Aproximações entre Friedrich Nietzsche, Theodor Adorno e Max

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Aproximações
entre Friedrich Nietzsche,
Theodor Adorno e Max Horkheimer
Origem da Tragédia versus
Dialética do Esclarecimento
Olmaro Paulo Mass*
Resumo: O artigo estabelece relação entre Nietzsche e Adorno/Horkheimer.
Nietzsche na Origem da Tragédia retorna à antiguidade clássica para localizar as origens do “desencantamento” do mundo provocado pelos iluministas. Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento, a partir do
conceito de esclarecimento que não pode ser reduzido ao século XVIII,
procuram compreender as raízes da racionalidade moderna e o desencanto da promessa iluminista de promover a emancipação do ser humano.
Palavras-chave: Esclarecimento. Vontade de poder. Desencantamento
do mundo. Racionalidade instrumental.
A arte é nada mais que a arte!
Nietzsche
* Mestrando em filosofia na PUCRS. Docente-monitor no IFIBE.
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 38, jan./jun. 2011
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Apolo e Dionísio: veracidade e esclarecimento
Para Nietzsche, o ser humano é instigado por sentimentos entre o
prazer e a alegria, mas também, um ser de angústias e de sofrimentos.
Essa inquietude revela aspectos da existência da vida que ultrapassam
a realidade empírica, ética ou moral em vista de promover um elo de
conexão entre vir-a-ser e vontade de poder, de querer, de ser de cada
indivíduo, segundo Nietzsche. Cabe relacionar o elemento Apolíneo e
Dionisíaco com o perspectivismo nietzschiano em relação “à vontade de
poder”. Pode ser resumido na seguinte frase: “O ser humano é o seu vir-a-ser no dever-ser da sua própria superação” (OLIVEIRA, 1999, p. 6).
Essa vontade de poder, intrínseca à sua existência, faz com que o indivíduo de maneira ativa, reativa e construtiva, procure delinear seu próprio
modo de reagir frente ao estado em que se encontra, qualificando sua
própria natureza, como já dizia Nietzsche em seus fragmentos: “a arte
surge no homem como uma força da natureza. A arte e nada mais do
que a arte! Ela é a grande possibilidade da vida, a grande aliciadora da
vida, o grande estimulante da vida” (NIETZSCHE, 1983, p. 28). Ou em
outras palavras, a arte é expressão da própria natureza, da qual todos os
indivíduos fazem parte. Ela possibilita ao ser humano perceber a tensão
contínua do estar aí com o outro e o seu devir-a-ser. Nietzsche procura
novas respostas, perspectivas, para fazer uma nova interpretação e compreensão da realidade. A interpretação deve se distinguir dos valores
metafísicos e da moralidade cristã que já estava em decadência com o
advento do Iluminismo:
Para aquele que sofre é necessário uma esperança que a realidade
não possa contradizer – e da qual satisfação alguma os consiga
afastar uma esperança de além-túmulo. É precisamente por causa
desta sua capacidade de entreter os desgraçados, que a esperança
era considerada entre os gregos como o mal entre os males, o
mais astucioso entre todos: deixavam-na no fundo da caixa de
Pandora (NIETZSCHE, 2000, p. 56).
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O ser humano é natureza e faz parte dela como partícipe, como integrante. Segundo Casanova, “as pulsões artísticas da natureza”,1 funcionam como princípio de determinação da dinâmica do movimento da auto-realização múltipla da atividade criadora da natureza. Por isso, “Apolo
e Dionísio são pulsões artísticas da natureza: eles são os princípios de
determinação tanto do instante criador quanto do acontecimento originário do real” (CASANOVA, 2003, p. 15).
Na tragédia grega havia uma unidade entre o pensamento e a vida,
onde o ser humano ao perceber a si mesmo como sujeito autônomo, livre
e com condições favoráveis, colocava-se a caminho, num processo de devir-a-ser, com naturalidade. Os dois instintos, um moderado (Apolo) e outro
impulsivo (Dionísio), possibilitam ao ser humano a vir-a-ser em uma realidade de sonhos e de embriaguez. Nietzsche escreve: “o homem dotado de
sensibilidade artística comporta-se para com a realidade do sonho da mesma maneira que o filósofo se comporta perante a realidade da existência”
(NIETZSCHE, 2003, p. 37). Maria Pinto, parafraseando Nietzsche, diz que
a arte é apresentada como a expressão da atividade metafísica do homem,
a partir da qual “a ciência e o saber são examinados na óptica do artista e
a arte na óptica da vida” (PINTO, 1987, p. 34). Nietzsche percebe que o
artista tem uma sensibilidade, uma atenção especial, que lhe possibilita ver
a realidade da vida em suas contrariedades. Para o ser humano se afirmar
precisa tirar os véus que encobrem a vida na sua naturalidade.
Na passagem pela alternância da criação ou destruição, da alegria e do
sofrimento, do bem e do mal, para Nietzsche, não se pode mais procurar
um ideal perfeito do mundo inteligível dos filósofos antigos e medievais.
Propõe que a passagem vincula-se aos vigores da vida, na criação da vontade de poder que se manifesta incessantemente no ser humano. Crítico à história da filosofia, faz alguns questionamentos em relação à ciência moderna.
A própria ciência, sim, a nossa ciência, encarada como sintoma de
vida, que significa ela, afinal? Para quê, ou antes, de que nos vem toda
a ciência? Pois quê? O espírito científico será mais do que recreio e
1 Casanova num dos textos de seu livro sobre o conceito de vida em o Nascimento da
Tragédia, usa “pulsões artísticas da natureza” ao referir-se a Apolo e Dionísio. “A junção do termo ‘pulsão', como o adjetivo 'artístico', torna explícito o papel estrutural
que as duas divindades gregas desempenham junto à integridade do fenômeno artístico” (CASANOVA, 2003, p. 14).
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distração em frente do pessimismo? Mais do que um expediente engenhoso contra – “a verdade”? Ou, para falar moralmente, um análogo do medo e da hipocrisia? Ou, para falar imoralmente, da astúcia?
Ai, Sócrates, Sócrates: era então esse o “teu” segredo? Ó misterioso
ironista: era essa talvez a tua ironia? (NIETZSCHE, 1983, p. 3).
Nietzsche questiona o modelo de pensamento que surge com Sócrates
e Platão. Estes negaram a vida em seu fluxo contínuo de transformação,2
mudança constante. Nietzsche afirma ser necessário contemplar e admirar o efeito e o resultado integral de uma verdadeira tragédia:
No efeito de conjunto da tragédia, o elemento dionisíaco readquire o predomínio; ela consolida-se por um acordo cuja harmonia
nunca poderá ter saído da esfera da arte apolínea. E assim se revela a verdadeira natureza da ilusão apolínea cujo fim é manter
sempre um véu, durante a tragédia, sobre a autêntica ação dionisíaca (NIETZSCHE, 1984, p. 135).
A relação entre o espírito apolíneo e o instinto dionisíaco possibilita o equilíbrio do ser humano na sua diversidade, na diferença. Pucci
desenvolve essa questão da seguinte forma:
Ao analisar a origem da tragédia grega, Nietzsche observa que a
criação e o desenvolvimento da arte resultam de seu duplo caráter:
ela é, ao mesmo tempo, apolínea e dionisíaca. Apolo é o deus do
sonho, Dioniso, o da embriaguês. Com Apolo, a aparência, cheia
de beleza, do mundo do sonho, é a condição primeira de todas as
artes plásticas e uma parte essencial da poesia. O artista examina
minuciosamente os sonhos e consegue descobrir nessa aparência
a verdadeira interpretação da vida. Com a ajuda de tais imagens
ele se exercita para tomar contato com a vida (PUCCI, 2001, p. 5).
Apolo, o deus da faculdade e da competência criadora de formas,
cria imagens no horizonte do imaginário mais profundo do ser humano, que se expressa numa dimensão estética, na possibilidade de ser in2 Influência da filosofia heraclitiana: a transformação, as modificações, que existem no cosmo surgem porque nada é estático, mas tudo se modifica por causa da luta dos contrários.
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terpretado por meio de indícios da aparência, ou melhor, no feitio da
exterioridade.3 Mas essa relação entre artista, fenômeno e aparência,
é expressa na arte a partir de um impulso cego, desejo de vontade de
potência. A realidade em si é impossível de ser conhecida porque ela se
mantém na sua superficialidade através do universo dos sonhos. Nietzsche
caracteriza o mundo estético do sonho como uma arte figurativa.
Sonho é a força artística que se projeta em imagens e produz o cenário das formas e figuras. Apolo é o nome grego para a faculdade
de sonhar; é o princípio de luz, que faz surgir o mundo a partir
do caos originário; é o princípio ordenador que, tendo domado as
forças cegas da natureza, submete-as a uma regra. Símbolo de toda
aparência, de toda energia plástica, que se expressa em formas individuais, Apolo é o “magnífico quadro divino do principium individuationis”. Dá forma às coisas, delimitando-as com contornos
precisos, fixando seu caráter distintivo e determinando, no conjunto, sua função, seu sentido individual. Modelando o movimento de todo elemento vital, imprimindo a cada um a cadência – a
forma do tempo – ele impõe ao devir uma lei, uma medida. Apolo
é também o deus da serenidade que, tendo superado o terror instintivo em face da vida, domina-a com um olhar lúcido e sereno:
“Esse é o verdadeiro propósito estético de Apolo, sob cujo nome
reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que
a cada instante tornam a existência digna de ser vivida e nos incitam a viver o instante seguinte” (DIAS apud SANTOS, 2008, p. 8).
As imagens que refletem o mundo da vida se realizam no contraste
entre o sonho e a realidade da vida concreta. O artista carrega dentro de
si a contrariedade da vida a partir de imagens agradáveis entre o sombrio
e o sinistro. As contrariedades do acaso possibilitam sonhar e prolongar
com ponderação os momentos letárgicos da vida.
3 Para Viviane dos Santos “Esta relação que se verifica entre o artista e a aparência é expressa na relação que se verifica entre fenômeno e Vontade (de viver), de Schopenhauer.
Para esse filósofo a Vontade não é algo consciente, mas um impulso cego, a coisa-em-si,
o conteúdo interno que move o mundo, sua essência” (SANTOS, 2008, p. 5).
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Apolo4 revela o mundo dos sonhos e anseios, condição necessária
para descobrir a essência da vida, ou seja, o indispensável para viver a
vida e a forma de como interpretá-la. Para Casanova, Apolo é o deus
da conformação que possibilita através do processo artístico transpor o
mundo “fenomênico para uma linguagem perceptível” da realidade. Vejamos: “entende antes de mais nada o deus que desvela de modo oracular
a verdade sobre o destino dos homens, que antecipa o futuro a partir da
vigência do presente, que indica através da força de sua aparição o que o
ente propriamente é” (CASANOVA, 2003, p. 27).
Essa imagem do imaginário estético que o ser humano carrega em
si, segundo Pucci, “não são apenas imagens agradáveis e deliciosas que
o artista descobre dentro de si; também o sombrio, o triste, o sinistro, as
contrariedades, as expectativas, tudo isso se desenvolve sob seu olhar”
(2001, p. 5). Radiante como o sol, o seu olhar é penetrante e desafiante,
impulsiona o desejável e também o indesejável. O artista tem uma percepção conatural de observar os sonhos para posteriormente ressalvar
na aparência a verdadeira interpretação da vida. As imagens possibilitam
a prática do exercício para descobrir e proporcionar o contato com a
vida. Apolo permite expressar e aproximar-se de uma interpretação mais
coerente dos fatos e ações praticadas pelos indivíduos:
Apolo sintetiza em si, ao mesmo tempo, a arte de criar e de decifrar enigmas. Mais ainda: nele encontramos, intimamente vinculado às faculdades anteriores, uma outra linha delicada, que é
a extrema ponderação, a livre serenidade nas emoções mais violentas, a serena sabedoria nas ações da vida (PUCCI, 2001, p. 5).
Assim sendo, Apolo, é aquele que possibilita um equilíbrio e harmonia entre os desejos, não suprindo as pulsões humanas, mas ajudando
a torná-las ser mais leves e fáceis de serem controladas e relacionais. Em
outras palavras, auxiliava na purificação da alma de certas paixões desastrosas. Apolo representa também a divinização do indivíduo frente às
exigências éticas e morais que devem ser observadas.
4 Segundo Casanova, “Apolo é o deus que reina sobre o oráculo de Delphos e que revela
de maneira específica a verdade acerca do mundo” (CASANOVA, 2003, p. 27).
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Nietzsche, por sua vez, reconhece que é na festa dionisíaca5 que é
possível ao ser humano reencontrar a sua natureza e celebrar a vida com
muito mais intensidade, liberdade e desprendimento das tutelas do dia
a dia. Escreve Nietzsche: “O homem deixa de ser artista para ser obra
de arte: o poderio estético de toda a natureza, agora ao serviço da mais
alta beatitude e da mais nobre satisfação do Uno primordial, revela-se
neste transe, sob o frêmito da embriaguez” (NIETZSCHE, 2001, p. 40).
Portanto, consegue atingir um estágio superior, tornando-se ele próprio
obra de arte, reconciliando-se com uma força afirmativa e criadora que
antes estava somente representada na obra de arte ou poesia. Segundo
Bruno, este estágio representa o excesso de “vitalidade presente na renovação primaveril, aquela que alegremente brota em toda a natureza,
desperta a vontade de viver no indivíduo subjetivo, convida-o insistentemente a aniquilar-se no total esquecimento de si mesmo, no mergulho
absoluto na unidade cósmica” (PUCCI, 2001, p. 5). Ao desvincularem-se
das amarras da cultura opressora, os indivíduos passam a usufruir do
encanto dos sonhos manifestados somente na embriaguez.
O espírito dionisíaco se exprime como instinto de aniquilação do
mundo da aparência e leva à ruptura da individualização para desvelar o
que é mais precioso na vida, muitas vezes oculto, a fim de reconhecer-se e
identificar-se como parte integrante da natureza. Segundo, Haar “a Tragédia era para os gregos como que um tonificante” (HAAR, 2000, p. 76). Em
outras palavras, superar as angústias dos horrores da existência humana,
expressadas na arte, mas suprimidas pela moral institucionalizada “daquele
que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas
que vive, quer vivê-lo, do conhecer trágico” (NIETZSCHE, 1983, p. 28).
Para Nietzsche, somos moldados e vamos nos aperfeiçoando nas
dimensões do prazer e da dor. Estas fazem parte da natureza humana e,
portanto, não devem ser negadas, mas recebidas e vividas com entusias5 Para Viviane dos Santos, em relação aos cultos dionisíacos “há uma pequena diferenciação a ser feita, pois havia gregos Dionisíacos e bárbaros Dionisíacos. Os bárbaros
Dionisíacos cultuavam de modo mais intenso e rústico, onde 'o centro dessas celebrações consistia numa desenfreada licença sexual, cujas ondas sobre passavam toda
a vida familiar e suas venerandas convenções'. Já os gregos Dionisíacos iam contra
essas atividades orgiásticas, uma vez que, a partir da figura de Apolo, que era a maior
expressão do 'conhece-te a ti mesmo', que tinha como maior papel 'aumentar a espiritualidade e purificar a alma de certas paixões desastrosas' deixando desta forma o lado
orgiástico dos cultos naturais a Dionísio” (SANTOS, 2008, p. 7).
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mo. A existência caracteriza-se pela plenitude de um devir a ser, vontade
de potência, que não anula o trágico da vida. Segundo Pinto, “Apolo atua
de uma forma indireta, ação simbolizada no arco cuja flecha fere à distância [...]. Dionísio age de um modelo indireto, através dos ritos do seu
rito de culto: leva os seguidores a entrar na loucura coletiva” (PINTO,
1987, p. 36). Portanto, negar a condição humana é negar a sua natureza,
é distanciar-se de um relacionamento maduro e saudável.
O indivíduo é envolvido de tal forma que provoca uma ruptura
com sua identidade individual, porque a própria existência está subordinada a um perpétuo devir,6 selado por um destino com o qual está
comprometido. O desejo de ser, segundo Haar, exige a necessidade do
devir, “expressão de uma vontade sofredora, que quer imprimir sobre
todas as coisas, como o ferro em brasa, a marca indelével de seu próprio
sofrimento” (HAAR, 2000, p. 77). O ser humano esclarecido é aquele que regressa às suas origens vitais, embora pareça que esteja distante e indiferente
da reconciliação entre o sonho e a embriaguez. Segundo Adilson Santos, “se
a existência e o mundo estão subordinados a um perpétuo devir, o homem
deve tomar para si o destino com o qual está comprometido” (SANTOS,
2006, p. 7). Portanto, é o gosto pela vida que justifica e afirma o sofrimento como ato e potência.
Somente a maravilhosa mistura e duplicidade dos afetos do entusiasta dionisíaco lembram – como um remédio lembra remédios
letais – aquele fenômeno, segundo o qual os sofrimentos despertam
o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos. Da mais
elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento anelante por uma
perda irreparável (NIETZSCHE apud SANTOS, 2006, p. 7).
Segundo Maria Pinto, a “tragédia resulta da conciliação dos antagonismos [...], Nietzsche encontra neles os princípios metafísicos do
mundo e vê a arte como simultaneamente cósmico e como via de acesso
à verdadeira realidade” (PINTO, 1987, p. 35).
6 Segundo Nythamar, a própria imposição do caráter do ser ao devir constitui, de acordo com Nietzsche, a suprema vontade de poder. "[...] Nisto consiste o amor fati (WM
§1041; KSA 13: 492-493; EH II,10), a auto-afirmação dionisíaca do homem que quer sua
vida e o mundo inteiro acontecendo exatamente como tem sido – o eterno retorno
do mesmo. O destino do homem reside, afinal, no seu caráter – e vice-versa" (OLIVEIRA, 1999, p. 6).
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As leituras que Nietzsche fez dos pré-socráticos serviram de base
para fundamentar as suas críticas à modernidade e ao pensamento cristão.
Para Nietzsche, a visão de homem e de sociedade do platonismo cristianizado jamais existiu e nunca existirá na realidade concreta dos indivíduos.
O homem criou uma imagem ilusória de si mesmo, esganando-se.
O platonismo se cristianizou por meio da religião tornando-se um niilismo negativo. Ou seja, negação da vida terrena em nome do paraíso no
céu. O niilismo platônico, o cristão e sociedade moderna, negaram o devir
do homem na sua possibilidade de ser e agir. Criaram uma ilusão e uma
imagem idealizada do ser humano. Nietzsche se opõe às filosofias idealistas,
plantonistas e cristãs que contribuíram para a fragmentação do ser humano e seu distanciamento da realidade. Segundo Kellner, Sócrates foi para
Nietzsche mais que um símbolo de decadência da cultura grega, foi de “atrofia dos instintos elementares da vida, que veio a dominar o corpo e as paixões
humanas” (KELLNER, 2000, p. 15), mas se constituiu num processo que se
intensificou com o passar dos séculos, desembocando na era moderna. Ou
seja, “criou as origens do racionalismo moderno e do otimismo iluminista,
possibilitando o avanço rumo ao Esclarecimento” (KELLNER, 2000, p. 15).
Para Nietzsche, a concepção de ser humano que vigorou no mundo
ocidental, foi conduzida por uma racionalidade abstrata do mundo da
vida e da condição do ser dos indivíduos, negando suas potencialidades
e fragilidades por um mundo que se consolidou na esfera religiosa dos
bons costumes. Vejamos uma citação em A gaia ciência para ver essa
questão com mais clareza:
Somente enquanto criadores! – Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforço: compreender que importa muito
mais como as coisas se chamam do que aquilo que são. A reputação,
o nome e a aparência, o peso e a medida habituais de uma coisa, o
modo como é vista – quase sempre uma arbitrariedade e um erro em
sua origem, jogados sobre as coisas como uma roupagem totalmente estranha à sua natureza e mesmo à sua pele –, mediante a crença
que as pessoas neles tiveram, incrementada de geração em geração,
gradualmente se enraízam e encravaram na coisa, por assim dizer,
tornando-se o seu próprio corpo: a aparência inicial termina quase
sempre por tornar-se essência e atua como essência! Que tolo acharia
que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para
destruir o mundo tido por essencial, a chamada “realidade”? Somente enquanto criadores podemos destruir! (NIETZSCHE, 2001, p. 96).
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Com o advento da modernidade e com o conhecimento científico,
os valores antigos começaram a entrar em crise. O paraíso anunciado
pelo cristianismo começa a entrar em colapso e o ser humano passa a
querer que a felicidade se torne realidade aqui na terra. É neste momento, segundo Nietzsche, que ocorre a morte de Deus. Enquanto a ciência
moderna vai substituindo Deus, vai perdendo seu espaço e sua razão
de ser. Mas a ciência endeusou-se a si mesma, tornando-se uma nova
forma de oprimir o ser humano.
Para Nietzsche, o homem deve ter vontade de poder e a faculdade
de transformar e valorar o mundo existente. Segundo Deleuze, é pela
vontade de poder que se busca superar o niilismo vazio e passivo:
Este princípio não significa (pelo menos não significa em primeiro
lugar) que a vontade queira o poder ou deseje dominar. Enquanto
interpretarmos a vontade de poder no sentido de “desejo dominar”, fazêmo-la forçosamente depender de valores estabelecidos,
os únicos capazes de determinar quem deve ser “reconhecido”
como o mais poderoso neste ou naquele caso, neste ou naquele
conflito. Deste modo, ficamos sem conhecer a natureza da vontade de poder como princípio plástico de todas as nossas avaliações, como princípio escondido para a criação de valores não
reconhecidos. A vontade de poder, diz Nietzsche, não consiste em
cobiçar nem sequer em tomar, mas em criar e em dar. O poder,
como vontade de poder, não é o que a vontade quer, mas aquilo
que quer a vontade (Dionísio em pessoa) (DELEUZE, 1981, p. 22).
2. Adorno e Horkheimer e a Dialética do Esclarecimento
Se Apolo é o princípio ordenador, aquele que é capaz de domesticar
as forças cegas da natureza, da existência humana, Dionísio, é aquele
que possibilita aos indivíduos sair de suas amarras e voltar-se ao desejo pela vida, o conceito de esclarecimento não pode ser um protótipo
da ciência moderna. A pergunta inicial que cabe fazer é: o que Adorno
e Horkheimer compreendem por Dialética do Esclarecimento e como
eles desenvolvem a tese de que o conceito de esclarecimento não pode
ser reduzido a fatos acontecidos somente na modernidade? Argumen96
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tam que mito e esclarecimento, antes de manter uma oposição de superação, como diziam os filósofos iluministas, têm uma relação dialética
de aproximação, de modo que o mito já comporta algo da racionalidade autoconservadora e o esclarecimento moderno possui resquícios do
conhecimento mítico. Recorrendo à história os autores mostram como,
desde o princípio, mito e esclarecimento têm uma íntima relação e se
aproximam.
O que interessa, nas próprias palavras de Adorno e Horkheimer, é
“[...] descobrir por que a humanidade em vez de entrar num estado verdadeiramente humano, está se afundando numa nova espécie de barbárie”
(ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 11). Como Adorno e Horkheimer
em suas discussões chegam a problematizar que a racionalidade, o pensamento, está em contínuo progresso e que o mito já era protótipo do
esclarecimento moderno a partir do temor e da sobrevivência? Para eles,
o conceito de esclarecimento não pode ser reduzido às luzes do século
XVIII, como na resposta à pergunta: “o que é esclarecimento” da filosofia
kantiana. O texto “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento?” escrito
por Immanuel Kant, em 1783, seis anos antes da Revolução Francesa, diz:
Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro
indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a
causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta
de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de
outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento (KANT, 1974, p. 100).
Kant diz que o iluminismo é a saída do ser humano da sua imaturidade intelectual sendo que essa imaturidade, para ele, significa a incapacidade da pessoa servir-se do próprio entendimento, de sua razão,
para buscar a emancipação política e social e construir-se como sujeito
autônomo. Contrapondo-se à ideia de Kant, de reduzir o termo à época
das luzes, para Adorno e Horkheimer já havia resquícios em toda a história ocidental a tentativa de explicar os acontecimentos da realidade por
meio da linguagem mítica. Observa-se
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O termo é usado para designar o processo de “desencantamento
do Mundo”, no qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida, à qual atribuem poderes ocultos para explicar
seu desamparo em face dela. [...] É o processo pelo qual, ao longo
da história, os homens se libertam das potências míticas da natureza (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 7-8).
O desencantamento moderno teve seu germe na natureza do mito.
A forma mítica não deixa de ser conhecimento, porque já procurava esclarecer fatos, elucidar conceitos, sendo adjacente da racionalidade dos
fins. Portanto, tanto o potencial mítico de conhecimento quanto a ilustração do conhecimento moderno, que se definem em uma nova roupagem, estão ligados a um processo histórico pelo qual os homens buscam
conhecer-se e libertar-se de uma natureza ainda desconhecida. O esclarecimento (Afklärung) surge como uma reação ao medo. Por isso,
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens e de
investi-los na posição de senhores. [...] o programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver
os mitos e substituir a imaginação pelo saber (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 17).
Considerações finais
A Teoria Crítica, amplo movimento filosófico da escola de Frankfurt, em que Adorno e Horkheimer foram protagonistas, tinha por objetivo realizar uma análise da realidade da sociedade e seu sistema vigente.
Os autores auxiliam a compreensão do motivo que a humanidade, diante
da promessa iluminista em fazer com que o homem pudesse se libertar
dos problemas, adentrou em uma nova espécie de barbárie. Adorno e
Horkheimer perceberam que “[...] os mitos que tombam como vítima
do iluminismo já eram, por sua vez, seu próprio produto” (ADORNO;
HORKHEIMER, 2006, p. 20). Para os autores, o homem, ao superar o
seu próprio limite, sempre ostenta o desejo e a vontade de vencer, mesmo que seja a qualquer custo. É o processo dialético que se alongou na
história. O esclarecimento reverte-se numa nova mitologia, assumiu o
mesmo princípio do mito, o de dominar.
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Um encontro entre Adorno e Horkheimer e Nietzsche, segundo Silva,
“está na volta à antiguidade clássica” ao buscarem compreender a constituição do autodesenvolvimento do iluminismo: “um fenômeno que perpassa
toda a história da racionalidade ocidental [...], cuja preocupação fundamental está em examinar as várias formas de dominação assumidas pela
razão” (SILVA, 1999, p. 43). Uma das preocupações que ocorreu ao longo
da civilização humana foi a procura pelo reconhecimento.7 Apoderar-se e
assenhorear-se da natureza ainda desconhecida para exercer um domínio
de calculabilidade sobre ela teve por objetivo atingir resultados satisfatórios. Essa mescla pode ser percebida ao longo da história, tendo suas raízes
no desenvolvimento do pensamento ocidental:
Se o retorno de Nietzsche à Grécia pré-socrática tem por objetivo
buscar um parâmetro para criticar a modernidade, a qual foi inaugurada com o socratismo, para os frankfurtianos o retorno a Ulisses
é uma forma metafórica de redescrever o iluminismo e a constituição da subjetividade moderna, tomando-os como luta contra os
instintos e subordinação deste à razão (SILVA, 1999, p. 44).
Ulisses e o Iluminismo se entrelaçam com a mesma finalidade:
dominar. A necessidade básica, tanto na mitologia quanto do esclarecimento moderno, está na “sobrevivência, autoconservação e medo”
(MATOS, 1993, p. 155). Ou seja, “no sentido mais amplo do progresso
do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de
livrar os homens e de investi-los na posição de senhores (ADORNO;
HORKHEIMER, 2006, p. 17) e torná-los iluminados e aptos para o domínio de si e da natureza. Portanto, o Iluminismo se define por essa luta
contra todo que tipo de superstição, a magia através da razão. Uma luta
entrelaçada com a noção de progresso.
7 O mundo homérico já é a tentativa de rompimento e desmitologização. Podemos ver
uma aproximação entre Adorno e Horkheimer e Nietzsche nesta citação: “O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser
um relato, para se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma representação dos
acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia. Esse elemento
teórico do ritual tornou-se autônomo nas primeiras epopeias dos povos. O lugar dos
espíritos e demônios locais foi tomado pelo céu e sua hierarquia; o lugar das práticas de
conjuração do feiticeiro e da tribo” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 20)
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