BOLETIM CIENTÍFICO A INSERÇÃO CLÍNICA DO MITO Waldemar Zusman Ao descobrir o segredo da decifração dos sonhos Freud abriu num só gesto inúmeras outras áreas correlatas da vida mental que têm algo em comum com os processos oníricos. A investigação psicanalítica dos primeiros tempos espraiava-se por todos os campos da cultura e descobria em todas as áreas de expressão do fenômeno mental aqueles elementos básicos nos quais a clínica psicanalítica buscava a confirmação de seus achados. Neste sentido a Mitologia ocupou desde cedo um papel de especial significação. Freud se valeu dos Mitos de Édipo e de Narciso para se referir a algumas das conjunções constantes básicas do desenvolvimento emocional do ser humano. Todos os discípulos de Freud destes primeiros tempos, pelo menos os mais significativos, faziam amplas incursões no terreno da Mitologia onde os achados se confirmavam e a doutrina se enriquecia pela aquisição de novas perspectivas. Já em 1897 quando escrevia a Fliess comunicando os descobrimentos inquietantes de sua auto análise (seus desejos incestuosos e parricidas) Freud recorreu ao drama de Sófocles para melhor falar da universalidade de seu achado. Em seus tratamentos analíticos, informa Jones, Freud tomava diversos exemplos da mitologia para ilustrar a interpretação dos problemas que abordava. Abraham em seu minucioso ensaio, de 1909 intitulado Sonhos e Mitos, deixa bem claro que aquelas mesmas leis que regem a construção do sonho - Condensação, Deslocamento e Simbolização - valem de modo igual para o fenômeno mítico. Até mesmo a Elaboração Secundária de que dependem os arremates finais do Sonho tem um papel definido na construção das múItiplas versões de cada Mito. O elemento inconfundível e classicamente admirado que estabelece a distinção entre Sonhos e Mitos, é que estes são do domínio coletivo. Os Mitos são os sonhos da humanidade. Há outras características diferenciais como a evanescência dos sonhos e a permanência dos Mitos, a individualidade dos sonhos e a universalidade dos Mitos, que repetem a essência de seus temas em todas as culturas Bion em sua famosa Grade põe os Mitos na mesma fileira dos Sonhos e dos Pensamentos Oníricos. Apesar deste posicionamento nivelador e das 1 varias similitudes ~a assinaladas, os Mitos têm em relação aos Sonhos a privilegiada característica de ocupar um espaço intermediário entre o fenômeno onírico e o discurso lógico, entre o Processo Primário e o Processo Secundário, de cada um dos quais retém algumas características. Esse lugar, esse Espaço Mítico, e a área para que confluem todos os fenômenos humanos que não se situam de modo preciso nem no mundo interno, nem no externo da cultura, corresponde, talvez, ao espaço do brincar de Winnicott. E, provavelmente, a área de maior extensão de nossa existência. A Psicanálise se move no Espaço Mítico. O material que os pacientes nos comunicam são formas historicizadas de mitos que se degradaram na perspectiva temporo-espacial. Thorner, no último número do International Journal of Psycho-Analysis (Vol. 62, Part 1), no trabalho intitulado The Deslre for Knowledge, assinala: "as teorias psicanalíticas consistem na narrativa de eventos particulares, que contém um padrão aplicável a outros eventos de configuração similar. Estas condições são satisfeitas nos Mitos, cuja significação para a vida emocional do ser humano e coisa provada. Seu verdadeiro valor não deriva de sua antiguidade, é sua antiguidade que deriva do seu conteúdo de verdade. Tal como as teorias cientificas os Mitos podem ser usados para o estudo de novos eventos. Isto corresponde à predição de eventos naturais baseando-se numa teoria existente. As interpretações do mito conduzem a novas abstrações que se abrem à verificação da observação psicanalítica. A teoria psicanalítica central é o mito de Édipo". O Espaço Mítico se recorta e se diferencia do espaço ordinário por manifestações características. Assim é que a moldura que envolve o quadro, o pedestal que sustenta a estatua, o foco de luz que ilumina o palco, criam, cada um a seu modo, uma zona de transfiguração para o fenômeno que ali tem lugar. Creio que o setting psicanalítico cumpre idênticas funções, isto e, instala e recorta do espaço comum uma área na qual vai se dar uma transfiguração: a transformação de um relato histórico, uma reportagem, numa narrativa mítica. Esta transformação decorre da interpretação transferencial, que altera as circunstancias temporais e espaciais do episodia narrado pelo paciente. Posto no "aqui e agora" o episodio narrado per de sua inserção histórica original, resulta destemporalizado e desespacializado e fica referido ao analista. Esta referência ao analista que é a essência do fenômeno 2 transferencial decorre de uma modificação na identidade de um dos protagonistas do episodio narrado. O analista diz: "este sou eu" Um episodio clínico de pequena extensão basta para ilustrar estas operações assinaladas, que promovem o Giro Mítico do material. O paciente começa a sessão dizendo que não tinha sido fácil vir hoje ao tratamento. A vontade de ficar em casa era enorme. Fica em silêncio por alguns minutos e depois recomeça a falar. – Fui ontem a um restaurante para jantar e me arrependi. Antes tivesse ficado em casa e feito eu mesmo minha comida. Era um desses restaurantes recomendados, a gente vai pensando que e bom e se dá mal. Já não falo da comida, que não era lá essas coisas. Pior mesmo foi o garçom, um sujeito antipático que me deixou mofando na mesa enquanto conversava fiado com outros fregueses. Saí de lá irritado. Lá eu não volto mais. Eu havia atendido este paciente com um pequeno atraso na véspera. Disse-lhe então que o episódio narrado veiculava o descontentamento dele comigo pelo atraso com que eu o atendera na véspera. Eu era aquele garçom antipático que o deixara mofando. Por isso tinha sido tão difícil vir hoje à sessão. A interpretação não fez mais que mudar o tempo e o local da ocorrência, bem como a identidade do garçom, que ficou substituída pela minha. São estas três operações - destemporalizar, desespacializar e desidentificar - que constituem a essência das interpretações transferenciais. Os Mitos são narrativas destemporalizadas e desespacializadas. São eternos. Pertencem a todas as épocas e ocorrem em todas as culturas. Todas as culturas produzem variações dos mesmos mitos, só a identidade dos personagens se modifica nas diferentes versões. O "aqui e agora" é uma pseudo-referência temporo-espacial. Os contosde-fada, que são da mesma categoria do Mito, revelam idêntico falseamento temporo-espacial. Todos começam pelo "era uma vez,num país muito distante", o que não significa tempo definido nem espaço conhecido. O Giro Mítico que transforma o relato historicizado _ do paciente em narrativa mítica e promove uma gradual conscientização dos padrões que regem a vida do paciente. Esses padrões se exprimem num 3 comportamento complexo e reiterativo, e se vinculam a um mito que modela a vida dos seres humanos. O Complexo de Édipo é um dos Mitos modeladores básicos do comportamento humano. Há inúmeros outros mitos e inúmeras versões de um mesmo mito em cada ser humano. A interpretação transferencial que promove o Giro Mítico no material do paciente vai articulando ao longo do tratamento uma biografia psicanalítica na qual o material resgatado da repressão se entremescla com os episódios narrados para constituir o Mito Biográfico. Reconstrução e Mito Biográfico não são fenômenos facilmente dissociáveis. Ao estudar o fenômeno da Reconstrução, Freud insiste na importância de recapturar lembranças reprimidas para desfazer as lacunas mnêmicas da história do paciente. Apesar daquele seu grande tropeço com os traumas da sedução infantil, cuja veracidade histórica não se comprovou, Freud retoma o fio dessa meada em 1937, no trabalho Construções em Psicanálise. O valor terapêutico da reconstrução seria proporcional a esse resgate mnêmico. Um fato, contudo, Ihe causava estranheza: é que ele havia observado que "uma convicção profunda do paciente na verdade da construção dá o mesmo resultado terapêutico que uma lembrança recapturada" ("an assured conviction of the truth of the reconstruction achieves the same therapeutic result as a recaptured memory") Sem poder explicar o fenômeno, Freud o destina a uma pesquisa ulterior, que não chegou a fazer. A meu ver ele esbarrou ai com o problema do Mito, e embora tivesse grande familiaridade com o tema não o reconheceu. Foram talvez os restos da situação traumática vivida com Jung que o afastaram da apreensão de que paciente e analista se empenham numa construção mítica, na qual a história do paciente se reconstrói como estória. A hipótese de que certos conceitos desapareceram da literatura psicanalítica por sua ligação com figuras dissidentes é algo que se corrobora na afirmação de Baranger, quando ele assinala que o conceito de Imago caiu em desuso na linguagem psicanalítica porque "designa uma representação inconsciente, arcaica, com uma certa conotação arquetípica. É provável que seu sabor algo junguiano tenha contribuído para seu abandono". (Revista de psicanalisis ArgentinaValidez del concepto de objeto en la obra de Malanie Klein, 1977 tomo 34, no 13). 4 Penso que não se pode estabelecer diferenças fundamentais entre construção, reconstrução e interpretação. Construir e reconstruir são tarefas interpretativas. O que o paciente nos conta de sua história é ~a uma interpretação que ele tem dela. ~ um relato onde se combinam o real e a ficção. É um Mito. A reconstrução que resulta do trabalho analítico é um novo mito, partilhado com o analista. Além desse mito biográfico, que é consciente e passível de evolução, os pacientes têm também aquela outra estrutura mítica a que já aludimos: os Mitos Modeladores, inconscientes e de notável força dinâmica. Seu exemplo mais característico é o mito edipiano. Há mitos pessoais e individualizados como assinala Kris em The Personal Mith de 1956, e mitos que as mitologias universais registram e descrevem. Harold Blum ao abordar o tema das reconstruções no trabalho intitulado O Valor das reconstruções na psicanálise de Adultos (IJPA, Vol. 61, part 1, 1980) cita o caso de uma paciente deprimida de cujo relato clínico quero destacar alguns aspectos que permitem identificar o Mito de Phoenix. É uma paciente jovem, casada, de aproximadamente 30 anos ao iniciar sua análise. Era uma mulher inteligente e atraente, de bom nível intelectual, ambiciosa, com inúmeros interesses e amigos. Sofria de depressão, leve mas persistente. A depressão parecia ligada à perda do pai, que morreu quando ela tinha 4 anos. Inconscientemente a paciente marcou a entrevista inicial no dia do aniversário da morte do pai como se esperasse desse encontro uma ressurreição. O noivado tinha se dado numa data que guardava relação com nascimentos e mortes na família. O casamento foi marcado no Dia do Pai. Todos os seus filhos nasceram na mesma época do ano em que seu pai morreu, como se fossem ser ressuscitações simbólicas. Fazia parte do seu dia a dia uma espécie de jogo de achar e perder objetos que eram de novo achados e perdidos. Lia sistematicamente os obituários dos jornais, rezava para os mortos e refletia sobre os temas bíblicos de morte e ressurreição. Interessavam-na os escritos cuneiformes e os papiros do mar morto, que traziam à vida, novamente, velhas civilizações. Suas fantasias de suicídio se acompanhavam de esperanças de renascimento. Eric Brenman que também aborda o tema das reconstruções no mesmo número do International Journal of Psycho-Analysis acima 5 assinalado, descreve o caso de uma paciente em cujo material clínico de que transcreverei um fragmento, é possível assinalar a fragilida de como Mito Modelador. É uma mulher solteira, de 28 anos, deprimida com idéias de suicídio, incapacitada para o trabalho. É filha única de um casal de nível universitário, que se casou tarde. profundamente interessados em psicanálise e diziam ter "analisado" a filha desde muito cedo, com extrema suavidade. Ela já havia feito inúmeros tratamentos analíticos. Uma característica de seu comportamento era abandonar os cursos que fazia na véspera dos exames. Por várias vezes esteve por se casar, mas quebrava os compromissos no último momento. Na análise comportava-se como boa moça procurando evitar diálogos traumáticos e emoções fortes. Todos os aspectos reais da vida eram contornados e substituídos por um padrão de suavidade. Tudo nela fazia crer numa fragilidade que terminou por engolfar o analista. Este só se deu conta de que esse mito Modelador da paciente o colhera em suas malhas quando percebeu que suas interpretações eram no mais das vezes extra-transferenciais. Ele as suavizava. Os mitos modeladores organizam e dão forma especial aos acontecimentos da vida do paciente. A força dos mitos modeladores tenta alcançar o analista para transformá-lo em novo personagem desses mesmos mitos. A percepção contra-transferencial desse envolvimento livra o analista de ser um novo ator daquele mito que modela a vida de seu paciente construindo sua história pessoal, ou em outras palavras seu mito biográfico. É um fato sabido que a história de Édipo é uma reconstrução que terminou num desastre. Sabe-se também que Édipo fracassou na resolução do seu Complexo de Édipo. Creio que a Édipo faltou a consciência de que sua predestinação era um Mito. A sentença do Oráculo era o mito modelador de sua vida. Laio e Jocasta também não se deram conta de que a sentença oracular era um mito. A qualidade reiterativa do mito modelador,quando este não se descobre como Mito, é algo que se pode perceber na própria história de Édipo. Ele seguia modelado pelo mesmo mito quando se cegou (castrou o pai em si) e seguiu para Colona, com sua filha Antígona, que era também sua irmã e, simbolicamente, seu incesto. O padrão se reapresentava. 6 A conscientização dos mitos modeladores no curso de uma análise leva o paciente a perceber a matriz de que procede sua historia. Os mitos modeladores se expressam por padrões que se repetem na relação transferencial. O material que cito a seguir e de minha própria clínica A paciente procurou o tratamento por problemas psicossomáticos. mais que tudo a incomodava uma dor no coração. Os clínicos nada encontravam. Um deles recomendou tratamento analítico. Ela uma das filhas de uma família numerosa, tem seis irmãos. E casada e mãe de duas filhas. Depois que se casou, o relacionamento com a família foi se tornando gradualmente mais distante. Passou a morar longe do centro urbano e pretende mudar-se ainda para mais longe, se construírem à sua volta. O marido também gosta de viver assim. Eles recebem pouco, só o inevitável. A casa em que mora e cercada por altos muros. A paciente passeia nua pelos jardins quando as filhas estão ausentes. Nos fins de semana desliga os telefones para não ser incomodada. Ocorreu uma vez que uma de suas filhas passou mal numa festa e não foi possível contatar os pais porque o telefone tinha sido desligado. A moça foi levada a uma clinica onde pernoitou. A atitude de ciúme da paciente em relação as filhas é muito intensa. As aproximações entre as filhas e o marido deixam-na de mau humor Uma vez ela foi comemorar o aniversário de casamento no mesmo hotel em que passara a lua de mel. Como o marido falava das filhas, a pa ciente considerou o programa estragado. As interpretações que assinalavam o aspecto edípico de suas reações não pareciam surtir o menor resultado. Minhas interpretações eram como se fossem filhas interpostas entre mim e ela. Dizia não compreender o que eu havia interpretado. Para mim, no entanto, era evidente que não se tratava de um problema de compreensão. Ocorreu-me certa vez que a paciente deixava minhas interpretações fora de sua vida emocional, tão cercada de altos muros como sua casa. Lembrei-me da paciente andando nua nos jardins de sua casa, os telefones desligados. Ocorreu-me que era como se andasse pelos jardins do Éden e nada devia perturba-la. Comuniquei isso à paciente. Ela sorriu e acrescentou: o nome de minha casa é Paraíso. Há uma tabuleta no portão com essa inscrição. O mito do Éden era um dos mitos modeladores básicos de sua vida. No caso da paciente que transcrevo a seguir pode-se perceber a presença do mito herói, embora outros aspectos da patologia 7 psicanalítica descrita estejam também presentes,rapaz de 26 anos, solteiro, que mora com os pais. Estes não vivem em boa harmonia conjugal. O pai tem uma industria no sul do país e viaja com muita freqüência. Os dois irmãos mais velhos são casados. O paciente me procurou por dois motivos: fica ruborizado nas festas e encontros sociais e não consegue estudar. Ao começar o tratamento reabriu a matrícula que havia sido cancelada, após repetir várias vezes as mesmas cadeiras. É um rapaz inteligente mas não consegue se concentrar. Aos poucos começou a contar o conteúdo de suas fantasias. São histórias nas quais ele se vê ganhando lutas corporais ou batalhas num campo de guerra. Uma multidão o aplaude. Nas festas a que vai bebe demasiadamente. Com isso dissipa-se seu rubor e ele começa uma movimentação intensa tentando ocupar uma posição central. Em fins de semana quando está na fazenda de amigos e se embriaga, ele vive de atuado as cenas das batalhas. Às vezes e o trecho de um filme de cowboy. Ele se lança no chão, atira, corre, rola pela estrada e anda mancando como se tivesse sido baleado. Uma certa consciência dessa conduta bizarra faz com que ele procure trechos ermos da fazenda. Com garotas e extremamente tímido. Tem medo de ter relações sexuais,mas ostenta uma conduta de provocação erótica. Sua fantasia é de "levar uma gata para o quarto e estraçalhar". O daydream desses feitos eróticos acompanham-se de masturbação. Todas as cenas desse daydream quase contínuo são cenas de heroísmo. Na sessão ele fala continuamente, num ritmo meio acelerado. Ao fim de seu discurso ele se levanta e deixa o consultório por achar que não faz sentido ficar sem dizer nada. Ele é o herói que se retira da cena depois da performance. 7/11/2001 8