrada das forças napoleónicas em Portugal. Outras ocasiões se deparariam em que o Gabinete Lisbonense se viu confrontado com as maiores situações de apuro, lançando mão dos mais variados recursos a fim de não modificar a sua posição de potência neutral. Portugal procurava subtrair-se às aliciantes propostas da França e da Espanha garantindo o reconhecimento na manutenção de um estatuto de neutralidade, que era a única atitude Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 27 conveniente. Alegava a Corte portuguesa razões fundamentadas no Direito e na Moral, aliadas ao tacto diplomático de Araújo de Azevedo que soube conduzir os assuntos assim em Paris, junto de Talleyrand, como em Lisboa com o próprio Junot. Refira-se que as relações entre o embaixador francês e António de Araújo, embora cordiais, «nunca foram fáceis e assentaram sempre nos mesmos temas, o que aliás cedo habilitou Junot a entender o posicionamento de Portugal, que transmitiu a Talleyrand: a impossibilidade que Portugal tinha, por pobreza, desorganização das finanças por compromissos assumidos e carência de alimentos, de se colocar num estado de guerra com a Inglaterra. A pulverização das colónias, fonte da sua riqueza, colocavam-nas à mercê do país que dispusesse dos maiores e eficazes meios navais. Eram estas as reflexões de um homem que soubera analisar o meio e entender, embora sem gostar, a solidez dos argumentos que escutara ao Ministro Araújo, quando justificava, à saciedade, a neutralidade que desejávamos, contudo diferente daquela que podíamos exigir por parte de quem não a respeitava». A Napoleão pouco, ou nada, interessavam razões fundamentadas no Direito e na Moral para que não houvesse denúncia de tratados e violações de neutralidade com a subsequente ocupação do território nacional; o facto de Bonaparte se ter visto a braços com outras frentes de luta consideradas prioritárias desviando, de momento, a sua atenção para questões mais importantes, tê-lo-ão levado a «tolerar uma neutralidade portuguesa da qual disfrutava não poucas vantagens económicas, como o abastecimento regular de matérias primas coloniais». Se acrescentarmos, ainda, o facto do representante diplomático de Napoleão em Lisboa ter sido contemplado com diversos e valiosos presentes, bem como o não terem sido esquecidas com várias mercês algumas personalidades parisienses, encontraremos os motivos principais que terão valido ao Pais o protelar das exigências e ameaças por algum tempo mais. Entretanto a demora de Junot em Portugal foi de curta duração. Quando, em 25 de Janeiro de 1805, foi nomeado embaixador em Lisboa conseguiu do Imperador a promessa de o chamar «ao primeiro disparo de canhão». Assim foi. Soldado por natureza, Junot não se conformava com a sua nova situação e, por isso mesmo, pouco tempo a suportou. Ansioso por tomar parte nos combates que se iriam travar na Alemanha, Napoleão cumpria a promessa e, em 22 de Setembro, através de Talleyrand, era-lhe comunicado que devia dirigir-se a Paris «com toda a presteza», chegando ao acampamento do Imperador na véspera da famosa batalha de Austerlitz. Ficou acreditado junto da Corte de Lisboa o seu secretário de legação, Rayneval. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 28 Interesses particulares de Junot. Ao ser revocado em Outubro de 1805 Junot, na sua passagem por Madrid, não ia de todo satisfeito, conforme participava o conde da Ega para Lisboa ao ministro Araújo de Azevedo. Pode considerar-se que no plano politico a missão Junot não proporcionara à França as situações e resultados que Napoleão previa e desejava, bem como no respeitante aos interesses particulares do embaixador. Inicialmente a conduta de Junot foi de certo modo razoável, tendo parecido até «de um trato polido»; porém, não tardariam as exigências que, por vezes, atingiram proporções despropositadas e nitidamente carecidas de fundamento. Neste sentido refira-se os seus interesses particulares, em que houve necessidade de lhe serem «coarctadas algumas ilegítimas pretensões», já que eram destituídas de «toda a razão e justiça», além de que pretendia camuflar os seus interesses e, como dizia Vila Verde, seria preferível pedir para si próprio, como fazia Lannes, «do que pedir para outrem, e poder depois fazer a bazófia de desinteresse». Dentre as suas mais ilegítimas pretensões situa-se a da solicitação do estabelecimento de mercadorias, uma espécie de feitoria, no Rio de Janeiro, em condições vantajosas, onde ressaltava o interesse de Junot em vir a auferir elevada monta de proventos. Para concretizar os seus projectos, tão lucrativos quão carecidos de qualquer razão fundamentada e de nulo interesse para Portugal, antes pelo contrário, susceptíveis de nos acarretarem prejuízos e complicações de vária ordem, escrevia Junot a Araújo de Azevedo em 29 de Outubro de 1805. Nessa carta, datada de Madrid, em que era requerida a concessão do entreposto, Junot dizia: «... quoique peu encoragé je vais neantmoins vous faire mes demandes et vous y répondez apres y avoir murement reflechi, si je suis refusé je dirai en Bon portugais 'patientia' si j'obtiens je remercierai de bonne grace et vous aurai obligation de ce que vous aurai fait». Da anuência ao requerido por Junot poderiam advir sérias complicações, especialmente por parte da Inglaterra, pois tal concessão além de constituir «uma especulação tão contrária ao nosso antigo e prudente sistema colonial, tão susceptível de abusos enormes, e tão conducente a excitar o irritabilíssimo ciúme mercantil Inglês, era propicia para uma penetração francesa no Brasil». Vila Verde denunciava os possíveis e importantes prejuízos, no caso de ser concedido o estabelecimento do entreposto no Rio de Janeiro, salientando que o do contrabando saltava claramente à vista; e não só o da introdução dos géneros estrangeiros, mas também o da Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 29 extracção do ouro e diamantes «porque ali acharão os extraviadores sempre uma venda segura». Muito provavelmente também a Espanha se queixaria de Portugal, se viesse a concretizar-se a permissão do entreposto. Sendo necessário condescender nesta matéria, e para evitar um mal maior, importava ponderar sobre o processo pelo qual se deveria responder, pedindo-se a Junot em carta particular e sem formalidade, «uma mais circunstanciada declaração do que se pertende, a qual é previamente necessária para se poder examinar e conceituar a pertenção proposta em termos muito gerais para se conhecer se se poderá propor ao nosso soberano». De momento, esta seria a resposta mais conveniente, porquanto «é a mais natural, e não pode... e com ela se vai ganhando tempo, do qual, na época actual, talvez, que tudo se deva esperar em benefício da situação politica presente, das potências europeias de segunda ordem». Porém, acontecendo que Portugal viesse a transigir nesta matéria e, nesse caso, fá-loia por via da «dura Ley da necessidade para evitar um mal maior, certo e iminente», Vila Verde propunha que fossem observadas as seguintes condições: ser por tempo determinado; autorizar apenas um determinado número de navios; presença de um fiscal português que reviste o que entra e sai; que encontrando contrabando ou extravio, se lhe imporá a pena da lei e o confisco; pagariam além das despesas de armazéns 2% por cento de entrada e 2% por saída. Araújo de Azevedo conseguiu evitar que se desse corpo às pretensões de Junot, conquanto estas tivessem constituído motivo de preocupação e estudo reflectido mas, mais uma vez, Portugal esteve à beira de se curvar perante as insólitas exigências da opressão francesa, constrangido pela «dura Ley da necessidade», necessidade de manter uma neutralidade que deixou o erário do Pais a sangrar; neutralidade nitidamente explorada, que navegou frequentemente nas águas da arbitrariedade e da prepotência e que acabou por vir a não ser respeitada. Razão tinha o nosso ministro em Paris, D. José Maria de Sousa (destituído a instâncias de Lannes), que confessava não ter ilusões algumas sobre o Tratado de 19 de Março de 1804, aconselhando Portugal a prepara-se para o pior. D. José Maria de Sousa, que concebera um plano para reorganizar o exército, entendia que a melhor política era «dispor-se Portugal para a guerra, calamidade que não podia evitar, na certeza de que, se havia de preparar-se ao tarde, melhor era preparar-se ao cedo, porque por este modo evitava ao menos o pagamento da contribuição que Napoleão tinha resolvido impor-lhe». Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 30 As coisas, porém, em Portugal, estavam pouco dispostas para a guerra, quer pelo mau estado das finanças, quer pela desconfiança que havia no exército e até pela certeza de que Portugal não podia, de maneira alguma, fazer frente à Espanha e à França, tanto mais que estava ainda bem presente a desastrada guerra de 1801. Acrescente-se, ainda, a desunião interna do País, provocada pela cisão dos dois partidos contrários, francês e inglês, e que na própria Corte trazia as opiniões divididas. Exército português desarticulado nas vésperas da 1ª Invasão. A situação militar do país nas vésperas da 1ª Invasão Francesa era francamente precária e desanimadora perante o quadro político que então se desenrolava na Europa. Numa época de anuviamento em que tanto convinha ao País valorizar o Exército para que as demais potências nos respeitassem a neutralidade, a situação militar justificava da parte do sector responsável urgentes providências no sentido da máxima eficiência. A insuficiência numérica e profissional dos quadros era notória, bem como a carência de armamento, munições e equipamento. Não bastando já o pouco interesse em fortalecer a situação militar, esta tornava-se ainda mais débil com as frequentes reduções dos efectivos do exército de Portugal. Contra esta alarmante situação tentou lutar António de Araújo de Azevedo, ao tempo ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e futuro conde da Barca, opondo-se à redução do exército, ao mesmo tempo que apresentava planos orientados no sentido de sanar ou minorar o enfraquecimento do potencial defensivo da Nação. Porém, os esforços empreendidos pelo ministro da Guerra foram inutilmente baldados. Razões de ordem económica levaram o Governo de Portugal, em 1804, a reduzir os efectivos do Exército, conforme participação de Araújo para Domingos de Sousa Coutinho, nosso embaixador em Londres. Esta medida, como é evidente, desagradou a António de Araújo, que em Conselho se opôs tenaz mas infrutiferamente. Efectivamente, relegado para plano secundário o potencial defensivo da Nação em favor da economia, opera-se a redução do Exército contra a opinião do ministro da Guerra, Araújo, com justificada estranheza do Gabinete britânico. De facto, era difícil de aceitar o ilogismo entre esta redução e as solicitações que o ministro Araújo mandava fazer em Londres para que aquele gabinete definisse se acorreria a Portugal no caso de se concretizar uma ameaça à integridade da Nação, e em que termos o faria. Em 19 de Julho de 1804 comunicou Araújo a D. Domingos António de Sousa Coutinho, para fazer o uso tido como mais conveniente perante o Ministério britânico, de que o Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 31 Príncipe Regente determinara «reduzir o seu Exército à menor lotação de praças de soldados, cuja resolução é tomada por motivo do estado em que se acham as suas finanças, eu tive de expor muitas vezes ao mesmo senhor que nas circunstâncias políticas da Europa, era preciso não diminuir a força do Exército; porém como de outro lado é grande a urgência da economia, se adoptou o meio de o fazer que venho de referir, ficando os soldados a quem se der baixa nos regimentos de milícias como em depósito para a todo o tempo que necessário for se chamarem outra vez aos regimentos». Censuras do Governo Britânico. António de Araújo entendia que esta redução do Exército causaria certamente alguma impressão ao Governo britânico, se acaso não lhe fossem expostas estas razões. Por isso julgou necessário, por precaução, tomar tal atitude. Tais explicações não obstaram a que o Governo britânico censurasse e considerasse inoportuna uma tal reorganização do Exército, protestando junto de D. Domingos através de Lord Harrowby, o qual se mostrava «preocupado com a possibilidade de os franceses se apossarem da ilha da Madeira, adquirindo ali um admirável ponto de apoio». Perante a discordância do Gabinete britânico, era forçoso responder às observações e reconversões que Lord Harrowby fizera relativamente ao estado das finanças e exército de Portugal. Com tal finalidade devia D. Domingos, em ocasião oportuna, repetir a Lord Harrowby que o mau estado existente no exército provinha em grande parte do atraso de finanças e que a primeira origem do dito atraso se filiava «nos sacrifícios que fez esta Corte para seguir a aliança da Grã-Bretanha, e se unir aos seus interesses na última guerra. As forças marítimas que desde o princípio dela S.A.R. entregou à disposição de SMB, o exército que mandou ao Rossillon; a esquadra que destinou para se combinar no Mediterrâneo com a de Lord Nelson, foram, sem dúvida, objectos de grande despesa proporcionadamente às rendas de Portugal; além disto, foi urgente pagar a paz, e comprar igualmente a neutralidade actual, afim de evitar que a França principiasse a guerra presente atacando os interesses da Grã-Bretanha no território do seu aliado; semelhantes factos merecem mais a atenção do ministério inglês, do que a sua reconversão». O primeiro destes sacrifícios pecuniários havia sido feito, quando o Gabinete de S. James declarara ao príncipe regente que estava impossibilitado de socorrer Portugal e consequentemente lhe aconselhava a sua paz particular a todo o custo e, se necessário, «com Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 32 estipulações contrárias aos tratados com a G. Bretanha»; o segundo processou-se quando o príncipe D. João viu a necessidade de que S.M.B. tinha em «concentrar as suas Forças Militares para se defender contra um ataque que por muito improvável na sua execução, nem por isso dispensa de uma vigorosa defesa contra um vigoroso e inaudito preparo. Depois destas alegações que não podem ter resposta, não deve haver no Governo Inglês pelos laços que unem as duas Naçoens, e posso dizer também por gratidão outros sentimentos mais do que os que lhe inspirar o interesse pelo restabelecimento da boa ordem nas Finanças, e no Exército Português». Soldados incapazes e ilegalmente recrutados Nos regimentos militavam muitos soldados incapazes, e outros que foram recrutados contra todas as leis e privilégios, de onde resultou uma numerosa deserção em prejuízo da agricultura. Seria, pois, a estes que se determinaria dar baixa e se alguns estivessem em estado de servir, seriam conservados nas guarnições fixas ou nos corpos das milícias. Embora António de Araújo se esforçasse para que fossem aceites, junto do Ministério britânico, as justificações relativas à redução do exército, fundamentando-se, o nosso ministro dos Estrangeiros e da Guerra preocupava-se, como já se disse, em evitar o enfraquecimento da eficiência militar da Nação. Na já citada carta para D. Domingos de Sousa Coutinho, datada de Queluz, em 19 de Julho de 1804, encontra-se à margem a seguinte anotação: «Fiz repetidas representações a este respeito, e apresentei ao sr. Conde de V.ª Verde (ministro do Reino) um plano para diminuir a despesa sem diminuir o Exército, mas ele e o sr. Luís de Vas.os (responsável pelo Erário) não quiseram assentir; por fim salvei segunda redução da Cavalaria». Certamente que a situação do país não era risonha, porquanto o «partido francês» preconizava a neutralidade, que comprada a peso de ouro, não só descurava a defesa nacional, como ia transferindo para os cofres de Bonaparte todos os recursos do nosso exaurido erário. Porém. Araújo, procurava a todo o transe as soluções mais viáveis para tão melindrosa situação. Em 21 de Janeiro de 1806, escrevendo de Vila Viçosa, o conde de Vila Verde participa a Araújo a necessidade de nova redução do exército, pois verificava quase como impossível que Sua Alteza Real, nas circunstâncias do Erário, pudesse pagar e sustentar a «tropa que não digo que tem, mas que existe, julgava ser necessário absolutamente o reduzi-la a muito pouco, Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 33 porque ainda sabendo de certo o haver Guerra, acho melhor mandar a ela, para me defender, um regimento bem pago, e bem nutrido, do que três ou quatro morrendo de fome, e sem o soldo, que lhe compete; é terrível situação para todo o caso, achar-se sem exército, e sem dinheiro, como estamos, e V. Exa. conhece muito bem». Em 28 de Janeiro de 1806, o futuro conde da Barca redigia a resposta revelando claramente o seu desapontamento, demonstrando o perigo a que Portugal se expunha, além de que uma redução do Exército produziria péssimo efeito dentro e fora do Reino. Assegurava António de Araújo que não era pela redução do Exército que a despesa diminuiria, mas sim examinando o motivo pelo qual o nosso Exército fazia maior dispêndio do que qualquer outro de igual lotação na Europa e «cortar os abusos estabelecendo um bom sistema económico; isto não é impossível nem o é também o restabelecer a disciplina que não existe». António de Araújo, consciente da gravidade da situação e na sua qualidade de ministro da Guerra, preocupava-se em justificar o ilogismo da redução do Exército, «lutando no seio do Gabinete, onde o critério do aumento do potencial defensivo da Nação fora superado pelo da economia, num momento histórico nacional em que a efervescência bélica da Europa impunha precisamente o inverso, isto é, a elevação da sua eficiência pelo desenvolvimento duma aturada e intensiva instrução, renovação do armamento e do equipamento, altiveza do espírito ofensivo, elação da disciplina e complemento e selecção dos quadros». Integridade do território ameaçada. A missão Rosslyn. A 9 de Agosto de 1806, um despacho do ministro Fox, em nome de Sua Majestade Britânica (S. M. B.), incumbia os condes de Rosslyn, de S. Vicente e o tenente-general Simcoe de uma extraordinária e importante missão, a um tempo diplomática e militar. Como se tivessem agravado as relações entre as Cortes francesa e britânica, Talleyrand, no intuito de intimidar o ministro Fox e conseguir dele a paz nas condições propostas por Napoleão, teria declarado a Lord Lauderdale, embaixador inglês em Paris que, não chegando a Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 34 acordo, o exército francês de Baiona, formado por 30.000 homens, invadiria Portugal e faria a sua partilha como se regulou depois pelo Tratado de Fontainebleau. Foi nesta conjuntura, de ameaça (ou pseudo ameaça), que o Gabinete londrino decidiu enviar imediatamente para o Tejo as forças navais disponíveis que, acrescentava, em breve seriam reforçadas por uma outra esquadra proveniente de Plymouth. O comando era confiado aos referidos conde de S. Vicente e John Simcoe, exercendo Rosslyn as funções de enviado extraordinário, incumbido de negociar, com o Gabinete lisbonense, «sobre todas as matérias que dissessem respeito ao comum interesse das duas Cortes». A missão de Lord Rosslyn, devidamente instruído pelo Foreign Office constava de três pontos fundamentais: 1º - Se Portugal quisesse seriamente defender-se contra a projectada invasão francesa, S. M. B. tomaria as medidas correspondentes, «em toda a plena extensão dos meios de que dispusesse dispor para este objecto». Admitia, ainda, que o governo de Espanha, preocupado com as consequências da passagem do exército invasor pelo seu território, se resolvesse a modificar a posição de aliada da França, colaborando com as forças portuguesas e inglesas na resistência. 2º - Se, porém, os meios, ou a determinação da Corte de Lisboa não correspondesse ao fim em vista, a eficaz defesa do País, a hipótese mais aconselhável seria o Príncipe Regente abandonar os seus territórios europeus e retirar-se, provisoriamente, para o Brasil, levando com ele tudo quanto pudesse; neste caso, a Grã-Bretanha prestar-lhe-ia os maiores auxílios, cedendo-lhes mesmo as suas forças navais. 3º - Se nenhuma destas soluções fosse aceite, a missão tinha mandato de modo a impedir que a França se apoderasse da frota portuguesa, aumentando o seu poder naval e pudesse dispor do porto de Lisboa. A verificar-se esta hipótese, deveriam as forças inglesas propor a sua compra ou a sua entrega, «ainda que fosse necessário empregar a força, se pela persuasão se não convencesse o Gabinete de Lisboa». Em qualquer caso, Rosslyn deveria informar o Príncipe Regente e o seu Governo que a submissão de Portugal à França implicaria a perda do Brasil e que a Inglaterra se considerava no direito de o ocupar «para sua segurança». Aliás, este propósito já a Grã-Bretanha o havia revelado em 1801, por ocasião da “Guerra das Laranjas”. Com efeito, a 14 de Agosto de 1806, a esquadra inglesa composta de cinco naus de linha e uma fragata, conduzindo a bordo nove batalhões de tropa de desembarque, deu entrada no Tejo, ancorando junto à Torre de Belém. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 35 Nesse mesmo dia, Rayneval, Encarregado de Negócios da França em Lisboa, apresentou ao Ministro dos Estrangeiros, Araújo, uma reclamação onde salientava que a entrada da esquadra no porto de Lisboa não tinha qualquer justificação e infringia as leis da neutralidade que Portugal tantas vezes, e com o maior empenho, havia declarado respeitar rigorosamente. Rayneval exigia uma explicação «pronta e precisa» e que não poderia, nas actuais circunstâncias ser «evasiva nem dilatória». Idêntica atitude tomou o embaixador de Espanha em Lisboa, marquês de Campo Alange. Explicações do Governo português. Actividade intensa através dos canais diplomáticos. Em 26 de Agosto entrava no Tejo uma fragata inglesa, «Santa Margarida», que trazia a bordo o encarregado da missão diplomática, Lord Rosslyn. Tanto a chegada da esquadra ao Tejo, como as propostas feitas pelo enviado a Araújo de Azevedo e ao Príncipe Regente acerca do primeiro ponto da missão sobressaltaram a vida de Lisboa, causando desgosto e grande receio, criando grandes complicações com os governos de Paris e de Madrid, o que só prejudicava Portugal, economicamente e politicamente. No dia seguinte à chegada de Rosslyn, Araújo de Azevedo, conferenciando com o diplomata britânico, recusou formalmente todos os recursos que a Inglaterra, sem que lhos tivessem solicitado, punha à disposição de Portugal. Fundamentava essa rejeição no facto, aliás bem conhecido, de não existirem preparativos militares suspeitos em Baiona, como se propalara, e serem as informações recebidas oficialmente de Paris bastante tranquilizadoras. O nosso Ministro iria desenvolver meritória actividade diplomática nesta difícil conjuntura. Respondeu aos representantes da Espanha e da França para os sossegar, oficiou ao conde da Ega, embaixador de Portugal em Madrid, para Paris a D. Lourenço de Lima e para Londres a D. Domingos de Sousa Coutinho, a participar-lhes o acontecimento, a fim de esclarecer cada uma das Cortes acerca da posição que Portugal e o seu Governo tomavam perante a inesperada situação. Ao conde da Ega, para que o transmitisse ao Príncipe da Paz e aos Reis Católicos, Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 36 assegurou que o Príncipe Regente estava determinado a não desistir, de modo algum, do seu sistema de neutralidade. Porém, como em Madrid se suspeitava que a vinda da missão Rosslyn fora precedida de acordo entre Londres e Lisboa, Araújo de Azevedo assegurou que o boato era não só destituído de fundamento como de verosimilhança e por si mesmo se destruía, «porque ninguém pode conceber um fim sensato duma esquadra no Tejo, porque seria inútil para defesa e ataque; ninguém pode suspeitar acordo com a Inglaterra para projectos hostis, quando nós não temos feito a mínima disposição no nosso exército, antes o temos diminuído de forças». Oficiando a D. Lourenço de Lima, em 24 de Agosto e 3 de Setembro, relatava as declarações de Rosslyn e reafirmava o propósito firme da manutenção de neutralidade, expondo parte das objecções que havia oposto às afirmações e propostas do enviado extraordinário da Inglaterra. Quanto à partida de 30.000 homens de Baiona, eram unânimes «todas quantas informações que havíamos recebido, em não existir ali mais do que uma brigada italiana de 1.700 homens, nem constava que houvesse movimentos de tropas para aquele sítio; que era impossível, segundo o carácter de S. M. Imperial e Real, haver um determinação de nos atacar, quando não existia motivo algum de ofensa, tendo Portugal estipulado com aquele soberano a sua neutralidade, sempre observada com o maior rigor». O ministro destacava a inutilidade e a incongruência do socorro inglês duma esquadra, «contrário a todo o bom senso», pois não era com forças marítimas que Portugal se poderia defender de uma invasão da França e Espanha pela fronteira terrestre, e acrescentava que «em face do desacerto da Inglaterra», o Príncipe Regente havia deliberado, prevenindo Lord Rosslyn e o Gabinete de Londres, de que manteria a neutralidade e de nenhum modo provocaria a guerra. Assim, o Príncipe Regente não só recusava o auxílio, mas exigia a pronta retirada da esquadra de Lord S. Vicente, pois era improcedente o motivo por que havia sido enviada. Após ter dado as necessárias explicações ao governo francês, Napoleão, numa audiência a D. Lourenço de Lima, declara ao embaixador português que «tendo ele (Napoleão) dado a sua palavra de honra, nada tinha a temer o Príncipe Regente de Portugal; mas que, se a Inglaterra desembarcasse um só homem em território português, ele via em tal caso a neutralidade violada, julgando-se como tal autorizado a tratar Portugal pelo modo que mais adequado fosse aos seus altos desígnios». Para Londres, Araújo de Azevedo, no seu despacho de 1 de Setembro enviado a D. Domingos, foi suficientemente preciso e claro, pondo a situação criada pela Inglaterra em Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 37 termos concisos de atribuir-lhe a responsabilidade de uma agressão armada que poderia resultar da sua insólita e precipitada atitude e manifestando a firme resolução de ser mantida a neutralidade. O ter tomado a Inglaterra a deliberação de enviar ao Tejo a esquadra, enquanto estavam decorrendo as negociações para a paz e estas se não haviam rompido, «foi um passo contrário aos interesses deste País e parece-me que igualmente aos da Inglaterra. No público ninguém entende esta marcha, e a julgam para executar projectos que não existem». Considerava, ainda, o abalo que a situação havia causado na praça de Lisboa, «o susto em que pôs o comércio» e a repercussão que ele inevitavelmente teria nas relações comerciais dos outros países com Portugal, cujo comércio externo, assim de importação como de exportação, se ressentiria pelo receio de os comerciantes estrangeiros negociarem com o nosso País. O Ministério britânico devia, pois, ponderar todas as circunstâncias e reconhecer quanto era útil e necessário retirar a esquadra o mais depressa possível, caso contrário, seria quase certo que Paris e Madrid se preparassem e agissem contra Portugal «pela consideração de que o Gabinete londinense pretendia forçar este País à guerra e das consequências que um tal facto originava a cada um deles». Já ficou entendido que causara estranheza na Corte de Lisboa a circunstância de a esquadra ter sido enviada para o Tejo sem que, como era normal, um facto tão importante fosse precedido das necessárias e prévias conversações. O Príncipe Regente confiava na amizade de S. M. B. e assegurava que não havia outro meio de preservar a existência da Monarquia portuguesa, nas actuais circunstâncias da Europa, além da manutenção da neutralidade, até à assinatura da Paz definitiva. E com clarividência, indicava as consequências de se persistir na permanência da esquadra em Portugal: «Entrar em guerra no momento em que a França está desembaraçada de toda a diversão, ou ainda mesmo que pudéssemos fazer guerra ofensiva à Espanha, invadindo-lhe algumas das províncias, os franceses passariam os Pirinéus para vir socorrer os seus aliados, e ficaria em seu poder a sorte da Península». O fim da missão Rosslyn. Desarmado pela argumentação de Araújo de Azevedo, que em diversos pontos punha a descoberto a inconsistência das razões alegadas pelo representante de S. M. B., Lord Rosslyn acabou por considerar frustrado o êxito da sua missão, conforme o participava ao seu Secretário de Estado: «…não se podia esperar que Portugal envidasse vigorosos esforços em Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 38 sua própria defesa e era evidente que as forças britânicas seriam por si sós, insuficientes para repelirem uma invasão dos franceses». Que as razões apresentadas pela Corte de Lisboa para se eximir à situação que o Governo londinense pretendia alcançar fizeram reflectir profundamente Lord Rosslyn, é demonstrado na sua confissão a Fox, expressa neste despacho. Em Portugal, dizia ele, não havia a menor apreensão de perigo da parte da França e todas as informações que ele próprio, Rosslyn, tinha podido reunir, contradiziam a suposição das concentrações das forças invasoras em Baiona e, sendo assim, não só cessava a razão do auxílio, mas também qualquer atitude de violência em relação ao Governo de Lisboa carecia de fundamento e justificação, vindo a ser considerada aos olhos da Europa como um acto agressivo, e inteiramente injustificável. Rosslyn, de acordo com a Corte de Lisboa, propunha ao seu Governo que seria preferível adiar qualquer acção para o momento em que o risco fosse efectivo, «…então a razão que se sugeriu de se apossar dos fortes e navios, pode ser alegada com propriedade; e estas medidas tão necessárias para a segurança da Grã-Bretanha deviam ser postas em execução». Finalmente, depois de por diversas vezes o Governo português ter dirigido ministério britânico, por intermédio do nosso embaixador em Londres, fortes reclamações, Rosslyn foi autorizado a declarar que o Governo Britânico não insistia mais no seu propósito, e em 28 de Setembro a esquadra de Lord S. Vicente levantava ferro do porto de Lisboa, navegando para a Sicília. Concluindo este subtítulo pode, talvez, afirmar-se que o verdadeiro móbil vibrado pelo governo londrino na neutralidade portuguesa teria ficado enterrado no segredo da Chancelaria do Foreign Office. Porém, no campo das conjecturas poderia admitir-se que o Governo de Londres tivesse em mente apropriar-se da esquadra portuguesa e, que ocupando Lisboa, adquirir uma posição extraordinariamente favorável para contrabalançar as vantagens da França na negociação da paz. Combater a Espanha e a França no terreno? Parece ser uma hipótese demasiado Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 39 fragilizada. Embora continuando no campo das conjecturas, não é de rejeitar que, em face da insistência do Gabinete britânico na transferência da Corte portuguesa para o Brasil «a qual fazia parte de recentes desígnios comerciais e de predomínio da Inglaterra naquele Estado, mais tarde efectivados, que o verdadeiro fim do Gabinete londinense era o desvio dos valores nacionais para o continente americano». Atente-se no seguinte: precisamente uma semana depois da chegada da Corte ao Brasil, a 28 de Janeiro de 1808, o Príncipe Regente, ao que parece também por influência do economista brasileiro, José da Silva Lisboa, promulgou um decreto a mandar abrir os portos do Brasil ao comércio geral, medida muito útil à Inglaterra e por ela desejada. E mais, quando se fez, com a Inglaterra, o Tratado de 10 de Agosto de 1810, Portugal sacrificou os seus interesses e anuiu a tudo quanto lhe fora proposto pelo hábil negociador inglês, aceitando mesmo, ou sendo obrigado a aceitar, reduções de soberania. O Bloqueio Continental. As campanhas de 1805 e 1806 contra a Áustria, a Rússia e a Prússia, bem como as situações políticas e diplomáticas que desencadearam, pareceram desviar, por algum tempo, a atenção de Napoleão dos assuntos peninsulares em geral e de Portugal em especial. O Imperador, como bom estratega que era, sabia bem o valor que representava para os seus objectivos a incomparável posição de Portugal no xadrez europeu. Era apenas uma questão de tempo e oportunidade. E assim veio a ser. Em Outubro de 1806, Napoleão ganha aos prussianos a batalha de Iena, vendo, então, que era chegado o momento de empreender contra a Inglaterra a acção decisiva uma vez que, julgando-se seguro no continente, dispunha-se a ripostar à medida tomada pelo governo inglês, seis meses antes, que declarara bloqueadas as costas, portos e rios entre Brest e a foz do Elba. Napoleão ao decretar o Bloqueio Continental invocava o direito de retaliação, o que não passava de mero pretexto, porquanto tratava-se da execução de um plano que há muito vinha a ser delineado. O Bloqueio decretado por Napoleão, e promulgado em Berlim, tinha por fim obrigar a Inglaterra a capitular, «conquérir la mer par la puissance de la terre», fechando-lhe os mercados da Europa; pretendia arruinar o comércio da Inglaterra e obrigá-la à necessidade Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 40 de se humilhar perante a França e aceitar as condições da paz impostas pelo Imperador. Era este o objectivo do decreto imperial, sendo as potências europeias “convidadas” a encerrar os seus portos e mercados ao comércio britânico As medidas tomadas em Berlim, no famoso decreto de 21 de Novembro de 1806, estavam redigidas nos seguintes termos: 1º - As Ilhas Britânicas são declaradas em estado de bloqueio. 2º -Todo o comércio e correspondência com elas ficam proibidos. consequência disto, Em as cartas ou outros papéis dirigidos à Inglaterra ou a um inglês, todos os escritos em língua inglesa, não terão curso nos correios, e serão apreendidos. 3º - Todo o inglês residente nos países ocupados pelos franceses é declarado prisioneiro de guerra. 4º - Toda a propriedade inglesa é considerada boa presa. 5º - O comércio das mercadorias inglesas fica proibido, e toda a mercadoria pertencente à Inglaterra ou proveniente das suas fábricas e colónias fica declarada boa presa. 6º - Nenhum navio que vier, directamente de Inglaterra ou das colónias inglesas, ou que ali tenha estado, depois da publicação do presente decreto, será recebido em parte alguma. Só em fins de Dezembro se soube em Portugal o conteúdo das medidas tomadas em Berlim o que, como era natural, causou grande inquietação na Corte do Príncipe Regente. Porém, as exigências francesas não se manifestaram desde logo, decorreram alguns meses até que Portugal fosse incomodado, uma vez que Napoleão andava empenhado nas campanhas militares do norte da Europa, submissão da Polónia e da Rússia. Em Maio de 1807, o Príncipe Regente enviava ao Imperador «os seus cumprimentos pelas vitórias conseguidas e exprimia a esperança de ver uma paz durável concluir-se» … só que estas cortesias não eram capazes de disfarçar a incapacidade em que se achava D. João de fazer respeitar neutralidade do nosso Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 41 País. Terminadas as referidas campanhas, e estabelecida a paz de Tilsit, a nova situação político-militar representava para Portugal um enorme agravamento dos riscos da sua posição revelando, claramente, a sua vulnerabilidade, e Napoleão estava bem informado das nossas dificuldades e de tudo quanto se passava na Península. Em 29 de Julho de 1807, Hautevire, que na ausência de Talleyrand dirigia as Relações Exteriores, participava ao nosso embaixador, D. Lourenço de Lima, que a vontade do Imperador era que Portugal fechasse os seus portos aos ingleses; que procedesse à detenção dos que se achassem no nosso País e lhes confiscasse os seus navios, bens e propriedades; e, finalmente, que despedisse o ministro inglês residente em Lisboa e chamasse o que tinha em Londres, «constituindo-se, assim, em manifesto estado de guerra contra a Grã-Bretanha, aliás a França lha declararia pela sua parte». D. Lourenço de Lima mostrou-se surpreendido pelo facto de não se respeitar a nossa neutralidade, obrigando-nos a declarar guerra aberta a uma nação aliada, ao que Hauterive replicou dizendo que tinha ordens terminantes de Napoleão para não entrar com ele em discussão sobre tal assunto, visto que as circunstâncias da neutralidade tinham caducado e, só assim, a Inglaterra seria forçada a estabelecer a paz com a França Então, o nosso embaixador pediu que se lhe dirigisse uma nota nesse sentido, o que lhe foi negado com o pretexto de que Napoleão lhe tinha mandado dar parte disto por consideração que tinha pela sua pessoa, porque a nota relativa a este ponto devia ser apresentada ao Governo português pelo encarregado de negócios em Lisboa, Mr. Rayneval. O ultimato francês a Portugal. (Oitenta e três anos antes do inglês!) Efectivamente, em Agosto, Rayneval entregava ao nosso ministro dos Estrangeiros, Araújo de Azevedo, o ultimatum da França. O abaixo assinado, encarregado de Sua Majestade o Imperador e Rei teve ordem de notificar ao governo de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, o seguinte: «À paz continental deve seguir-se a paz marítima. A perseverante injustiça do governo inglês deve atrair-lhe a animadversão de todos os povos e desafiar o ressentimento a todos os soberanos, cujos direitos mais sagrados têm sido constantemente desconhecidos por aquela potência. Nenhum povo nem governo tem mais razão de queixa da Inglaterra que o povo e o governo de Portugal. As liberdades que o governo inglês toma em relação ao comércio e à Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 42 bandeira desta nação importam um verdadeiro atentado contra a sua independência. Sua Majestade o Imperador e Rei, bastante reclamou contra esses atentados e muitas vezes lamentou a paciência com que se toleravam, mas julga dever hoje declarar que se Portugal sofresse mais tempo a opressão de que é vítima, teria Sua Majestade de considerar esse procedimento como renúncia a toda a soberania e independência; e para manter a dignidade de todas as potências continentais, assim como para satisfazer os mais caros e sagrados interesses de oitenta milhões de homens que obedecem directamente às suas leis ou às dos seus aliados, ver-se-lhe-ia obrigado a constranger o governo de Portugal a cumprir os deveres que lhe impõem as relações que o ligam intimamente a todas as poêencias. Portanto, o abaixo assinado teve ordem de declarar que se no primeiro de Setembro próximo, Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, não tiver manifestado o desígnio de subtrair-se à influência inglesa, declarando imediatamente a guerra à Inglaterra, fazendo sair o ministro de Sua Majestade Britânica, chamando de Londres o seu próprio embaixador, retendo em reféns os ingleses estabelecidos em Portugal, confiscando as mercadorias inglesas, fechando os seus portos ao comércio inglês, e enfim reunindo as suas esquadras às das potências continentais, e nesse caso o abaixo assinado teria ordem de pedir o passaporte e retirar-se declarando a guerra. O abaixo assinado, ponderando os motivos que devem determinar a Corte de Portugal na sua presente circunstância, espera que esta, esclarecida por sábios conselhos, entrará franca e plenamente no sistema político mais conforme à sua dignidade, bem como aos seus interesses, e que por fim se decidirá a fazer abertamente causa comum com todos os governos do continente contra os opressores dos mares e inimigos da navegação de todos os povos, O abaixo assinado, pede a S. Ex.ª o Sr. Araújo, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, que aceite a certeza da sua subida consideração. Lisboa, 12 de Agosto de 1807 – Rayneval». Precisamente nesse mesmo dia, também o embaixador espanhol em Lisboa, marquês de Campo Alange, entregava o ultimato do seu país onde se declarava: «Si el Portugal deséa su independencia y la seguridad de su comércio, no puede permanecer por más tiempo en la inacion en que está». Esclareça-se, a este propósito, que a Espanha tinha sido posta ao corrente que Napoleão queria pôr em execução o seu antigo projecto da ocupação de Portugal. Godoy, que depois da derrota da França em Trafalgar se tinha querido afastar deste país, ao saber da vitória do Imperador no continente, de novo se tornava aliado e amigo de Napoleão, ia orientando a sua política connosco, de modo a tornar complicadas as relações entre os dois países peninsulares. Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 43 Sobre o ultimato, de 12 de Agosto de 1807, entregue por Rayneval ao nosso ministro dos Estrangeiros, este escrevia, em 21 de Agosto, a Talleyrand: «Do íntimo da minha alma, aplaudi a celebração da paz continental, porque é um grande bem para a humanidade, e porque fará universalmente prezado o nome do maior herói que tem existido. Felicito Vossa Alteza, pela parte que tomou nessa obra, e desejo que a paz marítima venha a coroar um tão feliz acontecimento e tanta glória. Vossa Alteza, receberá dentro em pouco as respostas que tive ordem de dar ao encarregado dos negócios de Sua Majestade o Imperador e Rei. Não é possível nem por momentos duvidar, se a guerra prosseguir, que deixe de aniquilar o nosso comércio e de passar o Brasil para o domínio ou protectorado de Inglaterra; esta adquirirá novas forças; é verdade que os males são incalculáveis, especialmente para nós; mas a Espanha arrisca-se também a perder as suas colónias, e a França a faltarem-lhe as matérias primas para as suas fábricas. Todavia, Sua Alteza Real, depois de semelhantes considerações, entrega-se completamente à decisão de Sua Majestade Imperial e Real, somente não pode prestar-se a confiscar os bens aos ingleses e apoderar-se das suas pessoas, porque Sua Alteza Real declara que tal procedimento seria contrário à sua honra e à sua consciência. Estou certo que Sua Majestade Imperial e Real só quer apressar a realização de uma paz útil ao universo…Sua Majestade Imperial e Real, sábio na arte da guerra e na política, soberano ao mesmo tempo e árbitro da Europa, quererá a destruição da monarquia portuguesa? É-me impossível acreditá-lo. Desculpai se o amor da Pátria me fez ser um pouco mais difuso, aceitai os sentimentos da subida estima e da mais distinta consideração com que tenho a honra de ser, etc. Lisboa, 21 de Agosto de 1807 – António de Araújo de Azevedo». Esta carta, que alguns consideram humilhante, não seria muito mais que uma resposta esquiva, dúbia, como era frequente, “filha” das circunstâncias e por via da «dura Ley da necessidade». Eurico de Ataíde Malafaia, da Academia Portuguesa de História, que levou a cabo uma exaustiva investigação, nos arquivos nacionais e brasileiros sobre António de Araújo de Azevedo, futuro Conde da Barca, considera que «em resultado da sua elevada cultura e do seu posicionamento mental a favor de um liberalismo ponderado, pendia naturalmente para a França sem que, contudo, isso tivesse reflexo nas suas atitudes políticas. Ele não poderia ser a favor de uma política de um país que, a todo o custo, nos pretendia agredir e, por isso, entendemos que ele seria mais provavelmente contra a Inglaterra do que a favor da França. E porque não confiava nos ingleses, para quem o comércio era o factor determinante de toda a sua política, teria naturalmente a esperança de que, mal por mal, era sempre preferível um Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 44 acomodamento com os franceses, mesmo à custa de dinheiro». Entretanto, o ministro inglês em Lisboa Lord Strangford, pedia ao Governo português segurança a respeito dos súbditos britânicos e dos seus bens, segurança que lhe foi garantida, afiançando-lhe que o Príncipe Regente jamais anuiria à sua prisão, nem ao confisco das suas propriedades. Ao enviar idêntica comunicação para Londres, o Gabinete português pedia ao governo de Sua Majestade que nos permitisse fechar os nossos portos aos navios ingleses e alvitrava, segundo os conselhos de Strangford, que a Inglaterra fizesse uma guerra aparente a Portugal. O governo britânico olhando como quimérico o pedido de guerra aparente rejeitou-o. Quanto à clausura dos portos, o primeiro ministro, Mr. Canning, aceitava-a desde que os franceses não entrassem na Península e oferecia, ainda, ao Príncipe Regente o socorro da sua esquadra, «e toda a mais assistência de que carecesse» quando, eventualmente, a Família Real se decidisse a transferir a sua residência para o Brasil. Em Paris, D. Lourenço de Lima tentava, desesperadamente, negociar o ultimatum, já que não era atendido pelo Imperador e esperava, em último recurso, subornar Talleyrand, como era hábito. Porém, o seu amigo saiu do ministério dos Estrangeiros sendo substituído por Champagny; em carta para Portugal o nosso representante dizia: «Muita falta nos faz este homem. É perda para mim, na verdade, irreparável». O Governo português via-se em circunstâncias cada vez mais críticas, até porque Napoleão considerava inútil para com ele a política dilatória e equívoca de Araújo de Azevedo. Em face da atitude irredutível do Imperador, o Governo de Lisboa começou a pensar seriamente na partida da Família Real para o Brasil, visto que a defesa pelas armas do nosso País parecia a todos impossível de se realizar com êxito. Os homens do «partido francês», que dominavam já no Conselho do Príncipe Regente, eram da opinião de que Portugal não poderia opor-se à intransigente vontade de Napoleão, ideia também partilhada pelos embaixadores portugueses em Paris e Madrid, argumentando aquele a “omnipotência” da França, e este o descarado servilismo do governo espanhol ao francês. Quanto aos simpatizantes do «partido inglês», foram igualmente ouvidos, sendo chamados ao Conselho de Estado, D. Rodrigo de Sousa Coutinho e D. João de Almeida de Melo e Castro, opinando que a ruína de Portugal era certa, perdendo ao mesmo tempo o comércio marítimo e as suas colónias, sendo por isso indispensável conservar-se Portugal a todo o custo fiel à Grã-Bretanha, o que se tornava viável mudando-se a Família Real para o Brasil. No entanto, ambos os «partidos» eram concordantes sobre a impossibilidade de fazer Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 45 frente ao colosso do continente europeu. Tratado de Fontainebleau – decidida a sorte de Portugal. Napoleão não tinha qualquer dúvida de que Portugal nunca faria seriamente guerra à Inglaterra, que os seus portos só estariam fechados aparentemente aos navios britânicos e, assim, fosse qual fosse a resolução do Governo português, não abandonaria a ideia de ter o nosso País sob a sua tutela. A situação agrava-se quando o encarregado de negócios da França, Rayneval, e o embaixador de Espanha, Campo Alange, solicitaram ao Gabinete lisbonense uma imediata resposta às exigências dos respectivos governos, ameaçando retirarem-se caso a resposta não fosse conforme os desejos de Paris e de Madrid. Como a resposta foi considerada de má fé, destinada a iludir as exigências feitas, o referido encarregado de negócios e o embaixador deixaram Lisboa a 30 de Setembro. A notícia de que Portugal recusara aceitar o ultimatum nas condições exigidas, soube-a Napoleão em Fontainebleau, nos primeiros dias de Outubro, irritando-se, sobretudo, pelo facto de, ao contrário das suas imposições, se ter permitido a saída dos ingleses com os seus bens. Como consequência imediata, no dia 9 do referido mês, foram embargados todos os navios portugueses que se encontravam nos portos italianos, tornando-se essa medida extensiva aos portos do Império, da Holanda e de Hamburgo e, dias depois, a 12 de Outubro, Junot recebia ordens para entrar em Espanha, dirigindo-se, ao mesmo tempo, para Baiona vinte e um regimentos de infantaria e um de dragões, seguindo-se outros preparativos militares. Em Fontainebleau, onde se encontrava a Corte imperial, Napoleão, encolerizado pelo comportamento do Governo de Lisboa, teria proclamado, perante a sua roda de amigos e a todo Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 46 o corpo diplomático, a celebre frase «a Casa de Bragança deixou de reinar em Portugal». Napoleão, irritado com o jogo duplo do nosso Governo que procurava neutralizar as exigências francesas, confiava ao general Duroc a missão de conduzir com Eugénio Izquierdo, embaixador de espanha em paris, uma negociação sobre os assuntos em suspenso entre a França e Espanha, nomeadamente no que dizia respeito a Portugal: «Quanto a Portugal – confiava o Imperador a Duroc – não levantarei dificuldades em dar ao rei de Espanha uma soberania sobre Portugal e mesmo em separar daí uma pequena parte para a rainha da Etrúria e para o Príncipe da Paz». Depois de resolvidas algumas diferenças entre Duroc e Izquierdo as negociações franco-espanholas ficaram concluídas a 27 de Outubro, e que o Imperador referendou a 29, no Tratado de Fontainebleau onde ficou estabelecido o texto que partilhava Portugal: As províncias de Entre Douro e Minho com a cidade do Porto formariam o reino da Lusitânia que seria dado com soberania total ao rei da Etrúria, neto do rei de Espanha, que cederia o reino da Etrúria, em toda a sua soberania, ao Imperador dos franceses; o Alentejo e o Algarve ficariam a pertencer a Godoy, O Príncipe da Paz, que teria o título de Príncipe dos Algarves; as províncias da Beira, Trás-os-Montes e Estremadura ficavam «em depósito até à paz geral, para dispor delas segundo as circunstâncias, e conforme ao que se convenha entre as duas altas partes contratantes»; o reino da Lusitânia e o principado dos Algarves seriam hereditários na descendência dos seus soberanos; por falta de herdeiro legítimo, essas regiões seriam entregues ao rei de Espanha, na condição de jamais serem governadas por um só príncipe ou reunidas à coroa de Espanha; os soberanos do reino da Lusitânia e dos Algarves reconheciam como protector o rei de Espanha e não poderiam fazer a guerra nem a paz sem o seu consentimento; as duas partes contratantes partilhavam entre si, em partes iguais, as colónias e ilhas de Portugal. Uma convenção da mesma data regulava a invasão e ocupação de Portugal, assim como o modo da sua administração depois da conquista. Do Tratado de Fontainebleau não deu o Governo imperial conhecimento ao embaixador D. Lourenço de Lima a quem, aliás, mandava sair de Paris no prazo de dois dias e da França no espaço de quinze, com todos os outros elementos da legação portuguesa e ordem semelhante, do governo espanhol, recebia o conde da Ega, embaixador em Madrid, por motivo da declaração de guerra que a França e Espanha faziam a Portugal. Curiosamente, cinco dias antes, a 22 de Outubro de 1807, as negociações que D. Domingos de Sousa Coutinho conduzia em Londres desde Setembro, terminaram com uma Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 47 convenção secreta entre o Príncipe Regente e Jorge III de Inglaterra, só que… como sempre, os nossos “amigos” britânicos impunham as condições a seu bel-prazer e normalmente, (ou sempre?) os tratados com a velha “Albion” só eram honradamente cumpridos da nossa parte. O preâmbulo, que segundo o embaixador português fora escrito pelo punho de Lord Canning, responsável pelo Foreign Office, «era extremamente severo para Portugal, constituindo afinal uma justificação para eventuais represálias que a Inglaterra podia adoptar em caso de cedência pelo governo de Portugal às exigências francesas». As próprias cláusulas eram portadoras de obrigações onerosas para Portugal, prevendo, e que veio a acontecer, a ocupação da Ilha da Madeira, «mantendo-se essa ocupação até à conclusão da paz definitiva entre a Grã-Bretanha e a França»; autorização de entrada dos navios ingleses num porto do Brasil, provavelmente no de Santa Catarina, no caso de encerramento dos portos. De harmonia com essa convenção a Família Real devia transferir-se para o Brasil, devendo fazer-se acompanhar por toda a frota nacional, mercante ou de guerra, sob o apoio naval da Inglaterra. Esse apoio, que garantiria a «transmigração» da Corte para o Brasil, deveria ser compensado (pois claro!) por um Tratado de Comércio de longa duração. A isto se referia o artigo VII da convenção: «Quando o Governo Português estiver estabelecido no Brasil, proceder-se-á à negociação de um Tratado de Auxílio e Comércio entre o Governo Português e a Grã-Bretanha». Ao fim e ao cabo, a Inglaterra comprometendo-se a proteger a transferência da Família Real comprometia, igualmente, a escassa margem de autonomia que o Governo português ainda controlava. A transferência da Corte para o Brasil. Em Outubro de 1807, as tropas associadas em Baiona, comandadas pelo ex-embaixador em Lisboa, o general Junot, começaram a dirigir-se para a fronteira portuguesa, onde a vanguarda, os primeiros destacamentos, entraram, pela Beira Baixa, a 18 de Novembro. Dois dias antes aportava ao Tejo uma armada inglesa, comandada por Sir Sidney Smith, transportando uma força de 7.000 homens de desembarque, preparada para escoltar a Família Real para o Brasil, ou bloquear o porto, tentando evitar, deste modo, que os navios mercantes ou de guerra de Portugal fossem tomados pelos franceses. Com efeito, o almirante Smith e o embaixador Strangford decidiram-se pelo bloqueamento, comunicando ao Gabinete lisbonense que os despachos do Foreign Office, só admitiam que o bloqueio fosse levantado mediante a Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 48 pronta entrega da frota portuguesa ou a sua partida para o Brasil transportando a Família Real. Foi nestas circunstâncias que chegou a Lisboa um correio extraordinário remetido pelo nosso embaixador em Londres, Domingos de Sousa Coutinho. O correio era portador de uma notícia bem preocupante. Trazia a cópia de um artigo de fundo publicado no «Moniteur», órgão oficioso do governo francês, 12 de Novembro de 1807. Referindo-se à situação em que a Inglaterra deixava Portugal, declarava, abertamente, que o Imperador resolvera eliminar a Casa de Bragança: «…O príncipe Regente deste reino perde o seu trono, e perde-o influenciado pelas intrigas dos ingleses; perde-o por não ter querido apreender as mercadorias inglesas que estão em Lisboa. Que faz, portanto, a Inglaterra, esta sua aliada tão poderosa? Ela olha com indiferença para o que se passa em Portugal. Que fará ela, quando for tomado este reino? Ir-se-á assenhorear do Brasil? Não: se os ingleses fizerem esta tentativa, os católicos os expulsarão. A queda da Casa de Bragança ficará portanto sendo uma nova prova de que é inevitável a perda de qualquer que se ligar aos ingleses». Reproduzia, ainda, o Tratado de Fontainebleau e, obviamente, a intenção do Imperador de proceder ao desmembramento do território nacional «em função das conveniências da sua política europeia». Embora o artigo, ou parte dele, acima transcrito, seja da redacção do «Moniteur», nada de relevo ali se publicava sem o prévio beneplácito e consentimento do governo que ordenou, ou consentiu, a publicação do referido artigo, talvez pela suposição de que o exército já tinha entrado em Lisboa, por via das ordens terminantes que para isso se tinham dado a Junot, ou de não ser possível que de França, ou mesmo de Inglaterra, pudesse aquela folha chegar às mãos do Governo português, antes da chegada do general a Lisboa. Pelo menos, desde 21 de Novembro que se sabia em Lisboa qual a posição e progressão acerca do exército de Junot que, por essa altura, estava em marcha entre Vila Velha de Ródão e Abrantes. Precisamente naquele mesmo dia, perante o perigo que se avizinhava, Araújo de Azevedo dirige uma carta a D. João a sugerir que convocasse, sem demora, o Conselho de Estado. Desde logo, o Príncipe Regente incumbiu o Ministro de convocar o referido Conselho, sendo já com inteiro conhecimento dos termos do Tratado de Fontainebleau e da presença do exército francês em Abrantes, que os conselheiros se reuniram, pela última vez, na manhã de 24 de Novembro, no Palácio da Ajuda. Depois dos conselheiros terem tomado conhecimento de uma nota do embaixador Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 49 Strangford solicitando uma audiência a S. A. R. e de um ofício de Sir Sidney Smith, comandante da esquadra que bloqueava o porto, anunciando o tratamento hostil que praticaria se as disposições de Portugal não fossem amigáveis, deliberou-se que: «Pareceu aos Conselheiros de Estado que havendo-se esgotado todos os meios de negociação e não havendo esperança alguma discreta que por tais expedientes se removesse o perigo iminente que ameaça a existência da Monarquia, soberania e independência de S. A. R., achando-se entradas nelas tropas francesas, se não devia perder um só instante em acelerar o embarque de S. A. R. o Príncipe Regente Nosso Senhor e de toda a Real Família para o Brasil; Que em tais circunstâncias se devia responder a Lord Strangford participando-lhe a conferência que S. A. R. lhe concedia; Que ao ofício de Sir Sidney Smith haja de se responder significando-lhe as disposições de Sua Alteza Real a receber a esquadra inglesa nos seus portos e os seus desejos de que lhe haja de entrar quanto antes; Que actualmente as tropas que guarnecendo as se acham margens, fortalezas e baterias do Tejo hajam de se retirar daquelas posições e passarem a ocupar os sítios que S. A. R. lhes destinar, expedindo-se ordens aos governadores das torres e fortalezas para que hajam de franquear a entrada do porto, a todos os navios ingleses, assim de guerra como mercantes. Que resolvendo-se S. A.R. a passar para o Brasil deverá estabelecer-se um Conselho de Regência na forma que se tem praticado em ocorrências tais e nas ocasiões em que este Reino se tem achado sem legítimo soberano, devendo esta Regência, com os poderes régios que lhe forem delegados por S. A. R., ser composta das principais e de altas graduações militares que S. A. R. houver de eleger. Palácio de Nª. Sª da Ajuda, 24 de Novembro de 1807». Seguem-se as assinaturas dos conselheiros. A mudança da Corte para o Brasil não aparecia agora pela primeira vez, era uma ideia antiga e sempre renovada em épocas de crise política e de gravidade para a independência Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 50 nacional. A ideia não surgiu apenas a 24 de Novembro, quando o Conselho de Estado sancionou a transferência, era um processo que tinha vindo a amadurecer. Desde Agosto que os trabalhos nos estaleiros e no Arsenal estavam em intensa laboração, suscitando a curiosidade popular e alimentando rumores cada vez mais insistentes sobre a iminente partida. O facto de terem decorrido, somente, três dias entre a deliberação do Conselho de Estado e a saída da Corte, parece provar que a partir de determinado momento a situação se tornou irreversível. E mais, Araújo de Azevedo já tinha considerado, perspicaz como era, o «alcance proveitoso da ida do Príncipe da Beira, D. Pedro, para o Brasil, ainda antes da mudança dos restantes membros da Família Real, ida essa que factos ponderosos detiveram». No entanto, a fixação da Corte no Brasil foi sempre criticada pelo «partido francês» e, obviamente, pela Espanha e França. A este propósito referi, anteriormente, que Araújo era tido, ou rotulado de francófilo, mas ficou, então, explícito, qual era o “tipo” da sua francofilia. Araújo de Azevedo, nesta delicada situação, foi um grande propugnador da ideia e, pode considerar-se que, no seio do Gabinete, terá sido daqueles que mais influência tiveram na resolução do Príncipe Regente. Como já se referiu, os rumores sobre a próxima partida do Príncipe Regente circulavam há muito entre o povo de Lisboa, a movimentação atarefada na cidade, particularmente junto ao porto, onde era notória a acumulação de fardos e caixotes pertencentes à Corte e aos particulares que se preparavam para partir, não podia deixar de causar algum constrangimento. Não deixaria de ser algo dolorosa, particularmente num regime paternalista, como foi o nosso até ao advento do miguelismo, a separação do Príncipe, «amado por seus súbditos, do povo que o ama e o venera». Com efeito, a preocupação do Príncipe Regente não seria propriamente pela segurança do embarque que a progressão de Junot poderia pôr em perigo, mas antes as eventuais dificuldades que poderiam resultar dum amotinamento da população de Lisboa, tanto assim que a Família Real se manteve em Mafra até ao dia 27, tendo aproveitado os dias 24, 25 e 26 para preparar o seu embarque e de todos os elementos da Corte que a acompanhavam. Foi precisamente a 26 de Novembro, véspera do embarque, que o Príncipe Regente dava a conhecer, através da publicação do real decreto, a sua intenção de transferir a sede do Governo para o Rio de Janeiro: «Tendo procurado por todos os meios possíveis conservar a neutralidade, de que até agora têm gozado os meus fieis e amados vassalos, e apesar de exaurido o meu Real Erário, e de todos os mais sacrifícios, a que me tenho sujeitado, chegando ao excesso de fechar os portos dos meus reinos aos vassalos do meu amigo e leal aliado, o rei da Grã-Bretanha, Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 51 expondo o comércio dos meus vassalos à total ruína, e a sofrer por este motivo grave prejuízo nos rendimentos da minha Coroa: vejo que pelo interior do meu reino marcham tropas do Imperador dos franceses e rei de Itália, a quem eu me havia unido no continente, na persuasão de não ser mais inquietado, e que as mesmas se dirigem a esta capital; e querendo eu evitar as funestas consequências, que se podem seguir de uma defesa, que seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade, e capaz de acender mais a dissenção de umas tropas, que têm transitado por este reino, com o anúncio e promessa de não cometerem a menor hostilidade; conhecendo igualmente que elas se dirigem muito particularmente contra a minha Real Pessoa, e que os meus leais vassalos serão menos inquietados, ausentando-me eu deste reino...». Para dirigir o País e garantir a boa marcha da administração, o Príncipe nomeou uma Junta de Governadores, com nobres e magistrados da sua máxima confiança, nenhum deles, supunha, conotado com correntes da “francesia”, constituída pelo Marquês de Abrantes, tenente-general Francisco da Cunha e Menezes, principal da patriarcal de Lisboa, D. Francisco Rafael de Castro, ao qual foi também conferido o cargo de Regedor da Justiça, Pedro de Melo Breyner, que seria também Presidente do Real Erário no impedimento de Luiz Vasconcelos e Sousa, tenente-general D. Francisco Xavier de Noronha e, para substituir algum dos mencionados, o Conde de Castro Marim, Conde de Sampaio, D. Miguel Pereira Forjaz e João António Salter de Mendonça: «…Tendo por certo que os meus reinos, e povos, serão governados e regidos por maneira que a minha consciência seja descarregada, e eles governadores cumpram a sua obrigação, enquanto Deus permitir que eu esteja ausente desta capital, administrando a Justiça com imparcialidade, distribuindo os prémio e castigos conforme os merecimentos de cada um…». O embarque realizou-se a 27 de Novembro. Porém, as condições meteorológicas desfavoráveis não favoreciam a saída da barra à esquadra, causando natural ansiedade a bordo, temendo que os franceses chegassem de um momento para o outro e, apoderando-se das fortalezas que defendiam a barra, impedissem a «transmigração». Com a Família Real seguiam também António de Araújo de Azevedo, Rodrigo de Sousa Coutinho e outros que nos acontecimentos haviam desempenhado papeis de importância, membros da alta nobreza, religiosos, funcionários da Administração, servidores do Paço, todos com suas famílias e numerosa criadagem, num total calculado em cerca de 15.000 pessoas, de ambos os sexos e de todas as idades, valor que representava uma percentagem aparentemente insignificante da população. Grande parte dos embarcados era Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 52 proveniente das classes abastadas; tesouros de arte, móveis, livros, guarda-roupas e outros objectos de valor que acompanhavam os seus possuidores, tudo avaliado, ao tempo, em mais de 80 milhões de cruzados, fora os fardos e bagagens que não puderam ser carregados por falta espaço ou de tempo Era muita a gente que queria acompanhar o Príncipe ou, simplesmente, fugir do exército francês que se encontrava já às portas da cidade, mas nem todos que o desejavam fazer o conseguiram, quer por falta de recursos, quer devido à sobrelotação das embarcações. A esquadra régia, conforme comunicação dirigida pelo comando português ao almirante britânico, era constituída pelas naus «Príncipe Real», levando a bordo D. João com a rainhamãe, o Príncipe da Beira, D. Pedro de Alcântara, filho primogénito, e o Infante de Espanha D. Pedro Carlos, que depois foi seu genro; a «Rainha de Portugal», transportando a seu bordo a princesa D. Carlota Joaquina e o resto dos seus filhos; a «Príncipe do Brasil», que conduzia as princesas, irmãs da rainha D. Maria I. A Corte e os Ministros de Estado iam a bordo das diferentes naus, que eram a «Conde D. Henrique», a «Medusa», «Afonso de Albuquerque», «D. João de Castro» e a «Martim de Freitas». Três fragatas, quatro lugres e várias embarcações de transporte, cerca de quarenta, completavam a frota. A 28 de Novembro, a esquadra continuava fundeada porque o tempo e o mar agitado impediam a partida. No dia seguinte, ao amanhecer, o tempo mudava e o vento estava também de feição permitindo à esquadra levantar ferro e sair a barra, «recebendo pelo meio dia, as últimas saudações das fortalezas, que guarneciam a entrada da barra e defendiam a cidade de Lisboa». Quando pelas quatro horas da tarde a esquadra portuguesa passou junto da esquadra britânica, foi saudada com muitos vivas e salvas de artilharia; Sir Sidney Smith foi a bordo apresentar os seus respeitos ao Príncipe Regente e oferecer-lhe para o acompanharem na viagem as quatro naus de linha «Marlborough», «Monarch», «Bedford» e «London». Às oito horas da manhã do dia seguinte àquele em que saíram os navios, Junot surgia em Lisboa comandando a vanguarda das tropas francesas «que ainda terão podido vê-las afastando-se no horizonte», tendo o general expressado ao Imperador a sua pena por não ter podido cumprir a missão de impedir a partida do Príncipe e, certamente, a sua prisão. Em conclusão, pode dizer-se que a ocupação francesa não era suficiente para a posse de Portugal, porquanto a legitimidade nacional era inerente ao futuro D. João VI que a levou consigo para o Brasil. Não se tratou de uma retirada precipitada e muito menos de uma “fuga”, como a historiografia liberal pretendeu divulgar e, nos meus primeiros tempos de estudo, vi Carlos Jaca Invasões Francesas Parte II 53 estampada em alguns compêndios. O Príncipe Regente, enquanto pôde, negociou e cedeu, esgotando todos os meios que evitassem a ocupação do País, já que a resistência militar, por todos os motivos, se revelava impossível. D. João não «fugiu» para o Brasil: «…Tenho resolvido, em benefício dos mesmos meus vassalos, passar com a Rainha Minha Senhora e Mãe, e com toda a Real Família para os Estados da América, e estabelecer-me na cidade do Rio de Janeiro até à paz geral». A mudança de capital aparecia como medida de recurso, de emergência e temporária, sendo no caso presente a solução mais aconselhável prudente e mais de acordo com o interesse nacional; terá sido o meio mais eficaz de preservar a dignidade da Coroa e com ela a liberdade política conservando-se, assim, o direito de intervenção nos sucessos internacionais. E mais, a permanência da Corte em terras brasileiras, durante cerca de 15 anos, foi um factor decisivo na instauração da Monarquia Constitucional, vigente até à proclamação da República em 1910, bem como ter aberto ao Brasil as portas da independência. Bibliografia consultada. A – Manuscritos: «Cartas do Conde de Vila Verde». Secção B. O. – Caixa nº 7. Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga. «Copiador Diplomático» – Secção Barca Oliveira – B. O. 959. Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga. B – Obras Impressas: Barreiros, Coronel José Baptista – «Preliminares da 1ª Invasão Francesa em Portugal». 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