Acesso - Instituto Diplomático

Propaganda
NegóciosEstrangeiros
Abril 2009
número
14
publicação semestral do
Instituto Diplomático
do Ministério dos Negócios Estrangeiros
Anton Bebler
Carlos Alberto Damas
Carlos Neves Ferreira
Christian-Peter Hanelt
Elsa Maria Dias Dinis
Fauzia Nasreen
Fernando A. de Figueiredo
Filipe Ribeiro de Meneses
Francisco Knopfli
Francisco Proença Garcia
Gonçalo Santa Clara Gomes
João Sabido Costa
Jorge Azevedo Correia
José Carlos de Vasconcelos
José Segismundo de Saldanha
Leonardo Mathias
Manuel Duarte de Jesus
Marcello Vaultier Mathias
Marina Eleftheriadou
Meliha Benli Altunisik
Nuno Caseiro Miguel
Nuno Wahnon Martins
Paulo Vizeu Pinheiro
Pedro Catarino
Rui Reininho
Vasco Graça Moura
Vicente Jorge Silva
preço E10
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Revista NegóciosEstrangeiros
N.º 14
Revista NegóciosEstrangeiros
Publicação do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros
Director
Embaixador Carlos Neves Ferreira
(Presidente do Instituto Diplomático)
Directora Executiva
Maria Madalena Requixa
Design Gráfico
Risco – Projectistas e Consultores de Design, S.A.
Pré-impressão e Impressão
Europress
Tiragem
1000 exemplares
Periodicidade
Semestral
Preço de capa
€10
Anotação/ICS
N.º de Depósito Legal
176965/02
ISSN
1645-1244
Edição
Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)
Rua das Necessidades, n.º 19 – 1350-218 Lisboa
Tel. 351 21 393 20 40 – Fax 351 21 393 20 49 – e-mail: [email protected]
Número
14 . Abril 2009
Índice
5
Nota do Director
9
After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
Christian-Peter Hanelt
18
The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism
Marina Eleftheriadou
22
A situação actual no Cáucaso
Paulo Vizeu Pinheiro
29
Turkey’s new activism in the Middle East
Meliha Benli Altunisik
40
What to do about the Western Balkans?
Anton Bebler
53
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia:
a perspectiva da Grécia
Marcello Vaultier Mathias
76
A nova polemologia
Francisco Proença Garcia
112
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
Nuno Gonçalo Caseiro Miguel
123
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações
do relacionamento com a Austrália
Fernando Augusto de Figueiredo
177
Os pedidos de empréstimos do Estado às casas bancárias
Sir Francis Baring & C.º e Henry Hope & C.ª (1797-1802)
Carlos Alberto Damas
211
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
João Sabido Costa
232
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
Francisco Knopfli
242
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião: três contributos para
a fundamentação do liberalismo
Jorge Azevedo Correia
264
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão,
Embaixadora Fauzia Nasreen, por ocasião da assinatura do Protocolo de Cooperação
entre o Instituto Diplomático e a Academia
Fauzia Nasreen
NOTAS DE LEITURA
275
Uma autobiografia disfarçada, de João Hall Themido
Uma vida dedicada à Diplomacia por Leonardo Mathias
277
De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português, de Luís Esteves Fernandes
Um livro sincero e corajoso por Pedro Catarino
282
Letra e música, de Paulo Castilho
Compositora e Intérprete por Rui Reininho
285
Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki, de Marcello Duarte Mathias
Algures no Mediterrâneo por Vasco Graça Moura
291
Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa, de Francisco Seixas da Costa
Portugal/Brasil: compreender e agir por José Carlos de Vasconcelos
294
Todo-o terreno. 4 anos de reflexões, de Ana Gomes
por Vicente Jorge Silva
296
António Feijó – diplomata, de Fernando de Castro Brandão
por Manuel Duarte de Jesus
298
Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia, de Luís Soares de Oliveira
por Filipe Ribeiro de Meneses
302
Teatro de sombras – Contos, de António Pinto da França
Entre Ironia e Cumplicidade por Gonçalo Santa Clara Gomes
304
China – cooperação e conflito na questão de Taiwan, de Luís Cunha
por Elsa Maria Dias Dinis
308
Inside the Jihad. My life with Al-Qaeda, a spy’s story, de Omar Nasiri
por Nuno Wahnon Martins
CADERNOS DE ARQUIVO
315
Relação da Embaixada e Entrada Pública que deu nesta Corte o Conde de Valdstein,
Embaixador Extraordinário da Alemanha, ao Senhor Rei D. Pedro II, escrita pelo Conde
de Assumar D. João de Almeida vedor da Casa Real que por ordem de El-Rei lhe fez a
hospedagem
José Segismundo de Saldanha
Linhas de Orientação
Os artigos reflectem apenas a opinião dos seus autores.
Nota do Director
COMO
5
SE SABE,
mas convém sempre recordar, em revistas editadas por organismos oficiais
os artigos de opinião publicados comprometem apenas os seus autores e não
representam o ponto de vista oficial, oficioso ou mesmo diplomaticamente discreto,
do Governo que tutela a entidade editora. Isso será tão mais verdade quanto mais
polémicos possam ser os pontos de vista expressos. Pretender dar alguma vida e
animação a uma publicação semestral é pois uma ambição frágil que só se for assente
num módico de controvérsia pode adquirir alguma sustentabilidade. Há que fugir
do politicamente correcto e das suas variantes oficiosas. É preciso evitar cair num sea
of platitudes, para roubar uma expressão de Henry Kissinger, ouvida numa reunião da
NATO nos anos 70, em que a procura obstinada do consenso transformava os textos
a aprovar numa prosa inócua e esquiva.
Não tem a NE um conselho de leitura, por cujo crivo passem os textos publicados.
Quer isto dizer que a responsabilidade da sua escolha é integralmente do director
da publicação, que se limitou a pedir a um ou outro especialista nas áreas cobertas
pelos artigos uma simples opinião de sim ou não quanto ao mérito e à oportunidade
da sua publicação. Não há pois qualquer diluição da responsabilidade pela via da sua
transferência para um comité que assuma as escolhas que, sendo porventura polémicas, repousam depois na inocência e no anonimato das decisões colectivas.
Dito isto, umas palavras sobre o conteúdo do presente número.
Saíram em 2008 alguns livros cujos autores são membros da carreira diplomática.
Cobrem vários géneros; memórias (embaixador João Hall Themido, Uma Autobiografia
Disfarçada, e embaixador Luís Esteves Fernandes, De Pequim a Washington: Memórias de um
Diplomata Português); ficção (embaixador Paulo Castilho, Letra e Música, embaixador
Marcello Mathias, Encontro em Capri ou O Diário Italiano de Gorki e embaixador António
Pinto da França, Teatro de sombras – Contos); compilações de intervenções públicas
(embaixador Francisco Seixas da Costa, Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa e embaixadora
Ana Gomes, Todo-o-Terereno – 4 anos de reflexões); ensaio biográfico, (embaixador Fernando
de Castro Brandão, António Feijó, diplomata); estudos sobre a diplomacia portuguesa
(embaixador Soares de Oliveira, Guerra Civil de Espanha: Intervenção e Não Intervenção Europeia).
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 5-7
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São publicadas, também, notas de leitura relativas a outros livros recentemente
editados.
Há que saudar com entusiasmo estas manifestações de veia literária:
algumas que acompanharam a vida profissional dos seus autores, nasceram
e maturaram ao longo dela (Marcello Mathias, Paulo Castilho, Pinto da
França), outros, que esperaram a guilhotina legal que atira os diplomatas aos
sessenta e cinco para a estranhamente denominada disponibilidade em
serviço ou para a equívoca alacridade do estado de jubilação; outros, ainda,
que traduzem uma vontade constante de intervenção na vida política
nacional (Ana Gomes, Seixas da Costa); outros, finalmente, que se espera
contribuam para um costume abandonado, o do memorialismo e do
testemunho pessoal das causas e dos factos que preencheram vidas
profissionais e que se conhecem de forma esparsa por mera tradição oral
(Hall Themido, Esteves Fernandes). Por último, é de dar um merecido relevo
aos estudos sobre aspectos concretos da vida diplomática nacional e
internacional, como os do embaixador Soares de Oliveira e embaixador
Castro Brandão, sobre a diplomacia portuguesa no quadro mais vasto da
guerra de Espanha e a acção de um escritor-diplomata de prestígio como
António Feijó. Os estudos, monografias e ensaios perderam motivação e
impulso (irremediavelmente?) quando no sistema de progressão na carreira
se optou pela facilidade em nome da equanimidade, e se abandonou a
dissertação, prévia à promoção a conselheiro, até aí, obrigatória. Perdeu-se o
hábito da análise aprofundada do caso concreto e da sua peer review. Perdeu-se, também, uma fonte sistemática para o registo da visão do país sobre
questões determinadas, nacionais ou não, sobre as actuações seguidas, as
escolhas feitas e as alternativas rejeitadas.
Não foi fácil a selecção dos textos agora publicados. Procurou-se um
equilíbrio entre as questões da actualidade com importância e algum relevo
para Portugal, entre autores nacionais – diplomatas, civis, militares,
académicos –, e estrangeiros que, gentilmente, nos cederam artigos inéditos
ou deram a autorização para se reproduzirem textos já editados, porém em
publicações de divulgação mais restrita.
Um conjunto de notas de leitura acompanha a notícia dos livros
editados em Portugal, da autoria de diplomatas de carreira. Muitos dos que
acederam a elaborá-las não são do MNE ou com o Ministério terão tido uma
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 5-7
relação remota. Procuraram-se afinidades electivas temperadas com visão
crítica, espera-se que isso tenha vindo ao de cima.
Numa nova secção, a que se chamou “Cadernos de Arquivo”, passamos
a transcrever documentos que são fontes para a História da Diplomacia, e
que podem ser encontrados no Arquivo Histórico Diplomático, bem como
noutros arquivos nacionais ou estrangeiros. Com esta nova secção espera-se
suscitar interesses, despertar curiosidades e, até, estimular vocações científicas
para a História da Diplomacia. Nestes Cadernos poderão publicar-se as
transcrições de documentos que os leitores ou os investigadores desta área
se disponham a enviar ao Arquivo Histórico Diplomático para esse efeito.
Quando foi possível e pareceu justificar-se, os artigos publicados foram
precedidos de um abstract em inglês.
Por último, cumpre registar que este número foi possível porque se
manteve a colaboração com a empresa ARED e com o seu director, Didier
D’Arcy Dachez.
O Presidente do Instituto Diplomático
Carlos Neves Ferreira
Embaixador
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7
8
Christian-Peter Hanelt*
After Gaza: a common dialogue platform for the
9
■ Abstract:
If one wants to have peace in the Middle East, one will have to persuade all of the actors
to sit around a table and to talk about all of the conflicts. Secret negotiations are just as
ineffectual as the exclusion of certain actors. Only a common platform for dialogue will
enable the European Union and above all the U.S. to fulfil their peacemaking mission.
■ Key words:
Middle East, Conflict-resolution, Europes role in the Middle East, Iran, Syria, USA.
I – The Hamas-Israeli War THE WAR AGAINST Hamas has strengthened Israel directly in military
terms, but has completely ruined its reputation in the Arab and Muslim world. The
danger of Hamas rocket attacks may have been terminated for the time being, but in
regional terms Israel’s security situation has not got any better.
Can anyone still provide security in the Gaza Strip? The Palestinians are divided
and without a legitimate leadership, and the situation seems hopeless and desolate in
Gaza. The Annapolis negotiations between Israelis and Palestinians have not yet led to
a two-state solution. The strategy which involves strengthening Fatah on the West Bank
and isolating Hamas in the Gaza Strip has not worked. The political elites continue to
fight shy of an open and honest dialogue with their citizens. Although they are fully
aware of the basic facts of a solution to the conflict between Israel and Palestine, they
continue to steer clear of spelling out the compromises that will have to be made.
Trust in others has reached its nadir. Each side has its own media and perceptions.
The Arabs watch Al Jazeera, the Israelis watch Channel 2, the Americans watch Fox
News, and the Europeans watch the BBC. The conflict has generated a great deal of
emotional turmoil, as the worldwide pro-Israeli and pro-Palestinian demonstrations
have shown. Apart from demonstrations in European capitals, hundreds of people took
*
Senior Expert, Program Europe’s Future, Bertelsmann Foundation. Bertelsmann Stiftung, christian.hanelt@
bertelsmann.de
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After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
Middle East
After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
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to the streets in German provincial towns, too. This poisons the whole atmosphere,
and more and more people are prompted to espouse radical views. The moderate
forces and governments are being weakened and the prospects of an Israeli-Palestinian two-state solution is becoming increasingly improbable.
In the Hamas-Israeli conflict in particular the European Union is once again
being called upon to bear the burden of conflict management. This was already the
case in the summer of 2006 in southern Lebanon, when the war between Israel and
Hizbollah ended only after the deployment of the UNIFIL II mission. Yet this conflict
demonstrates that the end of a war does not signify peace by any stretch of the
imagination. The international missions monitoring the ceasefire will only turn out
to be a success once peace treaties between Israel, the Palestinians and their Arab
neighbours have been concluded.
II – Everything is Interconnected The convoluted state of affairs continues to worsen because
all of the actors in the Middle East taken as a whole have their fingers in the pie
somewhere, either with regard to the use of force or to attempts at peace-making, as
some examples connected with the most recent Hamas-Israeli war demonstrate:
• Syria is allowing exiled Hamas leader Mashaal to act more freely in order to
show Israel and the U.S. that Syria wishes to have a say in matters relating to
war and peace.
• The hardliners in Iran are relieved yet again that international attention has
now shifted to Israel and Gaza and away from their nuclear programme.
• Israel is attacking Hamas alos in order to deter Hizbollah on its northern
border.
• Egypt has sealed off Hamas within the Gaza Strip in order to prevent it from
cooperating with the Egyptian Muslim Brotherhood.
• Iran and Syria are using their influence on Hamas in order to strike the
U.S. via Israel, in other words, to demonstrate that they can harm American
interests in the region, but that they can also promote them.
“Regional Powers are playing the game indirectly.”
In these manoeuvres the regional powers are playing the game indirectly. Whilst
demonstrating to each other how potentially disruptive they can be, they are not
giving anyone a reason to attack them.
This method is also used in order to delay or even to torpedo bilateral attempts
to resolve conflicts.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17
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After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
• Turkish attempts to bring about a rapprochement between Israel and Syria has
mobilised Lebanese and Palestinians, since they fear that such an agreement
will be at their expense.
• Mere rumours that Washington is trying to reach a bilateral agreement with
Tehran has Saudis, Emiratis, Israelis and Iraqis up in arms. They are afraid that
an American-Iranian treaty might fail to take into account their own security
interests.
• Israel is in favour of peace with Syria primarily in order to isolate Iran, and
construes the stand-offs with Hamas and Hizbollah as proxy wars with Iran.
• Pictures of the unabated construction of settlements in East-Jerusalem or on the
West Bank make it increasingly difficult even for moderate Arab leaders in the
Gulf to ask their countries to support the Arab peace initiative with Israel.
The attempts to ignore, neutralize or isolate spoilsports and obstructionists
have come to grief as a result of regional entanglements.
• The Israeli government’s plan to negotiate a two-state solution with Fatah has
ground to a halt also because it has been impossible to isolate Hamas, who
are in control of Gaza.
• The Lebanese Hizbollah emerged strengthened from the asymmetrical war against the
Israeli Army in the summer of 2006. It was
able to exercise its veto in the context of
intra-Lebanese wrangling and, by pointing
to the ongoing conflict with Israel, to
stop attempts to disarm it. In this regard
Iran and Syria have displayed the extent of
their influence. A Syrian-Saudi quarrel
paralyzed an intra-Lebanese agreement for
months.
Thus the so-called non-state actors such
as Hamas and Hizbollah are in fact tools of
the competing regional powers in the Middle
East. And to make everything even more
complicated, moderate politicians and radical
leaders are jostling for power even within
movements such as Hamas and Hizbollah.
After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
12
The former CIA case officer and Middle East specialist Robert Baer sums up the
situation thus. “Hizbollah, Hamas and the Shiite parties in Iraq look to Tehran for
financial aid and support. As long as the U.S. does not solve the Israeli-Palestinian
conflict, Iran’s influence will grow.”
Thus it is possible to argue that the attempt to isolate the regional powers Syria
and Iran has been a failure. Furthermore, bids to conclude bilateral agreements have
come to grief on account of the veto powers of neighbouring states. Conflict
management as in the case of Israel-Gaza and Israel-South Lebanon may be of
importance in order to bring armed conflicts to an end, yet conflict management per
se simply increases the potential for further wars. The next step in the dispute
relating to the Iranian nuclear programme is already discernible on the horizon.
And last but no least, conflict management is becoming more expensive. The
international community is having to come up with more and more diplomatic,
financial and human resources to support a UN mandate, whilst at the same time
endangering the lives of its aid workers and blue helmets. And the missions come to
an end only when it is possible to make peace. For example, the UNIFIL II mission
in southern Lebanon, which since the summer of 2006 has been run primarily by
European blue helmets, will turn out to be a success only after Israel has signed
peace treaties with Syria and Lebanon.
Each actor in the Middle East is afraid that his interests and anxieties will be
passed over or ignored. Each actor wishes to be esteemed, accepted and taken
seriously by his neighbours and the USA. Each actor would like to show how
important he is in the region and that it is worth supporting him in political and
economic terms. Each actor is striving for security and prosperity.
Politics is no doubt a sober business of balancing interests. Yet in the Middle East
emotions, symbols, vivid ideas and neurotic images also play an important role.
Future conflict management and conflict resolution need to pay more attention to
such perceptions.
III – A Common Platform for Dialogue Future diplomatic efforts should be directed
primarily at providing a common platform for all of the actors and thus for all of
their interests, fears and cleavages.
However, this common platform will not simply be part of a never-ending series
of Middle East intergovernmental conferences and not another summit held for its
own sake. No actor will be excluded, all interests will have a voice, every conflict will
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“Avoid as much diplomatic wrangling as possible.”
The methodology of this new approach is based on the idea of inviting all parties to
share a common platform on which they can search for ways for a common and
sustainable resolution of their various interlinked conflicts. The goal of this quest is
not as in the past conflict management as such. Many actors in the region reject the
kind of conflict management strategy pursued in recent years, which they believe is
nothing more than muddling through and procrastination, and has been unable to
reduce the potential for new outbursts of violence.
In contrast to this the goal of this quest is nothing less than conflict resolution,
though in all modesty on two levels of attainment: The first level, which takes its
bearings from the notion of conflict transformation, is a stage in which the dialogue
platform becomes the forum within which potential conflicts can be nudged into
peaceful channels. The second level presupposes that a serious effort will be made
by all of the participants to terminate as many conflicts as possible with the help of
peace treaties. Thus the platform could move on from being a dialogue forum to
become a negotiating forum.
Once all of the actors are sitting round a table, they will have become an integral
part of the process. No one will be able to claim that he was not invited or that he
was not listened to, and that he thus has every right to opt out of the process and to
make trouble for everyone else. Anyone who turns down an invitation is telling the
rest of the world that he is trying to hold things up. He can no longer hide behind
the claim that an external force, as was the case with the Bush administration, has
done all it can to isolate him (as in the case of Iran) or is actually dead set against
having him there at all (as in the case of Syria).
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After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
be taken seriously and everyone will have the same opportunity to explain his
anxieties and fears about the future. It will all be about honesty, openness, modesty
and a new language of reconciliation.
It is not about pageantry, showmanship, big promises or bitter accusations. This
is not a naive or cosy strategy, and is also all about sending out a symbolic signal:
There will be no more secret negotiations of the kind which give rise to nothing but
suspicion and opposition. Secretiveness spawns rumours and conspiracy theories,
and in the Middle East this always means that everything has already come to grief
before it has even got off the ground. The search for peace in the Middle East needs
to escape from this vicious circle.
After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
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All the actors will be invited on the basis of equality. The envoy system will be
used in order to avoid as much diplomatic wrangling as possible about status
questions before the platform convenes. Every head of state and government will
choose an envoy. The Palestinians (in point of fact without a legitimate leadership
since 9 January) will decide themselves, without pressure from outside, who is to
represent them at the talks. If it is one person from Gaza and one person from the
West Bank, then that may initially be possible, though in the course of time they will
also have to reach agreement on a special envoy. The platform will be exerting
pressure on them to attain a consensus. As a multilateral external actor the European
Union should agree on one voice, which might well be that of the High Representative
for the Common Foreign and Security Policy, Javier Solana.
The meetings will take place on a regular,
or, and this would be even better, on a
permanent basis, so that invitations to the next
gathering will not involve a great deal of
diplomatic effort. The envoy solution will
make it easier to agree on dates and on an
agenda. All the various conflicts will be on the
agenda. The discussions will then consider all
of the more or less interwoven lines of conflict:
Israel-Palestine, Israel-Syria, Israel-Lebanon,
Arab World-Israel, Lebanon-Syria, Iraq-Iran-Turkey-Syria, Gulf States-Iran, Iran-Israel, and
Iraq and its neighbours. The most important
thing is to attempt to create as much consensus
as possible and to balance the various interests in an equitable manner. And if progress
is made in the discussions and negotiations on the Israeli-Syrian agenda item, for
example, it will have a positive influence on the other conflicts.
All the fundamental issues on which these conflicts are based, such Israel’s right
to exist as a Jewish state, the Palestinians’ and the Kurds’ right to self-determination,
the territorial integrity of Iraq, the independence of Lebanon and Syria, Iran’s
security interests, or the stability and security of the Arab Gulf states will be taken
into account.
The comprehensive approach of a common platform for dialogue will give the
Arab world the assurance that all the contentious points relating to Israel will be dealt
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17
IV – No time to lose The inauguration of the new U.S. president would seem to be a good
moment to start with the initiative. Barack Obama himself has announced that he
will quickly become involved in the Middle East conflict. Thus it seems that on this
occasion presidential participation, in contrast to Obama’s predecessors Clinton and
Bush, can already be expected at the beginning of a term of office and not at the
end. That would strengthen the authority and the commitment of U.S. involvement.
At the same time Obama will encounter a great willingness on the part of the
Europeans and many regional actors to work together closely.
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After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
with, as will Israel’s concerns about its regional security and full incorporation into
the region. Iran will be able to make out a case for its wish to be an integral part of
the region. The U.S. will perceive that the withdrawal of its troops from Iraq is safe in
the regional context. And the smaller countries of the region will also have their say.
The symbolism of the venue is of some importance. For this reason the common
forum for dialogue will not be meeting in places which remind people of previous
Middle East initiatives such as Oslo, Madrid, Annapolis, Camp David or Shepherdstown.
Nor will the participants be meeting in places which are associated with important
historical agreements such as San Francisco, Rome or Seville (however pleasant it
might be, though not all of the actors may be of this opinion). The common forum
for dialogue is supposed to stand for a new beginning of a modest, inclusive and
goal-oriented kind, and for this reason as many associations as possible should be
avoided. It must be a practical working location for the envoys. The best thing would
be somewhere in the Middle East, partly in order to emphasize the connection with
the region, and the commitment of the actors who actually live there.
The greatest responsibility devolves on the host as discussion leader. What is
needed is a powerful and very tactful personality. Even if many actors believe that the
U.S. has lost its reputation as an honest broker, it continues to be the most powerful
external actor. It has a sizeable number of armed forces in the region, a plethora of
interests, and the greatest ability to issue certain guarantees. For almost everyone in
the region the new American president stands for hope and a new beginning. His
envoy should also embody this positive kind of authority. The reason for this is that
the American envoy will bear the principal responsibility for the atmosphere of the
talks. He must avoid that the multilateral talks will fall apart into bilateral and (semi-)
secret negotiations. And last but not least he will also have to incorporate the other
external actors (EU, UN, Russia, China, and Japan) on an equal footing.
After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
16
In recent months Obama’s advisers have let it be known that they will be
suggesting to the new U.S. administration that there should be multilateral
involvement, close cooperation and burden-sharing with the EU, and a dialogue
between Washington, Damascus and Tehran. Furthermore, Israel is electing a new
parliament in February and thus a new government, and Iran is electing a new
president in June. And the Palestinians are being pressured to determine a new
legitimate leadership. These are the points which suggest that 2009 may well be a
year of opportunity in which it would make sense to embark on a new approach to
conflict resolution in the Middle East.
The difficult and unpredictable challenges posed by the global economic and
financial crisis still constitute a risk. Thus the Obama administration might well have
to deal with growing intra-American problems, and this may leave little time for
foreign policy initiatives. Similarly, new incidents in the Middle East may lead to
crises or wars at a moment’s notice, and this would terminate an ongoing dialogue
or defer it indefinitely.
V – What is the EU doing? The European Union possesses a wealth of experience and skills
with which it can help to implement a new Middle East approach on the basis of a
common platform for dialogue.
• The EU can impress upon the new U.S. administration that the inclusive
approach is better than to act bilaterally and to isolate important players; that
Obama must move on the Middle East at the beginning of his presidency
and not towards the end; that the strategy should be conflict resolution and
not procrastinatory conflict management; that a new negotiating approach
must be adopted and that all this taken together can dramatically improve the
image of the U.S. in the region, and in the final analysis can even create better
regional conditions for a withdrawal of U.S. troops from Iraq.
“The isolation of Syria and Iran has failed.”
• The EU has resilient relations with all of the actors in the region, and for this
reason it can underline the importance of American envoy invitations to states
such as Iran and Syria that have hitherto been isolated from the USA.
• The EU is the largest financial donor to the Palestinian administration. It is
involved in police training (EUPOL COPPS) and in customs clearance at Rafah
crossing between Gaza and Egypt (EU BAM).
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17
FOR FURTHER READING:
Christian Hanelt / Almut Möller (Editors): Bound to Cooperate – Europe and the
Middle East II, Bertelsmann Stiftung, 2008
Bertelsmann Foundation: Trans-Atlantic Briefing Book – Managing Expectations,
Expanding the Partnership, Shaping the Agenda for 2009, November 2008
Aaron David Miller: The Much Too Promised Land - America's Elusive Search for
Arab-Israeli Peace, März 2008
Robert Baer: The Devil we know – Dealing with the New Iranian Superpower,
September 2008
Richard N. Haass / Martin Indyk: Beyond Iraq. A New U.S. Strategy for the Middle
East, Foreign Affairs, January 2009
Henry Siegman: A Last Chance at Middle East Peace?, The Nation, January 2009
Hussein Agha/Robert Malley: How Not to Make Peace in the Middle East, The New
York Review of Books, Volume 56, No. 1, January 2009
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17
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After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East
• Europe needs peace projects in its southern neighbourhood so that the
Mediterranean Union can get off the ground and that at long last the great
social and economic challenges in North Africa and the Middle East can move
to the centre of the policymaking stage.
Despite this important potential, the European Union should not adopt a
competitive stance towards the USA. In fact the EU should realize that a solution of
the conflict will only be possible if there is a new and stronger role for the U.S.,
which in its turn is placing its hopes in a resilient Transatlantic partnership.NE
Marina Eleftheriadou*
18
The Shia protocols: the Iranian project of Shiite
The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism
proselytism
■ Abstract:
Lately there has been a heated debate about Iranian efforts to spread Shiism to Sunni
countries. Many Sunni religious and political figures have contributed to this latest
addition of anti-Iranian rhetoric, exaggerating the actual extent of the phenomenon of
Shia conversions. It seems that once again Iran’s rising regional status challenges Sunni
predominance in the region. However, although politically more prolific, religiously, the
Iranian example, at least for now, flourishes only under very specific circumstances.
IN SEPTEMBER 2008 one of the most prominent Islamist scholars – perhaps the most creative of
the Muslim Brotherhood trend – Yusuf al-Qaradawi, condemned the Shiite “attempts
to invade the Sunni community… [through] missionary work”. From inside the Sunni front
some more or less discreetly nodded their heads, while others in turn dismissed
Qaradawi’s remarks in abhorrence usually attributed to someone still evaluating the
situation. Qaradawi’s warning was the latest ring in a chain of similar statements
starting from Jordan’s king Abdullah who first spoke of the ‘Shia crescent’, followed
by Hosni Mubarak, who in 2006 asserted that the Arab Shia were more loyal to Iran
than to their own countries. Saudi king Abdullah said in this context that the Shia
were trying to convert Sunnis, while assuring at the same time that “the dimensions
of spreading Shiism” were under the close scrutiny of the Saudi regime. Furthermore,
Qaradawi himself accused the Shia of trying to exploit Hezbollah’s victory against
Israel in order to penetrate Sunni societies.
In the meantime newspapers and figures of lesser influence and with no real
interest in the official political-correctness preserved the issue by adding drama to the
debate. The editor-in-chief of Al-Ahram linked Iran’s project of “spreading Shiism” to the
desire to “revive the dreams of Safavid” (a Persian dynasty that in 16th century established
Shiism as the official religion of the Persian Empire). Accordingly, the Jordanian
*
Senior Researcher and PhD candidate at the Center for Mediterranean, Middle East and Islamic Studies of the
Peloponnese University, Greece. This article was published in the Middle East Bulletin, Issue 13, November
2008, http://pedis.uop.gr
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 18-21
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 18-21
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The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism
newspaper, Ad-Dustour, identified that the project’s plans were to expand Shiism from
India to Egypt. However, nothing was more indicative of the Sunni community’s low
spirit than the moan of wounded pride in the article published in Al-Siyassa (Kuwait),
written by its editor-in-chief Ahmad al-Jarallah. In his article, Jarallah pleaded the
“leaders of all Arab countries [to] hold a summit to prevent Iran from stealing Arab issues”.
The Middle East witnesses Iran’s second 1979 and the Sunni regimes are alarmed
by it, more so since the Sunni community perceives an ongoing transformation of this
threat from a political into an existential one.
Iran’s current rise might lack the revolutionary charm of 1979; however, quite
contrary to the heydays of the Iranian Revolution it is now characterized by firmer
foundations. The inexperienced leadership of 1979 entered Islamist and generally
Middle Eastern affairs like a bull into a china shop, stirring up the whole region but
in the end ‘grabbing’ more than it could hold. Nowadays, the Sunnis argue that Teheran
takes one step at a time, sneaking into the former’s open wounds and letting its
defiance of regional and global norms of conduct attract followers. A message, which
was proven inadequate in the post-1979 “shia expansion”, has been ‘surrounded’ now
by an entire – conspiracy – strategy in order to support its validity and consistency. In
the past Iran merely managed briefly to mobilize the Gulf Shia: civil unrest in the oil-rich Shia-populated eastern provinces of Saudi Arabia erupted in December 1979 but
soon died out although one has to say that its products remained active even after the
revolution (e.g. the Saudi Arabian Hezbollah and its attack on the Khobar towers in
1996). The Iranian Revolution also inspired the creation of the Palestinian Islamic Jihad
and created its star product the Lebanese Hezbollah. Finally, it gave a note of militancy
to the Sunni Islamists which however in their majority preferred to use the Iranian
example without adopting its dogma. Soon the Sunni militants would either turn
indifferent in the face of the new Islamic ideal in Afghanistan or applaud Saddam as he
was bleeding out Iran. Briefly, Iran’s final balance-sheet was far from positive.
Nonetheless, in 2008 as the Sunni regimes failed to cope with the mounting
crises, they saw their cherished containment of Iran evaporate. On Iran’s east, the
Taliban-Pakistan-Saudi Arabia axis might remain strong and potent, however, it has
been transformed while additionally the Pakistani and Saudi Arabian link have been
highly volatile and therefore less manageable. On Iran’s west the Iraqi bulwark
disappeared into thin air, opening thus the gates of the Middle East. As the great force
multiplier (nuclear power) is coming into being, Iran is scoring victories in Iraq,
Lebanon (via the other Shia player, Hezbollah) and Palestine (through its direct or
Syria-intermediate relations with Hamas and smaller rejectionist Palestinian groups,
e.g. Islamic Jihad and PF-General Command).
The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism
20
In other words, Teheran is stealing the Arab issues while the Arab elites want to
secure the Sunni soul. In 1979 Saudi Arabia battled Shia expansionism by highlighting
Iran’s Shia particularity as directly linked to Persian nationalism. Today, it is not
anymore only about more assertive Shia communities inside Sunni-dominated states
but also about losing followers to the Shia. What can seem more threating compared
to the image of scores of Shia converts in “Egypt, Sudan, Tunisia, Algeria, Morocco, and other
non-Arab countries such as Malaysia, Indonesia, Nigeria, and Senegal…even the Gulf States and Syria, but
of course, Syria, Iraq and Lebanon have Shia communities and therefore, unlike countries where there was
no Shia, conversion to the Shia sect does not stand out” (Yusuf al-Qaradawi).
Actual figures which would allow estimations are lacking and Sunni alarmism
blurs the picture even more. However, conversions, although far less common than
asserted, seem to occur mostly in predominately Sunni regions, which share some
kind of acquaintance with Shia culture. On the contrary, in regions of mixed
populations and Shia minority status (Arab Gulf) or in regions of increased Shia
assertiveness and tensed Sunni-Shia relations (Iraq and Lebanon) the Sunni identity
seems more solid and resistant. An exception to this pattern is Syria which due to
the political leverage exerted by Iran and the peculiar sectarian nature of its regime
forms the most interesting case. One could also add Jordan. However, Amman’s
increasing preoccupation with Shia converts is most probably connected with the
social upheaval created by the arrival of thousands of well-off Iraqi Shia refugees.
In this context, conversions occur in North African countries, including Egypt,
which acquired their religious folk familiarity with Shia practices from the time of
the Fatimid rule. When Qaradawi highlighted the case of Egypt: “I left Egypt 47 years
ago, it had not a single Shiite and now there are many... who took them to Shiism? Egypt is the cradle of
Sunnism and the country of Al-Azhar”. However, he overlooked that Al-Azhar was founded
during the Fatimid era or as Qaddafi said: “Cairo cannot escape its Fatimid destiny”.
Although Shia in Egypt are said to represent less than 1% of the population (and any
sporadic conversions can hardly change that), the authorities, in order to rally the
people around the flag vis-à-vis Iran, look worried. So are the Algerians, the Sudanese
and the Moroccans. Two years ago the Algerian Ministry of education suspended
eleven teachers as they were accused of conducting Shia missionary work. While in
Algeria primarily Shia expatriates from Iraq, Syria and Lebanon were held responsible,
in Morocco the .messengers. were Moroccans working in Europe where they were
approached by Iranian charitable organizations. In Sudan the accusations have been
directed towards the Iranians themselves who allegedly took advantage of Khartoum.s
friendly disposition towards the Iranian revolution. According to the Sudanese.
Supreme Council for Coordination among the Islamic Associations, through the
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 18-21
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 18-21
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The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism
proselytism of the Iranian Cultural Center in Khartoum, “whole villages have been converted
to Shiism, and Shi’a mosques have proliferated in Khartoum”.
While these predominately Sunni countries are more susceptible to Shia
proselytism, the Gulf countries on the other hand, which are home to large Shia
communities (20% in Saudi Arabia, 30% in Kuwait, 70% however politically
subordinated in Bahrain), are more vulnerable to the prospect of militant Shiism
rather than proselytism as the Sunni community, threatened as it feels, is heavily
entrenched behind its sectarian identity. This is even more explicit in Lebanon and
Iraq. Not only, as Nasrallah, said would it be cheaper simply to produce more
children (as the Shia in Lebanon have been doing for the last decades), but also the
possible candidates for conversion are more probable to turn to militant Sunnism to
safeguard their political position rather than change camp.
Syria’s Sunnis present a different situation. Not only have they been indoctrinated
for years in a Ba’athist-Alawi regime and subjected to significant Iranian political
and economic penetration, but they have also been deprived from a rallying point
since the ouster of the Muslim Brotherhood. It is disputed whether conversions
predominately affect the Alawi or the Sunni community (official statistics point to
the former, while the Sunnis claim it is the latter under the regime’s blessing).
However, in any case, both of them are subjected to the same set of powers. Iran’s
and Hezbollah’s achievements are multiplied via Iran’s political, economic and
cultural inroads into the country. Dozens of Shia shrines have been built or restored,
hundreds of hawzas (Shia seminary) and cultural centers have been established and
several hundreds of thousands religious Shia tourists (mostly Iranian) flood the
country every year. At the same time, Iran’s huge investments engulf the Syrian
economy. If the state sector is earmarked for the close circle of Assad’s Alawi loyalists,
the private sector is not less cliental, but in this case it is the Iranians who occupy
the HR positions. It is exactly the combination of Iranian political and economic
involvement and the doctrinal-sectarian proximity of the two regimes that allowed
Teheran to establish an enormous mechanism of cultural influence. This explains
why for example in Palestine (Gaza), despite the defamatory “Shiites” increasingly
attributed to Hamas by Fatah, there is no such phenomenon.
In the final analysis, as a Shiite cleric in Saudi Arabia said: “People in the region always
complain about a Shiite crescent...That’s just a crescent. What about the full Sunni moon?” The exact
extent of the “Shia invasion” little matters. It is more interesting and important to
see if the Sunni world and especially Saudi Arabia is capable to recuperate from 9/11
setbacks and put again in motion its extensive counter-Iranian mechanism that
worked so effectively in the 1980s.NE
Paulo Vizeu Pinheiro*
A situação actual no Cáucaso
22
A situação actual no Cáucaso
AGRADEÇO AO PROFESSOR LUÍS Filipe Tomás, da UCP, e ao Embaixador Carlos Neves Ferreira,
Presidente do Instituto Diplomático que me desafiaram para participar nesta mesa
redonda sobre a região do Cáucaso. Aceitei de imediato, pois sabia que seria sempre
um enorme prazer regressar, ainda que por breves instantes, à casa onde me licenciei
e onde frequentei, em simultâneo, uma pós-graduação e um mestrado.
Começaria por uma pergunta provocatória.
Qual o interesse de e para Portugal? É que não importamos nem petróleo nem gás. Para
Portugal, em termos concretos, quer energéticos, quer económicos ou comerciais, é
uma espécie de non issue. Também não é uma zona de passagem dos nossos bens. Não
é sequer um entreposto de serviços para o nosso país.
• E em termos humanos, de imigração (segurança humana e segurança
nacional) a importância do Cáucaso é também reduzida.
• O Cáucaso não reflecte nenhum interesse vital ou fundamental, verdadeiramente
insubstituível ou incontornável. Também não constitui uma ameaça à nossa
segurança.
• Ainda para mais é provavelmente a região com maior concentração de
conflitos irresolúveis por km2 – os hoje chamados conflitos gelados, mas que,
desde há séculos, existem sobre outras denominações. Conflitos anteriores a
Pedro o Grande ou Catarina.
• Reparem que os períodos de alguma estabilidade e identidade nacional, na
Arménia ou Geórgia, são sempre muito curtos. Aproveitando as transições nos
ciclos imperiais. O período mais recente, o do fim da URSS, também
testemunhou conflitos secessionistas e integracionistas. Ou seja, mesmo no
*
Diplomata, Director-geral de Política da Defesa Nacional. Intervenção num Seminário organizado pela
Universidade Católica.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28
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A situação actual no Cáucaso
•
período ideal para afirmação nacional, de desagregação súbita do império
soviético, os conflitos, do início dos anos 90, extremamente sangrentos, não
tiveram um desfecho minimamente claro ou estável, como sucedeu, em
grande medida, nos Balcãs, em que a antiga Jugoslávia se desdobrou e
multiplicou em países viáveis, hoje membros da UE ou NATO, ou a estes
candidatos.
Mais, por razões de simplificação analítica gostamos de nos referir ao Cáucaso
como uma região bem definida. Mas estamos a falar do Cáucaso do Sul, com
três países independentes que muito pouco têm a ver entre si em termos
políticos, culturais e militares. A Arménia, a Geórgia e o Azerbeijão. O Cáucaso
do Norte é todo ele russo, mas também muito diverso em termos de moldura
humana, cultural e até confessional. Se me perguntarem o que é que têm de
comum a Ingushia, a Chechénia ou o Daguestão, diria que o jugo estatal
russo, o rublo, a língua russa e a administração. Mas o Daguestão poderia ser
considerado uma extensão natural do Azerbeijão. E a Ingushetia, uma extensão
europeizada da Chechénia. E a Chechénia, um país como o Iémen… Mas se
espetarem uma vara, em Grozni, ela vem manchada de preto, com petróleo a
1 metro. Muitas casas na Chechénia têm mini-refinarias improvisadas. Em
2000, as Forças russas desmantelavam por mês entre 1500 a 2000 refinarias
rebeldes. Agora imaginem aquelas que colaboravam com os exércitos russos.
Hitler não hesitou em procurar chegar até Baku para garantir o que hoje
chamaríamos segurança energética… e sofreu a maior derrota, a de Estalinegrado, que muito analistas militares consideram o ponto de viragem da
segunda guerra mundial.
Estes territórios, do norte e sul do Cáucaso, tresandam a petróleo, tresandam
a gás, e estão no ponto de passagem que liga a Europa à Ásia, no ponto de
passagem comercial por excelência entre blocos de interesses, entre potências
comerciais, entre pólos de hegemonia militar.
Mas a cultura local não mudou, desde o tempo do “Prisioneiro do Cáucaso”,
de Pushkin, que relata as desventuras de um soldado russo na transição do
século XVIII-XIX escravizado pelos islâmicos chechenos, isto no apogeu do
controlo cossaco. Em 1998, no tempo do moderado autoproclamado Presidente
checheno Aslan Maskhadov, aplicava-se a Sharia em Grozni, e todas as semanas
havia decapitações e amputações, decretadas pelas Shuras. Em 1999, foram
decapitados em segredo, pelos combatentes chechenos, 4 trabalhadores
A situação actual no Cáucaso
24
•
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•
•
•
britânicos de telecomunicações, acusados de espionagem a favor dos imperialistas ocidentais mas também ao serviço do imperialismo russo. Em 2000,
ainda decorrendo a campanha brutal e sangrenta militar russa, eram
descobertos, em buracos, “escravos”, normalmente eslavos, mas também de
culturas inferiores à chechena, como jordanos ou iemenitas… Estamos a falar
de práticas do Século VIII mas no século XXI. A corrente islâmica mais em
voga na Chechénia é a do Waabismo saudita, a de Bin Laden.
Para Moscovo, nenhum Estado ou mais apropriadamente Província ou Região
da Federação russa é separável. E muito menos os do estratégico e
economicamente rentável Sul. Importa não esquecer que há outras províncias
russas de matriz islâmica, como o Tatarstão ou a Bashkiria. O mesmo se diga
de algumas regiões siberianas ou o extremo oriental russo, onde os problemas
têm outro nome, como a fragilidade demográfica e a fortaleza económica,
comercial e demográfica da confinante China.
Daí que desde há muito, já dos tempos de Ieltsin, mas agora agravado pela era
neonacionalista expansiva ou musculada de Putin, que os Russos designam
por “vizinhança próxima” o Cáucaso do Sul e até a Bielorrússia ou mesmo a
Ucrânia, na frente ocidental.
E em plena Europa da União Europeia e da NATO, os russos mantêm, com
mão de ferro, o enclave de Kaliningrado. Para a identidade Russa, o país tem
11 fusos horários, de Kaliningrado até Kamchatcka, onde a zona de
contencioso territorial das Kurilas, tem como adversário o Japão.
Ou seja, quando falamos do Cáucaso estamos em grande medida a falar da
Rússia e da sua afirmação, crescente e musculada, como pólo de poder, face
aos EUA, UE-NATO, incluindo aqui naturalmente a Turquia, mas também o
Mundo árabe da região do Golfo, o Irão, a China e a Índia.
Mas será que a Rússia tem direito a ter um backyard? É do interesse europeu?
Dá-nos mais ou menos estabilidade? Qual o interesse ocidental em jogo?
Se me perguntarem se o Cáucaso é importante para a segurança e estabilidade da Europa,
da Eurásia e da Ásia, não hesito em responder afirmativamente.
• Portugal pode não ter um interesse directo, vital ou não, na região. Mas tem
um interesse mediato muito importante, como país da UE, como Aliado da
NATO e como nação com uma política selectivamente global e de vocação
universalista.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28
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A situação actual no Cáucaso
• Como país da União Europeia, Portugal não pode ser indiferente ao jogo, estrondosamente geoestratégico, eu diria neoclássico, que se está a desenrolar no
Cáucaso. E que, pela via colectiva, o afecta, quer em termos económicos, comerciais
europeus, quer em termos de segurança de vanguarda ou fronteira europeia.
• A segurança energética – e estamos a falar do euro-asiático Cáspio ao euro-europeu Mar Negro – não nos pode ser indiferente. É também um problema
português, quanto mais não seja pela inerente pressão crescente do preço
mundial das comodities, do crude ao gás, mas também pela pressão que não
deixaremos de sentir nos nossos tradicionais mercados abastecedores resultante
da diversificação energética dos nossos parceiros europeus. Não nos devemos
fiar na elasticidade na área dos recursos energéticos. E muito menos na
plasticidade do comércio mundial nesta área, sobretudo conhecendo a OPEP
e as tentativas russas de uma OPEP do gás.
• E também importa ter em consideração que nem sempre a Europa esteve ou
está à altura dos seus interesses e capacidades. O ex-chanceler alemão é um
administrador da maior máquina de pressão político-económica russa
existente, a Gazprom. E o mercado comum energético europeu continua
ainda por alcançar não obstante as evidencias.
• E vamos ser claros, a actual crise financeira, económica e comercial mundial,
que nos pôs a todos em recessão, em pressão sócio-laboral de magnitude
planetária e totalmente imprevisível em termos de estabilidade política
governativa à escala nacional e regional, veio tornar ainda mais premente e
dramático o jogo caucasiano. Este, desenrola-se às nossas portas, pode
contaminar, através de uma geometria política e económica de mutação
permanente, o nosso Mediterrâneo, tanto o oriental – que está a passar
também por uma situação de contornos dramáticos no Médio Oriente – como
o Ocidental, o que está aqui ao nosso lado, que exporta mão-de-obra
magrebina e africana negra para o nosso pacato Sul.
• Infelizmente, já não existem conflitos puramente nacionais ou exclusivamente
regionais. A era da globalização tornou-nos interdependentes uns dos outros,
em regiões cada vez mais distantes, para o melhor e para o pior.
• E se Portugal joga também os seus interesses no Cáucaso enquanto país da
União Europeia, cuja segurança e estabilidade nos afecta directamente, o
nosso país também é actor na região enquanto aliado fundador da NATO. E
como todos sabem, a Geórgia é um candidato à Aliança, já com lugar
prometido na Cimeira da NATO em Bucareste, no ano passado.
A situação actual no Cáucaso
26
• No pior dos cenários, Portugal poderá vir a jogar a sua solidariedade ao
abrigo do artigo V. Tudo, mas mesmo tudo, devemos fazer para que o Worst case
scenario nunca venha a ter lugar.
• E aqui entra, ou deve entrar, a nossa diplomacia, política e económica, de
vocação universal e de diálogo permanente. Que não é de empreitada ou
proxi, que não é subsidiária de interesses ou lógicas de hegemonia ou
domínio.
• Portugal é, por natureza, um Honest Broker singular, pois sendo do Ocidente,
Euro-Atlântico, é também do Sul Afro-Sul-Americano e Oriental, com
presença histórica em todo o Grande Médio Oriente, que vai da Mauritânia à
Índia. Mas vamos também até ao Japão. E estivemos na Corte Russa, quer nos
tempos de Pedro o Grande, quer nos tempos de Catarina. Perguntem a todos
estes povos (até em Omã) o que pensam dos portugueses. Perguntem também
às elites. Somos uma “ponte natural” intercontinental e subcontinental.
Lembro que o nome original da Geórgia é “Ibéria Oriental”. Existe no
Cáucaso do Sul, particularmente na Geórgia e na Arménia, uma cultura
(incluindo a gastronómica) do tipo mediterrânica. As nossas raízes e os
nossos consequentes bons laços interconfessionais e interculturais, a nossa
vocação universalista e ecuménica, pode ser particularmente útil nesta região,
como tem sido em muitas outras. Veja-se por exemplo a opinião unânime de
responsáveis, oficiais ou “fácticos” libaneses, bem como dos israelitas, sobre
o profissionalismo, a perspicácia, a tolerância, o diálogo, boa percepção e
inserção do contingente português na UNIFIL.
• Dizia há dias o nosso Presidente da Comissão Europeia que numa crise
mundial desta escala, onde o sistema internacional – quer em termos geopolíticos, quer em termos de governação ou regulação global económica,
financeira e comercial – está em processo reconfiguração, de mutação
acelerada decorrente em parte da emergência célere, factual, do tão falado
mundo multipolar, são precisos mais diplomatas. Mais visão global, integradora,
com capacidade de diagnóstico frio ou pragmático mas também de previsão
estratégica de novas alianças e parcerias.
• E aqui entra Portugal, que tem um potencial único, enquanto país, enquanto
exportador de quadros qualificados, mas sobretudo, enquanto construtor de
pontes e diálogos. E também como bom e equilibrado parceiro comercial
europeu e afro-europeu.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28
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A situação actual no Cáucaso
• Falo-vos da minha experiência em Washington, Moscovo e Tbilisi (deixo de
lado África, onde também estive e onde vou regularmente). Falo-vos da nossa
participação na Troika (EUA, URSS-Rússia) sobre Angola e Moçambique
(processos de paz). Falo-vos da nossa experiência, em Moscovo, da Presidência
portuguesa do Conselho da UE em 2000, e particularmente da primeira missão
de monitorização europeia na Chechénia, que a diplomacia portuguesa
conseguiu desbloquear. Falo-vos da nossa experiência, também no ângulo de
Moscovo, da Presidência portuguesa ministerial da OSCE, em que se conseguiu
introduzir no Fórum Económico o difícil e conflituoso tema da gestão dos
recursos hídricos, explorando modelos de estabilização e criação de confiança.
• Mas que pontes podemos nós, portugueses, construir no Cáucaso? Antes de
mais ajudar a criar dinâmicas de confiança gradual entre países, directa ou
indirectamente, relacionados pelos frozen conflicts, passando por Moscovo, isto é,
não contra Moscovo. Tornando a Rússia confiante que pode ser parte ganhadora, política e economicamente, da solução e não parte do problema.
• Num dos mais complexos cenários da geopolítica contemporânea, ainda
repleto de separatismos, etno-nacionalismos, redefinição de áreas de influência,
devemos acentuar o que traz estabilidade, certeza, como os princípios da
integridade territorial, não só da Geórgia mas também da Rússia. Como
defensores de minorias, incluindo as russas
• O 8/8/8 surgiu como a mais mediatizada das tensões “Rússia/“Ocidente”.
Uma percepção errada na minha opinião. Não creio que o “Ocidente” tivesse
sido ali ameaçado, pelo menos tanto quanto os russos se sentem com a
entrada de conselheiros e instrutores militares de países da NATO e a adesão,
acelerada, à Aliança Atlântica. Mas efectivamente, a diplomacia que funcionou
com a cabeça fria foi a europeia de Sarkozi. Pergunto-me para que servem
tantos conselheiros militares quando o problema não é primacialmente
militar. Podemos ajudar os georgianos a garantirem a impermeabilidade da
fronteira georgiana com a Rússia no vale checheno de Pankissi?
• Nos 5 focos de tensão:
1. Ossétia do Sul, Geógia X Rússia;
2. Abkházia, Geógia X Rússia;
3. Nagorno-Karabakh, Arménia X Azerbaijão, 1M refugiados e deslocados;
4. Chechénia, Rússia;
5. Reconhecimento da fronteira comum, Arménia X Turquia.
A situação actual no Cáucaso
28
Cabe perguntar do papel que Portugal pode jogar no quadro europeu, não só
da UE, mas também da OSCE e Conselho de Europa, onde têm assento
interesses russos. Poderemos algum dia ser “os noruegueses do Cáucaso”, mas
de forma consistente?
• Recentemente, a Turquia, visando uma abrangente cooperação regional,
propôs “Caucasus Stability and Cooperation Platform (CSCP) initiative”, «visando o
fortalecimento da paz, da estabilidade e da segurança, encorajar o diálogo político regional,
fomentar a cooperação económica, desanuviar tensões e desenvolver políticas de boa
vizinhança na região».
Foi bem recebida pelo Azerbaijão, Arménia e Rússia.
A Geórgia, não rejeitando a iniciativa, está ainda hesitante em sentar-se à
mesma mesa com a Rússia, pelo menos enquanto decorrem sessões negociais
em Genebra;
A Turquia tem tentado convencer a Geórgia de que, agora, ainda é mais
importante o estabelecimento de um diálogo directo entre as duas partes
(dando assim relevo à importância da sua iniciativa). Mas não seria possível
contar com uma parceria luso-turca neste domínio? É que, por exemplo, na
Aliança Atlântica, temos uma relação muito próxima com Ankara e leituras
regionais convergentes. E temos a vantagem de não sermos um país da região!
E como reflexão inicial acho que termino por aqui. Muito obrigado.NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28
Meliha Benli Altunisik*
■ Abstract:
Turkey has become increasingly active in its foreign policy towards the Middle
East in recent years. This article explains Turkey’s new activism with structural
transformations in the region as well as with the new vision of the current AKP
government. Turkey’s engagement with the Middle is discussed through three cases:
Improvement of relations with neighbors; third part roles in regional conflicts; and
Turkey’s soft power. It is argued that changes in the regional landscape and Turkey’s
domestic transformations as well as expected changes in the US policy under the
Obama Administration have poised Turkey to play constructive roles in this region.
Yet such a role is also contingent on several variables related to domestic and foreign
policies of Turkey.
■ Keywords:
Turkish foreign policy; the Middle East; AKP foreign policy; Turkey’s new activism.
TURKEY HAS STARTED to play a more active role in the Middle East recently. Dangerously volatile
and unstable environment in the Middle East, and thus increasing challenges to
Turkish security, can partly explain this new activism. These challenges in the fluid
post-Cold War context required Turkey to be more interested in the region and
to be more innovative in its policy. Particularly the developments in neighboring
Iraq since 1991 War have forced Turkey to be more engaged with the region. The
general instability in Iraq as well its implications specifically for the Kurdish issue
in Turkey meant that Turkey could not ignore what happens in the Middle East. Yet
Turkey’s interest in the region also goes beyond strategic interest. Especially after the
coming to power of the Justice and Development Party (Adalet ve Kalkınma Partisi-henceforth AKP) in 2002 the government has developed a comprehensive Middle
*
Professor. Department of International Relations, Middle East Technical University, Ankara 06531 Turkey.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
29
Turkey’s new activism in the Middle East
Turkey’s new activism in the Middle East
Turkey’s new activism in the Middle East
30
East policy which underlined the importance of historical and cultural ties and
responsibilities to this region in addition to strategic interest.
Thus the AKP continued Turkey’s new engagement in the region and added some
new dimensions to it.1 In practice this new interest translated into three interrelated
policy outputs. First, the AKP developed a “zero-problem with neighbors” policy
and thus made an effort to improve Turkey’s relations with its Middle Eastern
neighbors. This perspective also meant moving away from security oriented and
zero-sum mentality; instead the government emphasized constructive engagement
and win-win. Second, the new activism meant engagement in regional conflicts as a
third party. This constituted a departure from traditional Turkish policy which
avoided entanglement in regional conflicts. Third, the government began to
emphasize Turkey’s soft power in the region in addition to its hard power. This article
will analyze these three policy outputs and then discuss the opportunities and
limitations of this policy.
Improving Relations with Neighbors One of the consequences of new forms of activism
and engagement has been improved relations with the Middle East. Compared to
the most of the 1990s, Turkey’s has been able to develop closer relations with the
regional countries. The new strategic environment that emerged after Iraq War of
2003 as well as AKP government’s efforts contributed to this development. The most
important example has been the successful transformation of conflictual relations
with Syria into a quite cooperative one.2 Turkish-Syrian relations hit the bottom
when Turkey threatened Syria with the use of force in October 1998 if it did not
cut its support to the PKK, illegal Kurdish organization fighting against the Turkish
state. The crisis was resolved with Adana Agreement when Syria committed to end
its support to the PKK. After the resolution of this particular conflict Turkey has been
determined to take the bilateral relations beyond normalization. As a result, the two
countries have been able to establish quite close and diversified relationship since
then.
1
For more on this new vision and it’s comparison with other visions see ALTUNISIK, Meliha Benli, “Worldviews
and Turkish Foreign Policy in the Middle East”, Special Issue on Turkish Foreign Policy, New Perspectives on
Turkey, forthcoming.
2
ALTUNISIK, Meliha Benli and TUR, Özlem, “From Distant Neighbors to Partners? Changing Syrian-Turkish
Relations,” Security Dialogue 37, 2 (2006): 229-248.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
3
OLSON, Robert, Turkey-Iran Relations 1979-2004: Revolution, Ideology, War, Coups, and Geopolitics, Costa
Mesa, CA: Mazda Publications, 2004; ARAS, Bulent, “Turkish Foreign Policy towards Iran: Ideology and
Foreign Policy in Flux”, Journal of Third World Studies, Spring 2001.
4
“First Turkey-Arab League Forum to meet in ·Istanbul”, Turkish Daily News, 11 October 2008.
5
Hürriyet, 19 December 2008.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
31
Turkey’s new activism in the Middle East
Turkish-Iranian relations also improved through enhanced security cooperation
and deepening economic relations.3 First, the two countries cooperated against the
separatist Kurdish organizations of PKK and its Iranian version PJAK. Such cooperation
had intensified after Iraq War of 2003. To reflect the new level of cooperation Turkey-Iran High Security Committee, which was established in 1988 but largely remained
ineffective in those years, was revived. The 12th meeting of the Committee convened
in Ankara in April 2008 was said to be once again dominated by discussion on
security cooperation against terrorism. In the meantime, Turkey and Iran started to
deepen their energy cooperation. There is already a natural gas pipeline from Tabriz
to Ankara that became operational in 2001. As a result Iran has become Turkey’s
biggest supplier of natural gas after Russia and accounts more than 20 percent of its
imports. In May 2007 Turkey and Iran agreed in principle over dam and power
station construction and electricity trade. In July 2007 the two countries signed a
deal to use Iran as a transit for Turkmen gas and also agreed to develop Iran’s South
Pars gas field to facilitate the transport of gas via Turkey to Europe as part of the
Nabucco project.
In general, Turkey’s relations with -and the image in- the Arab and Islamic world
have improved significantly. Turkey established the Turkish-Arab Cooperation Forum
with the Arab League.4 Turkey also got the post of Secretary-General of the
Organization of the Islamic Conference (OIC) in March 2008. This was the first time
that the Secretary General was determined through election in the organization.
Ekmelleddin Ihsanoglu was re-elected in March 2008.
Turkey has also been able to develop more cooperative relationships with all the
communities in Iraq, including finally with the Kurdistan Regional Government
(KRG). Turkey was able to come to a point of cooperation on PKK issues with the US
and Iraq in 2008. The central Iraqi government was already more inclined to
eliminate the PKK as a negative factor in Turkish-Iraqi relations. Iraqi Prime Minister
Nuri el-Maliki reiterated this position during his visit to Ankara in December 2008
and said “PKK’s actions are designed to create problems in Turkish-Iraqi relations”.5
Turkey’s new activism in the Middle East
32
Nevertheless, there were limitations to what the central government could do as long
as the KRG refused to cooperate. Thus it was quite significant that Turkey and the KRG
were able to develop a working relationship on this issue. Faced with the reality of US
withdrawal and increasing power of the central government under Maliki, the KRG
realized that it would no longer gain by using the PKK against Turkey. On the contrary,
it needed Turkey as an outlet to the world. Thus, the KRG ended its hostile rhetoric
against Turkey and started to put pressure on the PKK in its region. Turkey responded
by opening an official dialogue, for the first time since 2003.
Turkey as a Third Party In addition, Turkey has become more eager to play third party roles,
promoted network of economic and political relations, engaged more in coalition
building activities. In sum, Turkey increasingly began to favor engagement as a form
of dealing with challenges it faced in the region. In the context of bipolar regional
system in the Middle East, Turkey defined itself as a constructive power willing and
able to talk to both blocs.
Eagerness to play third party roles is a relatively new aspect of Turkey’s Middle
East policy and in significant contrast to Turkey’s long-held policy of not getting
involved in regional conflicts. Again changing geostrategic environment and
increasing instability in the region began to have repercussions for Turkey and forced
Ankara to be more involved in the management of conflicts. The protracted conflicts
led to radicalization and a constant threat of war in the region. The continuation of
Arab-Israeli conflict also allows some states to exploit the conflict to increase their
power and influence in the region. For instance, the Palestinian conflict has allowed
Iran to increase its power and influence beyond its immediate neighborhood and
made it effectively a Mediterranean power. These developments upset the regional
balance of power and thus are of concern to Turkey. In addition, the current AKP
government has also been particularly eager to play third party roles in the region.
The government believes that due to its historical ties with this region, Turkey cannot
be indifferent to what happens there.
The examples of Turkey’s third party roles are many. The involvements in the
Israeli-Syrian track as well as the Palestinian issue will be discussed in more detail
below. Yet Turkey has also been involved in Lebanon. Turkey is participating in
UNIFIL II which was created after the Lebanon War in 2006. Together with Qatar,
Turkey was also instrumental in brokering the Doha Agreement that ended the
political stalemate in Lebanese politics.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
6
“Iran sought Turkey’s help to mend links with US, says Erdogan,” Guardian, 24 February 2009.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
33
Turkey’s new activism in the Middle East
Similarly Turkey has been announcing its eagerness to play roles in Iranian
nuclear issue. The possibility of a nuclear Iran imposes limitations on Turkish-Iranian
relations. Turkey is disturbed by a nuclear Iran as it would completely alter the
bilateral and regional balance of power. This would go against the main principles of
Turkish foreign policy in the region and vis-à-vis Iran, which rejects regional
domination by a country. This would also be against the Turkish position of having
a WMD-free Middle East. Thus, possible nuclearization of Iran, which may provoke
a general proliferation in the region, is not clearly welcomed by Turkey. However,
Turkey is also concerned about the escalation of conflict between its Western allies
and Iran. The failure of diplomatic channels and a possible military operation against
Iran entails several minefields from Turkey’s perspective. All the possible scenarios
such as chaos in Iran or Iranian retaliation would have enormous economic, political
and strategic repercussions for Turkey. Ultimately Turkey is trying to maintain a
delicate balance between its desire to see a stable Middle East and its Euro-Atlantic
relations. In these conditions so far Turkish policy has been formulated under three
pillars: Making it clear that Turkey would not let the use of its territory for an attack
against a neighboring country; using Turkey’s relations with Iran, the US and the EU
to facilitate diplomatic solution to the problem; harmonizing its policies with the
international community, particularly with that of the International Atomic Energy
Agency (IAEA). In the meantime, Turkey has been giving Iran the message that it
should be transparent about its nuclear program and cooperate fully with the IAEA.
During the Bush Administration Washington reacted negatively for any Turkish role
to mediate with Iran as well as being highly critical of developing Turkish ties with
that country. However, with Obama Administration’s declarations of its willingness
to talk to Iran, Turkish Prime Minister Erdogan said that the government was
considering raising the issue of mediation with him.6 The intensification of visits
recently with Tehran points to a possibility of such a role for Turkey in the new
period.
Turkey also tried to play constructive roles in Iraq. In 2003 Turkey initiated Iraq’s
Neighbors Forum, which later expanded to include Iraq. The Forum continues to
meet at the level of foreign and interior ministers and aims to tackle the Iraqi issues
on a regional basis and to foster confidence building measures in this sub-region.
Turkey’s new activism in the Middle East
34
Similarly Turkey organized a meeting in Istanbul with the participation of Sunni
leaders from Iraq to convince the Sunnis to participate the elections in 2005.
Mediation between Israel and Syria:
Following the gradual improvement of it’s relations with Syria after the October
1998 crisis Turkey began to pass messages to both Syria and Israel that it would be
ready to bring them together if they were ready to do so. After the collapse of Syrian-Israeli talks in 2000 and the deterioration of U.S.-Syrian relations under the Bush
administration the US was not in the scene to restart the negotiations. Turkey was the
only country in the region with good ties to both sides that could play such a role.
Ankara believed that resolution of the Israeli-Syrian conflict would not only bring
peace and stability to the region, but also engage Syria more constructively into the
regional politics. Thus with these considerations in mind Prime Minister Erdogan is
said to be involved personally and to have conveyed messages to both sides.
Finally in May 2008, after several failed attempts, the two countries started
indirect peace talks in Istanbul under Turkey’s aegis. The two parties had their own
reasons to engage in the process. As a result, Israel and Syria held four rounds of
indirect negations in Turkey after the peace talks were launched in May. The talks
were suspended when Israeli Prime Minister Ehud Olmert announced he would step
down as a result of charges of corruption brought against him in Israel. During
Olmert’s visit to Ankara in December 2008 Erdogan and Olmert had a meeting that
lasted more than five hours. Later it was revealed that through telephone diplomacy
Turkey had facilitated another round of indirect talks and aimed to bring parties to
agree on starting direct talks soon. The parties began working on a common text to
that end. However, when five days after Olmert’s visit to Turkey Israel launched its
Gaza operation, Turkey announced that it ended its efforts of facilitating Israeli-Syrian talks.
Israeli-Palestinian Issue:
Historically Turkey has been concerned about the Palestinian problem and for long
argued for a negotiated settlement based on two-state solution. Thus Ankara
supported the Peace Process that started with the Madrid Conference in 1991. Turkey
headed the ACRS (Arms Control and Regional Security) multilateral group within
that context and became part of the Temporary International Presence in Hebron
which was formed in 1997. Turkey has also been providing development and
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
35
Turkey’s new activism in the Middle East
humanitarian aid for Palestinians. Since the Paris Protocol of 1996 Turkey has
provided a total of 10 million US Dollars in the fields of health, education, public
administration, institutionalization, security, tourism and agriculture.
In terms of capacity and institution building activities, Turkey has supported the
political reform process and Turkish experts participated in constitutional and
administrative reform efforts in Palestinian Authority. Similarly Turkish Foreign
Ministry conducted Young Palestinian Diplomats’ Training Program. Another such
attempt has been the TOBB-BIS Industry for Peace Initiative, which has been led by
the Turkish Chambers and Commodity Exchanges. Part of this initiative is the Ankara
Forum, consists of the representatives from the Chambers of Commerce of Israel,
Palestine and Turkey, based on the understanding that private sector dialogue is good
for confidence building. The Forum has so far had five meetings. Another aspect of
this initiative is to focus on the specific project of Erez Industrial Zone. After Hamas
takeover in Gaza the project was decided to be moved to the West Bank. This project
also is based on the understanding that there is a close correlation between economic
development and peace and thus aims to contribute to the Palestinian economy by
creating up to 7,000 jobs. The project also offers profit for the Turkish companies
and security for Israel on its borders. Thus it is a win-win project for all the parties
involved. However, the implementation of the project has been slow due to first
worsening security situation in the area and the problems of signing a security
protocol with Israel. In addition to TOBB Initiative, projects about pipelines for
energy, water and power supply are also under discussion.
With the eruption of al-Aqsa Intifada and increasing violence and instability in
the region Turkey has supported activities to cease hostilities. Former President
Suleyman Demirel was part of the Mitchell Commission which was formed after the
eruption of violence in 2000. Turkey formed the Jerusalem Technical Committee to
investigate whether the excavation works by Israel are detrimental to Haram al-Sharif.
Turkey also supported the Quartet and its Road Map.
After the victory of Hamas in the legislative elections Turkey also took a bold
step in its role as a third party in the Israeli-Palestinian conflict and invited Khaled
Mishal, Hamas leader who is currently residing in Damascus. The Turkish government
later announced that Mishal was called to convey the message that now that it won
the elections it should act in a reasonable and a democratic way. However, Mishal
made no announcement of moderation or change in policy while he was in Turkey
and thus the whole saga served only to give legitimacy to him. The visit was thus
Turkey’s new activism in the Middle East
36
created a debate in Turkey and raised doubts about previous involvement of the
Foreign Ministry in whole affair. The visit of Mishal on the other hand demonstrated
how far the AKP government was ready to go in its third party role. In this case
Turkey was threading a very fine line that could hurt its longstanding role as an
honest broker. More than the idea of talking to Hamas, which could be a valuable
third party role for Turkey, the way it was done was problematic.
Disappointed by post-Annapolis inaction and the negative impact of the embargo
on the Gaza population, the Turkish government emphasized the volatility of the
situation throughout 2008. Prime Minister Erdogan referred to Gaza as an open prison
and apparently asked the Israeli government to lift the blockade. When the cease-fire
between Hamas and Israel ended, Ankara supported Egypt’s efforts to extend it.
The Israeli attacks against Gaza created a harsh response from the Turkish
government. Prime Minister Erdogan immediately started a regional tour where he
paid visits to Jordan, Syria, Egypt and Saudi Arabia. He also had talks with the
President of the Palestinian Authority, Mahmoud Abbas. Then the Turkish diplomats
got involved in a shuttle diplomacy to broker a cease fire.
The government’s response to Gaza attack however seemed to tarnish Turkey’s
image as an honest broker in the conflict. Especially the Prime Minister’s approach
to the issue was quite emotional. Erdogan was very critical of Israel and yet equally
silent about Hamas’ share of responsibilities in the whole saga. The overall Turkish
attitude during the crisis gave the impression of Turkey acting as a spokesperson for
Hamas. Although this attitude has become popular with the masses in Turkey and in
the Middle East, it created tensions in Turkish-Israeli relations. The relations were
restrained further when Erdogan clashed angrily with Israeli President Shimon Peres
in Davos and stormed out of the meeting.
On the other hand, the new setting also created some opportunities for Turkey
to be influential over Hamas and to convince it to behave act as a legitimate political
party. Turkey has also been active in reconciling Fatah and Hamas, which seems
essential for any progress in the peace process. Whether Turkey could use this
potential, however, remains to be seen.
In any case, however, both the regional and extra regional actors recognize
Turkey’s significance in the region. This fact, coupled with Turkish government’s
continuing eagerness to be engaged, creates a space for Turkish activism. Both Israel
and Turkey have already engaged in downplaying the impact of the recent crisis and
engaged in damage control. It is also clear that Turkey stands out as the most important
partner for Obama Administration in the wake of new initiatives in the region.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
From Hard to Soft Power In the 1990s Turkey tried to tackle the challenges emanating from
the Middle East through traditional power politics approach. Ankara redefined its
strategy and identified the Middle East as the number one source of threat to Turkey.
Casting of the issue as one of an existential threat called for increasing use of military
means towards the region. Turkey’s new policies led to a general deterioration of
Turkey’s relations with the region. Thus, in most of 1990s Turkey had problems with
its Middle Eastern neighbors. Ankara only perceived threats from the region and
tried to deal with those threats through the use of hard power. Turkey used the threat
to use of force against Syria, militarily intervened in northern Iraq to deal with the
PKK problem and developed its military ties with Israel.7
In recent years Turkey has also been increasing its ability to use soft power. Due
to its political and economic transformation, linked strongly to the EU process,
Turkey has become an object of attraction. Especially the AKP government has been
eager to project Turkey as a soft power in the Arab and Muslim world. In their
speeches at different meetings both Prime Minister Erdoğan and then Foreign
Minister Abdullah Gül stressed the compatibility of Islam and democracy; the
necessity of political and economic reform in the Islamic world; and the promotion
of harmony between different cultures and civilizations. Turkey, from this perspective,
was an example of all that. In his speech at the Council on Foreign Relations in New
York in 2004 Prime Minister Erdogan stated that Turkey
as a stable country with a successful development model, its place within the
Western world, its rich historical heritage and identity. Turkey will become a
symbol of harmony of cultures and civilizations in the 21st century. Turkey will
7
For Turkey’s Middle East policy in the 1990s see ROBINS, Philip, Suits and Uniforms: Turkish Foreign Policy
Since the Cold War, Seattle: University of Washington Press, 2003.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
37
Turkey’s new activism in the Middle East
In sum, Turkey has increasingly been involved in the management and resolution
of conflicts in the Middle East, and its role has been accepted by different regional and
external actors. However, it is clear that Turkey needs to study and think more about its
goals and the appropriateness of its various methodologies. In doing so, Turkey must
to assess its own capabilities and connection to the conflicts, as there is a danger of
having an expectations-abilities gap. Similarly, in each case, there should be an
assessment of costs and benefits, as the Mishal visit vividly demonstrated. Finally, there
is the danger of overextension as Turkey remains eager to play third party roles.
achieve this not only through economic and military power, but with its
capability to contribute to universal values and to facilitate the interaction of
these values among different regions. In this regard, Turkey will be a reliable
power for the maintenance of security, a partner for economic development, and
an ally in overcoming existing instabilities in its vicinity, primarily in the Middle
East. Thus, Turkey will become a source of inspiration for the countries in its
region in taking steps which will prevent them from becoming failed states.8
Turkey’s new activism in the Middle East
38
Similarly, Gül in his speeches at the Organization of Islamic Conference (OIC)
foreign ministers meeting in Tehran in May 2003 and the World Economic Forum
meeting in Jordan emphasized the importance of achieving good governance,
transparency, accountability, respect for human rights, and integration with the rest
of the world for the Islamic world. 9
Turkey has also been instrumental in trying to fight with the idea of a clash
between the Islamic world and the West. Thus together with Spain Turkey became the
co-president of an initiative called Alliance of Civilization under the UN auspices. As
a country with a Muslim population and historically been part of the Western
institutions Turkey is out to lose tremendously from a clash between civilizations.
Thus the prevention of such a clash and promotion of links between two worlds has
become an important part of AKP government’s policy.
Recently Turkey’s image in the Arab world and Iran has further improved as a
result of Turkey’s critical stance against Israeli policies and particularly the recent
Gaza assault. Turkey’s new policies undermined two powerful criticisms traditionally
directed against Turkey in the region: namely, being a stooge of the US in the region
and its relations with Israel. Turkey’s new activism is thus characterized by a respected
Arab intellectual as “a regional power out of hibernation.”10
Turkey’s newfound popularity is reflected in the popularity of Turkish TV series
in the Arab world. The Turkish lifestyle that is reflected in these dramas has clearly
attracted a lot of interest in Turkey, as demonstrated in increasing tourism to Turkey
as well as interest in learning the Turkish language.
8
ERDOGAN, Recep Tayyip 2004. “Turkish Foreign Policy for the 21st Century”, Council on Foreign Relations,
January 26, available at www.cfr.org/publication.html?id=6717 accessed on September 22, 2008.
9
GUL, Abdullah, “Turkey’s Role in a Changing Middle East Environment”, Mediterranean Quarterly, Winter 2004.
10
Adonis, “Turkey: A Regional power out of hibernation,” 2 February 2009 available at http://adonis49.
wordpress.com/2009/02/02/turkey-a-regional-power-out-of-hibernation/ accessed on 5 March 2009.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39
39
Turkey’s new activism in the Middle East
Therefore, it can be argued that geopolitical threats and opportunities together
with AKP government’s willingness as well as changing image of Turkey in the
region come together to create new opportunities for Turkey to play constructive
roles in the Middle East. Turkey looks attractive to different actors as it promotes
cooperation, constructive engagement, stability, regionalism and wealth rather than
conflict, instability, and domination. The realization of playing such roles for Turkey,
however, is also contingent on several factors. First, domestically Turkey should be
able to overcome the politics of polarization that has debilitates the country from
time to time and should continue its own reforms and democratization process.
Turkey’s own domestic political and economic strengths will increase its assets as to
playing more constructive roles in the region. Second, in terms of foreign policy the
issue of reconciling Turkey’s activism in the Middle East with that of Turkey’s
traditional Western orientation will continue to be at utmost importance. This does
not mean to agree totally on every policy issue, and yet it signifies an agreement on
the general norms and principles and working towards similar objectives. With the
Obama Administration there seems to be more convergence between the US and
Turkey in that regard. Continuation of the EU process is also very significant in that
respect. The evolution of Turkey’s Middle East policy towards more constructive
engagement and increase in Turkey’s soft power potential have occurred within the
context of improving Turkey-EU relations. Similarly, it is also clear that there is much
for Turkey to contribute the EU’s actorness in this region. Therefore, positive
developments in Turkey-EU relations are bound to create new synergies in the
region. If Turkey can be successful in achieving these domestic and foreign policy
objectives this would contribute immensely to the prosperity and stability in a
region where they are badly needed.NE
Anton Bebler*
What to do about the Western Balkans?
40
What to do about the Western Balkans?
■ Abstract:
At the turn of the last century outward tranquillity was imposed on the – Western
Balkans, the most volatile and troublesome part of the European continent. The
termination of large scale violence however did not add up to long-term stability in
the region. Its political elites have proven to be incapable and/or unwilling to resolve
among themselves peacefully their differences and to provide for the region’s security.
The management of the most burning problems in the Western Balkans would be best
assured within the process of European integration. With active and well coordinated
roles played by key international organizations, the Western Balkans could be
eventually transformed into a region of security, democracy and prosperity.
■ Key words:
Western Balkans, Balkanization, Kosovo, security, international community, UN,
OSCE, EU, NATO.
POLITICAL TENSIONS IN 2008 related to or in Kosovo, Serbia, Macedonia and Bosnia & Herzegovina
have again attracted attention to the Western Balkans in mass media and in several
important international bodies (UN, OSCE, EU, NATO). The purpose of this article
is to elucidate the Balkans’ manifold complexity, its conflict potential, the recent
geopolitical shifts in and around the region, the controversial problem of Kosovo, its
international implications and the lessons that could be drawn from the international
community’s record in dealing with the volatile Western Balkans.
The general characteristic of the region During the last two centuries the Western Balkans
have well merited the distinction as the most volatile and troublesome part of the
European continent. Throughout the XXth century local armed conflicts and coalition
*
Professor. Faculty of Social Sciences, University of Ljubljana, Slovenia. [email protected]
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
1
Blank, Stephen J. (ed.), Yugoslavia’s wars:The problem from hell, Carlisle, Pa, Strategic Studies Institute, U.S. Army War
College, 1995, Chapters 2,3,5,6.
2
Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard, Basic Books, 1997, New York, Chapter 3 ‘Euroasian Balkans’,
pp. 7-25, 29-45, 99-108.
3
Johnsen, William T., Deciphering the Balkan enigma: Using History to Inform Policy, Carlisle, Pa, Strategic Studies Institute,
U.S: Army War College, 1995, Chapters 2 in 3, pp. 9-60.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
41
What to do about the Western Balkans?
wars with continental implications, terrorism, uprisings, revolutions, coups d’etat, mass
expulsion of population, outright genocide and other forms of violence have at almost
regular intervals punctured the periods of regional peace. After four decades of relative
calm the latest bouts of bloody violence and wars in the region took place again in
1990-1995 and in 1998-1999.1
This former upsurge was largely triggered by otherwise positive developments –
by the end of the “Cold War”, the breakdown of communist regimes and by the
ensuing transition in Eastern European states to more democratic political systems and
to market economies. The Western Balkans have once again shown high sensitivity to
the shifts in the balance of power among major extraregional actors. In these respects
the Balkans have differed very appreciably from all other regions in Europe, including
the Northern half of former Eastern Europe Not incidentally the geopolitical fault line
stretching from South-Eastern Europe eastward all the way to the Pacific was branded
by Z. Brzezinski the “Euroasian Balkans”.2
The geopolitical instability in the Balkans has had deep historical roots. During more
than a millennium numerous incursions, conquests and migrations created in the
Balkans a unique and most heterogonous mixture of peoples and ethnic groups speaking
different languages and professing different religions.3 South Eastern Europe overlaps
partly with the Mediterranean, Central Europe, Pannonian and the Black Sea regions. The
central part of South Eastern Europe – the Balkans have been for many centuries divided
between several empires, all with extraregional centers of power. The Balkans have
therefore never become a viable and coherent region in cultural, economic or political
sense. Even its present name was invented about three and a half centuries ago by
outsiders (German geographers) mistakenly using a Turkish word for a “mountain”.
After four centuries of Ottoman domination and their withdrawal from most of
their former European possessions the Balkans have become a complicated political
mosaic clearly lacking the own center of gravity. The disintegration of ex-Yugoslavia in
stages between 1991 and 2008 has greatly increased the number of states in the
Western Balkans. The proclamation of Kosovo´s independence was the latest
development in this direction. However the potential for further political fragmentation
in the region, largely following the ethnic–national lines has not yet been fully exhausted,
What to do about the Western Balkans?
42
in spite of the general disapproval of ‘Balkanization’ by major powers. Each of the seven
much smaller states which resulted from the breakdown is today much more
homogeneous within its own boundaries from the ethnic, religious and cultural view-points than had been the SFR of Yugoslavia.
The dramatic change, wars and other developments since the late 1980s have also
caused huge economic dislocation and damage to the region.4 The Western Balkans still
have not reached the pre-1991 levels of industrial and agricultural production. In some
parts of the region war losses, dislocation of human and natural resources, the breakdown
of previously integrated transportation and energy systems, economic fragmentation
and the loss of markets wiped out the positive results of up to three decades of the
preceding economic progress. The very uneven damage to their economies has greatly
increased the disparities between the most and the least prosperous parts of the region.
The intraregional differentials in GNP per capita and in the level of unemployment
inside have gone up dramatically. Huge disparities and poverty in parts of the region
inevitably feed illegal trafficking and organized crime. It is estimated, for example, that
about three fourths of heroin is being smuggled to the EU area from/via the Balkans.
Social instability, economic difficulties and political unrest have very significantly
contributed to the continuity of negative national and religious stereotypes created and
maintained by the generations-long indoctrination with historical myths.5 Interethnic
tensions have been further magnified by modern mass media manipulated and exploited
by ruthless politicians. The traumatic history of the region has thus served as a powerful
tool for mass mobilization with nationalist, religious and xenophobic slogans. All this
has led to the most tragic results in Bosnia and Herzegovina and in Kosovo.
The present security situation in the Balkans The tectonic geopolitical shifts in the early
1990s and the crisis of neutralism and nonalignment led to a radical political and
military realignment in the Balkans and also in the region’s relations with external
powers. With the greatly reduced Russian influence (and the total eclipse of the
shortly-lived Chinese political presence in Albania) practically the entire region has
become oriented towards the West. As the region lacks large scale mineral, energy or
other resources its geopolitical importance has relatively declined. The Balkans have
furthermore ceased to be an object of overt contests for political and military control
4
Altmann, Franz-Lothar, Regional economic problems and prospects in The Western Balkans: Moving on, Chaillot Paper no.70,
Paris, Institute for Security Studies, 2004, p.p. 69-84.
5
Batt, Judy, Introduction: the stabilisation/integration dilemma in The Western Balkans: Moving on, Chaillot Paper no.70, Paris,
Institute for Security Studies, 2004, p.p. 7-19.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
6
Burg, L. Steven, Negotiating a settlement: lessons of the diplomatic process in Yugoslavia’s wars: The problem from hell, 1995,
p.p. 47-86.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
43
What to do about the Western Balkans?
or domination by external powers. The extra-regional sources of conflict in, over or
about the Balkans have been therefore greatly reduced. Most importantly, the Balkans
are not anymore Europe’s powderkeg as they were in 1914. Instead the region gained
in international notoriety as a source of frequent troubles and as a costly nuisance.
On the other hand, the geopolitical shifts have also greatly diminished the big
powers’ positive motivation for providing international assistance to the region.
Since June 1999 outward tranquility was imposed on the Western Balkans. After
several unsuccessful attempts by UN, CSCE/OSCE and EEC/EU6 the end of armed
hostilities was achieved primarily by NATO. After considerable hesitation the Western
powers had decided in mid-1990s to intervene, politically and militarily in the
Balkans. The very positive result of their forceful military and political interventions
the termination of armed violence in Croatia, Bosnia and Herzegovina, Kosovo and
Macedonia. It was followed by the advances of competitive political democracy
which have however remained rather superficial. The tranquility in the region has
been since preserved by de facto international protectorates over parts of the region.
These systems of external surveillance and assistance have included the stationing of
peace-keeping and stabilization troops, the presence of international police, armed
and unarmed observers, judges, ombudsmen, administrative overseers etc.
As was noted earlier the termination of the East-West political and military
rivalry over the Balkans has had security-wise both negative and positive consequences.
The suppression of armed violence by superior force did not add up to long-term
regional stability, as was manifested in 2008 in Kosovo, Serbia, Macedonia and
Bosnia & Herzegovina. The security situation in the Western Balkans still remains
precarious and we observe in the region a combination of old sources of tensions
and some new positive developments. Under the veneer of tranquility some serious
political and security problems still persist in the Western Balkans:
ƒ the presence of intolerance, pathological nationalism and xenophobia;
ƒ underdeveloped democratic political culture, the lacking art of compromise;
ƒ several varieties of non-military threats to regional security and stability (ill-governance, corruption, organized crime, illegal trafficking in arms, drugs,
human beings etc.);
ƒ unresolved problems of interstate borders and minorities;
ƒ the humanitarian problem of well over one million and a half refugees and
displaced persons.
What to do about the Western Balkans?
44
Many attempts have been made in the past to create region-wide webs of
cooperation and security in the Balkans. These included two Balkans defense pacts,
one in the 1930s and the other in the 1950s. The first failed miserably while the
second – the Balkan pact between Yugoslavia, Greece and Turkey signed in August
1954 – never became a reality. So far none of the regionally generated initiatives and
undertakings has proven viable, largely because they have never led to sustained
political activity on a regional basis. Moreover, all Balkans initiatives have as a rule
lacked the support and active involvement by the public, mass media and organizations
of civil society.
A more promising approach to cure the instability in the region has manifested
itself in the efforts to induce and infuse from outside economic, political and security
cooperation with and among all Balkans states.7 These efforts have resulted since the
1980s in a web of ties among these states and between them and a number of
international organizations. This web has been almost exclusively Western in origin
and included such nets as the “Stability Pact for South-Eastern Europe”, CEFTA, SECI,
NATO’s “Partnership for Peace”, “South East Europe Initiative”, “South East Europe
Security Cooperation Steering Group” et. al. Through the “South-East European
Cooperation Process” (SEECP) the European Union has fostered multifaceted
cooperation among the states of the Western Balkan. Its recent successor – the
‘’Regional Cooperation Council’’ with the seat of its Secretariat in Sarajevo will
hopefully continue successfully this laudable effort. The European Union has
promoted regional integration also by concluding several types of cooperation,
stabilization and association agreements. These agreements have served as preliminary
steps to bringing closer to and hopefully eventually admitting all remaining Balkans
states into the ranks of its future members. The strategy of staged integration had been
successfully practiced earlier with two other groups of former Eastern European states
- the Visegrad group and the three Baltic republics.
However this strategy has not so far worked well in the Western Balkans as the
nets involving these states have been overly dependent on outside donors, mostly
understaffed, poorly interconnected and coordinated. As a result of these shortcomings
a few of them have proven to be effective. In addition some of these nets have partly
blocked one another. For example, the EU enlargement has undermined the pre-
7
Delevic, Milica, Regional cooperation in the Western Balkans, Chaillot Paper no.104, Paris, Institute for Security Studies,
2007, Ch.2,3, pp. 31-72.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
The Kosovo problem and its international implications Kosovo’s proclamation of inde-
pendence on February 17, 2008 and the birth of the so far youngest European
state have highlighted the salience of historically generated sources of intraregional
tensions and conflicts in the region.8
In late XIX c. – early XX c. the Kosovo issue used to be a minor chapter in the
wider Albanian question within the decaying Ottoman Empire. Kosovo as a separate
and potentially volatile problem was created in 1912-1913 by the Kingdom of Serbia,
strongly supported by the Russian Empire and also assisted by other great European
powers. Prior to 1912 Serbia, Greece and Montenegro have for many years conspired
with the Russian Empire in order to prevent the birth of an independent Albanian
state on the ruins of the Ottomans possessions in the Western Balkans. According to
their coordinated plans the three Orthodox states were to occupy and partition the
lands with the majority Albanian population thus forestalling an Albanian declaration
of independence.
According to these plans the Serbian army invaded Kosovo in 1912 on its way to
conquer Northern Albania and its main port Durres. However Serbia’s plans to gain
by force a permanent territorial access to the Mediterranean sea were foiled by
Austro-Hungary and Italy. Having bowed to an Austro-Hungarian ultimatum the
Serbian Army hesitantly withdrew from Northern Albania in 1913. The European
powers – Great Britain, France, Germany, Austro-Hungary and Italy, at Russia’s
insistence allowed however Serbia and Montenegro to retain the already occupied
Eastern parts of the Ottoman possessions inhabited predominately by the Albanians,
by other Muslims and Orthodox Slavic Macedonians.9 These lands (the Sandzhak of
Novi Pazar, today’s Kosovo and Western Macedonia) were absorbed by Serbia without
a duly legalized annexation. The new Serbian colonial possessions were incorporated
8
Delevic, Milica, The Kosovo problem in a regional perspective in The Regional cooperation in the Western Balkans, Chaillot Paper
no.10, Paris, Institute for Security Studies, 2007, p.p. 79-82.
9
Kola, Paulin, The search for greater Albania, Hurst & Company, London, 2003, pp. 10-18.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
45
What to do about the Western Balkans?
viously existing free trade and visa-free regimes in the region and in fact erected new
interstate barriers. The EU visa rules and the extension of the Schengen regime have
also created considerable problems on the practical level which have hampered the
movement of persons, economic and cultural cooperation. Moreover, there had been
a conceptual incongruity between the “Stability Pact for the South-Eastern Europe’’
and the “Stabilization and Association Process” conducted by the European Union.
What to do about the Western Balkans?
46
in 1918-1919 into the Kingdom of the Serbs, Croats and Slovenes10 which was later
renamed into the Kingdom of Yugoslavia.
Between the two World Wars the problem of Kosovo had represented a serious
problem with internal political and security implications. Its destabilizing effect
contributed two decades later to the Kingdom of Yugoslavia’s disintegration in
1941. Kosovo continued to create considerable internal difficulties also in the
second, post-1945 Communist Yugoslavia and eventually accelerated its breakdown
in 1991-1992. After the latter’s demise the Kosovo problem had been for several
years totally ignored by the international community and reappeared only in 1997-1998 as an unresolved regional political issue, the last vestige of Yugoslavia’s
succession wars.
The Kosovo problem has contained at its kernel a political conflict between the
Kosovar Albanians’ desire for national emancipation and self-determination and, on
the other hand, the Serbia political class’ endeavors to continue ruling the land from
Belgrade. For Serbian cultural and political elites Kosovo still remains a cherished
symbol of Serbia’s past glory. A compromise solution in the form of Kosovo’s wide
autonomy within Serbia had existed in the past under the last SFRY constitution of
1974. This historic compromise was however effectively annulled in 1989. Its brutal
unilateral act by the Milosevic regime, accompanied by police intimidation and by
the presence of tanks in the streets of Pristina. The termination of Kosovo’s autonomy
grossly violated the Yugoslav constitutional order. Moreover, the Yugoslav military
and Serbian police committed numerous crimes against the Kosovar Albanians and
other Muslims in Kosovo in 1989-1999, the causing i.a. death of at least 10.000
Kosovars. According to the UNHCR statistics about 350.000 persons, mostly
Albanians, were forced by the Serbian authorities to leave Kosovo in 1998 and nearly
1,5 million by June 1999.11 The Serbian rule over Kosovo was abruptly terminated
by the NATO intervention in March-June 1999. Subsequently it could be reestablished
neither peacefully nor by armed force.
Since summer 1999 Kosovo had been a NATO protectorate and a de facto
increasingly self-governing country under a UN mandate, fully separate from and
independent of Serbia. During that period Kosovo had developed a different political
10
Noel, Malcolm, Kosovo, A Short History, London, Macmillan, 1998, pp. 43-50,61-63,129-256,289-294,
314-316.
11
Kola, Paulin, The search for greater Albania, Hurst & Company, London, 2003, p. 363.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
12
Altmann, Franz-Lothar, The status of Kosovo in What status for Kosovo?, Chaillot Paper no. 50, Paris, Institute for
Security Studies, 2001, p.p. 19-32.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
47
What to do about the Western Balkans?
and economic system and adopted a different currency.12 Under international
protectorate the economic, social and political situation in Kosovo has significantly
improved. The progress has been due to international assistance (around 21% GNP)
and the Kosovars’ remittances from abroad (roughly15% of GNP). Gross national
product per capita in Kosovo has quadrupled to around € 1000 p.c. It has remained
however twice lower than in the neighbouring Balkans states, while poverty (about
45% of the population) and very high unemployment still prevail (well over 40%
generally, and about 70% among the females and the young). The international
community has spent on its regular activities in Kosovo about € 2 billion annually,
although mostly on providing security and maintaining its personnel. Only a small
fraction of international funds (5-8%) flows directly into Kosovo’s economy.
The problem of Kosovo´s status was formally resolved by a unilateral declaration
of independence, with a tacit approval of USA and major EU members. This action
was carried out, however, without a prior UN Security Council resolution. The
Security Council however did not subsequently annul Kosovo’s independence, as
Serbia demanded. A large EU mission called EULEX started operating on June 15,
2008 when the new constitution of Kosovo came into effect. Its legality was claimed
by the Western powers under the UNSC Resolution 1244/99 but challenged by the
Russian Federation. As the UN mandate could not terminated due to disagreements
in the Security Council the presence of UNMIK, as well as of the missions of OSCE
and NATO have continued. After protracted negotiations the EULEX operation was
legalized within the framework and with the constraints of the same Resolution
1244/99. The EULEX however was not allowed to carry out the UN-commissioned
recommendations by Marti Ahtisaari.
The youngest European state has been since its declaration of independence
recognized by 54 states, including three permanent members of UN Security
Council, a majority of EU and NATO members and by all Kosovo’s neighbours with
the sole exception of Serbia. Although its existence has been protected by
international forces and its economic survival secured Kosovo remains an incomplete
structure with limited viability and sovereignty, lacking control over its entire
territory and population. The declaration of independence was a necessity but it did
not resolve Kosovo’s burning political and social problems. Kosovo thus still remains
on Europe´s political agenda as a divisive issue.
What to do about the Western Balkans?
48
Kosovo represents only one of the numerous political conflicts in the world
which has been closely related to the ethnic, national, linguistic, cultural and
religious divides within sovereign states. In the Euro-Atlantic area alone the
geography of these tension areas spans from Quebec, Greenland, Scotland, Ulster,
Catalunya and Basque country in Spain, Belgium and Corsica in France, to Slovakia,
Estonia, Western Ukraine, Bosnia & Herzegovina, Western Macedonia, Eastern
Moldova, Southern Russia and Cyprus. Further to the South-East and East similar
trouble spots stretch from Palestine and Northern Iraq all the way to Tibet, Taiwan,
Shri Lanka, Philippines and Indonesia. The total number of problems threatening the
internal stability of many multiethnic and multireligious states in Africa is also high.
Each of these conflicts has been dealt with (or ignored) by the international
community separately.
Thus the resolution of Kosovo’s legal status did not have to create a spill-over
effect and/or be replicated elsewhere. It was quite unnecessary for the Russian
Federation to cite the recognition of Kosovo’s independence by the West as
justification for recognizing Abhazia’s and Southern Osetia’s independence. In these
three, in some respects similar developments the Russian Federation and also most
EU and NATO member states acted inconsequentially when they honoured the
principle of self-determination by one case and disregarded in the other(s).
Since the end of the ‘Cold War’ there have been close to two dozen changes of
internationally recognized borders in the Euro-Atlantic area, mostly without a UN
Security Council approval. Each of these changes – in Germany, former Yugoslavia,
Czechoslovakia and the Soviet Union took its own course. The political effects of the
new interstate borders has mostly positively affected European security. The year
since the adjustment of Kosovo’s legal status vis-a-vis Serbia to the de facto situation
since 1999 has brought largely the same results in spite of occasional flare-ups of
protests and low-scale violence in North Kosovo. Once the relations between the two
states are normalized the peaceful new interstate border between Serbia and Kosovo
could in the future become a positive example of constructive cooperation.
International community facing the Western Balkans The political elites in the Western
Balkans have proven time and over again their unwillingness and/or inability
to reach by mutual accommodation and compromise agreements on conflictual
issues with their neighborus. This fundamental feature has been demonstrated,
i.a. in the longstanding Greek-Macedonian dispute over the constitutional name
of Macedonia and in the Serbian-Kosovar Albanian negotiations on the status of
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
13
Sophia, Clement, The International Community response in Conflict Prevention in the Balkans, (Chaillot Paper no. 30), Paris,
Institute for Security Studies, 1997, p.p. 46-74.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
49
What to do about the Western Balkans?
Kosovo. When involved in conflicts with their neighbours the Balkans elites usually
strive to pull in outside powers instead of trying to solve the problems bilaterally
or within a regional framework. Mainly for this reason the recent Balkans conflicts
brought about the political and military involvement by four permanent members
of the UN Security Council (US, UK, France and the Russian Federation). During
the last two decades they have also been frequently on the agendas of the UN,
CSCE/OSCE, EEC/EU, NATO and the Council of Europe, often contributing to the
already existing divisions and antagonisms among the great powers.13 The Kosovo
problem has served as cause or pretext for political tensions, notably between USA,
and major EU members, on one hand, and the Russian Federation and Serbia, on
the other.
In 1998-1999 the Kosovo issue posed a serious challenge also to NATO's inner
political cohesion. The Alliance was able then to soften the differences among its
members and to reach a consensus concerning the pending forceful military action
against the Milošević regime in the Federal Republic of Yugoslavia in March-June
1999. Nine years later the question of Kosovo’s status has again divided EU and
NATO members. A strong majority in both organizations has accepted the M.
Ahtisaari recommendation as the least bad of all available alternatives and
consequently recognized Kosovo’s independence. A minority of EU and NATO
members, notably Greece, Cyprus, Spain, Slovakia and Romania have however
remained so far close to Serbia’s flatly rejectionist position. The disagreements
among the EU members on this issue have been more visible in 2008 than were the
discords among the EEC members in 1991 concerning the recognition of Slovenia’s
and Croatia’s independence. This comparison does not speak well about the
coherence of the EU Common Foreign and Security Policy fifteen years after its
official launching in November 1993.
The international record of dealing with the sources of instability and insecurity
in the Western Balkans has highlighted the importance of:
• the clear understanding and realistic appreciation of the complexity of
problems in the Western Balkans which defy quick unidimensional solutions;
• the previously underestimated interconnection between the security in the
region and the security in other parts of the continent;
What to do about the Western Balkans?
50
• a robust and well-coordinated international action to improve the economic and
social situation in the region and to repair and develop its infrastructure;
• the great contribution to conflict management and stabilization in the Western
Balkans made by NATO and EU members (France, UK, Germany, Italy, Turkey,
Greece) and also by some non-members, including the Russian Federation
and Ukraine;
• the fundamental need for a consensus among and subsequently coordinated
actions by Western powers, particularly by USA and EU members states;
• the need for a rational division of labor and effective coordination of activities
among numerous international actors operating in and/or dealing with the
region (UN, OSCE, NATO, EU, Contact group etc.); and also between various
programs conducted under their sponsorship;
• avoiding the danger of a vicious circle of dependency on foreign peace-keepers (as it has happened on Cyprus) and the adoption of a realistic exit
strategy for them.
The more overlapping Balkans institutions there exist and well function, the
more states take active part in them the better it is for the region and for the whole
Euro-Atlantic community. These observations are relevant also in the case of the
youngest Balkans state. Having become an independent state Kosovo ought to be
admitted to international financial institutions and other organizations as well as to
regional interstate networks in the Western Balkans. Kosovo’s admission into these
bodies would have beneficial effects on the overall security situation in the Balkans.
All states aspiring to become members of the European Union and/or of NATO have
been warned however that their admission into these organizations would be
conditional on their commitment to fulfill constructively their responsibilities in the
region. The implementation of this injunction would certainly help to promote
regional cooperation.14
A note of caution ought to be added concerning the general proposition that
the management of Balkans problems would be best assured within the framework
of European integration. The ill fate of the ´Treaty on a constitution for new Europe´
and the rejection of the Lisbon Treaty by Irish voters indicated, in addition to
unrelated internal political reasons also considerable resistance in the older member
14
Van Meurs, Wim (ed.), Prospects and Risks Beyond EU Enlargement, Southeastern Europe: Weak States and Strong International
Support, Opladen, Leske + Budrich, 2003, pp. 16-20.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
states to further enlargement of the European Union into Eastern Europe and the
Balkans. It became questionable whether EU will be indeed willing and able in the
near future to implement the Thesaloniki commitments to the Western Balkans states
without scaling down and delaying their implementation.
51
Balkans leads to the question how best to deal with the Western Balkans? First of
all, the Western Balkans countries should be actively encouraged to further develop
and strengthen the existing ties among themselves by forming pragmatic regional
networks of cooperation in practical matters. On the other hand, one could not
realistically expect the Balkans countries to overcome the persisting sources of
internal instability in the region entirely by their own efforts. The Balkans elites, if
left alone are simply incapable of transforming the region into a viable and peaceful
community of nations even distantly comparable e.g. to Scandinavia.
The international community’s ability to manage numerous problems in the
Western Balkans could be best improved by the further strengthening of the
European Union’s and of NATO’s presence and influence, while preventing the
appearance of new lines of division within the region. This extension would have
better results if coordinated with the UN, OSCE, Council of Europe, World Bank,
EBRD etc. The region’s transformation should be firmly imbedded in the broader
European integration process. Moreover, international military and police presence
will be still needed probably for many years.
This has been one of main objectives of Slovenia’s Presidency in the Council
of the European Union in the first half of 2008. During those six months the net
of stabilization and association agreements was extended to cover the entire
region, except Kosovo. Pre-accession negotiations have since continued with
Croatia and Macedonia as official candidates for EU membership. The status of
potential candidates was confirmed for Albania, Bosnia & Herzegovina, Serbia,
Montenegro and also for Kosovo within the context of UN Security Council
Resolution no. 1244/99. The admission of Croatia and Albania into NATO in 2009
will also represent steps in the right direction. In the decades to come the process
of EU and NATO enlargement, in spite of many difficulties and occasional setbacks
is expected to transform the Western Balkans into a desired space of democracy,
economic and cultural dynamism, prosperity and security. This process needs
however to be consistent, well coordinated, sensibly tuned and finely adapted to
each country.NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
What to do about the Western Balkans?
Conclusion The above-presented review of the problems in and related to the Western
52
SELECTED BIBLIOGRAPHY:
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Security Studies, 2004.
What to do about the Western Balkans?
Batt, Judy, The question of Serbia, (Chaillot Paper no. 81), Paris, EU Institute for Security
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Weller, Marc: Negotiating the final status of Kosovo, (Chaillot Paper no. 114), Paris, EU Institute
for Security Studies, 2008.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52
Marcello Vaultier Mathias*
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República
53
Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
“The Balkans produce more history than they can consume”
■ Abstract:
The Difference over the name of the Former Yugoslav Republic of Macedonia
The Greek Perspective
The issue over the official name of the Former Yugoslav Republic of Macedonia has
lasted for more than 17 years and still holds back both Greece and FYROM from
reaching an agreement. The controversy, which lays on an identity difference
between the two States, has led to a diplomatic struggle over which entity has the
right to use the name Macedonia.
This article will attempt an analysis of the dispute mainly in the Greek perspective,
from its origins to the present day, in order to underline the factors that have, over
the years, influenced the Greek Policy. Therefore, it will focus on periods of particular
significance and will examine how they have contributed to further developments.
Finally it aims to contribute to a better understanding of today’s Greek Foreign
Policy position on the issue.
PARA MELHOR COMPREENDER a natureza e contornos do diferendo existente entre Atenas e Skopje,
sobre a denominação da Antiga República Jugoslava da Macedónia (ARJM), importará
pôr em perspectiva os antecedentes históricos da questão. Embora não se pretenda
aqui relatar, a par e passo, todos os factos relacionados com a designação da Antiga
República Jugoslava da Macedónia (ARJM) e com a disputa existente sobre o assunto,
valerá a pena recordar alguns aspectos essenciais que estão na origem deste
contencioso, bem como avaliar a sua evolução, na perspectiva da Grécia. Desde logo,
convirá ter presente que, nesta matéria, quase todos os aspectos da questão são fonte
*
Diplomata, Secretário de Embaixada em Atenas.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
Winston Churchill
54
de discórdia, a começar pelo próprio termo “Macedónia”, que tem sido tema de
disputa entre especialistas, no que toca à sua definição, geográfica, demográfica e
linguística.
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
Enquadramento Histórico Segundo a mitologia grega antiga, a palavra “Macedónia”
encontra as suas origens no termo “Makedon”, nome atribuído ao chefe da tribo
que se estabeleceu na região norte da Grécia. A palavra é referida, pela primeira vez,
nos escritos conhecidos do historiador grego Heródoto1, na sua obra “As Histórias
de Heródoto”. A palavra surge sob a forma de adjectivo “makedonós”, que significava
“alto”, “comprido” e “elevado”. De igual modo o descreve o poeta grego Homero.
O termo “Macedónia” era, assim, usado na Antiguidade para denominar a área
habitada por uma tribo de gente de alto porte, tendo sido precisamente a aparência
física desses habitantes que acabou por dar origem ao nome da região. Em termos
sucintos, importará assinalar três fases distintas:
– a Macedónia como Antigo Reinado, situado a Norte da Grécia Antiga fazendo
fronteira a Ocidente com o Reino de Epiro e a Oriente com a Região da
Trácia; durante o reinado de Filipe II, a Macedónia alcançará uma posição
hegemónica dentro da Grécia; o primeiro Estado Macedónio formar-se-á no
século VIII ou inícios do século VII AC, no tempo de Alexandre o Grande; o
império irá durar até à conquista romana em 146 AC.
– a Macedónia como região Província do Império Romano de 146 AC. até
284/395 DC.
– a Macedónia como Província do Império Bizantino desde 284-395 até 14532,
quando se dá a conquista de Constantinopla pelos Otomanos, passando a
fazer parte do Império Otomano em 1355; os Turcos Otomanos estiveram na
Macedónia durante cinco séculos.
Em 1864 dá-se a divisão da Macedónia, no seio do Império Otomano, em três
províncias, Salónica, Monastir e Kosovo. Em 1877, o Tratado de San Stefano reorganiza
o domínio do Império Otomano sobre os Balcãs, incorporando grande parte da área
geográfica da Macedónia no território búlgaro, que se estende até ao Mar Egeu e Mar
Negro. Pouco depois, em Julho de 1878, o Tratado de Berlim vem revogar as decisões
1
2
Nascido em 485 AC, em Halicarnasso, que corresponde hoje a Bodrum na Turquia.
Embora de 972 a 1014 se encontre sob domínio búlgaro e de 1316 a 1341 sob domínio sérvio.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
3
A palavra “Jugoslávia” significa “terra dos eslavos do sul”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
55
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
tomadas em San Stefano e, assim, retirar o domínio búlgaro sobre parte da
Macedónia, que dessa forma regressa na totalidade ao Império Otomano. O Tratado
reconhece, ainda, a total independência da Roménia, Sérvia e Montenegro. A região
da Macedónia é, já nessa altura, motivo de fricção entre a Grécia, Bulgária e Sérvia,
num período em que todos estes começam a dar sinais de um nacionalismo agressivo.
A região é então habitada por búlgaros, gregos, turcos, albaneses, sérvios, arménios
e judeus. Em 1893 é fundada a Organização Revolucionária Interna Macedónia, cujo
principal objectivo é o de promover uma Macedónia única, indivisível e autónoma,
habitada por “macedónios”, independentemente das suas origens religiosas ou
étnicas. Rapidamente os países dos Balcãs se apercebem da necessidade de se unirem
para conseguir retirar ao Império Otomano o domínio sobre a região da Macedónia.
Nasce, assim, em 1912, uma aliança entre Sérvia, Montenegro, Grécia e Bulgária, a
que é dado o nome de Liga Balcânica (ou Liga dos Balcãs), que visa conquistar os
territórios ainda sob controlo Otomano. Nos anos de 1912 e 1913 dão-se as duas
Guerras dos Balcãs, primeiro entre a Liga Balcânica e o Império Otomano, pela
divisão dos territórios, e posteriormente entre a Bulgária de um lado e os seus
antigos aliados (Sérvia, Grécia e Montenegro), aos quais se juntam a Roménia e o
Império Otomano, por estarem insatisfeitos com o redesenhar do mapa dos Balcãs,
que dava vantagens territoriais à Bulgária, em detrimento da Sérvia. Resultou na
divisão do território macedónio entre gregos (região costeira) e sérvios (região
central e norte da Macedónia). O Tratado de Bucareste, assinado em Agosto de 1913,
veio pôr fim à Segunda Guerra dos Balcãs, retirando à Bulgária praticamente toda a
área geográfica da Macedónia que lhe pertencera.
Depois da Primeira Guerra Mundial, em 1918, é criado o Reino da Jugoslávia3,
composto pela Eslovénia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia e Montenegro,
incluindo as partes sérvias do Kosovo, Vojvodina e Macedónia. O Tratado de Lausanne,
de 1923, vem reconhecer internacionalmente a nova República da Turquia como
sucessora do extinto Império Otomano. O Acordo estabelece, ainda, a protecção da
minoria grega residente na Turquia e da minoria muçulmana turca na Grécia. Dão-se
trocas populacionais entre ambos os países. Nos primeiros dez anos de existência, o
Reino da Jugoslávia era designado “Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos”, mas o
termo Jugoslávia era já então o mais corrente. Durante a Segunda Guerra Mundial, a
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
56
Macedónia é ocupada pela Bulgária e depois integra a Jugoslávia. A partir de
Dezembro de 1945 é criada a República Federal Popular da Jugoslávia, composta por
seis repúblicas (de que fazia parte a República Popular da Macedónia) até 1963,
altura em que passa a denominar-se República Socialista Federal da Jugoslávia. O
nome República Popular da Macedónia é então igualmente alterado para República
Socialista da Macedónia, designação que se irá manter até 1991, quando se dá a sua
independência.
A evolução da questão na Grécia Em meados dos anos oitenta, à excepção de esporádicas
referências na imprensa, não existia um verdadeiro debate na Grécia sobre o nome
oficial da Macedónia. Apenas alguns políticos, académicos e jornalistas, da cidade de
Salónica, a norte da Grécia, pareciam preocupar-se com a questão. E só a partir de
1990 é que foram progressivamente surgindo novas vozes que, a pouco e pouco,
conseguiram criar um consenso em torno dos perigos provenientes dos Balcãs e dos
desenvolvimentos que conheciam os países da região. Rapidamente se criaram
movimentos de contestação que, a coberto do slogan “a Macedónia é grega” deram
início a marchas e manifestações pelas ruas da cidade de Salónica. Na altura, tendo
em conta o período conturbado e confuso vivido na região dos Balcãs, a crescente
contestação grega terá mesmo sido vista, por alguns, como uma tentativa de
aproveitamento por parte da Grécia da situação caótica, decorrente da desintegração
da Jugoslávia. Na realidade o principal objectivo era o de, por um lado, restaurar a
estreita ligação existente entre a República Helénica e a Antiga Macedónia e, por
outro, deixar claro, desde logo, que não seriam toleradas eventuais ambições
irredentistas de anexação da região greco-macedónia, nem desígnios de se criar uma
Grande Macedónia. A mensagem consistia em acentuar a ideia de que nenhuma
outra região dos Balcãs, para além da Macedónia grega, poderia associar-se ou ser
identificada com o antigo reino da Macedónia, pelo que seria excessivo por parte de
um país eslavo querer, sequer, aspirar a usar o termo “Macedónia” para a sua
designação oficial como novo Estado independente4.
Na década de 90, os países da região dos Balcãs começam a procurar soluções e
prioridades para os problemas que enfrentam tanto interna como externamente. A
Macedónia, encontrando-se no coração da Península Balcânica e sendo habitada por
4
Foi, aliás, por essa altura, em 1992, que os Serviços de Correio gregos resolveram emitir uma série de selos representando antigos bens e
objectos bizantinos e macedónios com o texto “a Macedónia foi e será sempre grega”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
5
Robert Badinter era, nessa altura, Presidente do Conselho Constitucional francês e havia sido designado Presidente da referida Comissão
Arbitrária.
6
Com efeito, na sua opinião n.º 6, a Comissão Badinter entendeu que o recurso ao termo “Macedónia” não implicava, nem representava,
reivindicações territoriais sobre outro Estado.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
57
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
várias nacionalidades (eslava, búlgara, albanesa, grega e turca), reunia em si
circunstâncias particularmente sensíveis e complicadas. Na era pós-Tito, tornou-se
claro que os frágeis equilíbrios dos últimos quarenta anos chegavam ao fim. Com a
queda do Muro de Berlim e os crescentes tumultos que se registavam na região,
rapidamente se aceleraram as tendências centrífugas. Em Dezembro de 1990, um
referendo dá início ao processo de independência da Eslovénia. Um ano depois,
outro referendo na República Socialista da Macedónia recolhe uma larga maioria de
votos a favor da independência, a qual vem a ser declarada a 17 de Setembro de
1991. A partir daí, a ARJM procura o reconhecimento internacional como “República
da Macedónia”. Desde então, evidenciam-se quatro fases distintas no relacionamento
bilateral entre Skopje e Atenas, que merecem particular destaque: de 1991 a 1995,
de 1995 a 2005, de 2005 a 2008 e de 2008 em diante.
A 27 de Agosto de 1991, havia sido criada, pelo Conselho de Ministros da CEE,
a Comissão Arbitrária da Conferência para a Paz na Jugoslávia, igualmente conhecida
por Comissão Badinter5. Tinha por objectivo prestar apoio jurídico, através de
opiniões e recomendações, sobre questões legais decorrentes da fragmentação da
Jugoslávia, nomeadamente no que se referia à independência das antigas repúblicas
jugoslavas. As primeiras conclusões da Comissão Badinter foram apresentadas em
Novembro desse ano e as finais em Janeiro de 1992. No que se refere à República
Socialista da Macedónia, a Comissão considerou que o país havia reunido as
condições necessárias para aceder à independência, não tomando, assim, em
consideração os argumentos avançados pela Grécia6. Por essa altura, o Parlamento
macedónio havia transmitido às autoridades gregas a sua disponibilidade para
proceder a algumas emendas na sua Constituição, solicitadas por Atenas. Para além
disso, o Executivo de Skopje manifestara o seu empenho em cessar qualquer tipo de
propaganda contra a Grécia, pelo que a Comissão Badinter considerou existirem
sinais positivos para que o país pudesse aceder à independência.
Contudo, a Declaração sobre a FYROM, do Conselho de MNE’s, de Dezembro de
1991 e a posterior evolução desta questão durante a Presidência portuguesa de 1992,
acabaram por enfraquecer a recomendação da Comissão Badinter. Senão vejamos. Em
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
58
Dezembro de 1991, o Conselho de Ministros Negócios Estrangeiros da Comunidade
Europeia é chamado a pronunciar-se sobre o desmembramento das repúblicas
jugoslavas. O então MNE grego, Antonis Samaras transmitiu a posição da Grécia
sobre a matéria, reiterando as objecções de Atenas ao uso do termo “Macedónia”,
acentuando os perigos de futuras ou eventuais reivindicações territoriais e
condenando a propaganda hostil proveniente de Skopje. A Grécia consegue, nessa
altura, a inclusão dos seus pontos de vista nas conclusões em que são pedidas
garantias a Skopje de que não haverá reivindicações territoriais sobre o país vizinho,
nem serão conduzidas acções hostis contra o referido Estado7. De igual modo, o
Ministro Samaras interpela a Assembleia-geral da OSCE, em Moscovo, quanto aos
perigos de eventuais reivindicações territoriais por parte de Skopje sobre a região
Norte da Grécia. O então Presidente macedónio, Kiro Gligorof, terá enviado uma
missiva às autoridades gregas dando garantias de não existirem quaisquer intenções
por parte do seu país sobre essa matéria.
No ano de 1992, a batalha diplomática travada tanto por Atenas como por
Skopje, para fazer valer os seus argumentos, adquire novos contornos. Por um lado,
registam-se manifestações intensas na cidade de Salónica, tanto em 1992 como em
1993, que receberam ampla cobertura dos meios de comunicação social e às quais
não terá sido alheia a intervenção da igreja ortodoxa grega8. As referidas concentrações contribuíram para passar uma mensagem à Comunidade Internacional de que
o povo grego se sentia profundamente injuriado pela forma como esta questão estava
a ser orientada. Criaram-se, assim, movimentos de base, que posteriormente
passaram a ser usados como instrumentos ao serviço da política externa grega,
atribuindo às populações uma influência, indirecta mas efectiva, sobre matérias de
política externa. O povo grego rapidamente adoptou a posição mais extrema que
vinha sendo defendida pelo Executivo, segundo a qual a República da Macedónia em
caso algum poderia vir a ser reconhecida com um nome que incluísse o termo
“Macedónia” ou quaisquer palavras derivadas. A partir dessa altura, as autoridades
gregas apercebem-se que a eventual intenção de alcançar um compromisso com o
país vizinho teria sempre pela frente um juízo decisivo do eleitorado.
7
“The Community and its members also require the Yugoslav Republic to commit itself, prior to recognition, to adopt constitutional and
political guarantees ensuring that it has no territorial claims towards a neighboring Community State and it will conduct no hostile
propaganda activities versus a neighboring Community State, including the use of a denomination which implies territorial claims”.
8
A esse propósito, refira-se o papel desempenhado, ao longo destes anos, pela Igreja Ortodoxa grega na diáspora, nomeadamente junto das
comunidades gregas dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, que muito contribuiu para consolidar a posição defendida pela Grécia.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
9
As propostas avançadas por João de Deus Pinheiro ficaram conhecidas, e são ainda hoje referidas, por “Plano Pinheiro” ou “Pacote
Pinheiro”.
10
A questão da denominação do país vizinho havia, assim, conseguido gerar uma crise no seio do Governo grego, que um ano mais tarde
levará à queda do Executivo e à realização de eleições em Setembro de 1993, de que saiu vencedor o Partido Socialista PASOK, na altura
sob a direcção de Andreas Papandreou.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
59
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
O então Presidente Karamanlis e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros
Samaras empenharam-se em contactos regulares com seus parceiros europeus e
acentuam a urgência de se encontrar uma solução ao diferendo. Em Fevereiro de
1992, no Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da Comunidade Europeia,
realizado em Lisboa, sob Presidência portuguesa, os Ministros dos Negócios
Estrangeiros holandês e dinamarquês exerceram alguma pressão sob o seu homólogo
grego para que Atenas aceitasse reconhecer a República da Macedónia. O MNE
Samaras torna pública essa exigência e no dia seguinte começa, na Grécia, um boicote
aos produtos holandeses e dinamarqueses. Atenas tornava-se, assim, parte do problema
e não parte da solução. O então Ministro dos Negócios Estrangeiros português, João
de Deus Pinheiro, explorou contudo as perspectivas de se alcançar um compromisso
e apresentou duas propostas. A primeira correspondia a uma convenção sobre mútuo
reconhecimento e inviolabilidade de fronteiras. A segunda consistia numa carta em
que o Governo de Skopje, transmitiria às autoridades gregas: i) a renúncia a qualquer
reivindicação territorial sobre a província grega da Macedónia, ii) o repúdio por
quaisquer acções dessa natureza levadas a cabo pela anterior república jugoslava, iii)
a promessa de não invocar, no futuro, direitos relacionados com minorias e iv) a
garantia de que não fomentaria ideologias ou projectos sobre uma futura Macedónia
unificada. As propostas9 de João de Deus Pinheiro sugeriam, ainda, a denominação
“Nova Macedónia”, como designação oficial do país. O plano acabou por ser rejeitado,
por conter o termo “Macedónia”. A 13 de Abril de 1992, o Presidente Karamanlis
tinha convocado uma reunião extraordinária com o Primeiro-ministro e os líderes de
todos os partidos políticos representados no Parlamento, que contou ainda com a
presença Ministro dos Negócios Estrangeiros, para fazer um ponto de situação sobre
a matéria. A reunião veio reforçar a posição grega de que não seria aceite a palavra
“Macedónia” na denominação que viesse a ser escolhida para o país vizinho.
Em Abril de 1992, o Primeiro-ministro grego, Constantinos Mitsotakis, demite
o então Ministro dos Negócios Estrangeiros Antonios Samaras e assume cumulativamente a pasta dos Negócios Estrangeiros10. Alguns anos mais tarde, diversas
publicações relativas a esse período da História da Grécia contemporânea trouxeram
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
60
alguns esclarecimentos sobre a forma como o partido no governo – Nova Democracia –
havia assumido a gestão desta matéria. Na origem daquela demissão existia uma
acentuada discordância entre o Primeiro-ministro e o Ministro dos Negócios
Estrangeiros, quanto à melhor forma de defender os interesses gregos. Enquanto o
MNE Samaras defendia junto dos seus parceiros europeus uma solução maximalista
do problema, o Primeiro-ministro Mitsotakis transmitia aos seus homólogos nas
suas respectivas capitais a disponibilidade do Executivo grego para uma solução de
compromisso sobre o nome. A visão antagónica de ambos acabou por levar à
demissão do MNE Samaras. Contudo, depois dessa demissão, ao invés de optar pela
posição mais conciliatória que vinha defendendo, Mitsotakis acabou por enveredar
pelas teorias mais extremadas, defendidas anteriormente pelo ex-MNE, por estas
entretanto também terem sido adoptadas por três dos quatros principais partidos na
oposição e pelo próprio Presidente Karamanlis.
Pouco depois, no Conselho informal de Guimarães, de 1 de Maio de 1992, os
Ministros dos Negócios Estrangeiros manifestam sua disponibilidade em reconhecer
a ARJM como Estado independente e soberano, sob um nome que pudesse ser aceite
pelas partes interessadas11. O culminar dos esforços desenvolvidos pelas autoridades
gregas é alcançado no Conselho Europeu de Junho desse ano. Com efeito, em
Declaração anexa às Conclusões do Conselho12, é reiterada a posição assumida em
Guimarães e assinalada a disponibilidade em reconhecer o novo Estado independente,
desde que o seu nome não inclua o termo “Macedónia”. Considerada uma vitória,
pela opinião pública grega, a decisão do Conselho Europeu é acolhida no país
vizinho de forma drástica. A 3 de Julho de 1992, as autoridades de Skopje designam
como bandeira oficial do país o Sol de Vergina ou Estrela de Vergina13 e, a partir de
Setembro, os livros escolares apresentam várias referências à “Grande Macedónia”
com reivindicações de ordem diversa sobre a herança cultural helénica. Em resposta,
Atenas impõe um embargo petrolífero, impedindo a entrega de petróleo à vizinha
Macedónia pelas fronteiras gregas14.
11
“(…) as a sovereign and independent state, within its existing borders and under a name that can be accepted by all parties concerned”.
“Declaration on former Yugoslavia – (…) The European Council reiterates the position taken by the Community and its members States
in Guimarães on the request of the former Yugoslav Republic of Macedonia to be recognized as an independent sate. It expresses its
readiness to recognize that republic within its existing borders according to their Declaration on 16 December 1991 under a name
which does not include the term Macedonia.”
13
Estrela composta por 16 raios; trata-se de um símbolo histórico da província grega da Macedónia, correspondente à Dinastia de Filipe II e
de Alexandre o Grande, encontrado em 1977 durante as escavações arqueológicas em Vergina efectuadas pelo Prof. Manolis Andronikos.
14
Nessa altura, cerca de 80 toneladas de petróleo ficam retidas em Salónica, a pretexto do embargo.
12
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
Para além disso, as Nações Unidas18 decidem assumir a responsabilidade de
tentar alcançar uma solução entre ambas as partes, através dos mediadores Lord
Owen e Cyrus Vance, aos quais competia elaborar um projecto de Acordo, que
tomasse em consideração todas as questões em aberto, incluindo a do nome. A
primeira proposta apresentada, após intensas consultas com Atenas e Skopje, sugeria
o nome “Nova Makedonija”, que, na realidade, retomava a sugestão do Ministro João
de Deus Pinheiro, mas na sua versão eslava. A solução não só tinha em consideração
as preocupações gregas, como assinalava as origens eslavas dos cidadãos da ARJM.
Contudo, em Maio de 1993, a Grécia rejeita a proposta. Apesar de o novo MNE,
Michalis Papaconstantinou, se mostrar receptivo, o então Primeiro-ministro
Mitsotakis, pressionado pelo seu próprio partido e temendo perder a maioria
parlamentar, decide rejeitar a solução. As eleições, poucos meses depois, em Outubro
de 1993, dão então vitória a Andréas Papandreou e ao PASOK. Em Novembro desse
ano, Papandreou decide cessar todas as negociações em curso com Skopje. Em finais
de 1993, alguns parceiros europeus já tinham reconhecido a ARJM e em Fevereiro
15
Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas n.º 817, de 7 de Abril de 1993.
"Admission of the former Yugoslav Republic of Macedonia to membership in the United Nations", United Nations General Assembly
Resolution n.º 47/225, 8 April 1993.
17
Por extraordinário que possa parecer, foi aceite que a Antiga República da Macedónia passasse a constar da lista dos Estados-membros das
Nações Unidas sob a letra “T”, que corresponde à primeira letra da denominação “the former Yugoslav Republic of Macedonia”.
18
Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas n.º 845, de 18 de Junho de 1993.
16
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
61
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
A Macedónia procura então obter reconhecimento junto das Nações Unidas e
apresenta formalmente o seu pedido a 30 de Julho. Em Agosto de 1992, a Rússia
decide reconhecer a República da Macedónia e, simultaneamente, a então Presidência
britânica da UE dá a entender que a decisão tomada em Lisboa deveria ser reavaliada.
A 7 de Abril de 1993, o Conselho de Segurança das Nações Unidas15 aceita a adesão
do país16. Fá-lo, no entanto, sob duas condições, a saber:
– o uso temporário da denominação “Antiga República Jugoslava da
Macedónia”17, enquanto não se encontrar resolvida a disputa com a Grécia,
justificando essa decisão com a necessidade de manter a paz e estabilidade na
região, bem como promover boas relações de vizinhança;
– a proibição da Macedónia usar a sua bandeira oficial com a Estrela de Vergina,
reconhecendo assim à Grécia o direito de defender e proteger um símbolo
que associa ao seu património cultural.
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
62
de 1994, os Estados Unidos reconhecem formalmente a Antiga República Jugoslava
da Macedónia19. O Executivo grego decide então impor um embargo económico ao
país vizinho.
Em 1995, após várias rondas negociais, os mediadores Owen e Vance apresentam
às partes um novo projecto de Acordo, que visa regular as relações entre a Grécia e
a ARJM, tendo em vista a resolução do diferendo. O “Acordo Interino”20 é assinado
em Setembro de 1995 e vem estipular as relações entre Atenas e Skopje, por um lado
no que se refere à questão da denominação do país e, por outro, no que toca ao
relacionamento bilateral propriamente dito. Não estatui sobre a questão da denominação em si, deixando a sua resolução para um momento posterior. Acima de
tudo, constitui um código de conduta e marca o consentimento de ambas as partes
em prosseguirem com as negociações sob os auspícios do Secretário-geral das
Nações Unidas, tendo em vista a resolução do diferendo, à luz das supracitadas
Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Acordo Interino é pois
um marco nas relações entre os dois países e vem dar início a uma nova fase no
relacionamento entre Skopje e Atenas, caracterizada por uma maior cooperação. Pela
importância de que se reveste, importará destacar o essencial do seu conteúdo e
alguns princípios nele enunciados:
– é estabelecido um prazo de sete anos21 para que as duas partes cheguem a
uma solução mutuamente aceitável sobre a designação da ARJM; durante esse
período, a vizinha Macedónia fica obrigada a usar o nome “Antiga República
Jugoslava da Macedónia”;
– a Grécia põe fim ao embargo que havia imposto à ARJM e reconhece ao
país vizinho o estatuto de Estado-nação; por outro lado, é vedado o uso do
símbolo “Sol de Vergina” às autoridades de Skopje; ficam, ainda, impedidas
de interferir em assuntos internos da Grécia; esta mantém o seu direito de
objectar a adesão da ARJM em qualquer organização internacional, com outra
designação que não “Antiga República Jugoslava da Macedónia”;
Para além destes aspectos, o Acordo Interino prevê também que ambos os países
respeitem as suas fronteiras, a sua integralidade territorial e soberania. Apela à
19
Mais tarde, em 2004, os Estados Unidos reconhecem a ARJM sob o seu nome constitucional “República da Macedónia”.
“Greece and the former Yugoslav Republic of Macedonia Interim Accord”,Vol. 1891, I-32193, United Nations Treaty Series.
21
Se nenhuma das partes manifestar a sua intenção de se desvincular do Acordo, este ficará em vigor, ad infinitum, até que seja encontrada
uma solução.
20
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
22
A ratificação destes Acordos pela Parlamento Helénico encontra-se ainda pendente devido ao diferendo sobre o nome.
Existem cerca de 280 empresas de interesses gregos na FYROM.
24
Informação transmitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros grego.
23
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
63
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
cooperação entre as partes para que seja alcançada uma solução e estimula a
promoção de relações comerciais e económicas. Solicita, igualmente, que ambos os
países estabeleçam relações diplomáticas logo que possível. O Acordo prevê a
possibilidade de se socorrerem dos bons ofícios da União Europeia e dos Estados
Unidos para os assistir na execução de algumas medidas práticas referidas no
convénio. Por último, estabelece o recurso ao Tribunal Internacional de Justiça, por
qualquer uma das partes, no caso de se verificarem discrepâncias ou desentendimentos
sobre a interpretação e implementação do Acordo.
A assinatura do Acordo Interino permitiu a melhoria considerável das relações
entre Skopje e Atenas. Ambos os países ter-se-ão apercebido que as inexistentes
relações entre Atenas e Skopje, durante o período que medeia os anos 1991 a 1995,
não terá servido os seus interesses, nem em nada terá contribuído para o
relacionamento bilateral, que se viu afectado em termos financeiros, diplomáticos e
políticos. A assinatura do Acordo Interino veio pois acentuar a urgência e importância
de se privilegiar uma relação de cooperação, como alternativa a uma relação de
conflito. É, desde logo, no âmbito comercial e económico que se registam progressos
significativos. A título de exemplo, valerá a pena referir a celebração de 21 acordos
bilaterais entre as partes, no seguimento do Acordo Interino22. Os resultados foram
óbvios, não só no plano do relacionamento político, como também no que toca aos
laços económicos e comerciais que se foram desenvolvendo desde então. Refira-se,
a esse propósito, que as exportações da Grécia para o país vizinho alcançaram os
648,6 milhões de dólares em 2008, contra os 535,3 milhões em 2007. De igual
modo, registou-se um aumento de 28,9% das importações gregas com a ARJM, que
passaram dos 408,3 milhões de dólares em 2007 para 526,3 milhões de dólares em
2008. Por outro lado, os investimentos directos da Grécia são os mais elevados na
ARJM e somam um total de 985 milhões de euros e criaram 20 mil empregos23.
Trata-se de investimentos centrados no sector bancário (28%), energético (25%),
nas telecomunicações (17%), na indústria transformadora (15%), no cimento, no
tabaco, na extracção de mármore e nos produtos alimentares e bebidas24. A Grécia
atribuiu, ainda, 74.840.000 euros à ARJM, para o financiamento de projectos de
investimentos públicos e privados, no âmbito do Plano Helénico para a Reconstrução
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
64
Económica dos Balcãs25. Acrescente-se, também, o compromisso assumido por
Atenas de financiar, durante os próximos quatro anos, em 100 milhões de euros, a
implementação do corredor pan-europeu X, que atravessa a região dos Balcãs de
Noroeste a Sudeste, ligando Salzburgo a Salónica, passando por Liubliana, Zagrebe,
Belgrado, Nis, Skopje e Veles. No quadro da União Europeia, foram-se desenvolvendo
programas de cooperação com a ARJM, tendo o Banco Europeu de Investimento
vindo a apoiar projectos no país, desde Dezembro de 2005, com fundos no valor de
163 milhões de euros.
Nos anos que se seguiram à assinatura do Acordo Interino, importará destacar
as datas-chave do processo de aproximação da ARJM à União Europeia, que a seguir
se assinalam sucintamente:
– em 1996, a ARJM passa a poder beneficiar dos programas PHARE da União
Europeia;
– em 1997 é assinado o Acordo de Cooperação;
– em Novembro de 2000, na Cimeira de Zagrebe, são iniciados os Processos de
Estabilização e Associação com cinco países dos Balcãs, incluída a ARJM;
– em Abril de 2001 é assinado o Acordo de Estabilização e Associação com o
país;
– em Março de 2004, a ARJM apresenta a sua candidatura para adesão à UE;
– em Dezembro de 2005, o Conselho Europeu, sob Presidência Britânica,
concede o estatuto de país candidato à ARJM26;
– em Janeiro de 2006, o Conselho adopta a Parceria Europeia com o país;
– em Janeiro de 2008, entra em vigor o Acordo de Facilitação de Vistos e de
Readmissão entre a UE e a ARJM;
– em Fevereiro de 2008, o Conselho adopta a Parceria para a Adesão;
Durante todo este processo de aproximação da ARJM à União Europeia, a Grécia
procurou apoiar as perspectivas europeias do país, não tendo apresentado obstáculos
ou empecilhos às aspirações do país vizinho. Contudo, Atenas deixou sempre claro
que jamais poderá concordar com a adesão da ARJM à OTAN ou UE, sob a designação
25
Hellenic Plan for the Economic Reconstruction of the Balkans – HiPERB; foi aprovado em 27 de Março de 2002 com o principal
objectivo de impulsionar e promover a reconstrução económica, social e institucional dos países do Sudeste Europeu (Albânia, Bulgária,
Montenegro, ARJM, Bósnia-Herzegovina, Roménia e Sérvia); o plano plurianual, inicialmente previsto para o período 2002-2006 foi,
entretanto, prolongado até 2011, pelo facto de a sua implementação prática se ter iniciado apenas em meados do ano de 2004.
26
Conclusões do Conselho Europeu de Bruxelas de 15/16 de Dezembro de 2005.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
27
A título de exemplo refira-se a decisão tomada pelo Executivo de Skopje, em Janeiro de 2007, de alterar o nome do seu aeroporto de
“Petrovec” para “Alexandre o Grande”, o que levou as autoridades gregas a condenar o acto e reiterar a necessidade de se respeitarem
compromissos assumidos e se promoverem relações de boa vizinhança.
28
“We recognize the hard work and the commitment demonstrated by the former Yugoslav Republic of Macedonia to NATO values and
Alliance operations.We commend them for their efforts to build a multi ethnic society.Within the framework of the UN, many actors
have worked hard to resolve the name issue, but the Alliance has noted with regret that these talks have not produced a successful
outcome. Therefore we agreed that an invitation to the former Yugoslav Republic of Macedonia will be extended as soon as a mutually
acceptable solution to the name issue has been reached.We encourage the negotiations to be resumed without delay and expect them to
be concluded as soon as possible”.
29
“Maintaining good neighborly relations, including a negotiated and mutually acceptable solution on the name issue, remains essential”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
65
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
“República da Macedónia” e fez sempre questão em acentuar a necessidade de se
cumprirem as obrigações assumidas no Acordo Interino de 1995, nomeadamente no
que se refere às relações de boa vizinhança27.
Na mais recente evolução desta questão, importa, ainda, salientar o veto exercido
pela Grécia na Cimeira da OTAN, em Bucareste, em Maio de 2008, quando as
autoridades gregas decidiram opor-se ao convite para a adesão da ARJM à Aliança
Atlântica. Atenas defendeu com determinação, junto dos seus aliados, que as boas
relações de vizinhança e a resolução deste diferendo eram condições necessárias à
participação da ARJM na organização. O argumento avançado pela Grécia de que
dificilmente se poderia aceitar, como novo aliado na estrutura atlântica, um país com
o qual Atenas tem um contencioso e difíceis relações de vizinhança – essenciais à
estabilidade e segurança da região dos Balcãs – colheu a simpatia de alguns parceiros
da NATO, em particular do Presidente francês, Nicholas Sarkozy, que manifestou de
forma clara o seu apoio às teses defendidas pela Grécia. Nas conclusões da referida
Cimeira, ficam expressas as recomendações da Aliança para que as negociações se
possam desenrolar da melhor forma e assim prosseguir no sentido de se alcançar
uma solução em torno da denominação oficial do país28. Para além do resultado
positivo alcançado em Bucareste, Atenas conseguiu ainda incluir os seus argumentos
nas Conclusões do Conselho Europeu de 19 de Junho de 200829, em que uma vez
mais é recordado à ARJM a importância das relações de boa vizinhança e a necessidade
de se alcançar uma solução mutuamente aceitável sobre a questão do nome.
Posteriormente, em Dezembro de 2008, o Conselho de Assuntos Gerais e Relações
Externas de Ministros dos Negócios Estrangeiros faz nova referência, nos mesmos
termos, no ponto relativo à ARJM.
Será agora um momento de viragem na evolução deste diferendo? Tudo indica
que sim. Embora seja prematuro fazerem-se prognósticos, o relacionamento dos dois
países parece ter entrado numa nova fase. Disso é aliás também prova a recente
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
66
decisão, tomada pelas autoridades de Skopje, de recorrer ao principal órgão judiciário
das Nações Unidas, para aferir da legalidade do veto grego. Recorde-se que, em
Novembro de 2008, a ARJM interpôs recurso junto do Tribunal Internacional de
Justiça30, por alegado incumprimento por parte da Grécia do artigo 11.º 31 do Acordo
Interino de 1995, quanto à adesão do país a organizações internacionais. Foram já
estabelecidos os prazos processuais, isto é, a ARJM deverá expor os seus fundamentos
até 20 de Julho de 2009, cabendo à Grécia apresentar a sua contestação até 20 de
Janeiro de 2010. O processo agora iniciado, que se prevê possa vir a ser longo,
deverá permitir às partes, uma vez mais, defender as suas posições e fazer valer os
seus argumentos.
Por último, outro aspecto essencial a sublinhar é o papel do actual Enviado
Especial do Secretário-geral das Nações Unidas. Matthew Nimetz encontra-se ligado
à questão desde 1994, como Representante Especial do Presidente Clinton e
posteriormente como Adjunto do então Enviado Especial do Secretário-geral das
Nações Unidas, Cyrus Vance. A partir de Dezembro de 1999 Nimetz substituiu Vance
nas suas funções de mediador. Desde então, realizaram-se variadíssimas rondas de
negociações com os representantes designados pelos Governos de Skopje e Atenas.
Foram apresentadas diversas propostas de nomes32, não tendo até à data (Março
2009) sido encontrada uma solução definitiva. A mais recente proposta apresentada
por Nimetz em Outubro de 2008 sugeria “Republic of North Macedonia”, tendo
ambas as partes solicitado alterações quanto a diversos aspectos do conjunto de
ideias apresentadas pelo Enviado Especial. Não sendo porventura a melhor opção,
nem para Atenas, nem para Skopje, foi reconhecido pelo governo de Karamanlis que
a proposta de Nimetz poderá constituir uma boa base de negociação ou ponto de
partida para uma eventual solução. As conversações prosseguem e prevê-se que uma
nova ronda de negociações possa ter lugar antes do Verão de 2009, depois das
eleições Presidenciais e Municipais na ARJM, a 5 de Abril.
30
Vd. www.icj-cij.org (“the former Yugoslav Republic of Macedonia institutes proceedings against Greece for a violation of Article 11 of the
Interim Accord of 13 September 1995”).
31
O Artigo 11.º do Acordo Interino refere expressamente que a Grécia não pode obstar à adesão da ARJM a qualquer Organização
Internacional a que pertença, reservando-se apenas o direito de objectar à entrada do país com outra designação que não a actual “Antiga
República Jugoslava da Macedónia”.
32
Entre outros refira-se:“Constitutional Republic of Macedonia”,“Democratic Republic of Macedonia”,“Independent Republic of Macedonia”,
“New Republic of Macedonia”, “Republic of New Macedonia”, “Republic of Macedonia-Skopje”, “Republic of Upper Macedonia”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
contornos desta questão, considerem-se os factos que contribuíram para a elaboração
da posição da Grécia33. Como constatámos, a intensificação e o exacerbar do diferendo
entre Atenas e Skopje, constituíram por si só tema de desacordo entre ambas as
partes. Apesar de se ter registado uma evolução significativa das relações existentes
entre os dois países, depois da assinatura do Acordo Interino, a verdade é que a
disputa sobre a designação da ARJM se mantém e a mediação do Enviado Especial
do Secretário-Geral das Nações Unidas não logrou, ainda, levar ambas as partes a um
entendimento definitivo. Por outro lado, estima-se que cerca de 120 países já terão
reconhecido a ARJM sob o seu nome constitucional, i.e, “República da Macedónia”,
o que na perspectiva das autoridades de Skopje, constitui um claro sinal do apoio da
Comunidade Internacional aos seus argumentos. No quadro da União Europeia, a
única expressão utilizada continua a ser “Antiga República Jugoslava da Macedónia”,
não só por uma questão de solidariedade com a Grécia mas por ser essa a denominação
em vigor internacionalmente34. De igual modo, tanto a Organização para a Segurança
e Cooperação na Europa (OSCE), como a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN) usam a designação “Antiga República Jugoslava da Macedónia”35. Dito isto,
alguns Estados-membros destas organizações reconhecem a ARJM por “República da
Macedónia” nas suas relações bilaterais com este país36, mas mantêm a designação
ARJM no âmbito das organizações internacionais a que pertencem. No caso de
Portugal, tem sido usada, até hoje, a denominação “Antiga República Jugoslava da
Macedónia”. O facto da ARJM ter conseguido obter o reconhecimento do seu nome
constitucional junto de tantos países, é aliás considerado por Atenas como revelador
da falta de empenho das autoridades de Skopje em alcançar uma verdadeira solução
mutuamente aceitável, sob os auspícios das Nações Unidas. Segundo as autoridades
gregas, se houvesse uma real e efectiva intenção por parte do país vizinho em chegar
a um entendimento e à resolução definitiva do diferendo, a ARJM não teria vindo
33
O essencial destas notas baseia-se na argumentação defendida por Demetrius Andreas Floudas em “Pardon? A Conflict for a Name?
FYROM’s Dispute with Greece Revisited”.
34
“On proposal by the Presidency, the Council agreed to add to the minutes of the Council that until a mutually acceptable solution to
the name issue has been reached with Greece, the EU will continue to use the temporary designation “the former Yugoslav Republic of
Macedonia” in all EU documents and fora”, vd. Conclusões do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas da União Europeia de
12 de Dezembro de 2005.
35
“Decision nº 81 of the Permanent Council of the OSCE”, de 12 de Outubro de 1995, e “NATO document ES(2000)30 on the treatment
of the name of the former Yugoslav Republic of Macedonia”, de 29 de Fevereiro de 2000.
36
Nomeadamente: Reino Unido, Alemanha, Suécia, Eslovénia, Dinamarca, República Checa, Polónia, Roménia e Bulgária.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
67
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
Factos determinantes na elaboração da posição da Grécia Apresentados os principais
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
68
a promover, ao longo destes anos, o reconhecimento internacional do seu nome
constitucional. Do ponto de vista de Skopje compreende-se, porém que assim seja. Para
quê voltar atrás quando, a pouco e pouco, se vai instalando o “costume internacional”
de designar o país conforme querem as suas autoridades e a sua população?
A definição da política externa grega no período de 1989 a 1995 viu-se
influenciada por considerações de ordem diversa, algumas de natureza histórica,
outras de índole académica e outras ainda de carácter prático. A posição de base
grega – que perdurou durante mais de 45 anos – de que não existia sequer uma
questão macedónica, permitiu que a Jugoslávia do Marechal Tito prosseguisse os
seus desígnios; por outro lado, deixou a opinião pública internacional na perfeita
ignorância sobre o eventual ponto de vista grego. Foi com um fervor tardio que
Atenas resolveu debruçar-se sobre a matéria, quando deu início a uma campanha
interna de macedonização dos seus próprios elementos e emblemas37.
Nos anos 1991-1992, existia, ainda, um certo desdém por parte de alguma
sociedade grega, convicta de que ninguém daria crédito aos estratagemas da ARJM e
às suas tentativas de usurpar a herança cultural grega, a que se aliava a certeza do
bem fundado das reivindicações gregas. Assim, quando o país pretende tornar-se
independente, a comunidade internacional tem como primeira interrogação, não
tanto a questão de avaliar se o país se deve chamar Macedónia ou não, mas sim quais
as razões que levam os vizinhos gregos a não permitir tal denominação. A posição
das autoridades gregas, que até então revelara uma certa inércia e indiferença, fez
com que a ARJM conseguisse ganhar terreno, durante anos, através de conferências,
publicações e monografias em Universidades e livrarias, pelo mundo fora.
A posterior posição inflexível tomada por Atenas sobre esta matéria não deixa de
ser curiosa. Por um lado, a vinda a público e divulgação do diferendo existente entre
a ARJM e um país, política, económica e militarmente superior, originou reacções de
ordem diversa e até mesmo alegações de que a Grécia estaria a desenvolver manobras
de intimidação junto da ARJM. Por outro, as intensas manifestações que tiveram lugar
na cidade de Salónica transmitiam a imagem de uma população determinada, com
pontos de vista categóricos sobre o assunto. À medida que a disputa ia evoluindo, a
intransigência de ambas as partes não permitia vislumbrar possíveis formas de
37
Refira-se a título de exemplo: a alteração, em 1988, de “Ministry for Nothern Greece” para “Ministry for Macedonia-Thrace; a criação,
em 1991, da “Macedonian Press Agency” de Salónica; o cunhar de moedas com o Sol de Vergina; a consagração, em 1993, da Estrela
de Vergina como símbolo nacional grego.
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38
Até praticamente 1991, o Consulado da Grécia endereçava comunicações e dirigia-se ao Governo de Skopje usando o termo República
Socialista da Macedónia.
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69
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
solucionar o problema. E foi precisamente essa intransigência que acabou por reduzir
as respectivas margens de manobra de Atenas e Skopje e gerou, perante alguma
perplexidade internacional, a presente situação de (quase) impasse.
As preocupações e prioridades da política externa grega, centrada nas suas
relações com a Turquia, não lhe davam espaço para assegurar uma política coerente
com vista à estabilidade dos Balcãs, nem de se preparar para a previsível ruptura da
Federação Jugoslava, subsequente à morte do Marechal Tito. A política externa grega
não estava, assim, preparada para fazer face aos novos desafios decorrentes da
dissolução do Bloco de Leste e da redistribuição dos poderes regionais. A posição,
anterior aos anos 90, de refutação da existência de qualquer questão macedónica,
bem como a tranquilidade das relações com a Jugoslávia e a República Socialista da
Macedónia, sua parte integrante, eram reveladores de que a Grécia não antevia que
pudessem surgir eventuais alterações no status quo da Macedónia38.
É clara e evidente a impossibilidade de se analisar esta matéria fora do seu
contexto histórico, i.e do conflito jugoslavo e outras questões paralelas. Os interesses
defendidos por Atenas, nessa altura, eram contrários aos interesses da maior parte
das potências ocidentais. Refira-se nomeadamente, a ideia defendida pelas autoridades
gregas de se preservar a Jugoslávia, o que contrariava os desígnios da Alemanha,
Áustria e Itália e, até da Santa Sé, que, não só por razões históricas como devido a
uma crescente necessidade de aumentar a sua influência na região, pretendiam o
desmembramento da Jugoslávia. Saliente-se, ainda, o apoio da Grécia à Sérvia, seu
único aliado histórico na região – o que não reforçou a reputação internacional de
Atenas.
A questão macedónica surgia cada vez mais como um agravamento absurdo de
uma situação por si só já exacerbada. No caso concreto da ARJM, independentemente do bem fundado dos argumentos apresentados por Atenas, a Europa
não iria permitir que a Grécia asfixiasse este novo país, na medida em que isso
poderia resultar em mais um foco de conflito ou outra tentativa falhada de se
assegurar a paz na região. A hostilidade grega contra a Antiga República Jugoslava
era vista como uma eventual ameaça à sua existência e possível factor de expansão
dos conflitos a sul.
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
70
Por seu turno, vários Estados-membros da UE tinham uma apreciação superficial
e distante da essência do diferendo que opunha Atenas a Skopje, frequentemente
considerada, por alguns, uma “histeria infantil” ou mais uma “peculiaridade balcânica impenetrável”. A Grécia surgia, assim, dividida entre a necessidade de adoptar
critérios ocidentais de aceitação da liberdade alheia aplicáveis à política externa e a
urgência em obter resultados no difícil panorama diplomático e correspondentes
jogos de interesses que se desenvolviam em torno da região dos Balcãs.
Consequentemente, a política externa grega oscilava entre o recurso a argumentos de
natureza cultural ou a invocação de fundamentos pragmáticos para fazer valer a sua
posição. Contudo, a opção por critérios racionais nem sempre conseguia vingar,
dada a falta de serenidade e deficiente conhecimento dos seus interlocutores da
história dos Balcãs.
A decisão dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade Europeia, reunidos
em Lisboa durante a Presidência portuguesa de 1992 – em que é reafirmada a
vontade da Comunidade em reconhecer a Antiga República Jugoslava como Estado
independente, desde que a nova apelação não contenha o termo “Macedónia” –,
constituirá ao longo destes anos um dos pontos altos da solidariedade europeia e terá
sido porventura uma oportunidade única, desperdiçada por Atenas, de alcançar o
melhor resultado possível, tendo em conta os seus interesses nesta questão. Mas a
rotação de Presidências do Conselho acabou por ser favorável a Skopje com a entrada
em funções, no segundo semestre de 1992, da Presidência britânica, que procurou
relativizar a importância da Declaração de Lisboa e até mesmo alterá-la. A ARJM
ganhou alguma simpatia internacional, ao projectar a imagem de um país ameaçado
e oprimido pelo seu vizinho poderoso, o que lhe terá permitido recolher apoios
junto de alguns órgãos de comunicação social de países europeus, que não hesitaram
em optar por posturas anti-helénicas sobre a matéria. Nos anos seguintes, a Grécia
apercebeu-se da necessidade de promover um melhor e mais forte lobby a seu favor,
dentro e fora da UE. Como se viu, as contra-medidas, tomadas por Atenas em 1994,
são disso exemplo. Uma palavra ainda sobre o papel desempenhado pela Igreja
Ortodoxa grega, que igualmente contribuiu para consolidar as posições defendidas
por Atenas. Recorde-se não só o apoio às manifestações organizadas em Salónica, em
1992 e 1993, mas também a outras demonstrações e concentrações que tiveram
lugar nos Estados Unidos, Canadá e Austrália, o que lhe permitiu unir e consolidar
a diáspora, ao longo destes anos. Ainda acerca desta matéria, valerá a pena referir
que, em 2001, o Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa grega, em consonância com o
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
Governo, havia tornado público os seus pontos de vista e acentuado a ideia de que
o uso do termo “Macedónia” constituía uma usurpação da História e cultura grega
e abria caminho a reivindicações territoriais39.
71
maximalistas do início da década de 90. Desde logo, importa assinalar o facto de
hoje ser aceite pelas autoridades gregas a possibilidade de o futuro nome, que vier
a designar oficialmente o país vizinho, possa ser um nome composto e possa incluir
a palavra “Macedónia”40. Nesse sentido, poder-se-á dizer que, na perspectiva da
Grécia, a sua posição evoluiu a caminho de um ‘meio-termo’ na questão do nome,
pois ao aceitar-se um nome composto e a palavra “Macedónia”, na designação
oficial do país, as autoridades gregas consideram estar a fazer uma concessão
maior às reivindicações dos seus opositores. Chegados a este ponto, valerá a pena
debruçarmo-nos um pouco sobre os principais pontos que caracterizam a posição
defendida hoje por Atenas. O Executivo grego considera que, tanto a Grécia, como a
ARJM, assumiram a responsabilidade de resolver a questão da disputa sobre o nome
do país, pelo que, tanto um como o outro, devem actuar nessa conformidade. Assim,
cabe a ambos cumprir o compromisso assumido de contribuir para as negociações,
mediadas pelas Nações Unidas, tendo em vista uma solução mutuamente aceitável.
Atenas considera estar a executar a sua quota-parte de responsabilidade nessa matéria.
Não tem dúvidas de que ambos os países terão de fazer concessões, pelo que entende
ser indispensável quebrar o actual círculo vicioso em que se encontra encerrada esta
questão, para evitar que ambas as partes ficam reféns das suas posições. Por outro
lado, Atenas tem defendido que não deve haver nem vencedores, nem vencidos,
mas sim um acordo que satisfaça as partes interessadas e corresponda à realidade
geográfica e histórica. A solução terá, assim, que ser mutuamente aceitável e ter por
basear o processo negocial conduzido pelo Representante Especial das NU para a
39
“The Church of Greece believes that the use of the name ‘Macedonia’ by the neighboring state constitutes usurpation of a considerable
portion of our history and culture, paves the way for territorial demands and the resurgence of non-existent minority issues, assails
Greek dignity, and violates the historical truth. The Church cannot be unmindful of the cries of protest which are being raised by the
organizations of [Greek] Macedonians abroad and are being heard the length and breadth of the globe. Nor can the Church overlook
the profound dismay of its flock living in Northern Greece. For if we put our signature to the recognition of a state the name of which
includes the term ‘Macedonia’, then it will not be long before the Northern Greeks are forbidden to call themselves ‘Macedonians’.
40
Em Março de 2005, em resposta a uma proposta avançada por Nimetz, a Grécia manifesta a sua disponibilidade em aceitar que o termo
“Macedónia” faça parte do nome composto que vier a ser escolhido.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
A actual posição da Grécia A posição hoje defendida por Atenas já não corresponde às teses
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
72
questão da designação da ARJM. Deverá enquadrar-se nas Resoluções do Conselho
de Segurança das Nações Unidas e nos princípios europeus. Para a Grécia, é pois
essencial e determinante que a resolução do diferendo contemple os seguintes três
aspectos:
– a adopção de uma denominação, que se poderá apresentar sob a forma de
um nome composto e conter a palavra “Macedónia”, com um qualificativo
geográfico que permita distinguir o país vizinho do resto da zona geograficamente conhecida como Macedónia, isto é, a Macedónia grega41; uma
designação erga omnes, isto é, um nome internacionalmente reconhecido por
todos, quer a nível bilateral, quer no plano multilateral42, para todos os fins e
propósitos;
– que a ARJM renuncie definitivamente a qualquer usurpação da herança
histórica e cultural helénica e se afaste de conceitos irredentistas que pertencem ao passado;
– a adopção e endosso pelas Nações Unidas da solução definitiva por forma a
assegurar o respeito pela sua implementação.
Conclusão Na perspectiva da Grécia, o diferendo sobre a designação do país vizinho constitui
um elemento de particular relevância da sua política externa. As autoridades gregas
não perdem nunca a oportunidade de reiterar a importância desta matéria, nem de
acentuar o empenho com que procuram alcançar uma solução e a parte do caminho
que já percorreram. Tal solução deverá permitir, simultaneamente, defender os
interesses do país e da região grega da Macedónia, pelo que a questão, enquanto
estiver por resolver, se manterá sempre na ordem do dia, independentemente do
partido ou coligação que possa estar no poder. Por outro lado, a questão só ficará
resolvida em sede constitucional, mediante ratificação parlamentar, a qual poderá
41
Melhor dizendo, os eventuais adjectivos que possam ser apostos à denominação “República da Macedónia” devem diferenciar o termo
“Macedónia” e não o termo “República”. Para a Grécia, o que importa é distinguir a palavra que está na origem do diferendo, pelo que
de nada servem eventuais soluções com os termos “Constitutional”, “Democratic” ou “Independent” apostos à palavra “Republic”, mas
já poderá fazer diferença se essas mesmas sugestões ou outras forem inseridas junto à palavra “Macedonia”, como seriam os casos de
“Republic of Upper Macedonia” ou “Republic of New Macedonia”. Só assim poderá haver, segundo as autoridades gregas, uma efectiva
diferenciação do termo Macedónia em relação à região grega da Macedónia.
42
Atenas é contra uma solução dual, em que haveria uma designação apenas para uso das relações bilaterais entre a Grécia e a ARJM e
outra a ser utilizada nas relações da ARJM com os restantes países da Comunidade Internacional ou no âmbito das Organizações
Internacionais.
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73
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
ser complexa dada a agressividade da luta política inter-partidária grega. Nesse
sentido, Atenas deverá prosseguir em diante com seus argumentos, deixando todas
as opções em aberto, para melhor apresentar a sua posição e proteger seus interesses,
tendo em conta que o limite dos negociadores terá de coincidir com os limites do
entendimento entre os partidos.
Toda a problemática se prende com o facto de que a questão de denominação
da ARJM não se circunscreve apenas ao nome a escolher. Tudo aquilo que é
apresentado pelas autoridades gregas como sinais reveladores do seu empenho em
alcançar uma solução é naturalmente contestado pela ARJM e vice-versa. O que opõe
ambas as partes é a própria essência do diferendo. Para a Grécia, se em tempos se
tratou de uma questão de segurança nacional, hoje é sobretudo em termos de
identidade e de preservação de uma herança cultural que o problema se coloca. Já
no que se refere à ARJM, a questão põe em causa não só a identidade do país, como
a sua própria existência, na medida em que o termo “Macedónia” é considerado o
nome de raiz do Estado e do seu povo. Na perspectiva de Skopje, a componente
Macedónica é determinante na caracterização da sua identidade e etnicidade – e do
seu estatuto como país do sudeste Europeu –, não só em termos de nacionalidade
como de língua, pelo que as objecções da Grécia ao uso do nome são vistas no país
vizinho como uma negação da existência da nação Macedónica enquanto tal. Essa é
aliás, no entender das autoridades de Skopje, a razão pela qual Atenas contesta
qualquer discussão em torno de questões étnicas e se opõe ao uso do adjectivo
“macedónio” no que toca à nacionalidade e língua da ARJM. Mas vários outros
aspectos relacionados com a matéria devem ser tidos em conta e terão que ficar
devidamente regulados na solução que vier a ser encontrada, nomeadamente no que
toca à necessidade de se estabelecerem critérios para a comercialização de produtos
oriundos, tanto da ARJM como da região Norte da Grécia. Outro ponto essencial a
ter em conta será a forma de implementar o acordo entre as partes. Para a Grécia,
não bastará haver uma Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
tornando-se indispensável que exista, por um lado, uma ratificação constitucional e,
por outro, um mecanismo de follow-up, que permita acompanhar a correcta implementação da solução que vier a ser aceite. No futuro mais próximo a Grécia procurará
fazer valer os seus argumentos no âmbito do processo agora instaurado no Tribunal
Internacional de Justiça, em que deverá dar conta daquilo que considera terem sido,
ao longo destes anos, claras e contínuas violações do Acordo Interino por parte das
autoridades de Skopje.
O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia
74
Dito isto, ao olharmos mais atentamente para a evolução desta questão nos
últimos 15 anos, torna-se claro que o processo de aproximação à União Europeia
constituiu o caminho certo e uma oportunidade para a consolidação das relações
entre Atenas e Skopje. Um futuro europeu comum poderá ser a melhor forma de
ultrapassar as diferenças de identidade e levar à resolução do diferendo sobre a
denominação do país.NE
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Francisco Proença Garcia*
A nova polemologia
76
A nova polemologia
■ Abstract:
This article is about the new wars and new threats to international security, which
constitute a new approach to Polemology. It also analyses the 6 fundamental
characteristics of the so-called war made by the forces of transformation.
SÃO
questões que têm captado a atenção de várias gerações de estudiosos das
Relações Internacionais e da Estratégia, como por exemplo:
• O que é e por que razão surge a Guerra?
• Como se pode caracterizar a Guerra na actualidade?
• Qual o posicionamento da entidade Estado como estrutura política no novo
contexto internacional?
• O uso da Força nas Relações Internacionais ainda é útil?
• Porquê, e por quem é a Segurança dos Estados e das pessoas ameaçada?
INÚMERAS AS
Procurando encontrar respostas a estão questões, articulámos este artigo em oito
capítulos distintos mas interrelacionados. Ao longo do texto traçaremos uma
perspectiva das transformações ocorridas nos conflitos armados e caracterizaremos
as principais ameaças à Segurança, procurando mostrar a ligação entre estas e a
Guerra no nosso século. Caracterizaremos ainda as guerras de alta tecnologia,
findando com uma abordagem da civilinização da actividade militar e o importante
papel desempenhado pelas empresas militares privadas. Esta análise permite-nos,
desde logo, verificar a profunda evolução do fenómeno da Guerra. De facto, evoluiu-se de um modelo essencialmente clausewitziano para um modelo de guerra
irregular, global, assimétrica e permanente, sem uma origem clara e que pode surgir
em qualquer lugar.
*
Tenente-Coronel. Conselheiro Militar na PODELNATO. O presente artigo corresponde ao texto integral da lição
de encerramento apresentada pelo autor nas provas de Agregação em Relações Internacionais no Instituto
de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, no dia 17 e 18 de Setembro de 2008.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111
rivalidade do mundo em equilíbrio bipolar. Estas tensões entre os grandes poderes
no campo económico, ideológico e político, traduziu-se na utilização preferencial
da força militar como instrumento de dissuasão. O período é caracterizado pelos
inúmeros conflitos nas zonas de confluência dos interesses das grandes potências,
que se enfrentavam por locução interposta.
A conjuntura internacional sofreu profundas alterações após a queda do muro
de Berlim. No actual Sistema Internacional caracterizado pela sua complexidade, não
linearidade, imprevisibilidade, heterogenidade, mutabilidade e dinamismo, a
ameaça, que mantinha coordenadas de espaço e de tempo bem definidas, desapareceu,
dando lugar a um período de anormal instabilidade, com uma ampla série de riscos
e perigos, uns novos, outros antigos, que apenas subiram na hierarquia das
preocupações dos Estados.
A comunidade internacional, habituada a um equilíbrio pelo terror do
holocausto nuclear, foi assim forçada a reconhecer que para além do Estado existiam
outros actores que empregavam a força como instrumento nas Relações Internacionais,
situação que apesar de não ser nova influenciaria decisivamente o fenómeno da
Guerra a partir da última década do século XX.
Mas as incertezas no dealbar deste terceiro milénio são inúmeras. Num mundo
hoje marcado pela volatilidade identitária (Badie, 2001; p. 71), as zonas de interesse
estratégico fundamentais alteraram-se, e passaram a ser aquelas que são capazes de
exportar a sua própria instabilidade (Ramonet, 2001; p. 56). As Guerras já não
obedecem apenas à concepção clausewitziana (Estado, Forças Armadas, População),
típica do anterior Sistema Internacional. Hoje a violência global é assimétrica e
permanente, não tem uma origem clara e pode surgir em qualquer lugar. Para
muitos, trata-se de uma situação típica do mundo tendencialmente unipolar do
ponto de vista do esforço militar.
A actual conjuntura internacional, onde o papel do Estado soberano está em
crise, também se caracteriza pela flexibilização do conceito de fronteira e pela
aceitação de situações de cidadanias múltiplas e de governança partilhada.
No imaginário ocidental, quando se pensa ou fala em Guerra, normalmente a
imagem associada é a da confrontação entre as Forças Armadas organizadas de dois
ou mais Estados. Porém, os Estados, como forma de organização política ocidental,
são criações artificiais recentes que surgem após Vestfalia, pelo que a Guerra, como
instrumento da política do Estado que opunha um Estado a outro e umas Forças
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A nova polemologia
I. As guerras no nosso século – uma perspectiva O fim da II Guerra Mundial foi marcado pela
A nova polemologia
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Armadas a outras Forças Armadas, constitui um fenómeno relativamente recente e
que poderá ter tendência a desaparecer (Creveld, 1991; p. 75).
As guerras contemporâneas, acentuadamente depois de 1945, tornaram-se cada
vez menos entre Estados e passaram a contemplar outros actores, infra-estatais, que
perseguem múltiplos e diversos objectivos, que obedecem a lógicas e a racionais
também diferentes, verificando-se uma extrema plasticidade dos seus actuantes,
assemelhando-se muitas vezes a uma luta pela sobrevivência, sem regras, sem
objectivos claramente definidos, podemos mesmo dizer, totalmente irracional,
caótica, poluída, penetrada pelo crime organizado, pelo terrorismo e pelo tribalismo
(Bauer e Raufer, 2003; p. 165). Igualmente relevante é o aparecimento de entidades
supra-estatais institucionalizadas capazes de executar acções militares conjuntas, um
fenómeno que exige acompanhamento.
No caso de regiões menos desenvolvidos, onde são inúmeros os Estados que
jamais foram capazes de se afirmarem face a outras entidades sociais (nomeadamente
em relação à tribo e aos grupos etnolinguísticos), tem-se observado que, no decorrer
de confrontações violentas, a distinção entre Estado, Forças Armadas e população
começou a esbater-se antes mesmo de ter sido correctamente estabelecida (Olsen,
2003).
Na história existiram as estruturas tribais, as estruturas feudais, as associações
religiosas, os bandos de mercenários ao serviço de senhores da guerra, e mesmo
organizações comerciais. Muitas destas entidades não eram sequer políticas nem
detentoras de soberania. Não possuíam governo, Forças Armadas nem população (no
sentido actual do termo), mas defrontavam-se em guerras e campanhas bem
organizadas.
É neste sentido que alguns autores consideram que o mundo está a enfrentar
uma situação de neo-medievalismo (Berzins e Cullen, 2003), ou mesmo um eventual
regresso ao primitivo, favorecendo o falhanço do Estado e o crescimento da violência
internacional não-estatal, em casos extremos, privatizada (Kaldor, 2001; p. 91-96),
perdendo o Estado o uso exclusivo da Força. Para Herfried Munkler (2003, p. 18),
passou a haver uma desmilitarização da guerra, no sentido em que os objectivos civis
não se distinguem dos militares e a violência extrema é exercida contra não-combatentes e sobre todos os domínios da vida social. Nestas novas guerras usam-se
profusamente crianças-soldado (Singer, 2005; p. 7).
As formas de barbárie que não aparecem desprovidas de funcionalidade,
permitem assegurar a fidelidade dos participantes e criam uma cumplicidade do
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a. A urbanização da luta
As populações rurais, motivadas pela fome, pobreza e pelas guerras, refugiam-se ou
imigram para os grandes centros urbanos, que crescem desreguladamente. Essas
comunidades migrantes vão instalar-se nas favelas, bairros da lata, vilas miséria, callampas ou
shantytowns, das cinturas suburbanas em condições sub-humanas. Neste ambiente
encontram terreno para emergir as mais diversas formas de subversão, como os gangs
de rua (Manwaring, 2005), que ajustam as suas tácticas e estratégias, no bom
reconhecimento de que o centro de poder político-económico-militar está na
conurbação, que o poder pode e deve ser atacado na sua sede e não na periferia
(Laqueur, 1984; p. 344).
Tal como na guerrilha rural, nas selvas de zinco e adobe, os combatentes que se
misturam com a população com mais facilidade conseguem a cobertura dos media,
mostrando a incapacidade do poder para a proteger (Taw e Hoffman, 2005; p. 15).
Neste pano de fundo, a subversão acaba por controlar uma determinada área e
estabelecer formas alternativas de poder, beneficiando os seus seguidores com a
prestação de alguns apoios (incluindo a distribuição de alimentos).
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A nova polemologia
crime, de afirmação de uma identidade colectiva face ao Inimigo, de exercer sobre
ele um terror cruel, dificultando a sua resistência pela imprevisibilidade e
arbitrariedade das represálias e da sua crueldade (Sémelin, 2000; p. 124). No fundo,
a violência ascendeu aos extremos a que Clausweitz (1976; p. 75) se referia, e o que
separa a guerra da barbárie é a existência do conceito da honra do guerreiro
(Ignatieff, 1998; p. 157).
Tendo em consideração que os actores deste tipo de conflito são outros, também
o seu carácter teve que evoluir: são guerras irregulares, estrutural ou temporariamente
assimétricas, sem frentes, sem campanhas, sem bases, sem uniformes, sem respeito
pelos limites territoriais, de objectivos fluidos, de combate próximo, estando os
combatentes misturados com a população que utilizam como escudo e, se necessário,
como moeda de troca. Os seus pontos fortes estão na inovação, na surpresa e na
imprevisibilidade, onde os fins justificam os meios, empregando por vezes o terror;
onde o estatuto de neutralidade e a distinção civil/militar desaparecem. Estas guerras
de hoje não são apenas mais comuns do que no passado, mas são também
estrategicamente mais importantes e desenvolvem-se em Teatros de Operações
urbanos; são travadas, essencialmente, em ambiente operacional de cariz
subversivo.
A nova polemologia
80
São bons exemplos de subversão urbana as actuações do Primeiro Comando da
Capital no Brasil a partir de 2001; os motins urbanos que ocorreram em Los Angeles
em 1992; os movimentos urbanos, como as manifestações e formas de “acção
directa anti-hegemónica” da “Esquerda festiva”, em 1999, em Seattle e, mais recentemente, em Paris em Novembro de 2005; ou ainda os levantamentos populares
pró-Democracia ocidental e liberal na Europa Central e de Leste (Guedes, 2005).
Todas estas actuações aproveitaram muito o sensacionalismo dos media.
A luta urbana não é uma técnica nova. Assim foi na América Latina, onde no
final da década de sessenta do século XX, o centro de gravidade da luta subversiva
passou do campo para a cidade, o que rapidamente originou uma nova doutrina da
guerrilha urbana. No Brasil destacaram-se guerrilheiros urbanos como Carlos
Lamarca e Carlos Marighella (1969). Na selva de cimento do Uruguai, os Tupamaros,
na Argentina os Montoneros e no Perú o Sendero Luminoso. As acções subversivas em
ambiente urbano surgiram ainda, entre outros países, na Itália (Brigate Rosse), na
Alemanha (Baader-Meinhof), em França (Action Directe), e no Japão (Nihon Sekigun). Todas
desafiaram a integridade política e socioeconómica dos seus países, criando um
clima de instabilidade e de insegurança individual e colectiva (Manwaring, 2004;
p. 29), seguindo um processo doutrinário comum de três fases típicas da subversão
urbana: organização, desordem civil e terrorismo (Laqueur, 1984; p. 377), procurando sempre a repressão violenta do poder. No fundo, o aparelho do Estado devia
ser desmoralizado, parcialmente paralisado, destruindo-se assim o mito da sua
invulnerabilidade e ubiquidade.
b. Tendências de futuro
A tendência actual aponta para que no futuro as guerras persistam entre Estados
pequenos e fracos, ou em países menos desenvolvidos, e não envolvendo as grandes
potências, eventualmente com base em considerações étnicas e de identidade,
considerando-se difícil que Estados cujo regime político-constitucional seja a
democracia, entrem em conflito entre si (Holsti, 1996; p. 23).
Embora pareça razoável defender esta interpretação, é muito claro que esta visão
da guerra do futuro não colhe a aceitação generalizada dos estudiosos da Estratégia.
Como visão divergente, é útil realçar a posição de Colin Gray (2005). Este autor,
dentro da lógica do neorealismo clássico a que diz pertencer, defende que a trindade
clausewitziana veio para ficar. Para Gray, seria errado admitir um desaparecimento,
no futuro próximo, das guerras regulares centradas nos Estados e que foram típicas
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A nova polemologia
do período vestefaliano, embora admita que, presentemente, se constata uma
tendência importante no sentido da utilização de forças irregulares.
O normativismo internacional sobre a guerra, inspirado nos pensamentos de
Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, ainda existe, mas ninguém lhe confere
muita importância. Com esta alteração, os Estados, outras entidades e mesmo os
indivíduos já não sentem a necessidade de assumir posições claras perante os
conflitos, nem a necessidade de adoptar o amplo normativismo internacional criado
para conter ou limitar a guerra e os seus efeitos.
Nos conflitos da última década não houve qualquer declaração formal de guerra
ou de neutralidade feita por um único Estado, assim como também não houve
qualquer tratado de paz formal. A maior parte dos Estados ou entidades limitou-se a
definir uma política geral perante o recurso à força militar, que variava ao longo do
tempo (Telo, 2002; p. 225). O caso mais emblemático é o do Kosovo, onde a opção
da OTAN se manifestou na legitimidade pelo exercício, ou seja, bombardeou-se
primeiro e só depois se alterou o Conceito Estratégico.
Identificadas as transformações fundamentais das características, mas
principalmente dos actores envolvidos nas guerras da actualidade, são inúmeras as
tendências para o futuro, que pensamos já se terem iniciado. De uma maneira muito
genérica, como vimos, é comum classificar as guerras como regulares e irregulares.
Se nas primeiras o modelo clausewitziano tradicional está presente, nas últimas os
Estados podem entrar em guerra contra uma rede terrorista, uma milícia, um
movimento independentista, um exército rebelde ou ainda contra o crime
organizado. As guerras irregulares podem também ser travadas entre dois ou mais
grupos organizados, não envolvendo nenhum Estado. Em ambas as tipologias, a
superioridade no acesso e tratamento da informação é determinante.
Consideramos nesta nossa Lição de Encerramento duas aproximações
fundamentais para caracterizar as guerras no nosso século, sejam elas regulares ou
irregulares. A primeira procura o entendimento de fenómenos como as “novas
guerras” e as “novas ameaças”, a segunda visão dedica-se ao estudo das implicações
das guerras espectáculo, possibilitadas pelas forças da Revolução Militar em Curso
(RMC), que têm por base os enormes avanços da tecnologia. Seja qual for a
abordagem, existe consenso quanto ao facto de neste século as guerras se
desenvolverem num mundo assimétrico, com fortes desequilíbrios quantitativos e
qualitativos e onde surge um novo e discreto instrumento de intervenção, as
empresas militares privadas (EMP).
A nova polemologia
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II. As novas ameaças à segurança e a guerra A Guerra hoje em dia aparece-nos muito
associada às novas ameaças transnacionais. Assim devemos antes de mais esclarecer
o que hoje se entende por novas ameaças, sabendo-se que reflectem numerosas
alterações políticas, económicas e sociais ocorridas no mundo desde a queda do
muro de Berlim e sobretudo no pós-11 de Setembro de 2001.
Tradicionalmente ameaça é definida como sendo qualquer acontecimento ou
acção (em curso ou previsível), de variada natureza e proveniente de uma vontade
consciente que contraria a consecução de um objectivo que, por norma, é causador
de danos, materiais ou morais; no fundo, o produto de uma possibilidade por uma
intenção (Couto, 1998; p. 329).
Porém, este conceito, por não ser suficientemente abrangente, apresenta hoje
difíceis problemas quando procuramos precisar o que compreende; além do mais
não permite a inclusão das consideradas ameaças não-tradicionais à segurança como
é o caso da SIDA. É fácil observar que esta pandemia não é uma ameaça na concepção
clássica, estruturalmente identificável num produto de uma capacidade por uma
intenção. Por outro lado, também não parece possível entendê-la como um risco,
que durante longas décadas se opôs ao conceito de ameaça, entendido como acção
não directamente intencional e eventualmente sem carácter intrinsecamente hostil
(Nogueira, 2005; p. 73).
Face à multiplicidade de conceitos sobre o assunto, neste estudo optámos por
adoptar a definição de ameaça transnacional do relatório das Nações Unidas, A More
Secure World: Our Shared Responsability, que admite uma concepção bastante ampla de
ameaça, encarada como:
“(…) Any event or process that leads to large-scale death or lessening of life
chances and undermines States as the basic unit of the international system is a
threat to international security (…)” (2004, p. 12).
Nesta ordem de ideias, consideramos como principais ameaças relacionadas
com a nova conflitualidade: o fracasso dos Estados, o crime organizado transnacional,
o terrorismo transnacional e a pandemia da SIDA.
III. O fracasso do Estado e a subversão A primeira destas ameaças podemos considerar
ter emergido com a alteração do Sistema Internacional após o fim da Guerra-fria. De acordo com dados da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento
Internacional (USAID, 2005), pelo menos um terço da população mundial vive agora
em áreas consideradas instáveis ou frágeis. São inúmeros os exemplos de Estados
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Por “Estado fraco” entendemos aquele cujos órgãos de soberania e as suas
instituições não conseguem exercer a sua actividade plena em toda a extensão do
território, são incapazes de garantir os serviços básicos à população e, perante esta
são tidos como ilegítimos. Muitos dos que ocupam ou ocuparam posições de relevo
na sua administração, ou seja, a sua Elite política, tem uma visão patrimonial do
Estado, transformando-se, no fundo, em gestores de um “(...) complexo sistema de
relações sociais, que premeia o indivíduo em função da lealdade, punindo os tidos
por desleais ou por competidores (...)” (Nóbrega, 2003; p. 181). Já o “Estado
falhado”, e numa escala de insucesso superior, é aquele que na ordem interna não
tem o monopólio da legítima violência que Weber (1946) nos falava, ou seja,
surgem outras entidades como milícias, exércitos privados ou uma qualquer
organização subversiva, nas suas variadas tipologias, que competem com o poder
formal, por vezes controlando partes significativas do território e da sua população,
não tendo necessariamente responsabilidade social sobre esta última.
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A nova polemologia
fracassados pelo Continente Africano e no Sudeste Asiático; os mais prementes são a
Somália e o Iraque.
São vários os elementos constitutivos do Estado, como o território, o povo e o
poder político soberano, competindo-lhe tradicionalmente garantir a prossecução
dos seus fins de segurança, justiça e bem-estar social (Caetano, 1991; p. 144-149).
Na definição tradicional de Jean Bodin, o Estado é supremo na ordem interna e
independente na ordem externa, ou seja, decide por si mesmo como irá enfrentar os
seus problemas internos e externos, incluindo se quer ou não procurar a assistência
de outros e, ao fazê-lo, limitar a sua liberdade chegando a compromissos com eles
(Waltz, 2002; p. 135-136).
Os conceitos que nos aparecem associados à definição de Estados Fracassados são
inúmeros, bem como diversos são os seus critérios de classificação, sejam eles
indicados por académicos de renome como Fukuyama (2006), Rotberg Robert (2004)
ou William Zartman (2001), ou ainda institucionais como a USAID e, no caso nacional
o documento “Nova Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa” (2005).
Porém, entendemos operacionalizar um conceito como instrumento útil. Assim,
dentro do conceito de Estado Fracassado, latu censu, inserem-se três categorias que nos
aparecem de uma forma gradativa:
• Estados fracos;
• Estados falhados;
• Estados colapsados.
A nova polemologia
84
O “Estado colapsado” aparece-nos no fim desta escala crescente de inviabilidade
do Estado, o poder formal simplesmente não existe, os órgãos de soberania e as
instituições num determinado território, que no passado já possuiu os atributos
tradicionais de um Estado, colapsaram; ou seja, no caos jurídico, legislativo e
administrativo prevalece a lei do mais forte, surgindo ou subsistindo diversas formas
de organização social e comunitária, lumpen, etno-linguísticas ou popular, que possuem
capacidade de exercer a força e conduzir operações armadas, que competem entre si
pelo controlo de território e pelo acesso a recursos, e que controlam e exercem
alguma forma de responsabilidade social sobre as populações residentes.
Analisemos um pouco mais detalhadamente estas formas de organização social
e comunitária de cariz subversivo.
a. Tipologia subversiva lumpen
Os movimentos lumpen são bandos armados ligeiramente organizados, de estrutura
informal e horizontal, que podem emergir e obter sucesso contra um Estado fraco. A
sua energia irradia da rua e não pelo desenvolvimento intelectual de uma ideologia, a
actuação militar precede a conceptualização dos motivos, em vez de emergir deles, e é
realizada sobretudo em áreas rurais. A disciplina assenta na brutalidade extrema, com
utilização profusa de estupefacientes e de bebidas alcoólicas, onde o apoio da população
surge pela mera questão de sobrevivência, uma vez que os elementos das unidades lumpen
sistematicamente agridem e exploram as populações; a pertença ao grupo, para além da
sobrevivência, é uma questão de identidade, sendo o recrutamento forçado (Mackinlay,
2002; p. 44-54). A Frente Unida Revolucionária da Serra Leoa é um bom exemplo.
b. Tipologia subversiva etno-linguística
A base etno-linguística para a organização social surge em locais como a Somália e
o Afeganistão. A organização é definida pelos laços familiares das estruturas que
podem ser mobilizadas para o conflito em unidades militares primitivas e que são
capazes de efectuar pequenas acções, contudo, não um combate sustentado; são
muito idênticas na actuação às forças lumpen, lutando sobretudo por recursos e, cada
vez mais, numa perspectiva de enriquecimento. No entanto, as lealdades assentam na
genealogia e a pertença não é uma opção; uma unidade de combate de um grupo
etno-linguístico é organizada numa estrutura tradicional, onde as decisões são
deliberações dos mais velhos que desempenham um papel de relevo. A sua perenidade
deve-se à necessidade individual de sobrevivência.
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As suas Forças são a manifestação da sua cultura e apresentam poucos vestígios
de doutrina de insurreição ou de organização em estado-maior, e a liderança é
indicada pelos membros, de onde lhe advém o ascendente pelos pares e a boa aceitação pelos mais velhos, de quem dependem na angariação de fundos e recrutamento
(Mackinlay, 2002; p. 54-66).
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c. Tipologia subversiva Popular
As Forças Populares distinguem-se das lumpen e das etno-linguísticas pela sua
ideologia mais elaborada e pela proximidade das populações que apoiam essa
ideologia, tendendo para uma organização militar mais consolidada. Na forma
tradicional, podemos dizer que tem um período pré-insurreccional e um
insurreccional. Surgem de uma organização em segredo que pode evoluir e conduzir
operações prolongadas no tempo. A sua estrutura é celular e tendem para adquirir
uma componente política autónoma em relação à militar. Um bom exemplo é o dos
movimentos independentistas, como aqueles que o poder português enfrentou em
África. Os seus métodos variam dependendo da fase da campanha.
Por vezes é difícil distinguir quando se está na presença de uma campanha
revolucionária ou perante uma campanha apenas de senhor da guerra. Actualmente,
um movimento subversivo cai com facilidade na criminalização da actividade, sem
procurar qualquer outra forma de responsabilidade social e política que beneficie a
população (Mackinlay, 2002; p. 94).
O fracasso do Estado pode e deve ser relacionado com as outras ameaças aqui
referidas, pois, não possuindo poder, ficam permeáveis a que dentro de si germinem
e se desenvolvam as mais diversas formas de terrorismo e de criminalidade
organizada. Esta combinação pode comprometer ainda mais a já de si frágil existência
destes países como realidade política.
A nova polemologia
IV. O terrorismo transnacional Nos Estados Unidos da América (EUA) o entendimento
do fenómeno do terrorismo após o 11 de Setembro de 2001 foi sujeito a revisão
na sequência do aparecimento de estratégias de desestabilização globais e mais
radicais. O seu potencial foi acrescido, quer pelo grau de violência, quer pela
capacidade organizativa. Surgiram novas estratégias de recrutamento (Romana, 2004,
p. 258), e deu-se a privatização da sua actividade (Singer, 2003, p. 52). O fenómeno
sofreu também uma alteração qualitativa e passámos a falar do ciberterrorismo, do
bioterrorismo, do ecoterrorismo, do terrorismo químico e mesmo do nuclear.
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A nova polemologia
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O terrorismo transnacional procura atingir os pontos mais críticos de
convergência entre a sociedade e o aparelho do Estado e está mais vocacionado para
desgastar o poder que desafia, ou para promover a sua rejeição, do que para o
derrubar, procurando forçar um comportamento repressivo, logo comprometedor, e
demonstrar a constrangedora ineficácia da prevenção (Monteiro, 2002; p. 3). Para
além da espectacularidade dos efeitos das suas actuações (concepção e execução dos
actos materiais em si mesmos), procura a ressonância publicitária junto da opinião
pública, bem como os efeitos psicológicos causados nos alvos.
Hoje a face visível do terrorismo transnacional é Bin Laden e a al-Qaeda,
organização armada de estrutura adaptativa complexa, que possui intenções,
objectivos, financiamento e recrutamento globais e é apoiada por vastas camadas
populacionais que partilham a mesma ideologia ou religião.
A al-Qaeda tem como móbil uma amálgama de considerações político-religiosas.
Basicamente, o principal móbil da subversão global assenta num conceito geopolítico
de pan-integrismo islâmico (Lousada, 2007; p. 32), tendo por base a modificação
da actual ordem internacional e o estabelecimento de um Califado no coração do
mundo islâmico, o Iraque1, regido por uma Sharia (Corão e Sunna) concebida a partir
de uma interpretação integrista do Corão, procurando assim a transformação da
sociedade muçulmana, limpando-a de inovação doutrinária (Zuhur, 2005; p. 6).
Como objectivos intermédios procura não apenas aterrorizar, mas também a retirada
das forças Ocidentais e interesses do Iraque, da Palestina e da Arábia Saudita, e ainda
estender a Jihad aos países seculares da região e a sequente substituição das suas
lideranças. No fundo, dominar os Estados (Garcia, 2007 a; p. 132). Para alcançar os
seus objectivos, e tal como consta no manual de treinos da al Qaeda, é permitido o
recurso a mecanismos não apenas políticos mas também violentos2.
O terrorismo transnacional pode ser analisado segundo dois ângulos que
consideramos interdependentes: uma análise racional em função dos objectivos, ou
por outro lado, uma análise segundo as motivações de quem no terreno efectua as
1
Para uma análise mais pormenorizada podemos confrontar as diversas declarações de Bin Laden disponíveis
em www.state.gov./s/ct/rls/pgtrpt/2003/31711.htm, e mais recentemente em http://www.dni.gov/
releases.html. O Governo norte-americano considera as intenções do Terrorismo transnacional de uma
forma ainda mais ambiciosa, referindo no seu Conceito Estratégico de Segurança de Março de 2006 as
intenções do Terrorismo: “The transnational terrorists confronting us today exploit the proud religion of
Islam to serve a violent political vision: the establishment, by terrorism and subversion, of a totalitarian
empire that denies all political and religious freedom”.
2
Este manual está disponível on line em http://www.usdoj.gov/ag/manualpart1_1.pdf.
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a. Estrutura do terrorismo
A al Qaeda, ou aquilo que ela representa no nosso imaginário, apresenta uma
maleabilidade, uma plasticidade e um oportunismo nas suas ligações, efectuando
sempre alianças coerentes mas sobretudo convenientes, juntando grupos que
pretendem a derrota do inimigo longínquo, o Ocidente e Israel, com grupos que
apenas pretendem a autonomia local (Zuhur, 2005; p. 10).
Consideramos três grandes perspectivas para abordar a estrutura do terrorismo.
A visão tradicional considera que apesar da organização em rede há uma unidade na
“organização”, e que esta reside na identidade centrípeta religiosa (Lousada, 2007;
p. 32), referindo James Phillips que a “organização” possui um núcleo disciplinado
e profissional, que provavelmente conta com cerca de 500 elementos. De acordo
com este autor, tradicionalmente a al Qaeda opera através de uma estrutura horizontal
3
Sobre este tema devemos consultar a obra coordenada pelo Brigadeiro-General Russel Howard e pelo Professor
James Forest, Weapons of Mass Destruction and Terrorism editado em 2006. A obra analisa detalhadamente os
conceitos, a ameaça e as suas variantes, a resposta a dar e ainda as lições aprendidas e as ameaças futuras.
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A nova polemologia
tácticas subversivas, onde os combatentes agem sem racionalidade e de forma
emocional. É aqui que as análises ocidentais pecam sobretudo nas percepções, dado
que por norma, segundo Zuhur (2005; p. 10-11) interpretamos as suas mentalidades
como diferentes das nossas. No entanto do que na realidade se trata é de uma
diferença de valores e de técnicas associativas, no fundo, os novos combatentes da
Jhiad estão auto-convencidos que os seus actos de violência são morais, mas de modo
nenhum desafiam a lógica moderna de padrões da sua mentalidade.
O curioso desta atitude – em que os Ocidentais são o inimigo e que “(...) para
a violência estrutural do Ocidente apenas o terrorismo global é a resposta eficaz
(...)” (Moreira, 2004; p. 10) – é que ela é aceite por camadas significativas da
população, contrastando com o entendimento do poder, como se verifica com o
Paquistão, Arábia Saudita, Egipto, Argélia, Jordânia, ou ainda em países que estão a
braços com movimentos secessionistas de raiz islâmica, como acontece na Rússia, na
China, na Indonésia ou no Bangladesh (Lousada, 2007; p. 32).
Hoje, a maior ameaça representada pelo terrorismo transnacional está na
possibilidade de associação do fenómeno à utilização de Armas de Destruição
Massiva (ADM), dado que é com alguma facilidade que uma organização terrorista
pode ter acesso ou mesmo montar ADM, dado que muitos dos ingredientes
necessários para a sua fabricação não estão devidamente protegidos3.
A nova polemologia
88
informal, talvez combinada com uma estrutura mais formal, vertical, onde surge a
figura de Bin Laden, que será mais importante como porta voz da “organização” do
que como Comandante (Phillips, 2006; p. 2), e o egípcio Ayman al-Zawahiri como
Comandante Operacional. Este núcleo será assessorado por um conselho consultivo
(a majlis al shura) que coordena quatro comités (militar, financeiro, religioso e
propaganda), cabendo ao comité responsável pela área militar a nomeação dos
responsáveis das células espalhadas pelo mundo (Smith, 2002; p. 35), desempenhando
cada célula uma função específica (suporte e operacional). Em torno da al Qaeda há
também colaboradores, militantes e simpatizantes (Smith, 2002).
A segunda perspectiva enquadramo-la no modelo em rede abordado por autores
como Raab e Milward (2003) e Sageman (2004), para quem os elementos centrais
da organização fornecem o contexto ideológico, a estratégia, o planeamento, os
recursos, algum apoio administrativo, e são fundamentais para estabelecer a ligação
entre células que se encontram descentralizados e dispersas geograficamente.
Sageman, ao descrever a estrutura da al Qaeda, adianta um modelo estruturado a
partir de hubs e nodes4, sendo os primeiros fundamentais para as ligações de uma
direcção e comunicação centralizada entre os segundos, que se encontram, estes sim,
descentralizados e independentes entre eles (Sageman, 2004; p. 164).
Há no entanto uma versão significativamente diferente sobre a estrutura e
organização da al Qaeda. Albert Barábasi (2003; p. 221) considera que no centro desta
“teia sem aranha” não existe qualquer líder central, ou uma cadeia de comando
formal, caracterizadora de uma estrutura militarizada ou das corporações do século
XXI, que controle todos os detalhes. Douglas Macdonald (2007) perfilha desta ideia e
vai mais longe, comparando a visão política extremista islâmica a totalitarismos como
o Nazi. No regime do Füher, os little Hitlers gastavam a sua energia a trabalharem para
Hitler, antecipando os seus desejos a partir dos seus discursos, ideologia e acção, mas
tendo a iniciativa localmente. Assim, para Macdonald, a rede global é melhor entendida
quando comparada a little Bin Ladens, financiados, treinados e guiados pela “base” mas a
planearem os ataques de acordo com as condições e capacidades locais (Macdonald,
2007; p. 10).
4
Para Sageman os hubs são essenciais para a direcção das operações da al Qaeda, ao passo que os nodes, que são
pequenos grupos de indivíduos isolados da comunidade envolvente e o produto de uma livre associação
local, com laços de união interna extremamente fortes e resistentes à erosão, são aqueles que possibilitam as
capacidades locais e sobretudo a presença operacional em áreas de interesse da organização como um todo.
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b. Apoios ao terrorismo
A fim de sustentar o terrorismo e os seus objectivos, a al Qaeda conseguiu construir
uma complexa teia de apoios e instrumentos políticos, religiosos económicos e
financeiros (Brissard, 2002; p. 7). Apesar de a mistura entre religião, ideologia,
crime e fontes de investimento tornar difícil determinar a origem clara de qualquer
fundo terrorista específico, podemos considerar apoios de diversas fontes e formas.
As principais fontes de apoio são os Estados, diásporas, guerrilhas exteriores,
refugiados, organizações religiosas e de caridade5, instituições bancárias, Organizações
5
A al Qaeda infiltrou-se e estabeleceu-se numa série de Organizações Muçulmanas de Caridade, as quais
podiam ser facilmente utilizadas para colher donativos, mascarar os fundos de que ela necessitava para
financiar as suas actividades, montar autênticos centros de apoio à causa e distribuir os necessários às suas
células espalhadas pelo mundo inteiro, ao mesmo tempo que serviam para apoio e ajuda humanitária
legítima. Mais de 50 instituições de caridade locais e internacionais foram investigadas e conseguiu-se relacionar algumas com a al Qaeda, sendo as mais importantes as seguintes: a International Islamic Relief
Organization (IIRO), a Benevolence International Foundation, a Al Haramain Islamic Foundation e a Rabita Trust. Todas elas
têm escritórios espalhados pelo mundo e as suas actividades são, ou eram, relacionadas com programas
religiosos, educacionais, sociais e humanitários (Brissard, 2002; p. 27).
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89
A nova polemologia
Ao certo, o que podemos considerar é que actualmente aquela “organização”
funciona cada vez mais como uma confederação (Brissard, 2002; p. 7) que congrega
um conjunto de redes, com uma dimensão e estrutura variáveis, complexas e
flexíveis, que gere e utiliza diversos centros de apoio espalhados por aproximadamente
60 países (Phillips, 2006; p. 1), apoiando-se os grupos radicais mutuamente,
constatando-se ainda a existência de uma rede de solidariedade activa que se estende
da Chechénia ao Sudão, passando pelas Filipinas, pela Somália, pela Malásia e pela
Indonésia, passando igualmente pela Europa, onde possui uma muito elevada
interoperacionalidade em domínios como a recolha de fundos, o recrutamento e a
aquisição de material não letal (Romana, 2004; p. 260).
Esta estrutura descentralizada cuja trajectória político-operacional é, do médio
prazo para diante, uma incógnita (Boniface, 2002; p. 20) parece assim estar a evoluir
para uma maior descentralização, num conjunto de redes de base regional (Singer,
2004; p. 145), formando uma “rede de redes”, demonstrando uma capacidade de
actuação global, atacando inclusivamente o coração de grandes poderes, como fez
em Nova Iorque, Madrid e Londres, conseguindo sobreviver a intensas contra-medidas (Mackinlay, 2002; p. 79). A sua capacidade de sobrevivência advém-lhe da
desterritorialização, mas em nosso entender vêm-lhe sobretudo da sua capacidade de
aprendizagem organizacional.
A nova polemologia
90
Não-Governamentais, personalidades com fortuna pessoal, o Zakat (esmola legal), o
Sadaqah6, e inclusive de grupos activistas de direitos humanos. Para angariar fundos,
a “organização” mantém-se também associada a toda a espécie de actividades ligadas
ao crime organizado7.
Os motivos de apoio são variados. Os Estados são mais motivados por questões
geopolíticas do que por afinidades étnicas, ideológicas, ou religiosas. Em contraste,
as diásporas apoiam sobretudo por motivos étnicos e os refugiados são normalmente
motivados pelo desejo de regressar a casa e restaurar as suas vidas e da sua nação em
determinado território (Byman, 2001; p. 55). As formas de apoio vão do político
nos fora internacionais e junto das grandes potências, ao simples encorajamento para
a subversão do poder, passando pelo tradicional apoio financeiro, material, de
intelligence, acabando no santuário, no treino ou mesmo em apoio militar directo.
c. O recrutamento
Tendencialmente, na opinião pública perpassa a ideia de que o terrorismo está
apenas associado à pobreza, à miséria humana; são as próprias Nações Unidas a
reconhecer que existe uma relação muito próxima entre terrorismo e pobreza, sendo
as regiões mais pobres do mundo as mais propensas à ocorrência de violência.
Contudo, nos atentados de Setembro de 2001 em Nova Iorque e de Julho de 2007
em Glasgow, pela análise das biografias dos suicidas, verificou-se que as fileiras do
terrorismo também são preenchidas por indivíduos de nível social, económico e
educacional, relativamente elevado.
As fontes de recrutamento e os motivos para adesão são diversos e estão
sobretudo associadas à revolta com situações sociais degradantes, a factores culturais
considerados humilhantes, a injustiça, a desigualdades e a xenofobia, mas também,
segundo Zuhur (2005; p. 7), os extremistas recrutam por uma crença recente na
missão islâmica, a da´wa, e na glorificação da Jihad e do martírio, juntamente com o
desejo de poderem contribuir para a mudança do meio que os rodeia e do mundo
em geral. O apelo à Jihad tem funcionado e seduzido ainda como um ritual de
6
7
Participação em actos de caridade e trabalho voluntário.
A Drug Eenforcement Agency (DEA) norte-americana, estima que, por exemplo, só no Afeganistão a al Qaeda lucra
mais de 40 milhões de dólares ano com o tráfico do ópio (Carpenter, 2004; p.3). A Célula de Madrid
foi talvez a mais importante a ser desmantelada desde o 11 de Setembro, tendo-se verificado inclusive
que a mesma financiava outras células, como a de Hamburgo, e que obteve os fundos para comprar os
explosivos usados no 11 de Março, através da venda de haxixe.
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1) Recrutamento directo
Nesta forma de recrutamento o contacto com o elementos a recrutar é feito
directamente e incide sobretudo em jovens previamente sondados e persuadidos,
facilmente manipuláveis, sendo por isso a forma de recrutamento mais eficaz
(Zuhur, 2005; p. 23).
O contacto com os futuros recrutas efectua-se sobretudo em mesquitas, ou nas
escolas corânicas (madrassas). Neste momento o Iraque é considerado como o epicentro
para atrair, organizar e treinar a nova geração de terroristas (Phillips, 2006; p.2).
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91
A nova polemologia
transição para a idade adulta e ainda como o demonstrativo da devoção ao Islão,
transformando os recrutados em mujahedin.
No seu processo de recrutamento os aliciadores utilizam múltiplos meios de
persuasão como, por exemplo, imagens de muçulmanos perseguidos e de mulheres e
crianças em sofrimento nos campos de refugiados palestinianos. A estas motivações
podemos acrescentar outras tais como o encarar da Jihad como um “emprego alternativo”; para os mais puristas, na Jihad encontram a grande oportunidade de junção do
domínio espiritual com o material. Houve recrutadores que utilizaram ainda o artifício
da peregrinação para enganar alguns dos jovens aliciados (Curcio, 2005; p. 18-19).
Um dos mais poderosos argumentos para o recrutamento desta Jihad tem na sua
génese a ocupação e a presença militar estrangeira em terreno muçulmano. Por outro
lado, os movimentos terroristas também sabem que os ataques suicidas são multiplicadores de força; atraem os media; são relativamente “económicos” e adaptados à
natureza irregular da organização e aumentam o recrutamento, sendo curioso verificar o aumento crescente de mulheres suicidas (Zuhur, 2005; p. 54).
A tudo isto acresce, o exponencial crescimento demográfico e o factor migratório, com o fluxo orientado predominantemente para os países do Ocidente, onde
as novas comunidades que se instalam dificilmente são integradas nas sociedades
locais, potenciando o acréscimo de desencantados e de potenciais filiados e combatentes pela alternativa apresentada pelo terrorismo.
Como uma organização que se modifica e adapta constantemente, procurando
novas formas de evitar a detecção ou dos seus membros serem capturados, a al Qaeda
tem procurado a surpresa e a exposição mínima, recrutando operacionais oriundos
não só de países muçulmanos mas também em países como a Grã-Bretanha, França,
Austrália e os próprios EUA (Jacquard, 2001).
O recrutamento é efectuado essencialmente de duas formas que podemos
designar por recrutamento directo e recrutamento indirecto.
A nova polemologia
92
2) Recrutamento indirecto
Esta forma de recrutamento engloba todos os processos utilizados para integrar
novos membros, sem que exista uma abordagem inicial, nem contacto ou interacção
directa entre a entidade recrutadora e o elemento a recrutar. Aqui a actuação cinge-se
ao campo das emoções, sendo utilizados os conhecimentos das leis da psicologia, da
psicossociologia a da psicotecnologia para influenciar crenças e sentimentos.
Destes processos os mais conhecidos são a divulgação de cassetes de vídeo, produzidas por apoiantes de Bin Laden, e onde surgem imagens do próprio, além de
propaganda sobre o estado do mundo muçulmano, das causas desse estado e a
solução para o mesmo, que não é senão a “guerra sagrada” contra os infiéis.
Também a internet se tornou um novo meio de recrutamento e treino dos novos
elementos, de captação de fundos e recursos, de divulgação e reivindicação das suas
acções e de comunicação, tudo isto com facilidade de acesso e a possibilidade de
anonimato quase garantida, mesmo com a intensa vigilância a que esta rede está
agora sujeita.
Nesta forma de recrutamento os jovens entram num processo de auto-aprendizagem com recurso a manuais de acções terrorista e gravações em vídeo ou
CD. Quando e sempre que possível completam o seu treino a nível operacional com
curtas passagens por grupos paramilitares no estrangeiro (Curcio, 2005; p. 23).
Uma vez que o terrorismo transnacional, tem intenções, objectivos, recrutamento
e organização globais, consideramos o fenómeno como uma acção subversiva global
(Mackinlay, 2002, Garcia, 2007 b).
V. O crime organizado transnacional As Organizações Criminosas Transnacionais (OCT)
possuem objectivos lucrativos muito bem definidos, uma capacidade de planeamento
ao nível estratégico e de condução de conflitos armados, envolvendo um inimigo ou
uma rede de inimigos, socorrendo-se muitas vezes das mais modernas tecnologias
(Metz, 2000, p. 56-57 e Carriço, 2002, p. 622), desenvolvendo a sua actividade criando
um ambiente subversivo, não visando, no entanto, a tomada técnica do poder.
Hoje, das diversas actividades a que o crime organizado transnacional se dedica,
o tráfico de estupefacientes é das mais rentáveis. Com as verbas geradass as OCT
adquirem um nível de poder que compete com o dos Estados. Exprimem-no pela
capacidade de criar diversas formas de instabilidade nos países onde operam,
instabilidade de amplo espectro, da social à económica, da política à psicológica. Ao
mesmo tempo tentam conquistar indirectamente o poder político pela corrupção dos
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VI. A SIDA A infecção por HIV/SIDA representa uma pandemia global, da qual se conhecem
casos em todos os continentes. Inicialmente não se conheciam as reais dimensões do
fenómeno, mas o facto é que desde 1981 já provocou a morte de aproximadamente
22 milhões de pessoas, deixando 13 milhões de crianças órfãs8. É hoje certo que a
8
O vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV) foi identificado pela comunidade científica há aproximadamente
20 anos.
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A nova polemologia
seus órgãos de soberania e dos funcionários. Por outro lado, com a finalidade de
intimidar o poder instituído de forma a garantirem completa liberdade de acção nas
suas actividades criminosas, grupos como o Mara Salvatrucha, estão dispostos a usar
elevados níveis de violência armada (Santos, 2004, p. 91-92) e, tal como já acontece
na Bolívia e na Colômbia, chegam a administrar partes significativas de um determinado
território, assumindo para si os fins de segurança, bem-estar social e por vezes até de
administrar a justiça, substituindo-se plenamente ao Estado, colocando ao mesmo
tempo os conceitos tradicionais de soberania e integridade territorial em causa.
As novas formas de subversão, associadas aos conflitos armados que surgem no
contexto da globalização, também têm uma dimensão económica, quer na origem,
quer nas consequências (Williams, 2000; p. 89). São ainda indivisíveis do que é
criminal, que passa para além das fronteiras e envolve regiões inteiras, misturando
numa rede económica informal o saque e a pilhagem, o tráfico de seres humanos,
de armas e narcóticos, as contribuições de imigrantes (Angoustures e Pascal, 1996),
os “impostos” sobre assistência humanitária, tudo a viver da insegurança, da guerra,
carecendo da continuação do conflito.
Foram diversas as organizações revolucionárias que se envolveram na
comercialização de estupefacientes, criminalizando as suas actividades, pondo assim
um pouco à parte a vertente ideológica do conflito e transformando-se em narco-guerrilhas (Labrousse, 1996). Porém este envolvimento, que inicialmente seria
apenas para o financiamento, pode ser depois o próprio motor da guerra.
A criminalização pode também afectar as Forças Armadas que ou se deixam
corromper entrando numa lógica de enriquecimento pessoal (narco-corrupção), ou
então utilizam os fundos para financiar as suas actividades. Esta situação acaba por
prolongar os conflitos, uma vez que a eliminação das narco-guerrilhas provocaria
também o desaparecimento de uma boa fonte de rendimentos (Labrousse, 1996).
A nova polemologia
94
SIDA provocou mais baixas do que qualquer conflito armado ocorrido no século XX,
incluindo qualquer uma das Grandes Guerras, e a tendência é para o agravar da situação.
Actualmente há cerca de 40 milhões de portadores do vírus, ou seja HIV positivos.
Podemos comparar a sua progressão à das Divisões Panzer do General Guderian,
com a Blietzkrieg. Simplesmente agora esta progressão é profundamente marcada por
um carácter distintivo e único, na história da humanidade, quer pela extensão da sua
propagação quer na morte que consigo transporta. A progressão é contínua, global,
sem escolher raça nem credo, latitude nem longitude, nem condição social. O seu
poder de destruição estende-se a toda a comunidade.
No epicentro do fenómeno encontramos o continente africano. De facto, 24 dos
25 países mais atingidos por este flagelo são africanos. Pensa-se que a SIDA é responsável por 1 morte em cada 4 mortes de adultos em África (Singer, 2002; p. 147).
É inegável que tem expressão global, embora se manifeste mais ao nível urbano do
que rural, progredindo rapidamente na Ásia, nas Caraíbas e nas Américas do Sul e
Central, bem como nos territórios da antiga URSS.
Com a transição do milénio, a pandemia da SIDA recebe atenção especial ao
nível internacional. As Nações Unidas têm sido uma notável frente de combate ao
problema. A partir do ano 2000 o tema deu o mote a sessões especiais quer ao nível
da Assembleia Geral quer do Conselho de Segurança. Sucederam-se, igualmente,
diversas manifestações a nível regional, bem como iniciativas mais localizadas em
diversos países.
Do ponto de vista político, a SIDA como ameaça não-tradicional à segurança
deve muito ao empenho da Administração Clinton. O então vice-presidente Al Gore
apresenta ao Conselho de Segurança, a 10 de Janeiro de 20009, os fundamentos do
posicionamento norte-americano (Prins, 2004):
1) O Coração da Segurança é a protecção de vidas;
2) Quando uma simples doença ameaça tudo, desde a economia às operações de
manutenção de paz, enfrentamos claramente uma ameaça à segurança a um
nível global;
3) É uma crise de segurança porque ameaça não só e apenas o indivíduo, mas
as instituições definidoras da sociedade.
9
Neste dia, o Conselho de Segurança debateu a SIDA em África, tendo sido a primeira vez que este órgão
discutiu um assunto relacionado com a saúde como ameaça à paz e segurança. O encontro demorou mais
de 7 horas e teve cerca de 40 intervenções. Não foi aprovada qualquer resolução.
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a. A SIDA e o Estado
A SIDA afecta o Estado como um todo, corroendo, à medida que alastra, as bases da
sociedade, o indivíduo, a família e a própria comunidade. De acordo com o Director
da UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS), a doença está a devastar os
postos de trabalho ocupados pelos membros mais produtivos da sociedade com uma
eficácia que, na história da humanidade, apenas tínhamos conhecido em resultado
de grandes conflitos armados (Internacional Crisis Group, 2001; p. 1). A sua
progressão faz-se sentir nas áreas governamental, económica e de desenvolvimento
social, com a agravante que estes elementos mais produtivos, das classes média e alta,
dificilmente são substituídos.
O fenómeno também incrementa as necessidades orçamentais e as taxas de
apoio social, desencorajando o investimento estrangeiro. A força de trabalho fica
assim reduzida, o que provoca a queda em flecha dos ganhos sobretudo nos países
mais debilitados ou em desenvolvimento10.
Para o Banco Mundial esta doença é a maior ameaça para a economia africana,
onde se espera que a redução do PIB atinja os 20% apenas numa década (Central
Intelligence Agency, 1999). Todavia esta ameaça transnacional também atinge os Estados
consolidados, não apenas pelos reflexos directos, mas indirectamente devido à
globalização das economias.
No fundo, o impacto é global e funciona como destabilizador social, securitário
e económico.
10
Esta situação tem um reflexo enorme nas famílias afectadas com o vírus: menor rendimento nas actividades
laborais, diminuição do rendimento familiar, crescimento dos gastos com medicamentos, má nutrição. As
estimativas disponíveis apontam para uma quebra entre os 40 e os 60% nos rendimentos (Internacional
Crisis Group, 2001).
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A nova polemologia
O Conselho de Segurança também aprovou em 17 Julho de 2000 a Resolução
1308, que estabelece a SIDA como um problema de segurança, reconhecendo que
esta pandemia é exacerbada por condições de violência e de instabilidade e que se
não for acautelada pode colocar em risco a estabilidade e a segurança internacional.
O International Crisis Group (2001, p. 2) aprofundou as múltiplas dimensões
geopolíticas deste problema, considerando a SIDA como um problema transversal às
diversas formas de segurança, da pessoal à económica, passando pela comunitária,
nacional e findando na SIDA como um problema para a segurança internacional.
A nova polemologia
96
b. A SIDA e as operações militares
Dos países africanos com maior incidência de SIDA mais de metade está envolvido
em conflitos armados. As estatísticas também são claras no que diz respeito aos
militares contaminados com o HIV. São aproximadamente 5 vezes superiores aos
civis e em períodos de guerra este valor cresce para 50 vezes mais.
A situação é de tal maneira grave que muitas vezes as FA são mesmo o principal
grupo de contaminados. Trata-se, sem dúvida, de uma situação que leva a que,
nalguns casos, seja esta a principal causa de baixas. Além do mais, como a SIDA não
escolhe postos, há consequências importantes nas cadeias de comando, na capacidade
das Forças e mesmo na sua coesão.
Os motivos para esta elevada incidência são diversos: desde razões que se
prendem com a idade biológica, ao distanciamento das companheiras(os) sexuais e
finalmente uma cultura do risco instalada em muitas FA pelo mundo fora.
Temos que notar que os comandos em países onde a taxa de infecção é significativa
já estão preocupados com a capacidade de projecção de força. Esta constelação de
problemas agrava-se com a circunstância de a SIDA, como notou Singer, por via do
enfraquecimento da instituição militar, propiciar mecanismos de desestabilização
interna e de debilidade que aumentam a probabilidade de vir a ocorrer um ataque
externo (Singer, 2002; p. 149). Se tivermos em conta que em alguns países, como a
Namíbia, os dados estatísticos de militares infectados é uma informação classificada,
teremos de admitir que o fenómeno tomou proporções alarmantes.
Verifica-se que a multiplicação de contingentes de militares infectados com HIV
inviabiliza a participação de muitos países em operações de paz. Pode ainda dizer-se
que, devido às características e comportamentos dos seus elementos, a própria força
tende a ser uma fonte de infecção no local da missão bem como, no regresso, um
foco infeccioso junto das comunidades de origem, pois há sempre o risco/probabilidade de contrair a doença durante as missões (Internacional Crisis Group, 2001;
p. 22-23). Assiste-se, estamos certos, a uma crise nos mecanismos de resolução de
conflitos provocada pela diminuição da capacidade internacional de acudir, com o
potencial humano adequado, a crises e conflitos.
Deve observar-se, por outro lado, que a SIDA é crescentemente utilizada como
uma poderosa arma de guerra. Os raptos e os genocídios combinam-se desde sempre
em muitos conflitos. Todavia, o facto relevante é a sua associação, recente, ao contágio
do vírus da SIDA: é possível que a transmissão de SIDA possa corresponder a uma
prática de genocídio, na medida em que parece estar presente o elemento de
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111
VII. A guerra das forças da Revolução Militar em Curso A guerra deste início de século foi
de algum modo antecipada no livro de Alvin e Heidi Toffler, Guerra e Anti-guerra, de
1994. Nesta obra os Toffler anunciaram a divisão tripartida do mundo e das guerras
em vagas: A vaga das “guerras agrárias”, típica do período das revoluções agrárias; a
vaga das “guerras industriais”, produto da revolução industrial; e, por fim, a vaga da
“guerra da informação”, resultante da revolução da informação e do conhecimento.
As guerras típicas das sociedades de terceira vaga têm por base as forças da
Revolução Militar em Curso (RMC) e estão ligadas sobretudo aos grandes poderes.
Porém, as forças RMC na sua formulação mais profunda estão associadas exclusivamente – actualmente e nos tempos mais próximos – às capacidades do poder
militar dos EUA.
11
A este propósito devemos recordar a título de exemplo o recrutamento feito pela RENAMO em Moçambique
durante a guerra civil, ou pela RUF na Serra Leoa.
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A nova polemologia
intencionalidade na passagem do vírus para a população. Terá sido isto que se passou
no Ruanda e presentemente no Congo, onde mais de 500 mil mulheres foram desta
forma infectadas com SIDA.
Esta é uma doença que afecta sobretudo as faixas etárias mais jovens e, sabendo
que a probabilidade de eclosão de violência entre os jovens do sexo masculino é
cerca de 40% superior quando comparamos os valores obtidos nas faixas etárias mais
avançadas (Singer, 2002; p. 151), permite-nos aviltar sobre a facilidade com que este
jovens se constituem em alvo fácil do recrutamento por “senhores da guerra” que
costumam incluir no seu quotidiano ritos iniciáticos de extrema violência11.
Como se isto não bastasse, estas crianças e jovens, por norma mal nutridos e com
pouca escolaridade, são no fundo um meio barato de manter e alimentar estas novas
guerras. Os conflitos armados provocam ainda um mar de refugiados que habitam em
campos onde, normalmente, a miséria é grande e os cuidados profiláticos decrescem.
Apesar de estudos recentes não encontrarem evidências de que as situações de
conflito incrementam os níveis de transmissão do vírus (Nações Unidas, 2006),
pensamos que a situação aqui descrita nos indica que o fenómeno da SIDA se
propaga sempre, independentemente de a situação ser de conflito ou de paz.
Acreditamos, pois, que se trata de um processo infeccioso de difícil interrupção ao
longo da poderosa cadeia de transmissão.
A nova polemologia
98
Há uma tendência, que erradamente se generalizou que caracteriza as guerras
feitas por forças RMC apenas pela alta tecnologia, nomeadamente a tecnologia ligada
à informação. Na verdade, se apenas estiverem ligadas à tecnologia, podemos
considerar que são guerras de forças pós-modernas, mas não são RMC. As forças
RMC actuais apresentam as seguintes características (Garcia; 2005 b; Telo, 2002).
• Uso de tecnologia da sociedade da informação,
• utilização do espaço,
• novas tácticas e composição orgânica das unidades,
• necessidade essencial de conter a violência dentro de limites políticos, éticos
e estratégicos aceitáveis pela comunidade internacional,
• papel dos media e da opinião pública,
• civilinização
• e sobretudo pelo modelo de organização das tecnologias existentes e já
disponíveis mesmo no mercado civil, e a partir das quais é possível criar novas
e diferentes capacidades num sistema de sistemas.
A ordem de batalha nas guerras centradas e em rede, de alta tecnologia, desenvolve-se em volta do conceito de Domínio Rápido, de operações RISTA (Reconnaissance, Intelligence,
Surveillance and Target Aquisition) e dos 4S (Scan, Swarm, Strike, Scatter), com profusa utilização
de armas inteligentes, de elevada precisão; selectivas. O novo campo de batalha está
dominado por um sistema de sistemas, com base no C2W (Command and Control,
Warfare), constituindo uma 5.ª dimensão12 da guerra (Pereira, 2003; p. 160), onde a
manobra informacional se sobrepõe, e por vezes substitui a manobra do terreno.
Face à esmagadora superioridade tecnológica e a operações baseadas nos efeitos,
as baixas tendem a ser zero, ou a aproximar-se do zero, pelo menos de um dos lados.
O objectivo já não é aniquilar, mas imobilizar, controlar, alterar e moldar o seu
comportamento de forma a criar um novo ambiente político com perdas controladas,
mesmo para o inimigo, evitando reacções negativas da opinião pública. É por esta
razão que Edward Luttwak (1995) definiu este fenómeno como guerra pós-heróica;
a força pode ser empregue sem o risco de perdas de vida.
As novas tecnologias e a digitalização das unidades ditam novas doutrinas
estratégicas, tácticas e organizacionais. A tendência é para a robotização do campo de
batalha de uma forma progressiva.
12
As outras dimensões são a terra, o mar, o ar e o espaço extra-atmosférico.
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A nova polemologia
As forças RMC empregam muito a guerra de informação, o vector moderno da
guerra psicológica e da subversão tradicionais (Valle, 2001; p. 208). No actual
ambiente operacional (e no futuro), o mais importante é (e continuará previsivelmente
a ser) o domínio da informação, mais precisamente, o acesso, o controlo e o
respectivo processamento com o objectivo de obter a sua transformação em conhecimento e depois partilhá-lo em tempo útil.
Em breve, a psicotecnologia disponibilizará novos instrumentos capazes de
influenciar os “corações e as mentes”, o que incrementará ainda mais o papel da
guerra psicológica e dos guerreiros da informação que nas suas operações psicológicas
e de informação aprendem a implantar falsas realidades e a induzir movimentos
psico-culturais e políticos, em prol de determinados interesses nacionais, criando
uma realidade virtual quando a realidade efectiva contradiz os imperativos estratégicos
de momento. No fundo, uma verdadeira guerra de representações, na expressão de
Alexandre del Valle (Valle, 2001).
Nesta ordem de ideias, um outro elemento a ter em consideração nas guerras
da actualidade é a presença e a actuação dos media. Estes hoje ajudam os guerreiros
da informação a gerir as diversas percepções que as populações têm da situação. Há
uma realidade percebida/construída, diferente da realidade efectiva.
Ao nível estratégico a guerra de informação implica um domínio do ciberespaço,
uma vez que os ciberataques não podem ser descurados, com as suas bombas lógicas,
vírus e cavalos de Tróia. Esta diferente forma de guerra implica uma política de
segurança e defesa para o ciberespaço, pois este impôs uma nova dimensão geopolítica, a do próprio ciberespaço (Adams, 1993).
Nas guerras das forças RMC a supremacia dos meios e sistemas de comunicações
é um factor imperioso. Na maior parte dos casos o espaço tende a ser entendido como
a quarta dimensão da guerra. Quem tiver capacidade para dominar o espaço dominará
o mundo. Com a colocação de sistemas de armas de intervenção global o espaço será
militarizado (Boniface, 2002; p. 122), criando uma nova forma de dissuasão. Estes
conceitos implicam um outro, um conceito geopolítico para o espaço.
Com a civilinização, a distinção entre civil e militar ficará esbatida, uma vez que já não
são apenas as Forças Armadas que entram em combate, mas as comunidades políticas
que elas servem. Assim, este fenómeno de interpenetração é indicador de um novo tipo
de Forças Armadas. Estas tendem a ser profissionais, com efectivos substancialmente
mais reduzidos, com uma maior ligação aos meios universitários e centros de
investigação, a integrarem mais mulheres e minorias e, em certa medida, tende-se para
uma privatização da actividade militar (Moskos, Williams e Segal, 2000).
A nova polemologia
100
As guerras com forças RMC são também guerras distantes. O poder que está na
defensiva é castigado e muito limitado na sua resposta. Muitas vezes sente-se mesmo
impotente (Telo, 2002; p. 222). Também distante no comando e controlo, onde os
media e a informação sobre a guerra desempenham um papel primordial. Podemos
dizer que é, em certo sentido, uma guerra subversiva feita pelos grandes poderes na
Era da Informação13.
Nas guerras RMC a duração em termos de uma acção militar intensa é muito
curta, e é importante que assim seja, sobretudo por razões de opinião pública e de
interesse político (Telo, 2002; p. 227), o que não quer dizer que no período
posterior à acção militar decisiva, tipicamente de estabilização, a presença militar
não se arraste por vários anos, já que actua em ambiente subversivo.
Parece gerar consenso a convicção de que as guerras de hoje, apesar de manterem
a mesma natureza, apresentam novos actores e já não correspondem na íntegra à
classificação clássica do prussiano Clausewitz. Para ele, lembramos, a Guerra era a
realização das relações políticas por outros meios (Clausewitz, 1976; p. 737). Hoje
aquela máxima parece ter tendência para se inverter, passando a Política, sim, a ser a
continuação/diversificação do estado de guerra. Em nosso entender a guerra deve-se
sim ao falhanço da política, mantendo-se assim associada a ela. No fundo a guerra é
uma forma de política. Após revisitarmos Clausewitz, consideramos que a sua
trindade permanece em parte válida e actualizada, no sentido em que apesar de os
actores envolvidos na guerra poderem ser outros, a violência original, a lei das
probabilidades e do acaso, bem como a ligação ao fenómeno político, persistem.
Uma das mais importantes implicações desta mudança qualitativa de conceito
de guerra é a alteração dos laços funcionais entre o poder político e o aparelho
militar. A envolvente política perpassa agora verticalmente todos os níveis de actuação
militar: a estrutura de comando militar nos diversos níveis de responsabilidade
preocupa-se principalmente com a actuação política14. Mesmo ao nível táctico, um
comandante de uma pequena força desempenha esse papel no seu contacto com a
população e com as autoridades locais.
13
António Telo (2002; p. 222) entende que há a guerra de guerrilha dos tempos modernos; também Mary
Kaldor (2001; p. 7) entende que as novas Guerras baseiam a sua actuação nos ensinamentos da guerrilha
e da contra-insurreição. Nós optamos pela comparação com a guerra subversiva, pois esta é mais lata e
na vertente armada pode sim assumir a forma de guerrilha. Pode ainda ser aplicado a outras tipologias de
guerra irregular, isto apesar de a principal táctica ser a guerrilha.
14
A este propósito devemos ver as obras dos Generais Wesley Clark (2004) e Ruperth Smith (2006).
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111
VIII. A Civilinização e as Empresas Militares Privadas Nesta nova conflitualidade devemos
ter em consideração o novo paradigma que surge com a alteração significativa na
estrutura das Forças Armadas e no emergir da civilinização, onde assumem grande
relevância as modernas Empresas Militares Privadas (EMP), que prestam serviços e
tarefas de natureza militar.
A privatização do conflito e o uso de mercenários não são um fenómeno novo.
Porém, hoje o contexto é substancialmente diferente e as Corporate Warriors na
expressão de Singer (2003) têm um enquadramento jurídico distinto dos mercenários
tradicionais.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111
101
A nova polemologia
As guerras que envolvam a grande potência sozinha ou em coligação, sejam elas
regulares ou irregulares, serão sempre efectuadas por forças RMC. Na actual Guerra
no Iraque, a intervenção da coligação internacional pautou-se pela superioridade
tecnológica, pela supremacia aérea, com domínio do espaço, pelo uso de armas
inteligentes e também por uma intensa guerra de informação, num cenário típico de
guerra regular.
A força RMC da coligação, com combates sucessivos e assimétricos, vergou a
vontade de combater iraquiana e a operação militar foi uma nova Blitzkrieg. Porém,
após a ocupação militar, houve uma transformação da natureza do conflito armado,
deixando de obedecer ao modelo clausewitziano; além dos Estados, passou a
envolver outros actores. Conforme a circunstância, qualificamos os seus elementos
como bandidos, terroristas, guerrilheiros, mercenários ou milícias. Estes não
representam um Estado e não obedecem a um governo.
As operações militares de estabilização, apesar de feitas por forças RMC, fazem-se agora num ambiente de cariz subversivo, de combate próximo, onde não existe
uma estratégia e uma táctica bem definida, sendo os objectivos fluidos, onde a
inovação impera e a surpresa/imprevisibilidade são as suas principais características.
O emprego do terror é frequente, desaparecendo a distinção civil/militar, estando os
combatentes misturados com a população que desempenha aqui um papel
fundamental de apoio de retaguarda logístico, em informações e ao mesmo tempo
fonte de recrutamento. Por outro lado, também é o alvo principal e a maior vítima.
Em ambientes operacionais destes é normal a generalização da violação do
direito aplicável aos conflitos armados (internacionais e não internacionais), bem
como do regime de protecção dos direitos humanos.
No Iraque devemos ter presente a velha premissa de que as guerras de cariz
subversivo não se ganham com acção militar, mas perdem-se pela inacção militar.
A nova polemologia
102
Podemos considerar como elementos de diferencialidade das EMP em relação
aos mercenários15; a sua estrutura organizacional com directores e accionistas, serem
legalmente registadas, prestarem contas ao fisco e à segurança social, visarem o lucro
a longo prazo, operarem em vários Teatros e para vários clientes ao mesmo tempo,
ou seja, são organizações privadas de natureza comercial, cujo objecto é o fornecimento de um largo espectro de serviços de natureza militar e de segurança a
entidades nacionais e não-nacionais, apresentando-se assim como alternativa aos
serviços tradicionalmente consagrados às FA dos Estados.
As modernas EMP emergem a partir de 1967, ano em que foi criada a Watch Guard
International, uma companhia que empregava antigo pessoal do Special Air Service britânico
para treinar militares no exterior. Depois, a partir dos anos 70 do século XX, destaca-se em África a Executive Outcomes, com grande envolvimento nas guerras civis de
Angola e da Serra Leoa. Com o esboroar do antigo Império soviético e a sequente
redefinição dos dispositivos militares, ficaram disponíveis inúmeros homens e
material, que com iniciativa se organizaram e criaram diversas empresas que
passaram a estar activas e a desempenhar um papel diferenciador em zonas de
conflito ou de transição, um pouco por todo o planeta. A partir dos anos 90 do
mesmo século o termo EMP começa a ser vulgarizado no léxico militar.
Com a Guerra nos Balcãs a actividade sofre um grande incremento mas o grande
boom vem com o actual conflito no Iraque. A actuação destas empresas é hoje global,
estando contabilizadas mais de 150 companhias que funcionam em mais de 50 países
nos diversos Continentes, sendo no entanto os seus principais Teatros de intervenção
o Afeganistão e o Iraque. Neste território, onde são o segundo maior contingente da
Coligação, estimam-se mais de 45 mil funcionários (MilTech, 2007; p. 41).
As EMP vendem os seus serviços a multinacionais, ONG´s, Organizações Internacionais como as Nações Unidas, contando como principais clientes os Estados. Em
termos financeiros, e só para ficarmos com uma pequena ideia dos montantes envolvidos, estima-se que o rendimento desta indústria atinja o valor anual de 202 biliões
de dólares no ano de 2010 (MilTech, 2007; p. 43).
15
De acordo com o primeiro Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949, e segundo o seu artigo
47.º um mercenário apresenta as seguintes características: (a) “é especialmente recrutado localmente
ou fora do local de conflito para lutar nesse mesmo conflito”, (b) toma de forma directa parte nas
hostilidades”, (c) “é motivado pelo desejo de ganhos privados”, (d) “não é um nacional da parte em
conflito nem um residente do território controlado por um parte do conflito”, (e) “não é um membro
das forças armadas de uma parte no conflito”.
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16
O problema com artigo 47 do Protocolo Adicional I prende-se sobretudo com as alíneas a) é que tem que ser
provado que um recrutamento especial para um determinado conflito ocorreu. Como o pessoal contratado
pelas PMCs é, muitas vezes, contratado a longo prazo ou até numa base permanente, não pode, desta forma,
ser considerado mercenário. Com a alínea b) o problema coloca-se relativamente à exclusão de conselheiros
e formadores, entre outros. E como quase todas as PMCs não entram em combate (na definição da NATO
de combate), não podem ser consideradas mercenárias. A alínea c) acrescenta um elemento perigoso: a
motivação. É difícil julgar alguém como mercenário argumentando que está envolvido só por desejo de
lucro. Não só há mais motivações, como a ideológica ou a política, como também seria fácil de mentir
neste ponto. Com as alíneas e) e f) a questão seria facilmente resolvida com o Estado cliente dando
nacionalidade ou residência ou integrando simplesmente o indivíduo nas Forças Armadas.) Um exemplo
deste tipo de prática é a integração dos Gurkhas dentro das Forças Armadas Britânicas. Outro problema com
este artigo é o facto de apenas contemplar conflitos armados internacionais e não guerras civis.
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103
A nova polemologia
São inúmeras as justificações que levam os Estados a contratar estas empresas.
Nos Estados considerados Fracos, o recurso a este tipo de empresas prende-se
sobretudo com a incapacidade de dar resposta às necessidades básicas de segurança
das populações, ao passo que no mundo pós-moderno esse recurso apresenta-se
mais como uma consequência de considerandos economicistas, sociais e políticos
(O´Brien, 2002 e Vaz, 2005).
O crescimento destas empresas e a diversificação dos serviços por si prestados
não foi no entanto acompanhado pela regulamentação internacional específica.
Apesar desta não existir, não podemos considerar que haja um vazio legal, pois há
um conjunto de legislação nacional e internacional que directa ou indirectamente
cobre esta actividade. Normalmente as EMP devem operar de acordo com o enquadramento legal do país objecto do contrato e a nível internacional lembramos entre
outras o Direito Internacional Humanitário e diversas legislação sobre mercenários.
Porém equacionam-se vários problemas, como a aplicação directa da legislação sobre
mercenários16, e muitas vezes os Estados que contratam esta prestação de serviços
têm um sistema judicial debilitado para que possa efectuar o controlo destas
empresas. No Iraque, por exemplo, estão protegidas contra a responsabilidade criminal, como foi no caso dramático da prisão de Abu Ghraib, onde os abusos foram
cometidos quer por profissionais das EMP quer por militares, mas apenas os militares
foram responsabilizados pelos seus actos (MilTech, 2007; p. 44).
Os Estados Unidos da América em Março de 2007, deram um passo significativo
para contrariar esta situação, tendo sido aprovada legislação que coloca as EMP sob a
alçada da Lei e dos Tribunais Militares. Anteriormente, esta modalidade aplicava-se
apenas em situações em que o Congresso tivesse declarado formalmente Guerra; com
a alteração agora introduzida, a Lei passa a contemplar Operações de Contingência,
onde se incluem as realizadas no Iraque e Afeganistão (MilTech, 2007; p. 43).
A nova polemologia
104
Estas iniciativas são o indicador de esperança na regulamentação, no entanto
ficam ainda a faltar os mecanismos de controlo e inspecção a nível internacional,
uma vez que enquanto a regulamentação e fiscalização não forem eficientes,
receamos que este tipo de empresas não possam ou não queiram entender, na mira
do lucro, a “natureza complexa dos interesses nacionais e aceitem participar num
jogo em que a sua posição, sem ser claramente oposta aos interesses do seus país,
também não possa considerar-se favorável” (Vaz, 2005), subsistindo assim o perigo
real de existir um poder militar armado não-residente na legitimidade do Estado.
Esta nova realidade complexa e ainda mal estudada carece de regulamentação e
fiscalização e merece o nosso acompanhamento, tanto académico como de cidadãos
interessados no assunto.
Uma conclusão Apesar das incertezas típicas que o futuro nos reserva, a guerra continuará a
ser uma questão de poder e, no actual século, cremos que continuaremos a assistir a
guerras provocadas pela alteração de relação de forças entre actores não-estatais e os
Estados, guerras irregulares e em ambiente subversivo, sem regras, sem princípios,
sem frente ou retaguarda, onde os objectivos são fluidos, na boa compreensão que
a única legitimidade é a do seu exercício. Guerras que no fundo não são tão novas
assim. Por outro lado, assistiremos às guerras espectáculo, típicas das sociedades de
terceira vaga e que tem por base as forças RMC, com um novo tipo de Forças Armadas,
de alta tecnologia, com profusa utilização do espaço como a 4.ª dimensão da guerra.
Nestas novas guerras (regulares ou irregulares) emergem ainda as empresas militares
privadas, que acabam por vir enfatizar a utilização do termo civilinização.
A única certeza que temos quanto às guerras deste século que agora se inicia é
que o factor diferença/surpresa é permanente, como permanentes são o fluir da
História e a diversidade dos cenários e dos homens, pelo que a Guerra é uma
constante histórica que persistirá.NE
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Nuno Gonçalo Caseiro Miguel*
112
Globalização, crime organizado e terrorismo:
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
que relação?
■ Abstract:
The globalisation era, usually regarded as an era of growing interdependence and
unification between people all over the world, is also seen as an era with new
challenges for peace and international security. In this context, old threats as the
organised crime and terrorism are reaching unimagined dimensions. Therefore, the
aim of this essay is to help understanding the link between organised crime,
terrorism, and the globalisation process.
According to the author globalisation has motivated and facilitated the rise of these
two threats to higher levels, making them one of the first priorities of political
leaders in western democracies, and also that the answer to this problem lies on the
restructuring of several practices in place nowadays.
I. Introdução O MUNDO DESTE início de século XXI está refém das transformações causadas
pelo programa político de liberalização, de capitalismo e de promoção da democracia
e do desenvolvimento, vulgarmente designado por globalização.
Numa época em que as ameaças à paz e segurança internacional, nomeadamente
o crime organizado e o terrorismo, parecem assumir contornos cada vez mais
preocupantes, é imperioso reflectir sobre a seguinte questão: qual a relação existente
entre a globalização e o crescimento do crime organizado e do terrorismo?
Ao contrário do que muitos esperavam, o fim do mundo bipolar não trouxe a
paz prometida, nem tão pouco conduziu ao atenuar das guerras e ao fim da
história. Do vácuo criado pela destruição da ordem e da estabilidade geopolítica
global, características da Guerra Fria, emergiu uma nova era, a da globalização,
assente numa ordem de contornos ainda indefinidos onde impera a instabilidade.
“A «ameaça comunista» desvaneceu-se, deixando espaço livre para os perigos de
*
Capitão piloto aviador. Mestrando da Universidade Católica Portuguesa.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
II. A Globalização A queda do muro de Berlim a 9 de Novembro de 19892, que está na
génese do fim da Guerra Fria, vem pôr termo ao período da “longa paz” do sistema
bipolar vivido durante a segunda metade do século XX. A realidade conceptual que
melhor define o contexto histórico e geopolítico que daí resultou, na última década
do século XX, e no conturbado início de século XXI3, tem o nome de globalização.
Órfã do final da Guerra Fria, a globalização nasce do novo sistema de distribuição
de poder mundial, onde vinga o sistema unipolar em que os EUA, vencedores dessa
guerra, se afirmam como a principal potência mundial. A tendência natural, seguida
em várias partes do mundo, foi uma aproximação mais ou menos caótica aos ideais
defendidos pelas democracias liberais ocidentais, que estimulou um redesenhar do
espaço geopolítico mundial.
O processo gerado representa uma transformação na organização espacial das
relações sociais por via da extensão, intensidade, velocidade e impacto das transacções
entre os cidadãos do globo. O motor desse processo baseia-se na confluência de
vários factores, respectivamente: de ordem política4; de cariz económico5; de
natureza tecnológica6; e de carácter cultural7. No final do processo, encontra-se o
aumento qualitativo e quantitativo dos fluxos e das redes transnacionais e inter-regionais de actividades, de interacções e do exercício do poder.
1
2
3
4
5
6
7
Paul Magnette, “A União Europeia aparece como uma tentativa única de construção multinacional organizada
por Estados” in AAVV, Le nouvel état du monde, Paris, Éditions La Découverte & Syros, 1999, sob a direcção de
Serge Cordellier. Tradução portuguesa de Eduarda Castro, Joana Caspurro e Raquel Mouta, O novo estado do
mundo, Porto, Campo das Letras, 2000, p. 68.
Seguida da reunificação das duas Alemanhas a 3 de Outubro de 1990; da dissolução do Pacto de Varsóvia a 25
de Fevereiro de 1991; e da dissolução da União Soviética em Dezembro desse ano.
Que ficou marcado pelos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001.
Onde se destaca o fim da Guerra Fria.
Por via do triunfo do capitalismo enquanto modelo das democracias liberais ocidentais.
Onde a revolução no domínio da informática e das comunicações encetou novas possibilidades.
Fruto da conjugação dos outros factores e da percepção da inevitabilidade da interdependência.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
113
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
um caos internacional”1. É neste contexto da segurança que a questão colocada
assume particular relevância.
Como se verá ao longo deste ensaio, e como o 11 de Setembro veio a comprovar
de forma cruel, a globalização não só fomentou o crescimento de actividades ligadas
ao crime organizado e ao terrorismo, como também ajudou a elevar o grau de risco
dessas ameaças a patamares nunca antes imaginados.
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
114
A globalização é um fenómeno que está associado à crescente sensação de
interdependência e de aproximação entre povos, assim como ao esbater das divisões
e fronteiras, mas que, paradoxalmente, se articula com uma forte sensação de
vulnerabilidade e de insegurança face à disseminação e escala das mudanças globais.
Assim sendo, a globalização é uma realidade que une ao mesmo tempo que divide,
e está a criar um mundo sem regras e mais desigual.
Apesar de a globalização ter duas componentes fundamentais, respectivamente
a política e a económica, a verdade é que “são os aspectos estritamente económicos
da globalização que geram controvérsia, e as instituições internacionais que ditam as
regras, que impõem ou fomentam, por exemplo, a liberalização dos mercados de
capitais”8.
Para que a globalização possa acompanhar convenientemente a transformação
em curso, minimizando a desigualdade e a controvérsia, ela deverá ser gerida. Uma
das estratégias para o fazer é através da reforma das instituições internacionais que
incorporam as regras do sistema global. Essa regulação deverá contemplar a
participação dos países em desenvolvimento, tornando essas regras mais justas e
democráticas. É fundamental que haja “mais transparência, no aperfeiçoamento da
informação de que os cidadãos dispõem acerca da sua actividade, para que sejam
mais intervenientes na formulação das políticas que os afectam”9 e que as regras
sejam, e pareçam, equitativas e justas, contemplando tanto os poderosos como os
pobres, reflectindo um sentido fundamental de honestidade e de justiça social.
Nessa reestruturação é imperioso integrar diferentes realidades e consolidar a
componente política do processo, fazendo com que a componente económica lhe
esteja subordinada, ao contrário do que parece hoje acontecer.
III. Ameaças à Segurança O período de transição em que vivemos é caracterizado por um
conjunto de ameaças e riscos imprevisíveis, de carácter multifacetado e transnacional,
em que se destacam, para além do crime organizado e do terrorismo, o agravamento
das assimetrias Norte-Sul, os movimentos migratórios descontrolados, os atentados
ecológicos, e a proliferação de armas de destruição maciça. As duas primeiras
8
Joseph Stiglitz, Globalization and its Discontents, Nova Iorque, W. W. Norton & Company Inc., 2002. Tradução
portuguesa de Maria Filomena Duarte, Globalização: a grande desilusão, Lisboa, 2002 (3.ª edição revista, 2004),
p. 47.
9
Joseph Stiglitz, Globalization…, p. 27.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
1. O crime organizado
Uma organização criminosa persegue os mesmos objectivos traçados no mundo
empresarial, mas por outros meios: tal como acontece com todas as outras empresas,
o seu objectivo é o lucro. Contudo, os negócios propriamente ditos e as formas de
atingir o lucro desejado, ou seja, as regras do jogo utilizadas, diferem bastante. Por
um lado, negoceiam no mercado ilícito do tráfico de drogas, de armas, e de seres
humanos, entre outros; por outro, e porque a competitividade sectorial é muito
acentuada e agressiva, não olham a meios para atingir os seus fins.
O recurso à violência é uma das armas utilizadas por estas organizações. Esse
expediente deve-se por motivos de autoprotecção, mas também para atingir os seus
objectivos financeiros e económicos. Apesar disso, estas organizações só recorrem a
esta prática “quando as tácticas de intimidação falham. Assim sendo, e na maior parte
dos casos, a violência é selectiva, diferentemente da violência indiscriminada,
tratando-se normalmente de uma questão de ‘negócios’”11.
Outro dos meios mais utilizados é o recurso à corrupção. São dois os objectivos
visados com a utilização deste expediente: um de carácter instrumental; outro de
ordem sistémica. O primeiro está relacionado com as dificuldades inerentes à
passagem de fronteiras12; o segundo, de natureza bem mais inquietante, refere-se à
corrupção dos mais altos responsáveis políticos e judiciais de um Estado.
2. O terrorismo
As organizações terroristas visam atingir objectivos políticos, através do uso
indiscriminado da violência. Para eles, a violência não é mais do que a continuação
10
Phil Williams, “Strategy for a New World: Combating Terrorism and Transnational Organized Crime” in
AAVV, Strategy in the contemporary world, Nova Iorque, Oxford University Press, 2002 (2.ª edição, 2007), sob
a direcção de John Baylis et al., p. 194: “(…) in the decade after the end of the cold war and fuelled in
large part by globalization, both terrorism and organized crime morphed into far more formidable threats
than ever before.”
11
Phil Williams, “Strategy for…”, p. 197: “(…) after intimidation tactics have failed. For the most part,
therefore, the violence is selective rather than random and usually is a matter of ‘business’.”
12
Pelo que visa corromper o pessoal que trabalha na imigração e controlo de alfândegas.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
115
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
ameaças destacam-se, pois “na década que se seguiu ao fim da Guerra Fria e
parcialmente sustentados pela globalização, tanto o terrorismo como o crime
organizado evoluíram para patamares de ameaça nunca antes imaginados”10.
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
116
da política por outros meios. “Os actos de terror, para o terrorista, equivalem em
termos utilitaristas aos actos de guerra, para o Estado”13.
Outra característica destas organizações é que, independentemente das inspirações
de ordem doutrinária ou religiosa, as suas acções visam a subversão. Como regra, os
seus ataques pretendem causar o máximo de impacto psicológico nas populações. Para
tal, contam com o apoio dos meios de comunicação social que, “ao dar importância
aos atentados, aumentam os medos que eles suscitam e vão reforçar a sua eficácia”14.
As actividades secundárias de suporte a esses ataques incluem a procura de
formas de financiamento, o recrutamento, o treino de operacionais, o desenvolvimento
e aperfeiçoamento de competências especializadas, e a preparação dos atentados.
A natureza dos futuros ataques terroristas representa uma das principais
preocupações actuais. A probabilidade de poderem vir a ser utilizadas armas de
destruição maciça nessas acções é muito elevada15. Determinados cenários indiciam
que essa probabilidade aumenta no que toca à utilização de bombas radiológicas, ou
mesmo de pequenas bombas nucleares.
Perante a natureza imprevisível desta ameaça, e sobretudo face à escala e dimensão
das suas consequências, o combate ao terrorismo exige uma atenção mais cuidada, e
uma disponibilização de recursos superior à que é reservada ao crime organizado.
3. A segurança num mundo globalizado
De acordo com Joseph Nye Jr., “À medida que as ameaças transnacionais aumentam,
os estados irão não apenas questionar as normas da Vestefália, que traçam distinções
claras entre o que é nacional e o que é internacional, mas também a alargar os seus
conceitos de segurança e defesa. Muitas das novas ameaças não serão susceptíveis de
solução por parte de exércitos disparando explosivos potentes”16. Assim sendo, o
combate a estas ameaças requer o envolvimento de todos. É neste contexto que toma
forma o conceito de segurança cooperativa alargada.
13
Phil Williams, “Strategy for…”, p. 195: “(…) acts of terror for the terrorist are the equivalent in utilitarian
terms of acts of war for the state.”
14
Pascal Boniface, Les Guerres de Demain, s.l., Editions du Seuil, 2002. Tradução portuguesa de António Manuel
Lopes Rodrigues, Guerras do amanhã, Mem Martins, Editorial Inquérito, 2003, p. 17.
15
Há já alguns exemplos desta prática, nomeadamente: no Japão, em 1995, onde a organização terrorista Aum
Shinrikyo libertou gás sarin no metro de Tóquio, expondo cerca de 5000 pessoas aos seus efeitos; e na
Jordânia, em 2004, onde foi frustrado um ataque terrorista que envolvia o uso de armas químicas, que
mataria presumivelmente cerca de 20.000 a 80.000 pessoas.
16
Joseph Nye Jr., Understanding International Conflicts, s.l., Joseph Nye Jr., 2000. Tradução portuguesa de Tiago
Araújo, Compreender os Conflitos Internacionais, Lisboa, Gradiva, 2002, p. 273.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
IV. Globalização, Crime Organizado e Terrorismo Apesar de o crime organizado e do terrorismo
constituírem práticas já antigas, com a globalização, a natureza dessas ameaças
sofreu uma transformação radical: elas tornaram-se transnacionais, provocando
um aumento nos índices de insegurança. Essa realidade é mais evidente na área do
terrorismo: “Os prejuízos materiais e humanos provocados pelo terrorismo eram
considerados até 11 de Setembro de 2001 como relativamente limitados na sua
extensão, mas os atentados nos Estados Unidos mostraram que podiam adquirir uma
amplitude considerável: matar milhares de pessoas e atingir alvos julgados ao abrigo
de qualquer ameaça. Conforme ficou provado, o impacto do terrorismo é enorme.
Ataca às cegas as populações civis na sua vida quotidiana exactamente onde elas
acreditavam estar perfeitamente protegidas…”19.
17
Como as áreas da política interna, da política externa, da economia e da psicologia.
Jean Ziegler, Les Nouveaux Maîtres du Monde, Paris, Éditions Fayard, 2002. Tradução portuguesa de Magda Bigotte
de Figueiredo, Os Novos Senhores do Mundo, Lisboa, Terramar, 2003, p. 33.
19
Pascal Boniface, Les Guerres…, p. 15.
18
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
117
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
Torna-se fundamental imprimir à segurança um carácter multidisciplinar,
assente não só nos pressupostos da defesa militar, mas também nos conteúdos de
outras áreas estratégicas17. Esta prospectiva estratégica global, aliada à coordenação
de esforços entre Estados e a uma gestão conveniente da globalização, permitirá
encontrar respostas conjuntas mais eficazes face aos desafios colocados.
A chave para o sucesso da globalização passa por garantir que o conceito da
segurança é verdadeiramente aquilatado, em todas as suas dimensões. É esta a
mensagem que Jean Ziegler pretende transmitir quando adverte que “em nome da
organização multilateral da segurança colectiva, os senhores do capital apostaram na
capacidade militar da superpotência americana. (…) E longe de confiar a produção
e a distribuição dos bens do Planeta a uma economia normativa que tivesse em conta
as necessidades elementares dos habitantes, esses senhores entregaram-se à «mão
invisível» do mercado mundial integrado, que controlam perfeitamente. Em poucos
meses, arruinaram assim as esperanças enraizadas na base da consciência colectiva
desde a paz da Vestefália em 1648: a esperança de um contrato social universal entre
Estados e povos de dimensões diferentes, mas iguais em direitos; a esperança da
regra de direito que substitui a violência do mais forte; a esperança, enfim, de
arbitragem internacional e da segurança colectiva para conjurar a guerra”18.
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
118
A globalização representa um factor de motivação e de facilitação para o crime
organizado e para o terrorismo.
Por um lado, implicou a alteração nos padrões de emprego, de cultura, de
segurança, de capacidade de resposta por parte dos Estados, e, numa palavra, de
estabilidade. Os efeitos secundários indesejados não demoraram muito a aparecer,
criando um forte sentimento de desigualdade e de injustiça em largas franjas da
população mundial. Dessa forma, a globalização motivou a implementação e
disseminação de uma nova série de ameaças.
Por outro lado, algumas das vantagens da globalização, que se traduzem em
enormes avanços tecnológicos, estão disponíveis para todos. De facto, a densidade de
informações e de ligações que se estabelecem hoje em dia entre as áreas mais remotas
do globo, face à facilidade e acessibilidade das vias de comunicação, impossibilita o
controlo da disseminação do crime e da violência. Assim sendo, a globalização facilitou
o crescimento exponencial do crime organizado e do terrorismo.
1. O recurso às alianças
Tal como acontece em grande parte das actividades legais, que compõem os diversos
sectores da economia, também as organizações criminosas e terroristas recorrem à
simbiose para sobreviverem num mundo globalizado.
No caso das organizações criminosas, as alianças podem ser circunstanciais, de
carácter táctico, ou mesmo de cariz estratégico. O facto de estas organizações poderem
operar em rede facilita a dinâmica de cooperação entre as diversas partes. Essas redes
podem-se ramificar indefinidamente, atingindo dimensões verdadeiramente inimagináveis. Considere-se como exemplo o grupo criminoso italiano da Máfia. Esta organização representa o maior segmento da economia do país. No último ano, a Máfia
desenvolveu actividades que resultaram num lucro de noventa mil milhões de euros,
ou seja, o correspondente a sete por cento do produto interno bruto italiano.
Tal como acontece com as organizações criminosas, também os grupos
terroristas se aliam em determinadas circunstâncias. Apesar disso, essas uniões,
diferentemente do que acontece no primeiro caso, baseiam-se na comunhão de
valores e de objectivos.
2. A descentralização das actividades
Uma característica da globalização é que existem poucas regras, ou controlos formais,
ao funcionamento do mercado. Em contrapartida, se os limites existentes forem
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
3. Outras variáveis
As seguintes linhas, que não esgotam o tema analisado, têm como principal objectivo
alertar para outros assuntos que poderão influenciar o frágil equilíbrio que existe
entre a globalização, o crime organizado e o terrorismo.
3.a O papel do Estado
A teoria das relações internacionais, que vê o Estado enquanto único actor relevante
no mundo da política e da segurança internacional, está cada vez mais desacreditada.
A globalização está na base da alteração deste paradigma, uma vez que o último
símbolo da soberania, que é o controlo interno e externo do uso da força, deixou de
fazer sentido. Hoje em dia, a segurança internacional está condicionada tanto pelos
Estados, como por outros actores. A ideia de que a globalização e o capitalismo
reduzem a violência não corresponde à realidade.
20
Roland Jacquard, Au Nom D’Oussama Ben Laden, s.l., Jean Piccolec éditeur, 2001. Tradução portuguesa de Carlos
Correia Monteiro de Oliveira, Osama Bin Laden: A Estratégia do Terror, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2001,
p. 36.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
119
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
contrários aos interesses de uma determinada empresa, ela pode simplesmente deslocar-se para outro local mais conveniente. Agindo desta forma, ou seja, tirando partido da
dispersão de meios e de actividades, os actores não estatais livram-se facilmente dos
inconvenientes da centralização. Como é natural, tanto os grupos criminosos como as
organizações terroristas também utilizam este expediente como trunfo.
Um exemplo paradigmático desta realidade é o caso do grupo Bin Laden, com
fortes ligações à organização terrorista da Al-Qaeda: “Os projectos atribuídos ao grupo
Bin Laden já não se limitam ao reino; passam também pelo Líbano, onde Yehia bin
Laden participa na reconstrução do centro de Beirute, devastado pela guerra civil; por
Londres, onde o grupo tem um escritório que o representa, a Binexport; por Genebra,
onde a Sico, Saudi Investment Company, se ocupa de numerosos negócios internacionais.
(…) A Sico, sede principal do grupo no estrangeiro, possui também escritórios em
Londres e na ilha Coraçau, nas Antilhas holandesas. (…) Muito particularmente em
França, os Bin Laden ocupam o conselho de administração de um banco, o al-Saudi,
que será parcialmente adquirido pelo banco Indo-Suez, tornando-se deste modo o
Banco Francês para o Oriente antes de se fundir com o grupo Mediterrâneo de Rafik
Hariri, primeiro ministro libanês…”20.
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
120
Se o crime organizado e o terrorismo empregam processos altamente dinâmicos,
o Estado encontra-se no outro extremo. Não se defende que o Estado utilize essas
mesmas armas. No entanto, é urgente que o Estado adeqúe as suas instituições à nova
realidade, de forma a agilizar processos, desburocratizando tomadas de decisão, e
garantindo outros níveis de eficácia no combate a estas ameaças.
3.b A quantificação do armamento
Se por um lado a globalização gera novos actores não-estatais com influência
transnacional, por outro, essa constatação implica que será cada vez mais difícil
aferir o poderio militar global.
A corrida ao armamento no mercado aberto torna praticamente impossível o
controlo do armamento mundial, e, naturalmente, o respeito pelos acordos de
manutenção e monitorização de armas. Como é natural, estas acções beneficiarão as
organizações criminosas e terroristas, ao mesmo tempo que fomentarão um aumento
da sensação de instabilidade e de insegurança.
3.c A segurança como bem público
Uma outra questão sobre a qual se deve reflectir diz respeito à segurança: será este
um bem público ou privado? Segundo Peter Singer, na sua obra Corporate Warriors, a
segurança é um bem público. Recorrendo ao exemplo do seu país, este analista
constata que a Constituição Norte Americana consagra a segurança enquanto bem
público, supervisionado por entidades públicas.
Acontece que, nos nossos dias, a segurança deixou de ser um bem público,
passando a ser objecto de negócio por parte de privados. Assim sendo, a legitimidade
do Estado fica enfraquecida e o contrato social fica em causa: para quê ser leal ao
Estado? A política passa a estar directa e abertamente ligada ao poder económico. Nos
países mais desfavorecidos isso significa que só quem tem dinheiro é que tem acesso
à segurança. A privatização da segurança implica um extremar das clivagens sociais.
Se forem quebrados certos padrões de coesão social na era da globalização, estão
criadas as condições ideais para o triunfo do crime organizado e do terrorismo.
V. Conclusão Na globalização, e “numa situação de interdependência, a política parece
diferente se levantarmos o véu do interesse nacional e o da segurança nacional”21.
21
Joseph Nye Jr., Understanding…, p. 246.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
BIBLIOGRAFIA
ENSAIOS
MAGNETTE, Paul, “A União Europeia aparece como uma tentativa única de
construção multinacional organizada por Estados” in AAVV, Le nouvel état du monde, Paris,
Éditions La Découverte & Syros, 1999, sob a direcção de Serge Cordellier. Tradução
portuguesa de Eduarda Castro, Joana Caspurro e Raquel Mouta, O novo estado do mundo,
Porto, Campo das Letras, 2000, pp. 68-70.
McGREW, Anthony, “Sustainable Globalization? The global politics of development
and exclusion in the new world order” in AAVV, Poverty and Development Into the 21st
Century, Nova Iorque, Oxford University Press, 2000, sob a direcção de Tim Allen e
Alan Thomas, pp. 345-364.
22
Pascal Boniface, Les Guerres …, p. 13.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
121
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
A globalização é sinónimo de altas taxas de crescimento económico, e de um
mundo cada vez mais interdependente. Contudo ela acarreta também, e em
proporção directa, um aumento do grau de ameaça do crime organizado e do
terrorismo. Não é possível ter “o melhor de dois mundos”. Se os decisores políticos
continuarem a apostar exclusivamente na componente económica como via de
desenvolvimento, estarão a colocar em causa o futuro da humanidade. Assim sendo,
torna-se absurdo dissociar o interesse nacional – que hoje em dia se confunde com
o interesse económico – do conceito de segurança nacional.
Por outro lado, os factores que estimulam determinados grupos da sociedade
global a recorrerem à prática de actividades ilícitas não diminuem face à retórica
apaziguadora de certos líderes mundiais. Pelo contrário, palavras contrárias às acções
têm um efeito perverso, uma vez que conduzem a um acicatar dos ânimos e a um
extremar de posições.
Pelo que ficou exposto verifica-se que é necessário intervir no processo da
globalização, nomeadamente através da: articulação de esforços; adaptação das
instituições à realidade do século XXI; agilização de processos; maior dedicação e
afectação de recursos à problemática da segurança.
Por último, não é possível escamotear a base do problema, isto é, o combate às
assimetrias. “Não há, pois, outra solução senão a de atacar as verdadeiras raízes do
mal: injustiça, ausência de democracia, desigualdades, etc.”22.NE
122
WILLIAMS, Phil, “Strategy for a New World: Combating Terrorism and Transnational
Organized Crime” in AAVV, Strategy in the contemporary world, Nova Iorque, Oxford University Press, 2002 (2.ª edição, 2007), sob a direcção de John Baylis et al., pp. 192-208.
Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação?
JORNAIS
Público, 24-10-2007.
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ZIEGLER, Jean, Les Nouveaux Maîtres du Monde, Paris, Éditions Fayard, 2002. Tradução
portuguesa de Magda Bigotte de Figueiredo, Os Novos Senhores do Mundo, Lisboa,
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NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122
Fernando Augusto de Figueiredo*
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975):
123
aspectos e implicações do relacionamento com a
■ É com o intuito de contribuir para um melhor conhecimento deste período que
ora se publica este artigo, após uma investigação de âmbito mais vasto sobre a
presença portuguesa em Timor-Leste após 1945, baseada, principalmente, em
documentação de arquivos nacionais, dos NAA (National Archives of Australia) e dos NA
(National Archives) de Londres. Servir-lhe-ão de apoio estudos nacionais e estrangeiros,
uma vez que pareceu essencial fazer uma inserção no contexto regional e geral do
evoluir local, ao longo de três décadas.
A AUSTRÁLIA, UM País relativamente novo, havia emergido na região pouco antes da Segunda
Guerra Mundial. Durante o conflito, tentou apoderar-se do Timor português, de
modo a proteger-se à distância. De facto, a proposta de Spender, deputado do
Partido Trabalhista, para que se comprasse o território, baseava-se no facto deste ser
considerado vital para a defesa do seu País1. Por seu lado, Salazar receava que o vazio
deixado pela administração portuguesa servisse de pretexto para que a Austrália
o viesse a ocupar. Em larga medida, isso explica a intransigência manifestada
sobretudo para com a atitude dos funcionários públicos, civis e militares, e agentes
comerciais que, durante a ocupação japonesa, se dispunham a abandonar a colónia
e se refugiavam, precisamente, na Austrália.
O equilíbrio das alianças estabelecidas na região, a cedência de facilidades aos
Aliados nos Açores, a determinação do Governo português de querer participar na
última fase do conflito, a manutenção de uma presença, embora mais simbólica do
que efectiva, durante a ocupação nipónica, e uma rápida reocupação, contribuíram
para que a pretensão australiana não se concretizasse.
*
1
Doutor em História e investigador do Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa.
Durante a I Guerra Mundial, tinha sido o primeiro-ministro Andrew Fisher a dar a sugestão de que se
ocupasse Timor. Cf. Wendy Way (Editor), Australia and the Indonesian Incorporation of Portuguese Timor, 1974-1976,
Melbourne, Melbourne University Press, 2000, p. 17.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Austrália
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
124
De facto, durante a guerra, o continente australiano sofreu pela primeira vez
bombardeamentos aéreos e um bloqueio naval, enquanto cerca de 600 australianos
morreram em defesa da Papua Nova Guiné Oriental e ilhas adjacentes. Ao mesmo
tempo, a Austrália foi um País acolhedor para refugiados do Sudeste Asiático,
substanciais forças holandesas e muitas centenas de milhares de militares americanos2.
Também em termos de defesa, havia agora muita coisa a equacionar.
A partir da década de 1960, alguns factores irão contribuir para um
posicionamento diferente da Austrália relativamente à presença portuguesa em
Timor. Os mais importantes parecem-nos ser: as mudanças operadas no processo de
descolonização dos povos e o envolvimento da Austrália enquanto membro activo
nesse movimento; a pressão dos governos democráticos do Ocidente para que
desempenhasse um papel mais directo na questão de Timor, dada a sua incomodidade
em fazê-lo, em virtude das obrigações que tinham para com Portugal; a consolidação
da sua defesa próxima e regional; e uma opinião pública interna mais crítica em
relação à colonização em geral.
Após um período de indefinição e de não-confrontação directa durante o
governo de Sukarno, também uma maior aproximação à Indonésia de Suharto,
baseada em interesses mútuos, designadamente em relação à exploração de petróleo
no Mar de Timor, ajudará a compreender a atitude australiana face à ocupação
indonésia e posterior reconhecimento da anexação do território.
Do pós-guerra ao início da década de 1960 No imediato pós-guerra, a política de defesa
da Austrália apontava em três direcções: eliminar a capacidade militar do Japão e
prevenir o seu ressurgimento; apoiar os esforços de paz da ONU; e contribuir para
acordos de segurança regional, que deveriam incluir a Grã-Bretanha e os Estados
Unidos. Estes objectivos não foram conseguidos a curto prazo, mas também não
havia então perigo para a segurança do País, a não ser muito remota e indirectamente,
sobretudo se fosse tida em linha de conta a situação que atravessava a Europa, em
cujo continente se sentia mais o confronto Leste/Oeste3.
Em 1950, quanto à componente que envolvia Timor, o deputado Spender, já
ministro dos Negócios Estrangeiros australiano e fora do contexto de guerra, colocou
2
Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), Australia in Word Affairs 1961-1965, Melbourne-Canberra-Sydney, Australian Institute of International Affairs, s/d., p. 251.
3
Idem, ibid., p. 252.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
No mesmo ano, um periódico de Sidney expandia a ideia de que Timor e outras
possessões vizinhas da Austrália deviam ser controladas pelo seu País ou por uma
“Potência muito amiga”. Era, principalmente, por este tipo de posições que, da parte
do cônsul, existia a convicção de que o relacionamento de Portugal com a Austrália
devia ser idêntico ao que havia com a Inglaterra e os Estados Unidos da América5.
Ou seja: Portugal devia entrar num acordo regional que incluísse, obviamente, a
Austrália, e que envolvesse também aqueles dois Países, com os quais Portugal estava
na NATO.
4
Citado in AHDMNE (Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros), Timor,
2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, telegrama n.º 7, Sidney, 28 de Março de 1950.
5
Cf. AHDMNE, ibid., 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, Anexo ao ofício n.º 21, do Consulado em
Sidney, de 28 de Janeiro de 1950.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
125
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
a questão no Parlamento noutros termos, que o cônsul de Portugal em Sidney
comunicou por telegrama ao Governo central:
“[...].Todos os Governos vitalmente interessados [na] estabilidade [da]Ásia, [e
do] Sul [do] Pacífico e capazes [de] assumir compromissos militares deveriam
estudar [a] possibilidade [de um] pacto regional. [Esta] Comunidade formaria
[um] núcleo ao qual se associariam outros Países principalmente [os] Estados
Unidos. Fins [do] pacto - defesa militar, elevação [do] nível [de] vida, promoção
[das] instituições democráticas [e] laços comerciais. Independentemente [do]
pacto deve [a] Austrália assegurar-se por todos os meios ao seu alcance [de que]
nas ilhas imediatamente adjacentes nada aconteça [que] possa ameaçar [a] sua
segurança. [A] Experiência mostrou [que] estas ilhas são [o] último anel [de]
defesa [da] Austrália [pelo que] temos interesse vital [em] quaisquer modificações
[que] nelas ocorram. Ninguém deve supor [que a] Austrália tomaria papel
passivo perante eventuais mudanças fundamentais nestas áreas. Tenho [em]
mente principalmente mas não apenas [a] Nova Guiné do mesmo modo [que]
não podemos ser passivos observadores [de] quaisquer desequilíbrios [em]
Timor, Novas Hébridas, [e] Caledónia [que] possam ter indesejáveis
consequências [na] Austrália. Mas isto é negativo. Estamos positivamente
dispostos [a] negociar com governos destes Países [no] arranjo [de] mútuo
benefício económico e segurança. Não é interferência [nos] negócios alheios
mas simplesmente [uma] questão com carácter [de] prudência e cooperação
mútua”.4
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
126
A Austrália saía da “iron age of austerity” dos anos quarenta para os “silver years
of growing confidence and conformity” dos anos cinquenta, prelúdio do que viria
a ser a “golden age” dos anos sessenta até meados da década seguinte, beneficiando
então de um “long boom”, como fenómeno global que atingiu as economias mais
avançadas durante este período, em virtude de grandes investimentos, do acesso a
novas tecnologias, e a modernas formas de gestão e administração6. Por outro lado,
era um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, estatuto que lhe dava peso
negocial, que podia acrescentar à sua importância estratégica.
A transição da “idade do bronze” para a “idade da prata” ocorreu em plena
Guerra-Fria. No confronto bipolar entre capitalismo e comunismo, a Austrália alinhou,
claramente, ao lado da “Western Alliance”, o que iria condicionar a orientação da sua
política de defesa. Assim, em 1948, com a Nova Zelândia, integrou uma plataforma
anticomunista, conhecida como “ANZAM Treaty”, destinada a coordenar a defesa aérea
e as comunicações marítimas na região, tendo sido estendida à Confederação Malaia
em 1954. Começou com uma assistência militar à Grã-Bretanha para ajudar a derrotar
a insurreição comunista ocorrida naquele território. Em 1957, depois da independência
da Confederação, foi incorporado na Anglo-Malayan Defence Agreement.
Em 1950, já com Robert Menzies, como primeiro-ministro, à frente de uma
aliança entre o Liberal Party e os Country Parties, enviou tropas para a Coreia a fim de
combaterem ao lado das forças americanas que se opunham ao avanço para Sul das
forças comunistas. Mais do que o receio do rearmamento do Japão, interessava agora
desfazer a onda comunista que avançava no Oriente a na própria Europa.
Por sua vez, os partidos que formavam a coligação conservadora nunca tiveram
a simpatia dos nacionalistas indonésios, como havia acontecido com o Labor Party e
especialmente com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Herbert Vere Evatt. Acrescia
que, se a instável e ambígua Indonésia obtivesse sucesso na sua reivindicação da
Nova Guiné Ocidental, haveriam de surgir problemas na comum, indefinida e
insegura fronteira daquele território7. E isso era uma questão que tocaria directamente
à Austrália, que administrava a Nova Guiné Oriental.
A participação na Guerra da Coreia, a coberto do apelo da ONU para a defesa da
paz mundial, mas também como “British and democratic nation” e em apoio de uma
nação amiga, teve efeitos de vários tipos na Austrália: fez aumentar a inflação; firmou
6
7
Cf. Stuart Macintyre, A Concise History of Australia, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, pp. 196-197.
Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., p. 261.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
Este tratado constituía, essencialmente, uma garantia dos Estados Unidos no que
respeitava à defesa da Austrália e da Nova Zelândia, dos territórios sob a sua
jurisdição, assistência às suas forças armadas, e aos barcos e navios públicos na
“Pacific Area”. Excluía, no entanto, o Oceano Índico, o que deveria ser, assim se
presumia, da principal responsabilidade do Reino Unido. Na sua aplicação, o tratado
deixava indefinido também o que se referia a partes da Indonésia, a área do Bornéu
e o Antárctico. Quanto à Grã-Bretanha, por insistência americana, tinha sido excluída
do tratado, o que foi desvalorizado pelos governantes australianos, que o apresentavam
como um complemento dos acordos com o Reino Unido na ANZAM10.
Em 1954, a Austrália integrou a SEATO (South East Asia Treaty Organization), que
incluía também os EUA, o Reino Unido, a França e a Nova Zelândia – a “more
comprehensive system of regional security in the Pacific Area” –, dinamizado pelos
Estados Unidos após a derrota francesa no Vietname perante as forças comunistas.
Cada um dos Países aderentes tinha os seus interesses e objectivos. Para o
Governo australiano, a SEATO substituía o poder colonial francês, contendo “the
agressive policies of international communism” no Sudeste Asiático. Este tratado
vinha complementar o ANZUS: enquanto este apenas implicava encontros periódicos
8
Idem, ibid., p. 264.
Stuart Macintyre, ob. cit., p. 206.
10
Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., pp. 264-265.
9
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
127
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
alguns planos para limitar a reconstrução económica japonesa e o seu rearmamento;
encorajou os Estados Unidos a conceder à Austrália um empréstimo para o seu
desenvolvimento; e ajudou sobretudo a tornar possível um pacto que os líderes
australianos procuravam há muito tempo8.
Com o fundamento de que, como um vasto território e uma reduzida população,
o País só poderia resistir a uma onda comunista vinda de Norte, ou a outro qualquer
grande inimigo externo, com a ajuda de potências amigas, designadamente a maior
de todas – os Estados Unidos da América –, em 1 de Setembro de 1951, os dirigentes
australianos formalizaram com este País e com a vizinha Nova Zelândia um tratado
de defesa (ANZUS – The Australia, New Zealand, United States Security Treaty):
“[...]. ANZUS was essentialy a corollary to its system of alliances in the Asia-Pacific region, which served to reconcile Australia to America’s far more
important relationship with the former enemy, Japan.”9
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
128
de um conselho ministerial e ocasionais de representantes militares e pessoal de
planeamento, a SEATO assentava numa organização com contínua ligação entre
pessoal de informação e planeamento, e representantes diplomáticos. Este tratado
permitia à Austrália uma série de contactos com os Estados Unidos, que seriam
importantes no desenvolvimento de uma mútua confiança e acessibilidade11.
Desde o início de 1954, neste enquadramento, a Grã-Bretanha, a Austrália e a
Nova Zelândia começaram as conversações do pessoal militar sobre os problemas
relativos à defesa da Malásia, dos territórios-ilhas na região, e das próprias Austrália
e Nova Zelândia, como referimos. O tratado cobria também a Commonwealth Stategic
Reserve, com forças australianas12.
Qual a importância da Confederação Malaia, para um tão forte empenhamento,
sobretudo destes dois últimos Países da Commonwealth?
“Economic considerations lay close to the heart of British strategic planning for
South-East Asia as is revealed in a paper grandiosely entitled ‘Review of Defence
Policy and Global Strategy’. In this the Chiefs of Staff declared: ‘Malaya is of the
greatest economic value to the United Kingdom and its strategic importance in
a war lies largely in its position as an outer defence of Australasia.’ Indeed,
British Malaya provided a bridge between the Western Powers in Asia, between
Anglo-American special relationship and the Commonwealth alliance, and
between the Commonwealth and the non-aligned states.”13
Se era importante para a estratégia global do Ocidente, a participação australiana
na sua defesa decorria desta visão abrangente, da qual não podia alhear-se:
“By participating in the defence of Malaya, Australia showed its interest in the
security not only of South-East Asia but also of the Indian Ocean.”14
J. B. Howse, subsecretário de Estado para os Territórios, defendia que a Austrália
devia ter “um sistema de defesa móvel e empregar as suas reservas antes como ‘task-force’ do que espalhá-las por todo o País”, aprendendo as lições do passado, em
várias regiões do mundo. Segundo ele, devia ser aproveitado o “alto conceito
internacional” em que eram tidos o primeiro-ministro Menzies e o ministro dos
11
Idem, ibid., pp. 269-270.
Idem, ibid., pp. 271-273.
13
D.K. Basset and V. T. King (Edited), Britain and South-East Asia, Occassional Paper, n.º 13, The University of Hull,
Centre for South-East Asian Studies, 1986, p. 82.
14
Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., p. 275.
12
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
Assim, propunha que se fizesse um pacto com a Holanda e Portugal para
garantir a defesa conjunta destas áreas importantes. Para ele contribuiria
economicamente sobretudo a Austrália, que deveria alargar o seu serviço militar
obrigatório e efectuar também um “acordo qualquer” com a Grã-Bretanha,
mostrando, deste modo aos seus aliados que estava a fazer o devido esforço em
organização defensiva18. Faltava ainda fazer algo para consolidar este anel de
protecção, já que a defesa mais afastada e a do próprio País estavam asseguradas. E
isso implicava a Indonésia, a Holanda e Portugal.
A partir de 1957, a Indonésia, onde os seus dirigentes até então se haviam
mantido bastante ocupados na resolução de problemas internos e com a consolidação
do Estado, fez subir de tom as suas reclamações sobre a Nova Guiné Ocidental,
15
Plano económico de reconstrução da “Ásia pacífica”, dinamizado pelos EUA em 1951.
Cf. IANTT (Instituto de Arquivos Nacionais Torre do Tombo), AOS (Arquivo de Oliveira Salazar) /CO/UL-27, pt. 1
“Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões Parlamentares,
n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, pp. 1-3.
17
IANTT, ibid., pt. 1 “Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões
Parlamentares, n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, p. 4.
18
Cf. Idem, ibid., pt. 1 “Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões
Parlamentares, n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, pp. 4-8.
16
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
129
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Negócios Estrangeiros, Casey, que haviam permitido ao Governo contribuir para a
realização do Plano Colombo15, do Pacto ANZUS e da SEATO. O primeiro, pela ajuda
em géneros alimentícios e equipamento técnico que permitia aos Países asiáticos
amigos, tinha criado uma enorme onda de simpatia para com o seu País; o Pacto
ANZUS garantia um auxílio valioso dos Estados Unidos da América e da Nova
Zelândia em caso de ataque; e na SEATO, o Governo ia participar activamente para
fortalecer a segurança da Austrália16.
Por sua vez, o seu conceito de defesa próxima incluía a cadeia de ilhas ao Norte
do País: Timor, as ilhas Aru, Nova Guiné, Nova Irlanda, Nova Bretanha, Salomão
australianas e Salomão britânicas. Por isso, havia que fechar esta porta de entrada na
Austrália:
“[...]. Não temos pretensões sobre o Timor holandês (sic) ou português, nem
sobre as ilhas neerlandesas de Aru nem sobre a Nova Guiné neerlandesa ou
Ocidental, mas estamos interessados de forma vital na sua defesa. [...]. A atitude
da Austrália tem sido sempre bem nítida. Estas ilhas devem ficar nas mãos
daqueles que querem e podem defendê-las.”17
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
130
admitindo o uso da força para o conseguir. Reclamou também como suas águas
territoriais uma área à volta, entre e junto das várias ilhas que a compunham, de 12
milhas de largura a partir da costa. A Austrália resistiu a uma e outra reivindicação,
apesar de preferir os holandeses como vizinhos na Nova Guiné Ocidental. As diligências
da diplomacia foram no sentido de evitar o uso da força. Assim, até 1962, para os
governantes australianos, a principal preocupação na região era sem dúvida a
Indonésia19.
Na Malaia, apesar de, formalmente, o estado de emergência ter terminado em 1960,
as forças australianas continuaram empenhadas em acções operacionais contra grupos
terroristas, numa “border security area” integradas na Commonwealth Strategic Reserve.
Qual o sentido da continuada participação da Austrália na defesa da Federação
da Malaia, após 1957, agora contra a vizinha Indonésia?
“The Australian viewpoint was that Malaysia was the best solution to the
problem of descolonisation in the area, the best possible arrangement for the
future of the Borneo territories, and would contribute to the stability of the
region. Australia had no formal, public commitment to defend Malaya after
1957, even though its forces continued until 1960 to combat Communist
insurgents there. [...], in September 1963, the treaty was extended to include all
the territories of Malaysia.”20
De facto, o combate ao comunismo e as obrigações decorrentes para com o
Reino Unido justificavam esse prolongado apoio ao longo da primeira metade dos
anos sessenta, enquanto a Indonésia não entrou na era de Suharto, já que, a partir
daí, foi a própria Indonésia a inverter a sua política externa.
Acerca da Nova Guiné Ocidental, o Governo australiano defendia o ponto de
vista de que o Governo holandês detinha ali a soberania e que o povo do território
evidenciava afinidades étnicas com os da Nova Guiné Oriental e não com os
Indonésios. Mas aceitava que esse mesmo território viesse a fazer parte da Indonésia
se o Supremo Tribunal de Justiça assim o decidisse, se os Governos dos Países Baixos
e da Indonésia o acordassem, ou se o povo que o habitava assim o votasse na altura
19
20
Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ob. cit., pp. 279-280.
Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ibid., pp. 287. Veja-se também: AHU (Arquivo Histórico
Ultramarino), MU(Ministério do Ultramar)/GM(Gabinete do Ministro/GNP(Gabinete dos Negócios Políticos)/034 Timor,
“Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, pt. 1 (1962-1964), relatório respeitante ao mês de Setembro de
1963, enviado com o ofício n.º 98, secreto, do governador de Timor para o Ministério do Ultramar, Díli, 8
de Outubro de 1963, Anexo A: “Defence of Malasia – Statement by Australian Prime Minister”, pp. 1-2.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
21
Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ob. cit., pp. 280-286.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
131
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
da independência ou subsequentemente. Fora destas condições, opunha-se, sobretudo
se fosse utilizada a força para o anexar. A questão foi posteriormente ultrapassada
quando, em 8 de Novembro, na Assembleia Geral da ONU, a Holanda aceitou
transferir a soberania para o povo da Nova Guiné Ocidental, logo que a própria ONU
pudesse assumir ali o controle administrativo, já que a população não estava pronta
para o fazer. Seguiu-se um período de pressão do Governo de Sukarno, nomeadamente
com a formação do Conselho Nacional de Segurança, Mas, em 15 de Agosto de
1962, os dois Países concordaram em transferir a Nova Guiné Ocidental para a
administração indonésia, a partir de 1 de Maio de 196321.
Entretanto, desenvolvia-se a guerra do Vietname, na qual a Austrália, em defesa
dos mesmos interesses, também participava.
Quanto ao seu envolvimento pela Federação da Malásia, após a sua formação
(1963), ao lado da Grã-Bretanha, na confrontação que a Indonésia lhe moveu, a
Austrália, em várias ocasiões, informou este País acerca da sua atitude face à
confrontação e às razões do seu apoio. Mas, aparentemente, com poucos resultados.
Por sua vez, a Indonésia quase sempre omitia referências hostis à presença australiana,
evitando, assim, uma deterioração nas relações bilaterais, para não abrir mais frentes
e para continuar a beneficiar da vasta e diversificada ajuda do “Plano Colombo”.
Havia, portanto, interesse de ambas as partes em não se hostilizarem abertamente.
Enquanto se envolvia directamente em questões como a da Malásia, a Austrália
ia afirmando os seus interesses na Ásia: precisamente através do “Plano Colombo”,
estabeleceu um esquema de cooperação com os Países do Sul e do Sudeste Asiático,
que levou 10.000 jovens asiáticos a estudar na Austrália, justificado como “a
profhylatic against communist infection”. Possibilitou também aos beneficiários
uma experiência directa de vida na tranquila “Austrália branca”. Os australianos
estiveram presentes na Ásia como conselheiros, técnicos, professores, diplomatas e
jornalistas, mas, acima de tudo, como militares. Envolveram-se com os seus vizinhos
em viagens, estudos, arte e literatura, apresentando a Ásia ainda como uma zona de
contestação e perigo que requeria a presença dos seus poderosos amigos. Durante as
décadas de 1950 e 1960, esta necessidade envolvente levou o Governo australiano a
desafiar o perigo comunista, na dinâmica introduzida pela Guerra-Fria, que consistia
em marcar o lado de que se estava. Isso também significou que a Austrália seguiu os
Estados Unidos sempre que este País esteve à frente de qualquer movimentação ou
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
132
barreira, e exerceu toda a sua influência para colocar as forças americanas entre a
China e os Países do Sudeste Asiático22. Por sua vez, para muitos australianos, a
influência americana no País era uma “penalty for a privileged position.” Para o
Governo australiano “it was seen as the price of security, if not of survival.”23
Em todo o sistema de segurança e de defesa australianos, os seus serviços
secretos tiveram um importante papel:
“The Joint Intelligence Bureau was created in 1947. Its basic responsabilities
were not altered substantially during the 20 years of its existence. The JIB was
responsible for collating (but not collecing), evaluating and distributing
intelligence mostly of a strategic, scientific and military nature. The activities of
the JIB were reflected in its organisation structure which, in addition to
administrative and servicing branches, contained six functional branches
dealing with such matters as military geography, economics, transport and
communications and scientific intelligence.
In addition to the JIB, which was within the Department of Defence, four other
departments were also involved in the collation and evaluation of intelligence.
Political intelligence was very largely the domain of the Department of External
Affairs.”24
Após este alargado ainda que sucinto enquadramento, até ao início dos anos
sessenta, interessa agora focar a análise em Timor português, onde, durante estas
duas décadas, haverá a fazer algumas referências que consideramos essenciais.
Ultrapassada a questão da rendição japonesa, houve que proceder à evacuação
dos portugueses refugiados na Austrália. Para tal, foram desenvolvidas diligências,
terminando com o envio de um barco português que, em 27 de Novembro de 1945,
trouxe a maior parte deles de regresso à Metrópole.
O cônsul de Portugal em Sidney, Álvaro Brilhante Laborinho, em nome do
Governo do seu País agradeceu a “generosa hospitalidade”, a “valiosa assistência” e
a “pronta colaboração” recebidas das autoridades australianas25. Refira-se que os
22
Cf. Stuart Macintyre, ob. cit., pp. 207-209.
Gordon Greenwood and Norman Harper), ob. cit., pp. 287-301.
24
F. A. Mediansky, “Defence Reorganisation 1957-75”, in Australia in Word Affairs 1971-1975, Sydney-London-Boston, George Allen & Unwin et Australian Institute of International Affairs, 1980, p. 47.
25
Cf. NAA (National Archives of Austrália), Portuguese Timor, “Evacuees from Portuguese Timor”, A1838,
C550098, SC377/3/3/4, 1945-1947, ofício n.º 1051, do consulado de Portugal em Sidney para o
Ministério dos Negócios Estrangeiros, Sidney, 5 de Dezembro de 1945.
23
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
Em 1945-1946, a partir da Austrália, as importações da colónia portuguesa não
foram além de 7296 libras australianas, sendo as principais:
Manufacturas de madeira ......................... 1469
Gado para criação .................................... 726
Batatas ...................................................... 420
Carrinhos para transporte de motores ...... 350
Cimento ................................................... 300
Total ......................................................... 3275
26
Cf. Carta de 10 de Maio de 1945, in José Freire Antunes, Salazar e Caetano: Cartas Secretas 1932-1968, Lisboa,
Círculo de Leitores, 1993, p. 159.
27
Idem, ibid., “Australian Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C140065, SC377/3/1 part 1, 1945-1950,
apêndice de Apontamento sobre as Relações australianas com Timor Português – 1945-1946.
28
Idem, ibid., “Establishement of Consulate”, A1838, C248146, SC377/1/1 part 3, 1946, documento do Foreign
Affairs para o Acting Treasure, Camberra, 11 de Abril de 1946.
29
IANTT, AMC (Arquivo Marcello Caetano), “4.º Secção – Ministro das Colónias (1944-1947), Correspondência
com o governador de Timor...”, cx. 9, doc. n.º 26, cópia da carta do governador de Timor para o ministro
das Colónias, Díli, 27 de Agosto de 1946. p. 8.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
133
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
termos constantes deste agradecimento estavam em contradição com o tratamento
de “indigentes” a que, ao abrigo do Regulamento Consular, os mesmos consideravam
terem estado sujeitos, o que mereceu um apelo directo do ministro das Colónias,
Marcello Caetano, a Salazar26.
Por outro lado, os governantes australianos empenhavam-se em adquirir uma
posição dominante nos negócios da colónia portuguesa, substituindo a influência
holandesa anterior à guerra e que, tendia de novo a impor-se, principalmente devido
à navegação marítima que retomaram27.
Em princípios de 1946, a abertura do consulado em Díli visava sobretudo
estreitar as relações nos domínios da defesa, do comércio e das comunicações28.
Por sua vez, no mesmo ano, o governador Óscar Freire Vasconcelos Ruas (1945-1950), depois de ter recebido o residente holandês de Cupang, referia ao ministro
das Colónias:
“É nítido nos holandeses o sentimento do ciúme para com os australianos a
nosso respeito. Somos neste momento a mulher bonita, cortejada por mais de
um homem. Bom sintoma é para a nossa posição internacional”29.
134
Nessa altura, Timor aparecia aos agentes australianos como um forte potencial
em: borracha, café, sisal, copra, algodão, kapok, etc., mas sobretudo de petróleo30.
Nos finais de 1947, as importações eram já em maior número e mais diversificadas (Quadro 1):
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Quadro 1
Importações da Austrália
1947
Produtos
Açúcar
Bacon
Betume (asfalto)
Cimento
Coberturas p/ telhados
Corned beef
Manteiga
Meias, peúgas e agasalhos de lã
Presunto
Queijo
Refeições enlatadas várias
Vestuário
Quantidade
100 caixas
300 libras.
100 tambores
300 toneladas
500 rolos
10 caixas
2000 libras
500 libras
500 libras
1000 libras
20 caixas
500 peças
Fonte: NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838,
C550114, SC377/3/5 part 2, 1946-1949, memorando n.º 147, do consulado
australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 15 de Novembro
de 1947.
No que respeita à aproximação entretanto verificada entre Portugal e Austrália,
merece referência a visita que, em Junho de 1947, o mesmo governador fez àquele
País, como hóspede do Governo.
Para as discussões informais que haveriam de acontecer com o governador
português, e só a esse nível, o Comité de Defesa da Austrália havia elaborado uma
série de tópicos, donde sobressaem os seguintes:
– Timor português era da maior importância para a Austrália, tendo em vista a
possibilidade de se vir ali a estabelecer um potencial agressor, dada a situação
ainda existente no Pacífico, que ameaçaria directamente a defesa do País,
sobretudo se ali fossem construídas bases navais e aéreas;
30
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838, C550114, SC377/3/5 part 2, 1946-1949.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
Por seu turno, quando foi ocupar o seu posto, o governador Óscar Ruas levara
instruções para intensificar as relações entre Timor e o poderoso vizinho do Sul, em
detrimento do intercâmbio que até à guerra existira, a Norte, com as possessões
holandesas. No que respeita às pesquisas petrolíferas, por exemplo, dava-se
preferência ao grupo australiano, pondo de parte as companhias neerlandesas. Mas a
falta de carreiras de navegação e de correntes comerciais levaram a que tudo
continuasse quase como dantes.
Para esta visita, as instruções, dadas ao governador por telegrama, deviam
orientar-se no seguinte sentido:
“Não convém dar-lhes facilidades [de] qualquer ordem tendentes a criar interesses permanentes nessa Colónia, devido [às] pretensões políticas apresentadas
por eles. Portanto concessões agrícolas mineiras e outras [d] este género, e ainda
colaboração política e militar deverão ser dificultadas, embora sem que isso
tenha ar de política premeditada. Deve pois dizer-lhes que [os] assuntos de tal
natureza são tratados aqui. Em compensação pode prometer-lhes toda a espécie
[de] facilidades [em] negócios ocasionais, [por] exemplo [de] importações e
exportações, e tudo que lhe interesse de momento, como fornecimentos para
[a] obra [de] reconstrução. [...]. Recomendo [o] maior cuidado em não tomar
31
Idem, ibid., “Australian Defence Interests”, A1838, C271581, SC377/3/31, 1947-1951, documento
produzido pelo Comité de Defesa Australiano – Discussões Informais com o Governador de Timor
Português; e idem, ibid., “Visits to Australia by Governor”, C 550105, SC 377/4/1 part 1, 1946-1956,
documento, secreto, do Department of Defence, Department of Air, Department of Civil Aviation e Post Master General’s
Department para o Department of External Affairs, Melbourne, 21 de Maio de 1947.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
135
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
– havia que conseguir facilidades nesses domínios para a Austrália;
– o desenvolvimento de eficientes serviços de transportes civis, marítimos e
aéreos, para fins comerciais, podia ser uma vantagem do ponto de vista da
defesa;
– a exploração de petróleo por australianos poderia representar uma importante
fonte de recursos energéticos próxima, com vantagem sobre os distantes
abastecimentos longínquos de que o País necessitava;
– era aconselhável promover visitas ocasionais de boa vontade a Timor português
para conseguir tais intentos;
– devia ficar de fora de discussão a matéria respeitante a “intelligence”, embora
Timor português estivesse dentro da área operacional da Estação Naval
Australiana e da área coberta pelo Joint Intelligence Committee australiano31.
compromissos, mas não deixando sequer transparecer que tem instruções
[para] criar dificuldades [do] género [das] atrás apontadas. Aparentemente deve
dar-lhes impressão de [existir a] melhor boa vontade sua e nossa.”32
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
136
Porém, com esta iniciativa, o governador teve oportunidade de trocar pontos de
vista com as principais autoridades australianas sobre intercâmbio comercial, postal,
aéreo, navegação, etc. A visita foi depois retribuída por uma delegação composta de um
ministro do Governo, acompanhado pelo governador dos Territórios do Norte, um
senador e alguns altos funcionários33. Enquanto não se tornava possível concretizar
algo mais, o governador tentava obter divisas para comprar gasolina e outros produtos
na Austrália, procurando efectuar exportações (copra, coco, etc.) para a área do dólar,
tendo sido abertos créditos para ela a favor do consulado português em Nova York34.
Por sua vez, a Gazette de Lausanne et Journal Suisse (n.º 124-Jeudi 27 Mai 1948, p. 1),
num artigo sob o título “Timor portugais, îlot latin au coeur de l’Indonésie”,
assinado pelo seu enviado especial à Indonésia, Alain de Prelle, fazia uma apreciação
bem diferente desta visita e, sobretudo, do seu alcance político:
“[...]. Fort au courant des convoitises grandissantes de l’Australie sur ce territoire
startégique, le gouvernment de Lisbonne eut l’habileté de faire solennelment
reconaitre par Américans et Britanniques ses droits sur Timor, au moment où
avaient lieu aux Açores de bases navales et aériennes alliées. [...].
Bien au contraire, l’Australie, qui se montrait si violemment hostile aux
Hollandais en Indonésie, manifestait brusquement les plus grandes sympathies
pour la petite colonie du Portugal. [...].Les Hollandais parlérent d’un pacte
secret inféodant la colonie portugaise au grand continent voisin. A l’appui de
cette affirmation, ils pointérent vers le fait que Timor, qui ne possédait qu’un
aérodrome avant la guerre, n’en compte pas moins de six aujourd’hui, dont un
sera bientôt capable de recevoir les avions transocéaniques ‘Constellation’. Le
voyage vraiment triomphal que vient d’accomplir en Australie le governeur
portugais de Timor est lui aussi sujet à de nombreuses spéculations”35 .
32
IANTT, AOS/CO/UL-10A, pt. 20 “Visita do Governador de Timor à Austrália”, doc. n.º 2, telegrama do
ministro das Colónias para o governador de Timor, Lisboa, 7 de Maio de 1947.
33
Cf. AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. II, prat. 7, maço n.º 180, “Relatório do Governo da Colónia de Timor
– 1946/1947”, governador Óscar Freire de Vasconcelos Ruas, pp. 185-186.
34
Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, “Relações entre Timor e a Austrália”,
Informação da Repartição das Questões Económicas, Lisboa, 29 de Março de 1950.
35
IANTT, AOS/CO/UL-10A, pt. 21 “Notícias sobre Timor”, Anexo ao ofício da ANI – Agência de Notícias e de
Informação, Lisboa, 31 de Maio de 1948.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
Quadro 2
Importações da Austrália
1948
Produtos
Açúcar branco
Farinha de 1.º grau
Leite condensado
Leite em pó
Manteiga
Presunto
Queijo
Quantidade
10 toneladas
25 toneladas
3000 libras
1000 libras
1000 libras
500 libras
600 libras
Fonte: Idem, ibid., memorando n.º 170, do consulado australiano em Timor
para o Department of External Affairs, Díli, 8 de Dezembro de 1948.
Nessa altura, o Governo australiano procedia a uma primeira avaliação do que
tinha custado a sua política em relação a Timor, na implantação do consulado, e em
apoios vários para captar a amizade e a simpatia dos principais responsáveis
portugueses em Timor: cerca de 150.000 libras. Como o interesse estratégico se
mantinha, embora a tentativa de um serviço de navegação regular, e a exportação de
36
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838, C550114, SC377/3/5 part 2,
1946-1949, memorando do Department of External Affairs para o Department of Trade & Customs, Camberra, 30 de
Dezembro de 1947.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
137
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Após a visita do governador português de Timor, ficou acordado que o Director
de Navegação tentaria conseguir um serviço marítimo trimestral entre Darwin e Díli,
e que o Departamento de Comércio e Agricultura, e Abastecimento e Navegação iria
apoiar o governador, com a exportação de materiais essenciais para a reabilitação de
Timor. Como a balança comercial era favorável à Austrália, pretendia-se estabelecer
um certo equilíbrio com a importação de café da colónia portuguesa36. Mas tornou-se impossível manter um serviço que não tinha retorno suficiente para ser
rentável.
De facto, nos finais de 1948, as importações da Austrália eram as que haviam
sido estabelecidas em 1946, por quotas mensais entre a SAPT (Sociedade Agrícola
Pátria e Trabalho), a maior empresa de Timor, e a Dodson Trading C.o, australiana, com
interesses no território, para as quais era preciso obter as necessárias licenças
(Quadro 2):
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
138
produtos timorenses e a exploração de petróleo não estivessem a resultar, era
recomendado ao primeiro-ministro que fossem feitos esforços para conceder os
apoios e os benefícios, de forma equilibrada; manter a carreira de navegação
trimestral e um serviço aéreo quinzenal com Timor; e iniciar conversações com
Lisboa para um acordo, englobando a navegação, as comunicações, a defesa e um
limitado leque comercial37.
Efectivamente, em 1950, o cônsul de Portugal em Sidney dava conhecimento ao
Governo central do desapontamento do executivo australiano, que tinha instalado
um consulado em Díli com o intuito de desenvolver relações comerciais mais
intensas com Timor, investindo capitais e participando na reconstrução; bem como
promover a discussão da segurança do território, estrategicamente muito importante
para a Austrália, a tal ponto que não permitiria que a Indonésia ocupasse Timor
Oriental. A não haver modificações notórias, aquele País ponderava retirar o
consulado, por não estar a cumprir a finalidade para que fora criado38. Mas, na
verdade, o consulado servia essencialmente para enviar informações detalhadas e
permanentes acerca de Timor para o seu Governo e seria mantido enquanto fosse
politicamente sustentável ali permanecer.
Entretanto, uma pretensão australiana de celebrar um tratado, por dez anos, com
vista à aquisição do café, e de organizar plantações do mesmo produto, em Timor,
não foi atendida, por se considerar que, no primeiro caso, era um período demasiado
longo; e, no segundo, porque já não havia terras disponíveis apropriadas para tal.
Deste modo, evitava-se a influência local de um vizinho forte, que se poderia tornar
incómodo39.
No ano seguinte, o então governador da província, César Maria de Serpa Rosa
(1950-1958), foi convidado a visitar a Austrália. O interesse das autoridades daquele
País centrava-se em efectuar “discussões informais de mútuo interesse dos dois
37
Idem, ibid., “Austalian Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C140065, SC377/3/1 part 1, 1945-1950,
documento do Department of External Affairs para o MNE, s/d.
38
Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, “Relações entre Timor e a Austrália”,
Entrega [de] Aide-Memoire sobre Proposta [de] Cooperação Australiana, telegrama n.º 2, do Consulado
de Portugal em Sidney, de 11 de Março de 1950; e NAA, Portuguese Timor, “Australian Representation –
General”, A1838, C453504, SC377/1/2 part 1, 1945-1950, documento do Foreign Affairs – Pacific Division
para o ministro, Camberra, 4 de Agosto de 1950.
39
Idem, ibid., 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34,27, “Relações entre Timor e a Austrália”, Parecer da
Repartição das Questões Económicas, Lisboa, 7 de Fevereiro de 1950.
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40
AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. I, prat. 1, maço n.º 15, telegrama n.º 24, cifrado, do ministro das Colónias
para o governador de Timor, Lisboa, 2 de Abril de 1951.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
139
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Países, com troca de visitas sobre matérias de interesse comum”. Mas, da parte
portuguesa, pretendia-se apenas que a visita tivesse “fundamentalmente natureza de
cortezia e boa vizinhança mas sem excluir o aspecto de informação recíproca sobre
problemas de interesse comum sem negociações nem compromissos.”40 Na verdade,
a estratégia do Governo central português consistia em deixar pendentes as grandes
questões entre os dois Países para futuras negociações ao mais alto nível. Por isso, a
visita do governador apenas permitiu um reforço da amizade e um melhor
conhecimento das partes.
Nesta altura, o Governo português não atribuía significado político importante
ao consulado da Austrália em Díli, não considerava de grande relevância as relações
comerciais existentes e os investimentos que particulares australianos desejavam
fazer em Timor, e não queria alterar os compromissos de defesa, assumidos na nota
britânica de 4 de Setembro de 1943 e no memorando português de 12 de Setembro
de 1945. Receava-se um aumento da influência australiana em Timor e, por isso,
preferia-se a manutenção do statu quo, puro e simples, na expectativa do que se
passava na Indonésia e à sua volta. Em contrapartida, o executivo australiano parecia
ter pressa em definir melhor os contornos de interesses e de vizinhança.
De novo, a correspondência do consulado português em Sidney permite que
acompanhemos o modo como o Governo central ia sendo informado e alertado para
que se dessem passos em determinadas direcções de modo a assegurar o essencial.
Com efeito, no seu relatório respeitante ao ano de 1951, este diplomata
lembrava que, atendendo ao valor político e estratégico de Timor e à cobiça de que
era objecto, a posição portuguesa em Timor poderia reforçar-se, se Portugal, apesar
do País não fazer parte de nenhum dos Pactos então existentes na região, entrasse
“num elo da cadeia de alianças do Pacífico”, de preferência numa organização
técnica, como era, por exemplo, a South Pacific Comission. Tal participação não teria
inconvenientes políticos e inseria-se plenamente nas orientações coloniais
predominantes: desenvolvimento dos povos, e melhoria do seu bem-estar e
explorações dos recursos existentes. Por outro lado, o relacionamento com a Austrália
dependeria da política que Portugal desenvolvesse com aquele País, e da posição que
conseguisse manter perante os Estados Unidos e a Inglaterra. No fundo, era
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
140
compreensível que, no mínimo, o Governo australiano tentasse obter ligações que
lhe possibilitassem uma mais eficaz defesa e protecção das zonas costeiras, usufruindo
de bons aeródromos e de um porto acostável, bem como de uma maior presença
comercial. De resto, estar ali a coberto da soberania portuguesa evitaria também
reivindicações e protestos indonésios. No imediato, impunha-se desenvolver as
relações diplomáticas com a Indonésia e estabelecê-las com a Austrália, colocando,
nomeadamente, um ministro em Jacarta e abrindo uma legação portuguesa em
Sidney, de modo a lançar os alicerces funcionais de uma tal política41.
O relatório do cônsul não se detinha por aqui. Continha ainda uma profunda
reflexão acerca dos principais desafios que, do ponto de vista internacional e
regional, se colocavam então à presença portuguesa em Timor. Por um lado, o
território situava-se numa zona mal definida da influência das duas superpotências
– URSS e EUA; por outro lado, a comparação do seu grau de desenvolvimento com
o da Indonésia e da Austrália, embora saídas de colonialismos diferentes, tornava-se
inevitável, sendo desfavorável, em qualquer caso, a Portugal. Deste modo, a
capacidade do País estava de novo à prova, tanto mais que se tratava de uma
colonização marcadamente administrativa, carecendo, por isso, de investir muito na
vertente civilizadora. Impunham-se então o ensino profissional e algumas realizações
materiais, de modo a elevar o nível e a preparação do indígena, aumentando-lhe o
bem-estar42.
Na verdade, a posição melindrosa da presença colonial portuguesa em metade
de uma pequena ilha tão distante da Metrópole, com reduzida força militar e que só
a grande distância e com limitados meios podia ser socorrida desde Macau, quando
à sua volta fervilhava o nacionalismo e se acentuava uma disputa estratégica, tornada
mais clara com os pactos e os acordos entretanto celebrados, causava natural
apreensão, que levava alguns responsáveis mais atentos a apresentar propostas.
Em Abril de 1952, na continuação das que haviam sido feitas nos três anos imediatamente anteriores, o Governo australiano procedia a uma reapreciação política,
relativamente a Timor português. Nela se concluía que, até 1953, a situação permaneceria
inalterável; mas que, em 1957, era provável que o território pudesse já estar incorporado
na República da Indonésia. Na pior hipótese, isso podia significar que toda a ilha de
41
Cf. AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. I, prat. 1, maço n.º 15, do consulado de Portugal em Sidney,
pp. 19-30.
42
Idem, ibid., est. I, prat. 1, maço n.º 15, do Consulado de Portugal em Sidney, pp. 31-43.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
43
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Top Secret Documents”, A1838, C841420, SCTS 383/7/1, 1957-1962, Political
Appreciation, J. I. C. Appreciation n.º 6/1949, revised october 1950, revised August 1951, revised April
1952, top secret, Anexo “J” ao Apêndice “A”.
44
Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954-1966, memorando n.º 47/1/8, do
Department of External Affairs para o Department of Defence, Camberra, 11 de Janeiro de 1954.
45
Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954-1966, relatório n. º 24, secreto, do
Joint Planning Committee, Melbourne, 27 de Abril de 1954.
46
Idem, ibid., “Economic Relations with Australia”, A1838, C564693, SC756/1 part 2, 1954, memorando
n.º 151/54, restrito, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 24
de Maio de 1954.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
141
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Timor estivesse sob influência comunista43. Entre 1953 e 1954, o lugar de cônsul
em Díli esteve vago, o que parecia reflectir um tempo de reapreciação do interesse
por Timor após os tratados entretanto celebrados, a que acima nos referimos.
Em 1954, o executivo australiano fazia uma apreciação actualizada do significado
estratégico de Timor português, no seguinte contexto: evolução política na Indonésia,
tendo em consideração principalmente a fronteira comum na ilha de Timor; e as
possíveis consequências políticas e estratégicas da descoberta e exploração de petróleo
no Noroeste da Austrália, e de urânio e de outros minerais naquela região e também
no Norte do País. Interessava ainda rever as conclusões tomadas pelo Comité de Defesa
à luz dos desenvolvimentos gerais internacionais nos últimos seis anos44.
Por sua vez, o Joint Planning Committee concluía que: enquanto a Malaia estivesse
com os Aliados, Timor português era de pequena importância estratégica, quer para
estes quer para os comunistas, embora pudesse revestir-se de valor para a RAAF (Royal
Australian Air Force - Força Aérea Australiana), como um ponto de escala na linha para
Singapura; se a Malaia caísse em mãos comunistas, Timor podia ser de uma grande
importância estratégica para prevenir a defesa à distância do Norte da Austrália, até
porque a sua utilização podia ser impedida por essas forças; havia, por isso, que
manter com Timor português relações favoráveis, desenvolvendo as facilidades
existentes, de modo a poder tirar vantagens disso45.
Terá acuidade fazer aqui referência a uma alusão do consulado australiano em
Timor, ao facto de o embaixador americano em Jacarta, E. R. Johnson, ter ficado
surpreendido com o facto de, em 1954, não haver uma ligação civil, marítima ou
aérea, entre a Austrália e Timor português, por pensar que os interesses da Austrália
passavam por ter um barco a escalar Díli, mesmo que não compensasse
comercialmente46. Parece perceber-se a preocupação com o que se passava a Norte,
na Indochina, e com eventuais repercussões no Pacífico Sul.
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
142
Em 1956, da parte portuguesa, sob proposta da Missão Geográfica de Timor, as
autoridades desejavam iniciar com as suas congéneres australianas discussões técnicas
com vista a elaborar um estudo geodésico comum. Mas não chegou a efectuar-se, ao
que parece, por delongas da parte australiana47.
No ano seguinte, após alguns contactos estabelecidos em Díli entre o
subsecretário da Administração Ultramarina português, Joaquim da Silva Cunha,
futuro ministro do Ultramar, e o cônsul australiano, Francis Whittaker, relativamente
à emigração de portugueses para a Austrália, foi comunicado ao representante
português que os seus concidadãos não estavam incluídos no programa de imigração
australiano, estendendo a sua preferência pelos britânicos. Ficava apenas a promessa
de se vir a ter em consideração a pretensão portuguesa, no caso de haver uma
mudança favorável nas circunstâncias em que se processava a selecção de
elementos48.
Por contraste, em 1958, a visita a Fátima de Norman Thomas Gilroy, cardeal
arcebispo de Sidney, à frente de uma peregrinação nacional de católicos australianos,
constituía um momento também de reconhecimento a Salazar e à sua “maneira
magnífica como [...] tem conduzido o País através de tempos agitados”49, como era
referido pelo representante daquele prelado após este ter sido recebido pelo
Presidente do Conselho de Ministros de Portugal. Esta postura não deixava de ser
também um reflexo de uma imagem e de uma maneira de estar, com as quais a
sociedade australiana conseguiu conviver durante décadas.
Entre o final da guerra o ocaso da década de 1950, em termos gerais, a Austrália
orientou a política de defesa nacional de modo a poder garantir a sua segurança de
forma alargada, com pactos e acordos predominantemente regionais. Mas, a partir
de 1957, o principal objectivo era já a “continental defence”, embora mantendo o
nível de poder militar adequado ao envolvimento externo com eventuais adversários
e de forma a respeitar os compromissos com os seus aliados.
47
Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246, SC3038/10/1
part 1, 1943-1961, documento n.º 313, do Departmet of National Development para o Department of External Affairs,
Camberra, 10 de Agosto de 1956.
48
Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246, SC3038/10/1
part 1, 1943-1961, documento dirigido ao cônsul australiano em Timor, “Migration from Portugal to
Australia”, Camberra, 14 de Agosto de 1957.
49
Cf. IANTT, AOS/CO/PC-ID, pt. 33 “Pedido de audiência para Norman Thomas Gilroy, Cardeal Arcebispo de
Sydney, Austrália (1958)”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
australiana mudou, sobretudo em face da dinâmica que conheceu a descolonização
na África e na própria Ásia, com reflexos na ONU, em cuja Assembleia Geral os novos
Países passaram a ter uma maioria:
“[...]. The decolonization process has affected Australia in two principal ways. In
the first place, the process has had a market effect on international politics at large.
[...]. Australia has faced an additional difficulty in that her regional company
mainly comprises former dependencies, one of the more politically lively of them
her immediate neighbour. This has made difficult the implementation of the
obviously necessary policy of friendly relations with Asia, of rapport between a
white, dependency-administering state and still sensitively nationalistic and at
times aggressively anti-colonial states.
In the second place, the decolonization process has touched territories which
Australia administers, which are adjacent to (indeed, virtually contiguous with) her
metropolitan territory and which have been higly valued by her in security terms.
Australia may have been slow to see herself as a colonial power: [...]. Until recently,
however, there has been little uncertaintly or inconsistency about the Australian view
of the importance of holding control of Papua and New Guinea – the former, and
closer, a colony or, in United Nations Charter terms, a non-self-governing territory
under Australian sovereignty; the other a mandate and now a trust territory.”50
Os contactos da Austrália com Portugal sempre tinham ocorrido nas Nações
Unidas e através do consulado australiano em Timor, raramente pelos consulados
portugueses existentes em algumas cidades australianas. Em 1960, Portugal e a
Austrália acordaram em estabelecer relações diplomáticas directas, ficando a
embaixada portuguesa em Camberra a cargo de um encarregado de negócios, não se
prevendo quando a Austrália enviaria para Lisboa um representante seu.
Agora eram os governantes de Portugal que se apressavam a tentar negociar com
os da Austrália em áreas nas quais nunca haviam aceitado aprofundar a cooperação.
Em Março de 1961, diligenciaram para estabelecer um acordo de defesa, de
modo a constituir-se uma frente comum contra uma eventual usurpação indonésia,
e incluindo a preparação de oficiais e facilidades de treino51.
50
51
W. J. Hudson, Australia and the Colonial Question at the United Nations, Sydney, Sydney University Press, 1970, pp. 3-4.
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246,
SC3038/10/1 part 1, 1943-1961, telegrama n.º 8, confidencial, do consulado australiano em Timor para
o Department of External Affairs, Díli, 19 de Março de 1961.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
143
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Desde o início da década de 1960 à invasão indonésia A partir de 1960, a política externa
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
144
Ao longo deste ano, do lado australiano, várias diligências foram também sendo
feitas de modo a reexaminar a importância militar de Timor português para o seu
País, com particular interesse pelas implicações militares que podia ter a queda do
território sob controle indonésio. Chegou-se à conclusão que a integração de Timor
português na Indonésia não acrescentaria muito à sua capacidade militar, e que isso
podia não representar um perigo efectivo para a Austrália, uma vez que esta dispunha
de várias bases que podia utilizar contra esta posição avançada que, por sua vez,
talvez não compensassse manter, tendo em vista a relação valor/preço52.
Em Janeiro de 1962, o encarregado de negócios português, sob instruções do
seu Governo, solicitou uma definição da Austrália no caso de uma agressão indonésia
contra Timor português. O Departament of External Affairs sugeriu ao seu ministério que
a resposta fosse oral e confidencial, assentando nas seguintes linhas: o Governo
australiano levaria muito a sério uma agressão da Indonésia; nesta hipotética situação,
as etapas a seguir seriam vistas à luz de todas as circunstâncias relevantes quanto tal
acontecesse, pelo que seria de esperar que o Governo apoiasse propostas nas Nações
Unidas de um cessar-fogo para a saída das forças indonésias; e não fornecesse apoio
militar ou logístico, excepto em cumprimento de uma resolução das Nações Unidas
ou em associação com o Reino Unido e os Estados Unidos da América53. Assim,
ficavam bem delimitados os moldes de uma eventual intervenção australiana ante
uma hipotético avanço indonésio sobre Timor português. Por isso, Portugal não podia
contar com um apoio directo no caso de a sua soberania ali ser posta em causa.
Nos finais do ano, o cônsul australiano em Timor, James Stanley Dunn, queixava-se ao seu Governo das perseguições de que era alvo por parte da PIDE, ele e o
consulado, enquanto garantia que não tinha contacto com nenhum movimento
separatista e as amizades que mantinha com alguns oficiais portugueses desafectos
ao regime não tinham propósitos conspirativos, assim como não encorajava
sobretudo militares portugueses a emigrar para a Austrália. Era acusado de tudo isto
mas reclamava inocência, solicitando instruções para agir54.
52
Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954-1966, doc. n.º 3038/10/1, do
Department of External Affairs para o Department of Defence, Camberra, 21 de Julho de 1961; e documento do Joint
Planning Intelligence Committee, muito secreto, Melbourne, Setembro de 1961.
53
Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584248, SC3038/10/1
part 2, 1962-1963, documento do Department of External Affairs para o ministro, Camberra, 16 de Janeiro de 1962.
54
Idem, ibid., “Austalian Representation”,A1838, C 1505957, SC3038/10/6 part 1, 1951-1971, telegrama n.º 73,
secreto, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 19 de Dezembro de 1962.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
55
Cf. Moisés Silva Fernandes, “Timor nas relações luso-australianas: as diligências de Menzies junto de Salazar
para conceder autogoverno a Timor, 1961-1964”, Oriente, Lisboa, Fundação Oriente, n.º 5, Abril, 2003,
pp. 16-17.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
145
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Este cônsul merecia muita desconfiança às autoridades cimeiras em Timor e,
principalmente à PIDE, que o considerava senão apologista do comunismo, pelo
menos simpatizante deste regime ou admirador da cultura russa, o que, na altura,
era quase a mesma coisa. De facto, ele tinha servido na URSS e exibia conhecimentos
de língua russa, manifestando admiração por alguns valores desses povos. Também
não escondia a sua antipatia pelo regime vigente em Portugal. Por outro lado, ao
conviver com alguns militares não afectos à situação, dentre os quais o major Pastor
Fernandes, comandante militar, enquanto fazia a apologia do modo de vida
australiano, prestava-se a ser objecto de observação e denúncia. Mas terminou a sua
comissão de serviço em 1964, tendo ali acompanhado um período melindroso. Mais
tarde, durante o domínio indonésio, este diplomata viria a ser um defensor militante
da causa timorense.
A inflexão da Austrália em relação à política colonial portuguesa foi notada pelos
membros da ONU, tendo mesmo passado a integrar a “Comissão dos 24” desse
organismo, encarregada da verificação da administração dos territórios não
autodeterminados. Mas, no que lhe tocava directamente, estava ainda muito reticente
em relação ao futuro da Papua-Nova Guiné Oriental, sob a sua administração. É
também nesse contexto que deve ser apreciada a correspondência trocada entre
Robert Menzies e Oliveira Salazar, nos primeiros anos da década de 1960.
Com efeito, entre 1961 e 1964, verificou-se uma troca de correspondência
entre os “arquiconservadores”, primeiro-ministro da Austrália, Robert Gordon
Menzies, e o Presidente do Conselho de Ministros português, António de Oliveira
Salazar. Dela resultou, basicamente, a rejeição de uma proposta moderada de
concessão de um autogoverno a Timor, feita por Menzies a Salazar.
Vários factores terão contribuído para que o primeiro-ministro australiano
tentasse persuadir Salazar a inflectir a sua obstinada política colonial: o impacto dos
acontecimentos dos primeiros meses de 1961 em Angola sobre a opinião pública
australiana; a tomada de posição dos meios de comunicação social e do Partido
Trabalhista na oposição; e as influências internacionais exercidas sobretudo pela
ONU e pelos EUA para que os Países coloniais efectuassem descolonizações
negociadas55.
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
146
Na primeira carta, de 18 de Outubro de 1961, o chefe do Governo australiano,
embora não abordando directamente a questão de Timor, exortava Salazar a tomar
uma atitude mais conciliadora em relação à situação em Angola; ao capítulo XI da
Carta da ONU e da resolução de descolonização 1542 (XV) relativamente às colónias
portuguesas, que Portugal se recusava a cumprir; e à complexa situação dos
refugiados angolanos no Congo. Apesar de partilhar o princípio de que a Assembleia
Geral da ONU não devia pronunciar-se sobre os domínios portugueses e reiterasse a
posição australiana de distanciamento em relação ao “Terceiro Mundo”, aconselhava
Salazar a transigir, como o haviam feito as outras potências ocidentais, fornecendo à
ONU informações sobre os territórios ultramarinos portugueses. A resposta de
Salazar ocorreu a 28 de Outubro. O chefe do Governo português não só não cedeu
em nenhuma das questões colocadas por Menzies, como lamentou a alteração de
posição da Austrália para com o seu regime, ao mesmo tempo que tentou justificar
a política colonial seguida, como um caso especial, semelhante a um Estado federado,
propondo ao seu homólogo australiano que enviasse uma delegação do seu País a
Angola, Moçambique ou outra colónia portuguesa para in loco apreciar a situação56.
Efectivamente, a posição oficial da Austrália tinha mudado, pois, ao longo dos
anos 1943 e seguinte, e no imediato pós-guerra, vários documentos atestam a
intenção de libertar Timor das forças japonesas e de ali ajudar a restaurar e manter a
soberania portuguesa57. Ao longo da década de 1950, como temos vindo a referir,
essa posição não se alterara significativamente.
Numa segunda missiva, em 8 de Fevereiro de 1963, em virtude de não lhe ter
agradado a resposta de Salazar, preocupado com a evolução política na Nova Guiné
Ocidental, e com as ambições expansionistas e atitudes belicistas de Sukarno,
relativamente aos Países da região, Menzies propunha já a Salazar uma autodeterminação
para Timor. Reconhecendo embora a diferença de perspectivas, esperava, no entanto,
que viessem a verificar-se aproximações conjuntas; e recordava também a Salazar que
a Austrália era membro da “Comissão dos 24” da ONU, sendo provável que, na
56
Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 13, carta do primeiro-ministro australiano, R.
G. Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 18 de Outubro de 1961; e doc. n.º 16, carta de Oliveira Salazar
para o primeiro-ministro australiano, R. G. Menzies , Lisboa, 28 de Outubro de 1961. Veja-se também:
Moisés Silva Fernandes, art. cit., p. 17.
57
Veja-se: IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, docs. n.ºs 35 e 36, da embaixada britânica em
Lisboa, de 14 de Setembro de 1943 e de 28 de Novembro de 1944, respectivamente; e n.º 39, telegrama
enviado da embaixada de Portugal em Londres, de 28 de Novembro de 1944.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
58
Cf. Idem, ibid., pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 40, carta do primeiro-ministro australiano, R. G.
Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 8 de Fevereiro de 1963. Veja-se também: Moisés Silva Fernandes,
art. cit., pp. 17-18.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
147
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
sessão que se aproximava, não apenas as questões relativas às colónias africanas, mas
também o futuro de Timor português, viessem a ser levantados. Ora, o seu País, em
virtude da proximidade geográfica com Timor, e da fronteira terrestre comum entre
Portugal e a Indonésia, via-se compelido a pronunciar-se, prevenindo, assim, Salazar
de que Timor podia tornar-se para Portugal num sério problema político regional e
internacional, a manter-se o estatuto do território sem que as suas populações se
pronunciassem sobre o seu destino, de acordo com as regras internacionais58.
Algumas apreensões de Menzies eram partilhadas por Salazar, que não confiava
muito na posição oficial da Indonésia, e assistia com receio à contestação da política
colonial portuguesa em Jacarta, e às tentativas de infiltração na fronteira oeste de
Timor e no enclave de Oé-Cússi, tendo reforçado o contingente militar no território
desde os princípios da década de 1960. No entanto, a posição de princípio tinha de
se aplicar a todas as possessões portugueses, da qual o próprio Governo se encontrava
prisioneiro, não podendo agir diferentemente em qualquer delas.
A resposta do chefe do Governo português seguiu para a Austrália em 27 de
Fevereiro de 1963. Nela rejeitava o princípio de autodeterminação sugerido,
contestando a sua concessão “a esmo”, por, segundo dizia, não assegurar a liberdade
dos homens; adiantava que a Constituição portuguesa tinha sido plebiscitada, e que
o chefe de Estado e os deputados eram eleitos por todos os Portugueses,
designadamente os das províncias ultramarinas; que o Ocidente se estava a deixar
influenciar pelos blocos comunista e afro-asiático, e que lamentava a colaboração da
Austrália neste domínio; e relativamente à ameaça de paz em Timor, argumentou que
a Austrália não devia preocupar-se com a ordem interna nem com um ataque à
soberania, mas com a maneira como essa soberania se observaria, uma vez que
Timor não podia ser um Estado independente e que nesta matéria só havia duas
hipóteses: continuar a fazer parte de Portugal como província autónoma, que já era,
ou ser anexado pela Indonésia. Ora, como não previa qualquer “domínio ou
condomínio australiano”, por melhores relações que pudessem existir entre a
Austrália e a Indonésia, parecia-lhe mais seguro e mais atento aos interesses
australianos um Timor português do que integrado naquela República. Salazar
invocava ainda o comportamento australiano durante a Segunda Guerra Mundial em
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
148
Timor e as declarações de aceitação dos dirigentes indonésios em relação ao estatuto
da colónia, e salientou as relações de amizade entre os cônsules australiano e
indonésio em Díli, aproveitando o ensejo para solicitar informações acerca das
actividades do cônsul australiano James Stanley Dunn59.
Para Salazar, a questão que se colocava era a seguinte: se a o domínio da Austrália
era impossível, se a independência de Timor se revelava inviável e se a soberania
portuguesa parecia ser a única segura para a Austrália, o que pensavam os seus
dirigentes ou podia fazer o seu Governo para manter o statu quo? Para tal, devia
abandonar a ideia de que o povo estava apto a escolher quanto a relações
internacionais e a definir o seu estatuto interno, e de que isso seria a situação mais
favorável à Austrália. Apontava depois o caso de Goa como exemplo a evitar, a cujas
populações também havia sido prometida a autodeterminação60.
Por seu lado, em telegrama de 5 de Maio de 1963, com base num recorte do
jornal australiano “The North Territory News”, de Darwin, que dava grande relevo a
um apelo do Republican Party (Partido Republicano) para que a própria Austrália fizesse
a libertação de Timor, o governador de Timor avançava a seguinte interpretação: “a
Austrália está desenvolvendo mais abertamente uma política de incitamento da
Indonésia para um ataque contra nós para melhor se perceber quais são os verdadeiros
propósitos da Indonésia no futuro próximo”, o que considerava mau para a Austrália,
revelando “medo e insegurança” na sua política externa e “manifesta desorientação”
perante a opinião pública61.
Entre a última carta de Salazar e a resposta de Menzies, em 23 de Maio de 1963,
a que a seguir nos reportamos, o Parlamento australiano aprovou a proposta de lei
do Governo Menzies, que instituiu a House of Assembley (Assembleia Legislativa) para a
Papua-Nova Guiné Oriental. Na sua constituição, procurava-se cooptar um elevado
número de elementos crioulos do território, evitando o aparecimento de um
movimento nacionalista. Mas a natureza conservadora do projecto mereceu críticas
59
Cf. Moisés Silva Fernandes, ibid., pp. 18-19.
Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 42, carta de Oliveira Salazar para o primeiro-ministro australiano, R. G. Menzies, Lisboa, 27 de Fevereiro de 1963. Veja-se também: Moisés Silva
Fernandes, ibid., p. 19.
61
Cf. IANTT, AOS/CO/UL-8I, pt. 5 (cont.), “ Governo de Timor”, telegrama do governador de Timor para o
Ministério do Ultramar, Díli, 6 de Maio de 1963. Veja-se também: Idem, AOS/CO/PC-78I, pt. 3 “Mensagens
sobre a situação política em Timor (1961-1963)”, mensagem n.º 47, secreto, do governador de Timor
para DEFNAC, Díli, 7 de Maio de 1963.
60
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
62
63
Cf. Moisés Silva Fernandes, art. cit., p. 19.
Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 56, carta do primeiro-ministro australiano, R.G.
Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 15 de Outubro de 1963. Veja-se também: Moisés Silva Fernandes,
ibid., p. 20.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
149
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
do Labour Party (Partido Trabalhista), que defendia mais autonomia para o território,
receando os ataques dos Países do bloco afro-asiático à Austrália62.
Em 15 de Outubro de 1963, Menzies respondeu a Salazar, referindo que a
questão do domínio ou condomínio australiano sobre Timor não se colocava,
clarificando assim um ponto que Salazar tinha sub-repticiamente deixado; quanto à
acusação de falta de solidariedade da Austrália com o mundo ocidental, Menzies
assegurou que o seu País de modo algum colaboraria com forças que estivessem
interessadas na desintegração desse espaço, estando consciente da herança europeia
e que desejava que a Europa pudesse manter os seus interesses. Lembrou a Salazar
que, apesar da Austrália fazer parte da “Comissão dos 24”, nada podia fazer para
manter o statu quo, numa conjuntura internacional claramente adversa. Por fim,
atendendo a que a Rádio Indonésia e um jornal de Hong Kong tinham divulgado a
informação de que o “movimento de libertação de Timor”, a URT (União da
República de Timor), havia solicitado o reconhecimento e o apoio do Governo de
Sukarno, Menzies exortou Salazar a procurar envolver a ONU em Timor. Em resumo,
o chefe do Governo australiano estava apreensivo com as repercussões regionais e
internacionais dos diferentes interesses em presença no território vizinho de
Timor63.
Em 5 de Março de 1964, nova missiva de Salazar tentava rebater os argumentos
de Menzies, retomando as questões: a Carta da ONU e a indevida interferência desta
organização na vida dos povos; a política colonial portuguesa não contrariava aquela
Carta e as normas que regiam a comunidade internacional; o controle dos blocos
comunista e afro-asiático sobre a ONU e o receio do Ocidente em os enfrentar; a
conivência dos Países ocidentais no caso de Goa; o reiterar de que Timor Oriental
não era viável como País independente, de que a Indonésia não aceitaria tal estatuto
e de que de a única alternativa era manter ali o statu quo; uma eventual tutela ou
protecção da ONU de Timor era “ingénua”; o envolvimento da ONU na Nova Guiné
Ocidental não estava a garantir a autodeterminação, mas sim a anexação pela
Indonésia; lamentava a falta de apoio ocidental à política colonial portuguesa,
considerando-a de “resultados catastróficos, para o próprio Ocidente e para as
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
150
populações em cujo nome se proclamam certos princípios, e cuja defesa e progresso
se diz ter em vista”; o vaticínio de que, uma vez derrubadas as barreiras que a
antecediam numa série de recuos, a própria Austrália poderia ter que defender-se; por
último, a compreensão da dificuldade de a Austrália apoiar abertamente o seu País, mas
pouca compreensão por “certos aspectos menos amistosos da Austrália em relação a
Portugal”, como a campanha na imprensa australiana contra a política colonial
portuguesa, a alegada dificuldade em obter “pequenos serviços de apoio logístico”
para Timor e a ausência de uma missão diplomática australiana em Lisboa64.
Nesta última carta enviada a Menzies havia muitos aspectos que, em 29 de
Fevereiro de 1964, haviam sido avançados por Salazar ao ministro dos Negócios
Estrangeiros americano, George Ball, ao rejeitar a proposta do seu País para uma
solução política negociada para a questão colonial portuguesa. Vingava, assim, a opção
do regime por uma solução militar65. Essa posição já havia sido tomada em 1961, não
só em relação a África, como, coerentemente, a todos os outros domínios coloniais
portugueses.
A perspectiva de Menzies não colidia de todo com a presença portuguesa em
Timor, uma vez que toda a sua governação se tinha caracterizado por posições
conservadoras e ausência de mudanças significativas. O que propunha a Salazar parecia
apenas uma solução moderada que se reflectisse numa maior autonomia para Timor
– um autogoverno –, onde a elite local participasse mais na governação e nos destinos
do território, de modo a conter o expansionismo javanês66. De resto, apresentava uma
perspectiva semelhante àquela que, nesta altura, informava o modelo ensaiado na
Papua Nova Guiné Oriental. Mas foi ela própria evoluindo, a partir de então.
Entretanto, em princípios de Fevereiro de 1963, o Department of External Affairs
australiano enviava um documento às suas embaixadas de Washington, Londres e
Jacarta, bem como a outros departamentos de Estado, no qual realçava que Timor
português só teria viabilidade económica com uma ajuda financeira e técnica do
exterior. Ao mesmo tempo, apresentava a continuada presença portuguesa como uma
crescente estagnação económica, prejudicial sobretudo à população indígena, que
64
Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 60, carta de Oliveira Salazar para o primeiro-ministro australiano, R. G. Menzies, Lisboa, 5 de Março de 1964. Veja-se também: Moisés Silva Fernandes,
ibid., pp. 21-22.
65
Idem, ibid., p.22.
66
Idem, ibid., pp.22-23.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
67
Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor”, A109, C1160284, SC 1974/9010, 1961-1964,
ofício n.º 2296, do Department of External Affairs para várias embaixadas e departamentos de Estado, Camberra,
5 de Fevereiro de 1963.
68
Idem, ibid., “Australian Relations with and Polices towards Portuguese Timor” A1838, C584248,
SC3038/10/1 part 2, 1962-1963, documento confidencial, Camberra, 18 de Fevereiro de 1963.
69
Idem, ibid., “Australian Relations with and Polices towards Portuguese Timor” A1838, C584248,
SC3038/10/1 part 2, 1962-1963, documento secreto, Camberra, 25 de Fevereiro de 1963.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
151
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
seria propícia ao aparecimento de levantamentos. Contudo, receava-se que um
ataque indonésio provocasse uma reacção portuguesa, criando uma situação de
insurreição em toda a província, com apoios divididos. Segundo se dizia, aos
Timorenses não faltaria vontade de expulsar os Portugueses, carecendo apenas de
uma liderança, o que acabaria por acontecer, contando com a ajuda indonésia67.
Uns dias depois, num “Encontro Especial do Comité dos Negócios Estrangeiros na
Casa do Parlamento”, o ministro dos Negócios Estrangeiros australiano disse que
Timor não tinha importância estratégica para a Austrália; que não lograria futuro como
País independente; e que a melhor solução seria a sua integração na Indonésia, por
meios pacíficos e não em resultado de qualquer acção agressiva. Contudo, reconhecia
que, dada a intransigência do Governo de Salazar, seria difícil encontrar um caminho
para o conseguir, uma vez que todas as iniciativas australianas se revelavam infrutíferas,
apesar de o Governo norte-americano considerar que Portugal marcaria uma posição
importante se conduzisse os Timorenses à autodeterminação68.
Na sequência das iniciativas anteriores, foi constituído um “Grupo de Trabalho
sobre Timor Português”. As deliberações deste grupo deviam ser tomadas em alta
confidencialidade e no prazo máximo de três semanas. Como base de trabalho,
eram-lhe apresentadas três considerações de forma clara: os Portugueses nada fariam
pelos Timorenses; os EUA não apoiariam o colonialismo português; e os indonésios,
se não houvesse quem os impedisse, avançariam contra o território, sendo isso um
sério encorajamento para os elementos irresponsáveis e expansionistas na Indonésia
e constituindo, a longo prazo, uma grande ameaça para os interesses australianos.
Nessa eventualidade, um poder revolucionário e nacionalista, apoiado por armas
russas, constituiria um perigo às portas da Austrália, esperando os EUA e o Reino
Unido que este País tomasse alguma iniciativa para o impedir. Assim, este grupo de
trabalho devia explorar todas as medidas possíveis e analisar os desenvolvimentos
que podiam ser iniciados ou encorajados, de modo a evitar a afectação dos interesses
australianos69.
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
152
No entanto, o relatório do grupo de trabalho concluía que o executivo australiano,
depois da saída dos Portugueses, poderia via a dispor de mais tempo do que se pensava
em relação à Indonésia. Este País tornar-se-ia então mais flexível em relação ao futuro
estatuto internacional de Timor. Entretanto, o aparecimento de um movimento
nacionalista interno seria apenas uma questão de tempo e, se constrangido a actuar
contra a administração portuguesa, só podia ater-se ao apoio da Indonésia. O perigo
mais imediato podia ser o surgimento de um movimento de resistência genuína no
interior de Timor, que viesse a ser aniquilado pelo Governo, provocando assim uma
situação volátil, já que muitos dos seus elementos podiam tentar fugir para Timor
Ocidental, pedindo asilo e criando situações delicadas de confrontação70.
A um nível mais alargado, o problema de Timor já havia começado a fazer parte
das Quadripartite Talks (entre delegações dos Estados Unidos da América, Grã-Bretanha,
Austrália e Nova Zelândia), que tiveram lugar nos meses de Fevereiro e Outubro de
1963, em Washington. Aí se discutiu o assunto em duas vertentes:
1 – O que fazer perante uma acção indonésia contra Timor, tendo em conta que
as partes não estavam interessadas em assistir a uma agressão, até pelo perigo que
isso representava para outros territórios (britânicos e australianos, entenda-se),
havendo aqui, perante sinais evidentes de ameaça, que tentar dissuadir a Indonésia,
através de organismos das Nações Unidas , designadamente o “Comité dos 24”, de
modo a ser esta instituição a resolver o futuro de Timor português. A maior
dificuldade estava em que, em tal situação, o Governo de Portugal tentaria persuadir
a Grã-Bretanha e os EUA a apoiar a manutenção do seu regime colonial em Timor,
invocando as facilidades militares concedidas no Ultramar português a estes Países.
2 – Considerar a questão suscitada por Portugal, em 1962, na reunião da NATO,
na cidade de Atenas, uma consulta multilateral ou acção que podia ser decidida em
resultado das conversações de Washington. De facto, nestas conversações, analisaram-se as várias questões que se prendiam com o futuro de Timor, na sua complexa
amplitude: o território não tinha viabilidade económica, mas, por outro lado, as
populações nativas não haviam reivindicado uma separação de Portugal; a Indonésia,
mais tarde ou mais cedo, tentaria anexar Timor, com o qual não tinha diferenças
étnicas, mas também não havia um passado histórico comum; e o regime português
70
Idem, ibid.,“The Future of Portuguese Timor”, A109, C1160284, SC 1974/9010, 1961-1964, relatório do
Grupo de Trabalho do Departament of Officers, Camberra, 4 de Abril de 1963.
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71
Cf. NA (National Archives – Londres), Portuguese Timor, “FO 371/169908: Indonesian regional ambitions: defence
of Borneo Territories, Malaya and Portuguese Timor (1963”, Quadripartite Talks on Indonesia – Washington
February 1963 – Steering Brief, Brief n.º 1 e Brief n.º 15; e Quadripartite Talks on Indonesia – Washington
October 1963, Brief n.º 10. Veja-se também: “FO371/169801: Political relations with Indonesia: potential
threat to Portuguese Timor”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
153
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
não estava disposto a entregar um milímetro dos territórios coloniais que
administrava, nem cederia às pressões das Nações Unidas . Ora, o que se afigurava
mais eficaz e vantajoso para os interesses ocidentais era tentar inibir a agressão
indonésia e colocar o futuro do território nas mãos das Nações Unidas. Pesados
todos os prós e contras, tornava-se aconselhável associar Portugal a qualquer acção
multilateral que viesse a envolver o território. Ou seja: a mais ou menos longo prazo,
uma acção da Indonésia sobre Timor parecia inevitável e conduziria à integração; e
o interesse das partes era que houvesse uma transição pacífica do território para a
Indonésia. Para que isso acontecesse, devia envolver-se a ONU desde já e discutir-se
com outros participantes como e quando tal devia ocorrer, uma vez que o assunto
podia ficar para mais tarde, quando a situação de perigo se tornasse mais séria.
Entretanto, havia que persuadir o Governo português a fazer progressos na direcção
de conceder ao território um Governo mais autónomo. Qualquer decisão, quando o
caso se viesse a colocar, devia assegurar aos habitantes de Timor Oriental o direito ao
exercício da autodeterminação71.
Tendo em conta estes desenvolvimentos, parece-nos agora que o futuro de
Timor estava traçado bem antes de 1975 e que só a conjuntura então definida lhe
havia de deparar, a muito custo e a prazo, outro caminho.
Por seu lado, perante a intransigência do executivo português em descolonizar
Timor Oriental, e devido ao conjunto de interesses americanos e ingleses, que
impediam que confrontassem directamente Portugal, tinha sido atribuído um papel
activo de persuasão à Austrália e apontada a ONU como a entidade que, mais tarde
ou mais cedo, haveria de ter uma acção indispensável naquele território.
Entretanto, em 1962, o jornalista australiano Pat Burgess, que visitara Timor
como jornalista desportivo, escrevera depois alguns artigos, que foi publicando no
jornal The Sun, mandados traduzir pela subdelegação da PIDE em Timor. Num deles
“Os ‘diggers’ disseram que voltariam, mas essa esperança diluiu-se”, podia ler-se:
“Se tivéssemos tomado conta de Timor em vez de a restituirmos hoje aos portugueses,
teríamos pelo menos a satisfação de receber a visita de sir Hug Foote e um comité
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
154
das N. U.[Nações Unidas] ao território para nos dizerem o que devemos fazer para
a autodeterminação dos indígenas.”72
Em contraste com a atitude mais crítica do Governo e dos media australianos, o
interesse de alguns sectores australianos por Timor parece ter aumentado com o
retomar dos voos regulares pela Trans Australian Airline (TAA), permitindo-lhes uma
mais fácil comunicação e oferecendo-se-lhes como destino turístico.
Em 1963, no que se refere mais directamente ao possível interesse australiano no
desenvolvimento do território, o próprio cônsul da Austrália em Díli, James Dunn,
sugeria às autoridades portuguesas locais que contactassem o Governo do seu País, com
vista a obterem uma “comparticipação australiana” para esse fim, “pois ele, certamente,
estaria na disposição de o fazer”. Esta diligência chegou a ser interpretada como uma
possibilidade de, a este título, ser feita uma indemnização de guerra a Portugal73.
Todavia, a sugestão prendia-se apenas com a instalação de alguns interesses australianos
em Timor Oriental, no seguimento, aliás, de uma estratégia já antes delineada.
Na primeira semana de Agosto de 1963, o encarregado de negócios de Portugal
em Camberra, Rebello de Andrade, fazia uma visita a Timor, com a finalidade de
estudar as possibilidades de aumentar as trocas comerciais deste território com a
Austrália. No seu relatório, apontava para a necessidade de uma tentativa séria de
penetração do café no mercado australiano, na venda de chapéus e cadeiras de palha,
e de mobiliário de madeira, além do incremento do turismo. Em resposta, o
governador do território fazia saber que a penetração do café estava a ser tentada
através do mercado de Darwin, utilizando a carreira aérea, e do de Sidney, recorrendo
ao navio “Arbiru”. Também as outras sugestões estavam a merecer diligências
urgentes por parte do Governo, de modo a interessar os australianos74. Ou seja: não
havia nada a fazer que não estivesse a ser tentado.
72
IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta n.º 8972,
relatório n.º 31/62, confidencial, da subdelegação da PIDE em Timor para a direcção-geral da PIDE
em Lisboa, Lisboa, 17 de Dezembro de 1962, Anexo: “Tradução do artigo do jornalista australiano, Pat
Burggess, ‘Os ‘diggers’ disseram que voltariam, mas essa esperança diluiu-se”, The Sun, 26 de Novembro
de 1962, p. 5.
73
Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário P.A.A., maço 809, processo 948,46, “Relações Políticas com a Austrália”,
ofício n.º 1608, secreto, do Ministério do Ultramar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa,
9 de Março de 1963.
74
Idem, ibid., armário 1, gaveta 2, maço 220, “Visita a Timor do Encarregado de Negócios de Portugal em
Camberra, dr. Rebello de Andrade (31/7 a 7/8 de 1963)”, ofício n.º 7194/E-7-15-1, confidencial, do
Ministério do Ultramar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 10 de Dezembro de 1963.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
75
Cf. IANTT, AOS/CO/UL-58, pt. 2 “Situação em Timor (1965)”, Relatório da Visita do Subsecretário de Estado
da Administração Ultramarina, 1965, pp. 57-58.
76
Cf. AHU, MU/GM/GNP/034 Timor, “Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, pt. 2 (1964-1966), relatório
respeitante ao mês de Julho de 1964, enviado com o ofício n.º 68, secreto, do governador de Timor para
o Ministério do Ultramar, Díli, 18 de Agosto de 1964, p. 7.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
155
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Efectivamente, sugestões não faltavam. Mais difícil era passar de tentativas
esporádicas ao estabelecimento de circuitos nos mercados australianos e, a montante,
garantir uma produção contínua de qualidade e de prestação de bons serviços, no
que ao turismo e transportes dizia respeito. E, acima de tudo, prevalecia agora a
questão política da soberania portuguesa em Timor.
No Relatório da visita que fez a Timor, em finais de 1964, o subsecretário da
Administração Ultramarina previa que a evolução das relações de Portugal com a
Austrália não ia ser fácil e se prenderia muito com o modo como o conflito da
Malásia de desenvolvesse. Como, em seu entender, o expansionismo indonésio
esbarrava contra a protecção dada pelas tropas da “Reserva Estratégica da Comunidade”
à Malásia, isso fazia da Austrália um potencial adversário da Indonésia. Prevendo
então, que a colisão entre os dois Países era uma questão de tempo e de oportunidade,
achava que o vizinho do Sul deveria orientar a sua política externa no sentido de um
entendimento com Portugal, levando a um reforço da posição deste País em Timor e
lembrando, por exemplo, que o aeroporto de Baucau, em aviões convencionais,
estava a hora e meia de voo de Darwin, que, por sua vez, se encontrava a seis horas
de voo em “jacto” das principais cidades do Sul da Austrália. Aliás, desde a reacção
indonésia à formação da Malásia parecia esboçar-se uma melhoria no relacionamento
com Portugal, verificando-se menor agressividade da imprensa e um maior interesse
pelos recursos turísticos de Timor75. No entanto, a agudização da crise na Malásia
não atingiu as repercussões esperadas, pelo que os receios de confronto directo se
desvaneceram. Agora era Portugal, com receio da Indonésia, a querer estabelecer um
acordo com a Austrália, oferecendo quase tudo.
Em Julho de 1964, o Relatório da Comissão de Defesa Civil de Timor referia que
se estava “processando em crescente intensidade um surto de grande interesse da
Austrália pelo Timor português.” O sinal mais evidente consistia no facto de, nas
últimas semanas, representantes de várias indústrias se terem deslocado a Díli, a fim
de estabelecer contactos para uma aproximação económica entre Timor e a
Austrália76.
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
156
Verificava -se, assim, não diremos um entusiasmo, mas um interesse
suficiente, que os poderes políticos locais e os agentes económicos não podiam
deixar de interpretar como de algum optimismo em relação à evolução política
no Timor português. Tudo levava a crer que a Austrália não só o não considerava
como um “caso perdido”, como havia de empenhar-se em que essa evolução
contemplasse os interesses dos seus cidadãos. No entanto, parecia ignorar-se que
a Austrália era um País onde havia eleições livres e a própria posição, em política
externa, além dos interesses a contemplar, dependia também da orientação do
partido ou coligação que o governasse. Mas havia quem compreendesse isso e
estivesse atento, como acontecia com o encarregado de negócios de Portugal em
Camberra.
Em Outubro de 1966, este diplomata enviou ao governador de Timor um
comentário ao texto de declarações sobre a política externa, na parte em que se
referia a Timor português, proferidas em Agosto do mesmo ano pelo Sr Bryant,
membro da ala esquerda do Partido Trabalhista Australiano, na oposição. Tratava-se de um ataque à política governamental no Sudeste Asiático:
“Eu gostava de ver o Governo assumir uma atitude de moralidade
internacional baseada na não -violência e na inviolabilidade das fronteiras.
Concordo plenamente com o Governo se introduzir algumas das garantias
da Nações Unidas acerca das fronteiras nacionais. Portugal tem, certamente,
poucos amigos, mas se a Indonésia resolvesse invadir Timor tentando
realizar a ‘libertação’, ou tudo o que possa ser chamado, afirmaria que a
comunidade internacional devia rejeitar aquela acção e actuar a favor do
povo afectado.
Creio que a necessidade internacional mais premente é garantir as fronteiras
dos Países mais pequenos do mundo. Depois, devemos rejeitar a ideia de que
a violência é um direito válido da política nacional. Todos devemos acatar as
decisões internacionais”77.
77
AHU, ibid., “Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, cx. 3 (1965-1967), relatório respeitante ao mês de
Outubro de 1966, enviado com o ofício n.º 86, secreto, do governador de Timor para o Ministério do
Ultramar, Díli, 21 de Novembro de 1964, Anexo B: “Ofício n.º UL-A 2/59, de 1 de Setembro de 1966,
do encarregado dos negócios de Portugal em Camberra para o governador de Timor, comentando o texto
das recentes declarações sobre a política externa, feitas pelo membro trabalhista do Partido Australiano, Sr.
Bryant, em que se refere ao Timor Português”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
Embora se tratasse apenas de uma posição de princípio e o partido continuasse
por mais algum tempo na oposição, bem avisadas estavam as autoridades portuguesas
acerca do que mais tarde podiam esperar. Era esse também o sentido da História. No
entanto, vimos a expressão da intransigência de Salazar.
Outra importante vertente a ter em conta prende-se com a evolução do
relacionamento entre a Austrália e a Indonésia pós-Sukarno. Nos primeiros anos da
década de 1970, além da participação na ANZUS e na SEATO, e com a mesma
perspectiva de reforço da segurança regional, a Austrália fez acordos bilaterais de
carácter defensivo, particularmente com a Indonésia.
Neste âmbito, ainda nos finais dos anos sessenta, a ajuda a este País começou
com um apoio de técnicos das Forças Armadas australianas, apoiadas pela RAAF, às
Forças Armadas indonésias na elaboração da carta geográfica de Bornéu. Em 1971,
estas actividades estenderam-se a um grande projecto em Samatra. Mas, o mais
importante contributo neste domínio foi a transferência de 16 aviões de combate
“Sabre”, da RAAF para a Força Aérea indonésia. Dois anos depois, era feita uma
concessão até ao limite de 20 milhões de dólares pelo Governo australiano com vista
à melhoria das forças de vigilância marítima indonésias, incluindo diverso material.
A ajuda incluía também exercícios navais conjuntos, cooperação em pesquisa técnica
e um acordo indonésio para regular as pescas nas águas da Austrália79.
78
Idem, ibid.,“Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, cx. 3 (1965-1967), relatório respeitante ao mês de
Outubro de 1966, enviado com o ofício n.º 86, secreto, do governador de Timor para o Ministério do
Ultramar, Díli, 21 de Novembro de 1964, Anexo E: “Ofício n.º POL-B 2/68, de 1 de Setembro de 1966,
do encarregado dos negócios de Portugal em Camberra para o governador de Timor, comentando as
declarações de oposição (Partido Trabalhista Australiano) sobre Descolonização”.
79
Cf. Robert O’Neil, “Defence Policy”, in Australia in Word Affairs 1971-1975, pp. 20-21.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
157
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Porém, o mesmo responsável incluía também a posição oficial do Partido
Trabalhista, aprovada em convenção, respeitante à descolonização, a qual não oferecia
quaisquer dúvidas e incluía Timor Oriental:
“O Partido Trabalhista deseja uma descolonização autêntica dos territórios do
Norte do Bornéu, do Sarawak, do Brunei e do Timor Oriental, mas considera
que a influência australiana seria útil, procurando que tal descolonização se
realizasse de acordo com os princípios da Organização das Nações Unidas.
O Partido Trabalhista pensa que a Austrália devia insistir junto da Comissão do
Pacífico Sul para que promova e organize a descolonização de todos os territórios
do Sul do Pacífico”78.
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
158
O Programa de Cooperação de Defesa com a Indonésia, iniciado em 1972, era
descrito como de “cooperação”, mais do que “ajuda”, abrangendo actividades que
iam para além dos anteriores projectos com este fim. A estratégia do Departamento
de Defesa era sugerir projectos seus e procurar evitar convites de ajuda de defesa, do
tipo “listas de compras”. Mas, na prática, havia “dificuldades consideráveis” para
encontrar áreas sustentáveis de cooperação, nos três ramos das Forças Armadas80.
Os principais objectivos expressos deste programa eram os seguintes:
– demonstrar aos Indonésios um empenhamento sério na cooperação de defesa
conjunta, com um programa prático que, em termos financeiros, não fosse
comparativamente inferior aos esforços despendidos com as forças de defesa
australianas envolvidas na Malásia e em Singapura;
– estreitar a posição de influência na Indonésia, para desenvolver ulteriores
relações de confiança e segredo, de modo a preencher a política regional de
segurança da Austrália;
– desenvolver vantagens mútuas, sustentadas em contratos de trabalho com
as forças armadas indonésias, reconhecendo a importância do seu papel no
tecido administrativo e governamental;
– ajudar a Indonésia a tornar as suas Forças Armadas equipadas a nível razoável,
com o seu desenvolvimento dirigido para um caminho sensível, que evitasse
um desnecessário desvio de recursos e preservasse experiências essenciais;
– providenciar assistência de clara utilização para um ataque externo e não para
o Governo assegurar uma posição contra a oposição interna; e
– apoiar, quanto possível, projectos que tivessem mérito de desenvolvimento
económico e capacidade de defesa da Indonésia81.
Apesar das críticas da ala esquerda do Partido Liberal, o Governo do trabalhista
Gough Whitlam, formado após a vitória nas eleições de 1972, empenhou-se em
tornar o programa de cooperação de defesa com a Indonésia como um modelo para
futuros acordos, no que respeitava a assistência técnica, troca de pontos de vista,
treino e exercícios conjuntos82.
80
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Defence: Co-operation with Indonesia”, A1838, C1757323, SC696/2/2/ 1, 1974,
Informação do Foreign Affairs para o ministro, Camberra, 9 de Agosto de 1974.
81
Idem, ibid., “Defence: Co-operation with Indonesia”, A1838, C1757323, SC696/2/2/ 1, 1974, Informação
do Foreign Affairs para o ministro, Camberra, 9 de Agosto de 1974.
82
Cf. Robert O’Neil, art. cit., p. 21.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
83
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Reports on Economic Development”, A1838, C551952, SC756/2 part 1, 1948-1975, “Portuguese Overseas Provinces – Relations with Australia”, 1969.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
159
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Esta aproximação de interesses regionais, que visava também atrair mais simpatia
dos Países vizinhos, e um maior afrontamento em relação a situações coloniais,
marcariam uma nova orientação da política externa australiana, conduzida pelos
trabalhistas, e ajudará a compreender melhor a atitude australiana em relação à
invasão de Timor português pela Indonésia.
Entretanto, no dia 13 de Abril de 1969, teve lugar em Timor a cerimónia da
inauguração do memorial levantado como um tributo ao seu povo pela assistência
dada aos militares australianos da Companhia de Comandos que, durante a Segunda
Guerra Mundial, numa guerra de guerrilha, combateu as tropas japonesas em solo
timorense. A iniciativa foi da Associação de Comandos australiana, contou com a
participação financeira do Governo em metade do seu custo, 4000 libras australianas,
e teve a presença do administrador dos Territórios do Norte, em representação do
Governo australiano83. Além destes actos mais solenes, havia verdadeiras “romagens
de saudade” a Timor de antigos comandos australianos que, segundo o metereologista
Manuel Costa Alves, eram bem vistas pelo povo timorense.
Quanto à situação no Timor português, nos finais de 1970, o Ministério dos
Negócios Estrangeiros australiano chegava à conclusão de que: não se previam
desenvolvimentos internos em Timor, que se revelassem significativos do ponto de
vista australiano; o interesse político australiano em Timor seria limitado, quer o seu
novo estatuto decorresse de uma saída voluntária dos Portugueses, quer de uma
administração exterior; não se esperava para breve uma acção indonésia que se
apoderasse de Timor, mas também não era provável que outra qualquer força que o
tentasse pudesse resistir à Indonésia; a longo prazo, o estatuto de Timor seria a
incorporação na Indonésia; o interesse político da Austrália em Timor português
seria mais bem defendido em Portugal, na Indonésia ou noutros Países, do que num
consulado em Díli; os serviços secretos australianos tinham sido devidamente
informados pelo consulado acerca do que verdadeiramente lhes interessava em
Timor: disposição de tropas, instalações militares, estradas, campos de aviação e
enseadas, havendo talvez a limitação de, futuramente, a Austrália não poder prestar
esse serviço aos Estados Unidos; e as relações com Portugal podiam melhorar através
de um embaixador residente em Lisboa. Por tudo isto, não se justificavam os custos
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
160
da manutenção do consulado em Díli, aconselhando-se o seu encerramento84. De
facto, em Agosto de 1971, depois de algumas diligências junto das autoridades
portuguesas para acertar as principais questões relacionadas com a cessação de
actividades do seu consulado em Díli, a Austrália, concretizou o que desde algum
tempo se anunciava.
Esta medida política levantava alguns problemas à administração colonial
portuguesa, em virtude do relacionamento existente e da dependência que Timor
registava em alguns domínios. Logo aquando do primeiro anúncio do fecho, a
delegação da PIDE/DGS em Timor comunicou aos seus serviços centrais os seguintes
pontos a ter em atenção, relativamente ao assunto:
– a Austrália era então o País que mais atraía os timorenses, quer para
emigrar quer para fins turísticos, necessitando do respectivo “visto” para ali
entrarem;
– Darwin, cidade ao Norte da Austrália, era local de residência de muitos
timorenses, que para ali haviam partido em busca de uma vida melhor, com
famílias radicadas em Timor, os quais, gostariam de as visitar de vez em
quando;
– Timor, por causa do seu petróleo e dos seus minérios, passara a ser mais
procurado por várias companhias australianas para investimento de capitais,
havendo interesses comuns aos dois Países a acautelar;
– politicamente, um maior afastamento da Austrália implicaria uma indesejável
aproximação da Indonésia, e um prejuízo para os povos da província, que
ficariam mais desprotegidos e afastados do mundo; e
– sugeria-se também que, uma vez que os australianos estavam dispensados
da apresentação de “visto” para entrarem em Portugal metropolitano,
esse acordo fosse tornado extensivo aos portugueses residentes em Timor,
quando se deslocassem à Austrália, designadamente em viagens de turismo
ou de negócios, remediando assim parte dos inconvenientes resultantes do
encerramento do consulado85.
84
Idem, ibid., “Portugal: Foreign Policy”, A1838, C1874207, SC49/2/1/1 part 1, 1959-1971, documento do
Foreign Affairs para o ministro, confidencial, Camberra, 1 de Dezembro de 1970.
85
Cf. IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8978,
relatório n.º 4/71 – G. U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa,
Díli, 30 de Abril de 1971, pp. 8-10.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
86
Idem, ibid., “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8978, relatório n.º 7/71 – G. U.,
confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Julho de 1971,
pp. 11-12.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
161
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
De facto, por ordem do Governo australiano, deslocou-se depois a Díli o snr.
Lazarus Liveris, director do Departamento de Emigração do Território Norte da
Austrália, para troca de impressões com as autoridades portuguesas e para
apresentação de sugestões sobre o modo de facilitar a ida de portugueses à Austrália,
com dispensa de visto consular. As conversações continuaram depois em Darwin
com o inspector da PIDE/DGS, tendo sido acordado que a documentação dos futuros
emigrantes fosse enviada através da Repartição Provincial da Administração Civil para
o consulado de Portugal em Darwin, através do qual seriam tratados todos os
assuntos com os Serviços de Emigração Australianos naquela cidade, enviando-se a
Timor, quando o número de emigrantes o justificasse, um funcionário categorizado
para apreciar os pedidos e dar-lhes seguimento, servindo-se de médicos portugueses
para os exames necessários.
Precisamente, quanto aos doentes que necessitassem de deslocar-se à Austrália,
foi aceite que, em casos de urgência, os mesmos pudessem ali entrar sem autorização
prévia e sem visto, desde que tal fosse pedido telegraficamente pelo Governo de
Timor, com a garantia de pagamento das respectivas despesas.
No que respeitava aos turistas, segundo o sr. Liveris, continuava a exigir-se que os
mesmos fossem portadores de passaporte válido, certificado internacional de vacinação,
atestado médico, certificado de bom comportamento moral e civil, bilhete de regresso
a Timor ou para continuação de viagem, e o mínimo de cinco dólares australianos ou
moeda equivalente por cada dia que desejassem permanecer na Austrália, admitindo
que o atestado médico e o certificado de bom comportamento fossem válidos por um
ano e pudessem ser utilizados um número ilimitado de vezes86. Apesar das medidas
para mitigar o impacto, o encerramento do consulado australiano em Díli, além do
significado político, veio dificultar imenso o relacionamento entre Timor e o seu
poderoso vizinho do Sul, do qual tanto dependia.
Na Austrália, a partir de 1973, com o Partido Trabalhista no Governo, conjugaram-se vários factores, que levaram ao fim da “golden age”: Whitlam, confrontado com as
contracções da economia, tinha dobrado o investimento público nos últimos três anos.
Para satisfazer ambições de modernização, efectuou um corte de 25% nos direitos
alfandegários. Por outro lado, com a valorização da moeda, muitos pequenos produtores
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
162
faliram. Ao mesmo tempo, os preços e os salários tinham subido acima dos 10% no fim
do ano. Veio então o embargo imposto ao Ocidente pelos Países árabes em retaliação
pela guerra do Yom Kippur, no Médio Oriente, provocando o aumento do custo do
petróleo. O impacto directo sobre a Austrália foi limitado, por ter sido possível satisfazer
as suas necessidades energéticas. Porém, os efeitos indirectos foram catastróficos. A
inflação resultante da crise do petróleo trouxe uma onda de choque contra a economia
mundial, que quebrou a rede de comércio e investimento. Nos anos seguintes, as nações
mais industrializadas entraram em “stagflation”, estagnando a produção com alta
inflação. O desemprego atingiu níveis não vistos desde os anos 30. Em 1975, com as
contracções orçamentais, passou de 250.000. Tinha chegado ao fim a “golden age”87.
Entretanto, em 1973, relativamente a Portugal e à sua política colonial, podia
ler-se na própria imprensa australiana:
“A Austrália presentemente tomou uma posição de condenação às violentas
acções de Portugal nas suas possessões distantes da Austrália, mas, encoraja as
relações com o Timor Português, nosso vizinho estrangeiro mais próximo.
Por uma fórmula inexplicável, presumivelmente tomada pelo 1.º Ministro, a
Austrália decidiu que Timor está excluído das resoluções da ONU que impõem
sanções contra os territórios ultramarinos portugueses.
[...].
À parte do transporte de tropas portuguesas à civil para aquela colónia, a Austrália
exporta anualmente para Timor, produtos no valor aproximado de um milhão de
dólares (a importação de Timor cifrou-se em 8 dólares) e encoraja as firmas
australianas para explorarem petróleo e minerais, até ao momento não demonstrou
qualquer desaprovação a uma nova sociedade a ser estabelecida pelas empresas
australianas desde que o partido Trabalhista assumiu o poder.”88
No mesmo periódico, punha-se depois em confronto esta actuação com as
palavras do próprio Gough Whitlam, proferidas dez anos antes, quando estava na
oposição:
“O Timor Oriental tende a tornar-se como anacrónico a qualquer País do
Mundo excepto a Portugal[...]. Não merecemos ser considerados e estimados no
87
88
Cf. Stuart Macintyre, ob. cit., p. 233.
IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório
n.º 8/73 – G. U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de
Agosto de 1973, Anexo: “O Vizinho Império Moribundo”, The Australian, 13 de Julho de 1973, p. 1.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
A ambiguidade da Austrália situava-se no confronto entre os princípios de
autonomia dos povos, em termos gerais, e dos seus interesses locais e regionais, que
envolviam, naturalmente, a Indonésia e Timor Oriental.
Em 18 de Agosto de 1973, para dar corpo à ideia de que defenderia melhor os
seus interesses em Lisboa do que com um consulado em Díli, tendo sobretudo em
vista a questão pendente da área de exploração marítima do petróleo, a que se fará
referência mais abaixo, o Governo australiano colocou o seu primeiro embaixador
residente em Lisboa, K. T. Kelly.
Efectivamente, no que se refere à presença portuguesa em Timor, tendo em
consideração o período que vai desde os primeiros anos da década de 1960 até
1975, no essencial, a posição do Governo australiano era ambígua e até contraditória.
Por um lado, votava favoravelmente as resoluções da ONU que criticavam o
colonialismo português; por outro lado, subsidiava uma ligação vital para a
manutenção da situação colonial vigente e para a deslocação de passageiros, e
apoiava várias companhias comerciais com interesses ali instalados. Por seu turno, a
imprensa australiana, com várias iniciativas, dava a conhecer aos cidadãos do seu País
as belezas naturais do território, enquanto denunciava as dificuldades e o
subdesenvolvimento patentes, que atribuía à administração colonial. Simultaneamente,
a curto ou a médio prazo, preparava a sua opinião pública para uma inevitável
mudança política, tendo em consideração quer as contraditórias declarações dos
dirigentes indonésios quer a acção dos movimentos que, mesmo episodicamente,
emergiam na direcção da autonomia90.
Em Timor Leste: Amanhã em Díli, José Ramos-Horta refere que, quando se deslocou
à Austrália, em Julho de 1974, “a questão de Timor Leste era completamente
desconhecida do público e a sua cobertura na imprensa periódica era nula.” Por sua
89
Idem, ibid., “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório n.º 8/73 – G. U.,
confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Agosto de 1973,
Anexo: “O Vizinho Império Moribundo”, The Australian, 13 de Julho de 1973, p. 2.
90
Veja-se: Geoffrey C. Gunn, Timor Loro Sae: 500 Anos, Macau, Livros do Oriente, 1999, pp. 290-292.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
163
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Mundo se continuarmos a apoiar os portugueses. Eles devem ser informados em
termos directos que o nível de vida deve ser rapidamente elevado e concedido
total direito de autodeterminação[...].
Devemos actuar rapidamente através das Nações Unidas para solucionar esse
problema”89.
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
164
vez, “Nos círculos do poder em Camberra, duas escolas se confrontavam: a do
Departamento de Negócios Estrangeiros, povoado por burocratas que tinham o
intelecto assestado sobre a Indonésia como a grande parceira da Austrália na região
e isso prevalecia sobre todas as outras considerações. A do Departamento de Defesa
que ainda via Timor Leste como um ‘buffer zone’, zona tampão, base avançada de
defesa da Austrália contra um potencial inimigo ao norte, obviamente a Indonésia.”
Daí, concluir que, “Elementos-chaves do Departamento de Defesa viam assim com
bons olhos um Timor Leste independente.”91
Ainda segundo o mesmo autor, alguma imprensa, com destaque para o jornalista
Peter Hastings, do Sydney Morning Herald, “intimamente ligado à Defesa e aos serviços
de Inteligência australianos, favorecia igualmente um Timor Leste independente.”
Mas, como o próprio reconhece, o limite de tempo e a onda de simpatia criada não
permitiram “virar” a opinião pública australiana para um apoio massivo à causa de
um Timor-Leste independente. Por seu lado, o funcionamento do sistema político,
com prevalência da posição do Governo, e as cumplicidades estabelecidas, ao nível
diplomático, jogavam a favor de Jacarta92.
A ausência de viabilidade económica de um Timor Oriental independente tinha
sido invocada por Salazar em várias circunstâncias e era, provavelmente, a maior
reticência que os Países desenvolvidos colocavam a tal possibilidade política, mesmo
depois do golpe militar de 1974 em Portugal. Num relatório de 27 de Agosto de
1974, James S. Dunn, antigo cônsul australiano em Díli e director do Foreign Affairs
Group, refere esta situação, salvaguardando, no entanto, o aparecimento de um
milagre, que seria o jorrar de petróleo93.
A propósito da posição australiana, o antigo cônsul em Díli advertia que a ela
podia ser simpática a influentes políticos indonésios que preconizavam a incorporação,
podia até ser proveitosa para os interesses australianos na região, mas arriscava-se a
levar a que outras capitais do Sudeste Asiático, designadamente Port Moresby (Papua-Nova Guiné Oriental), perdessem o respeito pelo seu País, além de que se podiam
estar a abrir caminhos aos políticos indonésios, com implicações inimigas para a
91
José Ramos-Horta, Timor Leste: Amanhã em Díli, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, pp. 141-142.
Cf. Idem, ibid., pp. 142-143.
93
Cf. NA, Portuguese Timor–East Timor, “FCO 15/1956: Political Situation in Portuguese Timor (1974)”, Portuguese
Timor before and after the coup. Options for the future. Documento preparado por J. S. Dunn, do Foreign
Affairs Group-Parliament of Australia, Camberra, 27 de Agosto de 1974, p. 16.
92
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
94
Idem, ibid., p. 24.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
165
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
segurança regional. Por isso, preconizava que a Austrália se empenhasse numa
cooperação com a Indonésia, com vista a ajudar a construir um novo Estado, se esse
fosse o desejo claro da população. Também a reabertura do consulado em Díli deveria
ser feita rapidamente, de modo a facultar informação segura e atempada ao Governo.
A Austrália devia ainda ajudar, com vários tipos de assistência, Portugal, e as forças
políticas emergentes em Timor e o próprio povo94. Mas não foi esse o caminho
seguido pelo seu Governo.
Em Setembro de 1974, em Jogyacarta (Java-Indonésia), num encontro, para o
efeito realizado, o futuro de Timor foi discutido entre o primeiro-ministro
australiano, Gough Whitlam, e o Presidente indonésio, Mohammed Suharto. Whitlam
assegurava a Suharto que se mostrava muito confiante, uma vez que, desde 1972, as
suas medidas tomadas em matéria de política externa tinham sido bem aceites pelo
seu partido – o partido do Governo –, pelo que seria importante ouvir o Presidente
indonésio acerca do evoluir dos acontecimentos em Timor. Para ele, havia duas coisas
fundamentais: não se opunha à integração de Timor português na Indonésia; e isso
devia acontecer de acordo com a escolha expressa do povo timorense. Por isso,
assegurava que a Austrália não procurava ter com aquele território nenhuma relação
especial, dada a diferença que os caracterizava a todos os níveis. Reiterava também a
ideia dominante de que Timor era demasiado pequeno para ser independente e
economicamente inviável. Referia ainda que, para a opinião interna do seu País, a
incorporação na Indonésia se apresentava como um processo natural, brotando dos
desejos do povo.
Por sua vez, Suharto considerava que a Timor se apresentavam duas alternativas:
a independência ou a incorporação noutro País. Quanto à primeira, não lhe
reconhecia viabilidade económica, pelo que, se tal acontecesse, necessitaria da ajuda
externa, por motivos meramente políticos. Nesta situação, um eventual aproveitamento
da URSS e da China provocaria a intervenção de outra grande potência, o que
constituiria “um espinho no olho da Austrália e um espinho nas costas da Indonésia”.
A aceitação do princípio de autodeterminação, que a Indonésia reconhecia ao povo
de Timor português, podia resultar na independência, com os problemas referidos.
Por sua vez, a escolha pela incorporação na Indonésia não podia fazer-se como um
estado separado, mas como uma região autónoma ou daerha, como o distrito especial
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
166
de Jogyacarta, uma vez que a República não era uma federação. Terminou desejando
que a incorporação ocorresse segundo os desejos do povo timorense e no melhor
interesse da região, da Indonésia e da Austrália95.
Assim o primeiro-ministro Whitlam fazia saber a Suharto que o Governo
australiano favorecia uma eventual integração de Timor português na Indonésia,
contanto que este fosse o caminho que satisfizesse a opinião internacional e os
interesses da estabilidade regional. No entanto, a reacção da opinião pública fez com
que a política australiana fosse sobretudo na direcção do reconhecimento do povo
daquele território à autodeterminação, pelo que, em finais de 1974, a orientação
política ia já no sentido de integração na Indonésia, desde que isso expressasse o desejo
dos Timorenses e se encontrasse na linha que satisfazia a opinião internacional96.
Na sequência do encontro de Jogyacarta, de 3 a 5 de Abril de 1975, na cidade
australiana de Queenslândia, Townsville, o Presidente indonésio Suharto e o primeiro-ministro australiano Whitlam estiveram reunidos mais uma vez para discutir o futuro
de Timor. Suharto reafirmou que a Indonésia não tinha “ambições expansionistas e que
favorecia um processo de autodeterminação para os Timorenses Portugueses”. Mas,
dois meses antes, o jornal indonésio “The New Standard”, controlado pelo conselheiro
do Presidente Suharto em Segurança, general Ali Murtopo, publicara artigos onde se
afirmava que “Timor não se pode tornar independente por não dispor de recursos
naturais e porque um Timor independente seria permeável à penetração comunista
afectando a estabilidade regional”. Como refere J. Chris Chrystello, em Abril, as
preocupações de segurança regional tinham passado do “vermelho” ao “amarelo”97.
De facto, a evolução política no território e a pressão de alguma opinião pública
australiana aconselhavam algumas cautelas em relação à abertura manifestada
anteriormente pela Austrália à Indonésia. Assim, o ministro dos Negócios Estrangeiros
recomendava ao primeiro-ministro: manter um diálogo com os Indonésios, de
modo a tentar afastá-los de uma medida avançada e assegurar que os desenvolvimentos
não se tornassem um obstáculo às boas relações entre os dois Países; tentar explicar
aos líderes timorenses que a Austrália respeitaria os desejos do seu povo num
95
Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor, Policy”, A1209, C4151579, SC1974/7573, 1974-1975, Extract of Meeting between the Prime Minister and President Soeharto, Jogyakarta, 6 de Setembro de 1974.
96
Cf. NA, Portuguese Timor- East Timor, “FCO 15/1956: Political situation in Portuguese Timor (1974”, ofício n.º 3/28,
da British High Commission para a embaixada australiana em Lisboa, Camberra, 5 de Novembro de 1974.
97
Cf. J. Chris Chrystello, Timor-Leste: 1973-1975, o Dossier Secreto, Matosinhos, Contemporânea Editora, 1999,
pp. 91-92.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
Mas, nessa altura, a dinâmica dos acontecimentos no território ultrapassava
todas as previsões e já dificultava qualquer execução concertada.
Com efeito, numa carta do embaixador australiano em Jacarta, datada de 4 de
Outubro de 1975, Richard Alexandre Woolcott, dirigida ao Departament of External
Affairs, mas com carácter pessoal, encontramos exposto o que podíamos considerar
o pragmatismo dos interesses:
– o âmago do problema de Timor português para a Austrália devia inserir-se no
futuro relacionamento com a Indonésia e com o Sudeste da Ásia como um
todo;
98
Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor, Policy”, A1209, C4151579, SC1974/7573, 1974-1975, documento do Foreign Affairs para o primeiro-ministro, s/d.
99
Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C150600, SC3038/10/15 part 1, 1975-1976,
documento do ACFOA para o Foreign Affairs, Camberra, 16 de Setembro de 1975.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
167
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
genuíno acto de autodeterminação, mas que eles deviam ter cuidado com actos que
corressem o risco de os colocar nas mãos da Indonésia; que não devia abrir um
consulado em Díli; e que a eventual ajuda a prestar seria sob uma forma que
envolvesse também Portugal e a Indonésia, mas que, chegado o momento, a iniciativa
devia ficar apenas com estes dois Países98. A Austrália devia tentar sobretudo não se
comprometer directamente.
Não era nessa direcção que apontavam algumas organizações da sociedade civil
australiana, que tomavam posições dignas de registo, como, por exemplo, o ACFOA –
Australian Council for Overseas AID (Câmara Australiana de Assistência ao Ultramar) – que,
em finais de Agosto de 1975, na sua reunião anual, tomou uma série de posições
relativamente ao que se passava em Timor, tentando envolver o Governo australiano
num outro sentido:
– expressando a sua consternação pelo conflito que já ocorria em Timor, exigia
do Governo australiano que mostrasse uma conduta humanitária e ajudasse,
o mais rápido possível, a construir uma resolução justa;
– apelava ainda ao executivo australiano para: expressar o seu apoio ao princípio
de independência da escolha do povo timorense e opor-se a uma intervenção
externa que viesse influenciar o futuro estatuto do território; oferecer todas
as facilidades disponíveis para acabar o presente conflito; restabelecer o
consulado em Díli; e promover o desenvolvimento da assistência em Timor-Leste, onde já havia carência de bens essenciais, sobretudo na região de
Maubisse, de modo a restaurar a normalidade99.
– reconhecia que a situação era complexa, verificando-se um conflito entre o
princípio de autodeterminação consagrado na Carta das Nações Unidas e a incorporação na Indonésia, considerada pelos Países da região como a melhor saída
da colonização para Timor Oriental;
– este choque entre princípios e interesses (nacional e regional), por um
lado; contemplava também, por outro lado, a vontade de alguns dirigentes
indonésios, nomeadamente o Presidente, de que a incorporação resultasse de
um processo preparado com tempo suficiente para levar as forças políticas
genuínas de Timor-Leste a emergir;
– a posição australiana devia orientar-se sobretudo pelo interesse nacional e não
via como Timor independente podia interessar à Austrália;
– a longo prazo, o relacionamento da Austrália com a Indonésia situar-se-ia ao
nível dos mais importantes na política internacional, designadamente com o
Japão, EUA e possivelmente a China;
– a Austrália não devia opor-se ao que a Indonésia, apoiada por outros Países da
região, via como o seu interesse de segurança nacional;
– a autodeterminação era um princípio que a Austrália devia continuar a
enfatizar, mas não havia condições para um acto genuíno dessa natureza,
sendo um facto “de que podemos não gostar, mas ao qual temos que nos
habituar”, porque nem a incorporação na Indonésia nem um Governo da
FRETILIN, estabelecidos pela força, o constituíam;
– ao colocar o território perante esta alternativa, era Portugal que tinha falhado
e não a Indonésia;
– por mais que isso envolvesse contradição de princípios, os interesses da Austrália eram mais bem servidos com a incorporação de Timor Oriental na
Indonésia do que como um País independente; e
– como mediador, a Austrália devia resistir à tentativa de manipulação indonésia
no seu próprio interesse, e à eventual tentação de substituir Portugal na sua
incapacidade ou desinteresse, sendo o não envolvimento a atitude aconselhável100. A intenção deste diplomata parecia ser sobretudo a de persuadir
o ministro Peacock a modificar a sua posição pró-independência de Timor-Leste, aconselhando o não-envolvimento do País.
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
168
100
Idem, ibid., “Richard Alexander Woolcoot, Personal Letters”, A11.443, C4151643, SC6, 1975-1977,
documento da embaixada australiana em Jacarta para o Department of External Affairs, Jacarta, 4 de Outubro
de 1975.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
101
Cf. NA, Portuguese Timor-East Timor, “FCO15/1706: Political Situation in East Timor; including death of
journalists at Balibo (1975)”, ofício n.º M73, do Department of Foreign Affairs para o Foreign Office, Camberra,
31 de Outubro de 1975.
102
Idem, ibid., “FCO15/1707: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”,
ofício n.º M81, do Department of Foreign Affairs para o Foreign Office, Camberra, 29 de Novembro de 1975.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
169
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Mas, em 31 do mesmo mês, o Governo australiano fazia saber que estava
interessado em contribuir para a resolução pacífica do problema de Timor, de modo
a que o povo pudesse exercer o seu direito à autodeterminação, oferecendo o seu
território para conversações, enquanto responsabilizava os “imaturos aspirantes a
líderes políticos” dos partidos formados pelo clima de guerra civil instaurado, e
Portugal, pela deterioração a que a situação chegara desde o golpe da UDT (11 de
Agosto de 1975). Ao mesmo tempo que dizia compreender a apreensão da Indonésia,
referia ter insistido para que este País perseguisse os seus interesses por via
diplomática e esclarecido que se opunha ao uso da força. Numa séria advertência à
FRETIILIN, referia também que estava fora de questão a aceitação de um partido
como único representante de Timor Oriental101.
Nesta conformidade, a Austrália não reconheceu a declaração unilateral de
independência feita pela FRETILIN em 28 de Novembro de 1975, que os outros
partidos também não aceitaram, insistindo na responsabilização de Portugal, País
detentor da soberania102.
Com a formação de um novo Governo, presidido por Malcom Frazer à frente de
uma coligação liberal-conservadora, e à luz dos mais recentes desenvolvimentos em
Timor e dos procedimentos das Nações Unidas, a Austrália procedia a uma revisão
da sua política relativamente a Timor-Leste. Com efeito, as duas questões equacionadas
eram as seguintes: a Austrália aceita a incorporação de Timor português na Indonésia?,
e como pretende envolver-se nesse problema? Em 22 de Dezembro de 1975, o
secretário do Department of External Affairs recomendava ao ministro:
– a Austrália devia aceitar a incorporação de Timor Oriental na Indonésia para
que em breve parecesse um acto consumado;
– o País não deveria resistir a esta tendência, antes devia aceitá-la como a que
constituía no momento a melhor solução;
– havia, no entanto, que ter em conta uma sensibilidade regional para um
eventual envenenamento das relações entre a Indonésia e a Austrália;
– embora contra as presentes indicações, se os Indonésios fossem incapazes
de assegurar o controle de Timor Oriental, o Governo australiano devia estar
170
–
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
–
–
–
–
preparado para rever as suas políticas com vista a persuadi-los a aceitar algo
entre a incorporação e um mais genuíno processo de autodeterminação;
a Austrália devia permanecer como tinha estado, evitando tornar-se uma parte
principal do problema;
se a opinião regional e internacional aumentasse a pressão, a Austrália podia
ter de envolver-se no solo de Timor, não mais do que desejava, e excluir o
emprego das suas forças armadas;
a Austrália devia continuar a apoiar publicamente a necessidade de um
processo de autodeterminação em Timor e ainda que não achasse que ele
pudesse ser genuíno, devia encorajar a Indonésia nesse sentido;
era necessário continuar a explicar aos Indonésios as dificuldades internas
que se deparavam ao Governo australiano, devendo continuar a preveni-los
de que aceitavam os seus objectivos básicos da integração, mas necessitavam
de criticar publicamente os métodos utilizados; e
nas Nações Unidas, a Austrália não devia desempenhar o papel de apologista
da actuação da Indonésia, ao mesmo tempo que revelaria entendimento pela
sua especial posição, não estando na linha da frente dos seus críticos103.
Esta posição de princípio, já após a invasão indonésia, deixava caminho aberto
para um posterior reconhecimento, em 1978.
Entretanto, a situação humanitária em Timor Oriental havia-se deteriorado
fortemente. Com vista a manter em estado satisfatório de nutrição a população civil
e assistir aos refugiados no Timor indonésio, a Cruz Vermelha Australiana enviara
10.000 dólares para o ICRC – International Committee of the Red Cross (Comité Internacional
da Cruz Vermelha), sendo metade para um programa de assistência para cerca de
40.000 refugiados na metade ocidental da ilha, com um custo total estimado em
300.000 dólares para dois meses, em colaboração do ICRC com a Cruz Vermelha
Indonésia. A ajuda incluía ainda 100 toneladas de arroz e 50 toneladas de farinha, a
arranjar para distribuir nas semanas seguintes104.
103
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Submissions to Ministers and Briefs on Portuguese Timor”, A1838, C1505915,
SC3038/10/1/2 part 3, 1975-1976, documento, secreto, do Department of External Affairs para o ministro,
Camberra, 22 de Dezembro de 1975.
104
Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C150600, SC3038/10/15 part 1, 1975-1976,
telegrama n.º 1240, do Department of External Affairs para o primeiro-ministro australiano e outras entidades,
Camberra, 28 de Outubro de 1975, enviando o texto de uma conferência de imprensa dada pela Australian
Red Cross Society, em 22 de Outubro de 1975.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
105
Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C 150600, SC 3038/10/15 part 1, 1975-1976,
documento n.º 52, da Australian Red Cross Society, Camberra, 19 de Janeiro de 1976.
106
Cf. NA, Portuguese Timor-East Timor, “FCO15/1707: Political Situation in East Timor; including death of
journalists at Balibo (1975)”, telegrama n.º 236, imediato, da Missão do Reino Unido em Nova York para
o Foreign Office, Nova York, 8 de Dezembro de 1975.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
171
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Após a invasão indonésia, a Cruz Vermelha Australiana foi forçada a sair de Timor
Oriental. Em princípios de 1976, enviou 3000 libras australianas à sua congénere
indonésia para apoiar ali o seu trabalho, depois de, anteriormente, haver fornecido
uma quantidade de leite para ser distribuído pelos refugiados no Timor Ocidental.
Também a Cruz Vermelha Internacional teve que retirar, não tendo depois resultado
a pressão da Cruz Vermelha Australiana para que aquela voltasse ao território, de
modo a poder exercer as suas tarefas específicas conforme a Convenção de Genebra105.
De facto, os militares indonésios não queriam observadores no terreno e isso
sobrepôs-se às normas internacionais.
No imediato, a acção indonésia sobre Timor Oriental foi referida também por
Camberra como um objectivo de restabelecer a lei e a ordem que Portugal não tinha
sido capaz de preservar, considerando-o louvável, mas cujo uso da força era matéria
a acordar e a regular agora. Defendia também o Governo que devia tentar-se um
cessar-fogo e proporcionar uma oportunidade para que o Conselho de Segurança
tomasse deliberações de modo a garantir que tivesse lugar um acto de autodeterminação,
observado pela ONU e ao qual se esperava que a Indonésia respondesse
positivamente106. Para o Governo australiano, o acto estava consumado. Havia que
tentar minimizar-lhe os efeitos e procurar que a ONU viesse a empreender um
processo que lhe desse legitimidade. Perante as circunstâncias, parecia resignado e
tentava encontrar justificações para o pragmatismo que se ajustava aos seus interesses,
como acontecera em várias ocasiões anteriores.
Diferente foi a reacção de algumas organizações da sociedade civil australiana
perante a brutalidade usada pelos chamados “voluntários” indonésios sobre Timor:
No seu encontro de 17 de Dezembro de 1975, o ACFOA voltou à liça e apelou
ao Governo australiano para:
– se opor “à interferência externa destinada a influenciar o futuro estatuto de
Timor português” e ao uso da força;
– como organização humanitária, vendo-se impedido de prestar assistência
ao povo de Timor-Leste, solicitava também ao Governo australiano para que
tomasse as maiores iniciativas no que concernia: à ajuda ao estabelecimento
de uma zona neutra para refugiados e para distribuição no território; ao apelo
a todas as partes no conflito para que observassem a Convenção de Genebra;
à insistência para que a Cruz Vermelha Internacional pudesse seguir para
Timor imediatamente, a fim de poder prestar ajuda humanitária e fazer o seu
trabalho médico; e à oferta de facilidades aos refugiados para que pudessem
deslocar-se para a Austrália e ali serem acomodados;
– reconhecendo o impedimento ao programa de ajuda a Timor-Leste, o Governo
devia então suspender a entrega de duas aeronaves e toda a ajuda militar à
Indonésia até que ela cessasse a presente intervenção; e
– recomendava ainda ao Governo australiano para que desse o seu apoio ao
esboço de resolução do 4.º Comité das Nações Unidas e ainda mais fortemente
à acção das Nações Unidas, que solicitava a saída dos agressores e visava garantir
o princípio de independência de escolha ao povo de Timor português107.
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
172
Por sua vez, numa conferência de imprensa sobre a situação em Timor, dois
bispos australianos, J. Gleeson, the Chairman of Australian Catholic Relief e R. Mulkearns, the
Chairmain of the National Commission for Justice and Peace, apelaram a todo o povo da Austrália
e particularmente aos católicos para: rezarem para que o combate terminasse
rapidamente e não viesse a ocorrer uma guerra de guerrilha; apoiarem programas de
ajuda humanitária que esperavam poder continuar para que as vítimas daquela triste
situação não fossem forçadas a sofrer ainda mais; e oferecerem imediata hospitalidade
e socorro aos refugiados que solicitassem asilo e assistência na Austrália. A todos os
líderes políticos australianos apelavam para trabalhar no sentido de: uma acção
urgente das Nações Unidas que pusesse fim ao combate; uma rápida determinação
das Nações Unidas que facultasse a expressão dos desejos do povo de Timor-Leste,
livre de pressão ou interferência de forças externas; um efectivo programa de
refugiados por parte da Austrália; e um programa de ajuda humanitária108.
A convergência de pontos de vista no sentido de repúdio da acção violenta da
Indonésia, de empenhamento do Governo da Austrália junto da ONU, no próprio terreno
e na ajuda directa, bem como da sociedade australiana, evidencia uma visão muito
completa da situação e das implicações que o drama vivido pelas populações de Timor
havia de repercutir. Mas, os interesses políticos ofuscavam esta visão abrangente.
107
Idem, ibid., “FCO15/1708: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo
(1975)”, Anexo: “Press Release: Aid to Timor”.
108
Idem, ibid., “FCO15/1708: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo
(1975)”, Anexo: “Press Release: Statement on Timor”.
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109
Idem, ibid.,
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
173
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Com a retirada portuguesa, em 1975, ficava ainda pendente a questão da
plataforma petrolífera entre a Austrália e Timor.
O processo das negociações entre Portugal e a Austrália para a definição da
fronteira marítima de Timor, iniciado no longínquo ano de 1953 e que viria a
envolver mais tarde também a Indonésia, para o estabelecimento de uma linha de
demarcação comum, foi interrompido com a invasão do território por este País,
deixando para trás a questão conhecida por Timor Gap, com repercussões no apoio da
Austrália à anexação.
Com efeito, em 1971, a Austrália mostrara-se relutante em assinar um acordo
de fronteira marítima com Portugal, enquanto esta não tivesse sido definida com a
Indonésia. Nos dois anos seguintes, foi o Governo português que manifestou
interesse em diferir as negociações até depois da Lei da Conferência sobre o Mar,
prevista para a Conferência Internacional sobre Direitos Marítimos, a realizar em
Junho de 1974, em Caracas (Venezuela), onde se esperava que viesse a ser claramente
definida a regra da mediana, que o Governo português contrapunha à da plataforma
continental, preconizada pelo seu homólogo australiano.
Entretanto, em Janeiro deste ano, o Governo português autorizara o seu ministro
do Ultramar a assinar um acordo com a companhia americana Oceanic Exploration
Company, de Denver, à qual veio a conceder direitos de exploração de petróleo e
outros minerais, numa área submarina de cerca de 60.000 quilómetros quadrados.
Nos termos da concessão, a companhia devia sediar-se em território português
entre 60 dias após a assinatura do contrato. O seu capital inicial teria de ser de 1,5
milhões de escudos, e o Governo de Timor devia deter 20% das acções. A companhia
podia ter que recorrer a financiamento português ou estrangeiro, por empréstimos ou
títulos emitidos, podendo também, com a autorização do ministro do Ultramar, ser
associada a outras afins numa joint venture. Depois do período inicial de prospecção, a
concessão podia ser estendida por mais dois anos se a companhia pagasse, por ano, um
aluguer da superfície de 60$00 por quilómetro quadrados, sendo para cada extensão
posterior, pago, anualmente, a importância de 80$00 por quilómetro quadrado109.
Parte desta área no Mar de Timor era reclamada pela Austrália, como estando
dentro da sua jurisdição. Além do mais, segundo a versão australiana, a área cruzava-se com sete concessões garantidas ou renovadas a várias companhias de exploração
nacionais, entre 1963 e 1969. Além da desconfiança política, a essência da disputa
A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
174
situava-se no seguinte: enquanto a Austrália defendia que havia duas plataformas
continentais distintas nessa área, separadas pela “Baixa de Timor”, que se situa a
cerca de sessenta milhas a Sul daquele território e a trezentas milhas a Norte da
Austrália; Portugal sustentava a tese de que havia apenas uma plataforma continental
e que a linha média devia ser traçada entre a costa australiana e a de Timor. Em 25
de Março de 1974, perante a atitude portuguesa, o Governo australiano apresentou
um protesto oral através do embaixador de Portugal em Camberra, mas reiterava a
vontade de negociar, e esclarecia que a atitude e o protesto não se relacionavam com
os acontecimentos políticos ocorridos na Guiné-Bissau, como podia supor-se110.
A concessão efectuada por Portugal rejeitava também as bases do acordo firmado
em 1972, entre a Austrália e a Indonésia, que assegurava à Austrália o controle sobre
cerca de 70% do leito marinho entre o norte do País e a ilha de Timor111.
Em resposta ao protesto oral, o embaixador português entregou uma Nota,
contendo os pontos de vista do seu Governo:
– Portugal reconhecia apenas uma plataforma continental entre a Austrália e
Timor português e a linha média entre as respectivas costas como fronteira,
pelo que tinha feito uma concessão até esse limite do lado português;
– a concessão continha cláusulas que acautelavam um ajuste de fronteira
resultante de um eventual acordo internacional;
– a concessão, que restringia a companhia a certos tipos de prospecção sísmica
e magnética, era por um período inicial de 18 meses, renovável por outros
sucessivos de 12 meses, até a questão da fronteira estar definitivamente
resolvida entre Portugal e a Austrália; e
– Portugal rejeitava as declarações públicas do primeiro-ministro australiano
sobre a matéria, mas mantinha a sua vontade de negociar as fronteiras,
preferindo esperar pelo resultado da Conferência de Caracas112.
110
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Oil”, A1838, C1875689, SC756/2/4/1, 1955-1976, protesto contra Portugal
sobre as concessões de Petróleo no Mar de Timor. Veja-se também: IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas
Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório n.º 8/73 – G.U., confidencial, da
delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Agosto de 1973, Anexo: “Austrália
encara a séria Estância das Nações Unidas sobre a Baliza Marítima de Timor” (Tradução).
111
Veja-se: Geoffrey C. Gunn, ob. cit., pp. 281-282.
112
Cf. NAA, Portuguese Timor, “Australian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838,
C550911, SC3038/10/1 part 5, 1974-1975, documento do Department of Foreign Affairs, Camberra, 18 de
Abril de 1974.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
Cônsules da Austrália em Timor português (Díli)
1946-1971
1946-1947: Charles Eaton
1947: A Rigram (em exercício)
1947-1950: Henry White
1951-1952: N. McE Elliott
1953-1954: Vago
1955-1961: Francis Whittaker
1962-1964: James S. Dunn
1965-1967: D. W. Milton
1968-1969: John Denvers
1970-1971 (31 de Agosto): M. F. Berman.
O Consulado iniciou as suas actividades em 1 de Janeiro de 1946.
(Fonte: NAA, Portuguese Timor)
113
Cf. A. Barbedo de Magalhães, Timor-Leste – Interesses internacionais e actores locais, Vol. I: Da Invasão australo-holandesa à
decisão australo-indonésia de anexar, 1941-1974, Porto, Edições Afrontamento, 2007, pp. 203-204.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176
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A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália
Em 11 de Dezembro de 1974, foram concedidos direitos de exploração à
Petrotimor, um consórcio liderado pela American Oceanic Exploration e envolvendo
interesses portugueses. Mas este abandonou os escritórios em Díli e interrompeu os
trabalhos de prospecção, após o golpe da UDT113.
A questão da exploração do petróleo ficou nestes termos, de conflitualidade de
interesses entre Portugal e a Austrália, quando ocorreu a invasão indonésia do
território.
Após a retirada da administração portuguesa, continuou a verificar-se uma
grande ambiguidade por parte do executivo australiano, quer apoiando, durante
anos, a sua anexação pela Indonésia e reconhecendo-a, oficialmente; quer,
posteriormente, liderando a força que visou garantir o cumprimento do resultado
do Referendo de 1999.NE
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REFERÊNCIAS
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Carlos Alberto Damas*
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
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■ Abstract:
In order to restore “peace and unity with the French Republic” after the so-called “orange war”,
Portugal was forced to settle balances with the Napoleon demand for war compensation.
This study broaches the subject of the multiple terms, the vicissitudes and personal
business interests, commercial and others, that conformed to the governmental,
diplomatic, commercial and banking contacts pertaining to the bank loan effected in
1802 of 13 million florins, which would safeguard the sought-after neutrality of the
country in relation to the Napoleon advance.
The difficult negotiations – where amongst many important personalities D. Rodrigo
de Souza Coutinho and important businessmen such as Joaquim Pedro Quintela and
Jacinto Fernandes Bandeira as well as the main European bankers of the time were
involved –, reached a favourable agreement after mortgaging the diamond production
of Brazil as well as the income derived from the tobacco contract.
Introdução O PRESENTE ESTUDO – que constitui parte de uma investigação em curso – pretende
dar a conhecer aspectos porventura menos conhecidos das negociações empreendidas
pelo Governo português para a obtenção de meios financeiros no mercado externo,
que permitissem solver os compromissos que foi forçado a assumir, entre os anos
finais do séc. XVIII e os primeiros do século XIX.
Com recurso à intermediação dos negociantes Joaquim Pedro Quintela e Jacinto
Fernandes Bandeira, os governantes nacionais, com destaque especial para D. Rodrigo
de Souza Coutinho, Presidente do Real Erário de 1801 a 1803, procuraram – em
momentos diferentes, mas sempre para “satisfazer à França os interesses pecuniários
que S.A.R. se obrigou a dar-lhe...”1 –, o financiamento junto de duas das mais
prestigiadas casas bancárias da praça londrina.
*
1
Director do Centro de História do Grupo Espírito Santo.
• Centro de História do Grupo BancoEspírito Santo. ([email protected])
Aos Professores João Cosme (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) e Rita de Sousa (Instituto
Superior de Economia e Gestão, da Universidade Técnica de Lisboa) estou reconhecido pela disponibilidade
que tiveram para ler a versão inicial deste estudo. Agradeço também aos Técnicos Superiores de Arquivo,
John Orbell e Moira Lovegrove, do Baring Archive, em Londres, e à Joana Braga do IAN/TT a pesquisa de
documentação existente relacionada com este tema. IAN/TT, Livro de registo, Carta de D. Rodrigo de Souza
Coutinho a Cypriano Ribeiro Freire, 16 de Fevereiro de 1802.
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Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
Sir Francis Baring & Cº. e Henry Hope & Cº. (1797-1802)
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
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As dívidas tiveram a sua origem na participação portuguesa nas guerras
europeias, de “mau agouro”2 para o País, contribuindo para o agravamento das
débeis condições financeiras do Reino.
Esta comunicação faz uma primeira abordagem aos múltiplos condicionalismos,
vicissitudes e jogos de interesses, mercantis e outros, que envolveram os contactos
governamentais, diplomáticos, comerciais e bancários tendentes à efectivação dos
empréstimos.
Na primeira parte do texto esboça-se o contexto político e financeiro que
justificou o apelo aos empréstimos externos, após o que, e com os dados disponíveis
nesta fase da investigação, se explanam alguns dos aspectos mais significativos das
negociações.
E se, em 1797, as diligências dos governantes não lograram convencer os
potenciais credores, já em 1802, o empréstimo bancário de 13 milhões de florins
esteve na origem do lançamento da primeira emissão obrigacionista portuguesa nos
mercados internacionais.
A ideia para o desenvolvimento desta investigação foi sugerida pela leitura de
um texto evocativo do bicentenário do primeiro empréstimo obrigacionista
português (1802-2002), redigido por John Orbell, responsável pelos arquivos do
Baring, e editado pelo ING Bank, entidade bancária holandesa que, em 1995,
absorveu a Baring Brothers & Co. Ltd., banco de investimento e de gestão de activos
sedeado na capital inglesa.
De acordo com John Orbell, se a transação de 1802 representou um marco na
história fiscal e económica de Portugal, para o Barings, no mesmo ano, tal operação
foi igualmente um marco na sua história, por ter sido a primeira operação de relevo
daquela Casa Bancária no mercado dos empréstimos internacionais, razões suficientes
para que esse evento fosse de novo recordado, dois séculos depois.
1. Enquadramento político-financeiro Poucos anos após o eclodir da Revolução Francesa,
mais concretamente a partir de 1792, o nosso país viu-se envolvido na belicosa teia
que emergiu do choque de interesses económicos e políticos entre a Inglaterra e os
seus aliados e a França revolucionária e imperial.
No crepúsculo do século XVIII e no dealbar de Oitocentos, a Portugal parecia
não restar outra alternativa senão a “compra” da neutralidade, mas essa busca, bem
2
Jorge Braga de Macedo, Álvaro Ferreira da Silva e Rita Martins de Sousa, “War, taxes, and gold”, p. 209.
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3
4
António Ventura, “Uma cimeira ibérica em 1796”, p. 144.
Jeremy Black, How the French revolution stuck the Portuguese, p. 24.
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Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
cedo, viria a revelar-se uma miragem face aos condicionalismos estratégicos e
geográficos das potências beligerantes. Numa Europa acometida pelos ventos
revolucionários, a conflagração contra a coligação de países com os quais a Grã-Bretanha estabeleceu alianças (Rússia, Prússia, Áustria, Espanha e alguns principados
alemães), inicia-se com a declaração de guerra da França à Áustria e à Prússia em
Abril de 1792. A bandeira que a todos unia era a da restauração do trono francês. A
contragosto Portugal ver-se-ia também envolvido num conflito do qual, inicialmente,
procurara manter-se afastado, investindo antes numa política de frágeis compromissos,
consequência da sua posição “de grande debilidade, dependente do auxílio inglês e
dos caprichos egoístas da sua multissecular aliada”3.
Em Agosto de 1792, dias depois do destronar dos reis franceses, o governo
português rejeitou a tentativa austríaca para que o País participasse na coligação
europeia contra a França. A nossa participação nessa aliança só teria lugar caso a
Espanha fosse atacada, atitude que mereceu então a concordância do governo
inglês.
A morte de Luís XVI, em Janeiro de 1793, conduz a Espanha a declarar guerra
à França no mês seguinte. Esta retribui com uma dupla declaração de guerra à Grã-Bretanha e à Espanha, respectivamente em Fevereiro e Março de 1793. Estes
acontecimentos determinaram a assinatura de um convénio de mútua amizade e
socorros, em 15 de Julho de 1793, entre D. Maria I de Portugal e Carlos IV de
Espanha.
Por sua vez, o agravamento da tensão franco-britânica levou a Grã-Bretanha a
alterar a sua posição inicial, buscando o apoio activo de Portugal4. Na sequência dos
esforços diplomáticos então desenvolvidos, o Príncipe Regente, em 26 de Setembro,
assinou a convenção luso-inglesa de mútuo auxílio.
Assim se iniciava o que tem sido designado como o nosso afrontamento com a
“dolorosa supremacia francesa”.
Em Setembro, um corpo expedicionário português constituído por cerca de
6000 homens comandados pelo militar escocês John Forbes, junta-se ao exército
castelhano da Catalunha. Aí tiveram lugar as campanhas do Rossilhão, chegando o
exército luso-castelhano a ameaçar as cidades de Bayonne e Perpignan, com as forças
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
180
portuguesas a ocuparem as povoações de Ceret e Villeneuve. Contudo, a contra
ofensiva francesa, a partir de finais de 1793 obrigou à retirada precipitada dos
efectivos portugueses e espanhóis, a que se seguiu a derrota dos realistas francesas,
apoiados por efectivos anglo-castelhanos, em Toulon, em 19 de Dezembro desse
ano, mercê da estratégia de um desconhecido militar, de seu nome Napoleão
Bonaparte.
A retaliação das forças do Directório prosseguiu na Catalunha e em Navarra, no
segundo semestre de 1794, e chegou ao País Basco, onde as cidades de S. Sebastián,
Bilbao e Vitória foram ocupadas.
Estes sucessos forçaram Godoy a assinar, em Julho de 1795, o Tratado de Paz de
Basileia5, pelo qual a Espanha reavia (liquidando as esperanças dos partidários da
autonomia basca) as povoações ocupadas, em troca da cedência6 de metade da ilha
de S. Domingo aos franceses. Madrid juntava-se assim à França revolucionária
deixando Portugal isolado.
Nesse período e durante algum tempo apenas, a República revolucionária intensifica
a guerra marítima, através do corso, contra o aliado continental do seu principal
inimigo, pressionando a Coroa portuguesa a negociar a paz. Mas, nesse teatro líquido
da guerra o poder naval britânico iria infligir sucessivos desaires à já enfraquecida força
naval da Convenção e ao seu forçado aliado, a Espanha de Carlos IV.
Em Agosto de 1796, os dois Estados pirenaicos assinavam o Tratado de Santo
Ildefonso, que mais contribuiu para desequilibrar a situação em desfavor de Portugal.
Com efeito, num dos artigos secretos desse convénio o monarca espanhol obrigava-se a influenciar ou, se necessário, a forçar Portugal a fechar os portos aos ingleses
logo que a guerra fosse declarada, “e o Directório Executivo da República Francesa
promete à Espanha todas as forças necessárias para esse efeito, se Portugal ousar
resistir à vontade de Sua Majestade Católica”.7 Como consequência, na primeira
semana de Outubro a Espanha declara oficialmente guerra à Grã-Bretanha.
A estratégia da “corte das Tulherias” (expressão de Acúrsio das Neves) obtivera
o que sempre desejara, ao separar uma grande potência como a Espanha da sua
natural aliança com a rival insular.
5
Com o mesmo nome, Tratado de Paz de Basileia, a França assinou convenções com a Prússia, em 5 de Abril e
com o Landgrave de Hesse-Cassel, em 28 de Agosto.
6
Que era virtual, como nota Michel Kerautret em Les grands traités du consulat (1799-1804), p. 51
7
4º Artigo secreto do Tratado de aliança de Santo Ildefonso, in Michel Kerautret, Les grands traités... p. 57.
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8
Marten Buist, At spes non fracta. Hope and Co., 1770-1815. Merchant bankers and diplomats at work, p. 383.
António Ventura, Uma cimeira ibérica em 1796, p. 148.
10
Em 1807, François de Beauharnais, embaixador francês na corte de Madrid, descrevia ao seu Ministro das
Relações Exteriores a personalidade do “Príncipe da Paz” nestes termos: “É falso, velhaco e ignorante”.
Cf. Thierry Lentz, p. 14.
11
Jorge Borges de Macedo, O bloqueio continental, p. 38.
9
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Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
Por sua vez, a posição política portuguesa estribava-se na aliança com a Grã-Bretanha, condição que não quis romper, declarando a sua neutralidade no conflito
anglo-espanhol.
Alguns investigadores, ao analisarem os rumos diversos que os dois países
ibéricos tomaram nas circunstâncias de então, não entenderam as razões predominantes
da nossa ligação à corte de Jorge III, decorrente da secular aliança luso-britânica. Tal
foi o caso de Marten Buist ao considerar que, “Portugal foi incapaz de seguir o
exemplo da Espanha na busca da paz”8.
Com efeito, se examinarmos atentamente as variáveis que se apresentavam e as
condições geo-estratégicos que determinaram o comportamento de cada um dos actores
neste cenário, a atitude portuguesa foi a mais consentânea com os interesses nacionais.
Já os espanhóis, sem muitas alternativas, e atendendo até a que, e como assinala
António Ventura9, o Pacto de Família entre a Espanha e a França assinado em 1761,
continuava ainda em vigor, Manuel de Godoy, o jovem primeiro ministro espanhol10,
lançou a Coroa dos Bourbons na órbita do seu vizinho do norte, no tempo em que
Napoleão Bonaparte, Comandante em Chefe do Exército francês em Itália, somava
vitórias para a bandeira tricolor. Recorde-se que na península italiana a Espanha
tinha interesses que procurava – em vão – acautelar, o que era uma razão mais para
justificar a oscilante política de Carlos IV.
A diplomacia portuguesa, debatendo-se entre a cedência a um “compromisso
continental [que] só podia afectar o equilíbrio da estrutura económica com que
Portugal se integrava na conjuntura mundial”11, e a fidelidade à aliança inglesa, que
pretendia honrar, movimenta-se para que o país não fosse obrigado a uma opção em
definitivo pelas alternativas que se lhe apresentavam, para mais quando, não só as
deficiências do exército português, mal equipado e mal organizado, não eram de
molde a sugerir qualquer envolvência em campanhas militares, como a debilidade
das finanças públicas não deixavam margem para acções mais adequadas.
No Outono de 1796, António de Araújo de Azevedo, representante português na
capital holandesa, inicia, em Paris, negociações para a assinatura de um Tratado de
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
182
paz a troco de um pagamento de 3 milhões de cruzados (aproximadamente 10 milhões
de libras tornesas, ou 1,2 milhões de libras esterlinas), cujo empréstimo pelo mesmo
montante, em Março de 1797, a Coroa portuguesa procuraria, sem êxito, assegurar
junto de banqueiros londrinos, como veremos.
Em paralelo com a acção diplomática, e para fazer prover o exaurido tesouro
público, a Rainha autoriza o Real Erário “a aceitar todo o dinheiro que se oferecer por
via de empréstimo, até á quantia de dez milhões de cruzados, a juro de cinco por cento
em cada um ano”.12 Aos credores eram entregues apólices de 100$000 cada,
constituindo estas títulos de dívida da Real Fazenda que podiam circular como letras
de câmbio. Em Março do ano seguinte, este empréstimo foi ampliado para 12 milhões
de cruzados, ficando os novos mutuantes, a vencer um juro de 6% e isentos do
pagamento da décima.
Meses depois, a 10 de Agosto de 1797, em Paris, ficou estabelecido o pagamento
de 10 milhões de libras tornesas e a permissão de entrada anual de apenas 6 navios
ingleses nos portos nacionais. Mas a Grã-Bretanha, confrontada com o lento desfazer
da coligação antigaulesa que averbava derrotas sucessivas, opôs-se aos termos do
Tratado, que não foi ratificado por Portugal.
A situação de incumprimento provocou na França napoleónica, a subida de tom
da irritação contra a Coroa portuguesa, que mantinha abertos os seus portos aos
navios britânicos.
Meses depois, o Tratado de Campo Formio, entre a França e a Áustria, assinalou
o fim da 1.ª coligação europeia, deixando a Grã-Bretanha quase isolada na luta que
lhe movia o seu adversário.
No decorrer de 1799, e com o vizinho reino ibérico cada vez mais submetido aos
ditames dos interesses franceses, D. João – entretanto nomeado regente do Reino –,
procura não só quebrar o isolamento diplomático, como defender os interesses
comerciais e estratégicos do país, subscrevendo Tratados de amizade e comércio com
a Rússia, a regência de Tripoli e o bei de Tunes, no mesmo ano em que o general
Bonaparte recebia o título de Primeiro Cônsul.
Em Maio de 1800, Armand Lebrun Houssaye, Chefe de Brigada do 3.º Regimento
dos hussardos ameaçava: “Portugal não quer fazer a paz connosco? Conquistá-lo-emos”.
No dia 1 de Outubro do mesmo ano, a França e a Espanha celebram o 2.º Tratado
de Stº. Ildefonso, pelo qual o reino de Carlos IV devolve – em troca de abstractas
12
Resolução régia de 29 de Outubro de 1796, in Colecção de Legislação Portugueza..., p. 327.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
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Em Agosto de 1800, Napoleão dizia a Talleyrand que o general Berthiez, enviado
para Madrid como ministro plenipotenciário, “devia exortar, por todos os meios
possíveis, a Espanha a fazer a guerra a Portugal”. 14 E tão bem o fez que Carlos IV – pai
de Carlota Joaquina de Bourbon, Princesa espanhola e futura Rainha de Portugal – ,
em 27 de Fevereiro de 1801, e sem esperar pelas tropas francesas, declarou guerra a
Portugal, com o objectivo de forçar o nosso país a fechar os portos à Grã-Bretanha.
Fazendo-se eco da fraseologia do Primeiro Cônsul, os seus partidários
apregoavam o mesmo que, em muitas outras circunstâncias e noutros contextos,
seria dito aos povos submetidos ao domínio recente da França napoleónica: “É para
restituir à nação portuguesa a sua independência e o seu antigo poder, é para quebrar
os seus ferros e arrancá-la a uma vassalagem humilhadora, que Bonaparte levou a
guerra a Portugal. Ele quer regenerar esta nação, dar-lhe o conhecimento das suas
forças e a energia que em outro tempo animou os conquistadores das Índias e os
13
14
Damião Peres, História de Portugal, Vol. VII, p. 281
Thierry Lentz, Les relations franco-espagnoles, p. 8.
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Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
promessas em obter territórios na Toscânia –, o antigo domínio francês da Louisiana.
Cerca de dois anos depois, em 30 de Abril de 1803, Napoleão, por não poder
defender todos os seus domínios coloniais, tratou de vender por 60 milhões de
francos esse território aos Estados Unidos que, por intermédio dos Baring, emitiu
um empréstimo obrigacionista no valor de 11, 25 milhões de dólares.
Da Grã-Bretanha, Portugal não poderia esperar grande auxílio, tendo mesmo o
seu representante diplomático em Lisboa, John Hookman Frere, aconselhado o
governo português a armar-se “quanto lhe fosse possível”13, no mais curto espaço
de tempo. Nesta fase, e até ao armistício celebrado entre Napoleão e o Czar Alexandre
da Rússia, em 1807, a estratégia inglesa delineada por William Pitt assentava no
apoio maciço em dinheiro, armas e abastecimentos às potências da Europa (Prússia,
Áustria, Rússia), não fazendo Portugal parte das suas prioridades estratégicas.
A esperança britânica em conter as ofensivas napoleónicas nos principais países
das diversas coligações, a terceira e última das quais, formada em 1805, um ano
antes do falecimento do líder britânico, foi varrida pelas vitórias sucessivas de
Napoleão e dos seus cabos de guerra.
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
184
rivais castelhanos; ele quer ser o protector de um povo oprimido, e colocá-lo naquela
ordem que devem ocupar os senhores do Brasil e do Tejo”.15
Os dados estavam lançados e o tempo era escasso para tomar previdências. Ainda
assim, o Regente do Reino procurou suprir o esgotamento dos recursos financeiros
lançando mão de mais um empréstimo público. No preâmbulo do alvará de 7 de
Março de 1801 diz D. João que, havendo procurado “por todos os meios compatíveis
com o decoro (...) evitar que a guerra acendida na Europa envolvesse os meus fiéis
vassalos...”, para fazer face a despesas extraordinárias no aprovisionamento do Exército
e da Marinha, era necessário ter recursos também extraordinários e, nesse sentido,
ordenava “sem perda de tempo” a abertura de um empréstimo de 12 milhões de
cruzados.
Aproximadamente dois meses depois, a 20 de Maio, as tropas espanholas,
comandadas por Manuel Godoy, invadem o território português tomando as praças de
Olivença, Juromenha e Campo Maior, que se entregaram sem luta, circunstância que
não deixou de intrigar o senhor dos franceses, desconfiado que uma guerra tão curta
não poderia ter origem senão num entendimento entre Godoy e os portugueses.16
Duas semanas após a chamada “guerra das laranjas”, a 6 de Junho, Portugal é
coagido a assinar, em Badajoz, dois Tratados de paz, com cada uma das potências
belicistas. Num deles, a Espanha, para além de obrigar Portugal ao pagamento de
uma vexatória indemnização pelos danos e prejuízos causados pelas embarcações da
Grã-Bretanha ou de Portugal durante a guerra, e ainda, a compensar o tesouro
espanhol pelos débitos que as suas tropas deixaram de satisfazer quando se retiraram
da guerra de França, ficou com a posse de Olivença. No outro Tratado, com a França,
entre outras cláusulas, ficou consignado que, até à assinatura da paz entre a França e
a Grã-Bretanha, os portos e ancoradouros portugueses seriam interditos aos vasos de
guerra e de comércio ingleses, em contrapartida da sua abertura aos da República e
seus aliados. No clausulado secreto, o Príncipe Regente obrigava-se ao pagamento de
15 milhões de libras tornesas, metade em dinheiro, metade em pedras preciosas.
As condições estabelecidas nessas convenções não agradaram ao Primeiro Cônsul
que exigiu a anulação dos Tratados, obrigando Portugal a submeter-se a um outro
convénio, assinado em Madrid, datado de 29 de Setembro pelos ministros plenipo-
15
“Tableau historique et politique des opérations militaires et civiles de Bonaparte”, citado em Acúrsio das Neves,
História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, vol. I, p. 164.
16
Thierry Lentz, Les relations franco-espagnoles, p. 9.
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***
Em Outubro de 1801, e para dar satisfação às suas obrigações em troca da “boa
paz e união com a República Francesa” que o Príncipe do Brasil por decreto de 28
17
O Art.º 6.º dos preliminares de paz de Londres, estabelecia que os territórios e as possessões ultramarinas
portuguesas manteriam a sua integridade.
18
Eugénio Tarlé, Napoleão. Vol. I, p. 206
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185
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
tenciários Cipriano Ribeiro Freire e Luciano Bonaparte, dois dias antes da assinatura,
em Londres, dos preliminares de paz das hostilidades franco-britânicas,
A indemnização de guerra a pagar por Portugal foi agravada para 20 milhões de
libras tornesas, para além do estabelecimento de novos limites entre as Guianas
francesa e portuguesa, que beneficiavam generosamente o domínio territorial
francês. A Coroa espanhola, que recusou revogar o Tratado de Badajoz, foi ameaçada
de perder a ilha de Trindade se cumprisse as cláusulas assinadas com o Regente
português.
A paz temporária que os dois inimigos acordaram em 1 de Outubro17,
contribuíra para diminuir a tensão. O momento de as tropas francesas invadirem
Portugal, não obstante a compra da neutralidade, ainda não chegara.
Para já, essa “neutralidade” representava um provento de 2,5 milhões de libras
tornesas para o orçamento do estado francês, a juntar aos muitos outros milhões
extorquidos às nações sob o seu domínio, efectivo ou não.
Para Eugueni Tarlé, “um dos aspectos mais característicos das finanças
napoleónicas, era considerar as despesas de guerra, como despesas “ordinárias” e
nunca extraordinárias”.18 Para que isso acontecesse, Napoleão e os seus marechais
utilizavam todos os pretextos, reais ou fictícios, para que no orçamento do estado
francês não existissem despesas extraordinárias. De entre os muitos contribuintes
forçados, nos anos finais do século XVIII, para além de Portugal, citem-se os casos
do Duque de Parma que, em 1796, na luta que opunha franceses a austríacos no
decorrer da campanha de Itália, não obstante a sua declarada neutralidade viu não só
o território do Ducado ser atravessado pelo exército de Napoleão, como teve ainda
de pagar uma contribuição de 2 milhões de francos. Ou, um ano depois, quando o
Papa Pio VI foi obrigado, pelo Tratado de Tolentino, datado de 19 de Fevereiro, a
comprar a paz, que lhe garantia a posse dos territórios pontifícios, mediante a
entrega de 30 milhões de francos ouro.
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
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desse mês mandou observar, Portugal enceta os primeiros contactos com os
banqueiros Baring de Londres, com vista à emissão, no mercado internacional, de
obrigações no valor de 13 milhões de florins19, tema sobre o qual nos debruçaremos
mais adiante deste estudo.
Entretanto, a 26 de Março de 1802, e para dar corpo à nova política francesa em
relação a Portugal, chega a Lisboa o General Jean Lannes, representante diplomático
que Napoleão nomeara em Novembro do ano anterior, para tratar dos interesses
daquele país junto da hesitante corte portuguesa, na sequência do Tratado de paz
luso-francês assinado no final de Setembro, em Madrid.
A chegada do representante do Primeiro Cônsul, “excedeu as expectativas de
Bonaparte, exasperou a delegação diplomática britânica e deixou preocupados os
emigrados franceses”20. Segundo nos indica Margaret Crisawn, no notável artigo que
dedica à missão do General Lannes em Lisboa, a sua missão consistia em proteger os
interesses da França, particularmente à custa dos da Grã-Bretanha.
Considerando que parte do governo português, ao não promover a aplicação
prática do bloqueio aos navios de Sua Majestade Jorge III, e em demorar o
cumprimento das cláusulas do Tratado de Madrid, evidenciava uma posição servil
perante os interesses do seu principal inimigo, o militar francês desenvolve uma
estratégia de permanente confrontação. Para isso, não hesita em socorrer-se de
atitudes pouco consentâneas com o cargo que exercia21. O intuito era o de forçar o
Regente a demitir alguns dos ministros, considerados anglófilos, propósito que viria
a conseguir. D. Rodrigo de Souza Coutinho e Pina Manique eram dos “anti-franceses”
que Lannes mais queria ver afastados das funções que desempenhavam. Em relação
a este último, só os argumentos dos seus ministros é que levaram o Príncipe Regente,
a não demitir o Intendente, depois de ter prometido fazê-lo. Com efeito, na sequência
de um incidente com um ajudante de campo do general francês, este ameaçou
abandonar o seu posto e regressar a França, a menos que Pina Manique fosse afastado.
Não tendo alcançado os seus intentos, Lannes concretizou a ameaça, partindo para
França em 10 de Agosto de 1802. Para D. João, a “abrupta e inconvencional” saída
19
O equivalente a 80 milhões de euros.
Margaret Chrisawn, A military bull in a diplomatic China shop: Jean Lannes’s mission to Lisbon 1802-1804.
21
Em carta datada de 5 de Abril de 1803, Souza Coutinho levava ao conhecimento de Talleyrand a “incivilidade”
do seu representante em Lisboa, que chegava ao ponto de “interromper o Príncipe Regente a meio de uma
frase” (Vd. Margaret Chrisawn, Ob. cit.)
20
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
187
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
do embaixador constituiu, numa primeira fase, motivo de alarme e preocupação.
Mas, em 1803 – já depois do retorno de Lannes a Lisboa – D. João acabou por ceder,
afastando-o do cargo de Administrador Geral da Alfândega.
Quanto a D. Rodrigo de Souza Coutinho, as pressões que sobre ele se exerceram,
levaram-no a apresentar a demissão a 15 de Novembro. D. João, consciente da
decisiva acção do Conde de Linhares na condução das finanças públicas, num
primeiro momento recusa a pretensão. Meses depois, e sem que Lannes abandonasse
os seus intentos, o nosso Ministro das Finanças vê deferida pelo Príncipe Regente a
sua exigência, sendo exonerado a 31 de Agosto de 1803. Outros dois portugueses
com cargos oficiais da mais alta importância foram sacrificados, também em 1803,
em consequência da perseguição do representante diplomático francês: o embaixador
português em Paris, Dom José Maria de Souza e o Ministro dos Negócios Estrangeiros,
Dom João de Almeida Mello e Castro, que foi substituído no cargo pelo Visconde de
Balsemão, Luís Pinto de Souza Coutinho.
Por essa ocasião já o general francês regressara a Lisboa, reenviado por Bonaparte.
Com efeito, desde 10 de Março de 1803 que o cidadão Lannes voltara a incomodar
todos quantos resistiam às exigências da França. No Outono de 1803, D. João acabou
por ceder em grande parte às imposições apresentadas pelo diplomata gaulês para
grande desapontamento do embaixador britânico, Lord Robert Stephen Fitzgerald,
que assistia ao dissipar da sua influência na Corte portuguesa. Segundo Crisawn, que
vimos citando, Lannes tirou partido do seu novo estatuto junto do Regente para
exigir a assinatura de um Tratado que substantivasse a nova correlação de forças.
Em 3 de Junho, e na sequência do apresamento de um navio-correio inglês feito
ao largo de Bordéus por um barco pirata francês que transportava um volume
contendo 15.000 quilates de diamantes portugueses – consequência do reassumir
das hostilidades entre a França e a Inglaterra – D. João decreta a proibição do acesso
de corsários das potências em guerra aos portos portugueses, com o intuito de
“regular o inviolável sistema da neutralidade”. Mas a tentativa da Coroa esbarrou
com a intransigência francesa que considerou de nulo efeito tal declaração.
Das conversações diplomáticas que se seguiram – em que já participou D. Luís
de Vasconcelos, sucessor de Souza Coutinho –, no último trimestre de 1803, foi
redigido um acordo secreto entre Portugal e a República Francesa, que recebeu a
assinatura de D. João em 19 de Dezembro. Pressionado pelo Primeiro Cônsul a
introduzir alterações mais favoráveis à França, a chamada convenção franco-portuguesa de neutralidade e de subsídios, foi formalmente assinada por Lannes e
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
188
por José Manuel Pinto de Souza 22 a 19 de Março de 1804. Nela se estipulava que as
obrigações impostas a Portugal pelo Tratado de 29 de Setembro de 1801, e para
garantir a neutralidade, fossem convertidas “num subsídio pecuniário de 16 milhões
de francos” 23, a par da concessão de facilidades comerciais às mercadorias franceses
(sedas, panos de linho e algodão, rendas, cambraias e joalharias). Portugal ficava
obrigado a liquidar, um mês após a ratificação do convénio, em dinheiro, o valor
correspondente às prestações desde 1 de Dezembro de 1803; o resto do subsídio
seria liquidado através de obrigações no valor de um milhão de francos,
sucessivamente pagáveis de mês a mês até à liquidação da responsabilidade.
Para a concessão de um empréstimo suplementar que suportasse os novos
ditames, Bandeira ainda sondou as casas Hope e Baring. Mas no contexto da guerra
reaberta, a operação foi considerada desaconselhável pelos banqueiros.
Por sua vez, a reacção inglesa não se fez esperar: o governo britânico considerava
que o pagamento de qualquer subsídio português à França seria considerado, como
“um acto de ajuda aos inimigos de Sua Majestade [e lhe] dava o direito de considerar
Portugal como um inimigo”24.
Poucos anos faltariam para que, após a instituição do bloqueio continental, em
Novembro de 1806 e a celebração da paz com a Rússia, assinada em Tilsit, a 8 de
Julho de 1807, o imperador Napoleão Bonaparte dispusesse do tempo e dos meios
necessários para se dedicar a Portugal, nação que nunca deixara de ter debaixo da
sua atenção e vigilância, para mais quando a adesão dos portugueses ao bloqueio não
se verificara.
Duas semanas depois, a 27 de Julho, as tropas francesas, com o apoio castelhano,
a quem foi prometida uma parcela do território português, começaram a concentrar-se em Bayonne, preparando-se para a invasão. A 12 de Agosto, o representante
diplomático francês em Lisboa apresentou um ultimatum, exigindo o rompimento
22
Representante diplomático português em Estocolmo.
Michel Kerautret, ob. cit,, p. 305-307. Na documentação consultada, esta é a única vez em que a designação
da moeda francesa aparece em francos. Segundo Rodrigues de Brito, “ainda hoje em França a livra tornesa, posto
que já ideal e imaginária, e que vale cento e cinquenta e um réis e 70/100, serve para o cômputo das contas(...)”. In Memórias
políticas, p. 162. Segundo Damião Peres (História de Portugal, vol. VI, p. 277), o valor da indemnização era
de 18 milhões de libras.
Esta convenção foi anulada em 1 de Maio de 1808 pelo Manifesto e artigo adicional que D. João fez
publicar no Rio de Janeiro.
24
Margaret Crisawn, ob. cit.
23
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
2. O primeiro pedido de empréstimo (1797) “Os banqueiros não gostam da guerra,
mas não desdenham as oportunidades de negócio que os acasos da guerra lhes
proporcionam”25. A asserção de Philip Ziegler adapta-se bem às vicissitudes que a
eclosão das guerras da França revolucionária semeou na Europa depois de 1789, e
aos benefícios que estas proporcionaram aos irmãos Baring, prestigiados banqueiros
ingleses, aos quais Portugal recorreu pela primeira vez em 179726.
* *
*
No final do século XVIII, a firma dos irmãos Baring era já uma das mais antigas
e conceituadas casas bancárias da city londrina, e à qual, no decurso dos séculos
seguintes, viriam a recorrer os mais diversos governos estrangeiros na mira de
empréstimos que solvessem problemas domésticos ou financiassem iniciativas de
grande valor.
Fundada em 1762, a partir da actividade de um merchant bank, esta Casa Bancária
no decorrer do tempo foi objecto de várias alterações na sua designação social: de
John & Francis Baring & Cº., no ano da fundação para Sir Francis Baring & Cº. (1801)
e Baring Brothers & Cº., de 1807 em diante. A importância desta Casa no contexto
das instituições bancárias europeias era de tal modo relevante que, em 1818, Armand
du Plessis, Duque de Richelieu, ainda Presidente do Conselho e Ministro dos
25
26
Philip Ziegler, The sixth great power, p. 55.
Em 1762, Martinho de Melo e Castro, representante diplomático português em Londres, solicitava os bons
ofícios de John Perceval, 2º Conde de Egmont (então membro da Câmara dos Lordes e futuro Primeiro
Lord do Almirantado) para a obtenção de um empréstimo de 200 mil libras que desse ao Tesouro
português os meios necessários para a defesa do Reino, ameaçado de invasão das tropas franco-espanholas
ao abrigo do Pacto de Família., no contexto da guerra dos Sete Anos. (IAN/TT – Ministério do Reino, Maço
616, Caixa 178, 27 de Setembro de 1762).
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
189
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
das relações de Portugal com os ingleses. Sem resposta, a 29 de Novembro, um dia
após o embarque de D. João e da sua corte para o Brasil, as tropas de Junot passam
a fronteira portuguesa consumando a ocupação do extremo ocidental do Atlântico,
na intenção de fechar definitivamente uma das portas de entrada das mercadorias
inglesas na Europa.
Mal sabia o então imperador dos franceses que a resistência de guerrilha que lhe
foi movida nos estados peninsulares marcaria o início do fim do seu “reinado”.
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
190
Negócios Estrangeiros francês, nomeava as seis grandes potências europeias de
então: França, Inglaterra, Áustria, Rússia, Prússia e Baring Brothers27.
A prosperidade destes banqueiros, acrescida nos anos em que os britânicos
procuravam restaurar o trono dos Bourbons em França, devia-se em grande parte ao
pragmatismo dos seus responsáveis, como atesta a subida da média anual de lucros
no período de 1794 a 1798, de 33.077 libras para 93.984 libras no lustro seguinte.
Mas não só.
Em Fevereiro de 1793, Henry Hope, merchant banker anglo-holandês foi obrigado
a abandonar Amsterdão e a sair do país, quando se deu a primeira tentativa de
invasão do território pela França. Segundo Buist, que citamos, em Londres
constituíram a firma Henry Hope & Cº. Poucos meses depois regressou à praça de
Amsterdão onde permaneceu até Outubro de 1794, altura em que retornou a
Londres acompanhado de John Williams Hope, quando os revolucionários da
Convenção, numa segunda ofensiva, preparavam a tomada final da República das
Províncias Unidas, no Inverno de 1794/1795. Levava consigo perto de quatro
centenas de obras de arte, que constituiu “um dos maiores e mais bem documentados
exemplos, de transferência de capital do continente europeu antes da chegada da
Revolução Francesa e dos seus exércitos”28.
Na capital inglesa, onde os negócios bancários eram conduzidos pelos irmãos
Baring, a junção da sua experiência em transacções do mercado de capitais com a
actividade seguradora do comércio internacional de mercadorias dos banqueiros
holandeses, concorreu para criar, o que Larry Neal designa como uma “unique
combination”, a qual durou mais de um século, beneficiando de forma notória a
importância e os ganhos que a John e Francis Baring tal parceria proporcionava.
* *
*
A abordagem a estas casas bancárias, seria feita em 1796 por dois dos mais
importantes negociantes de Lisboa, Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes
Bandeira que, segundo Jorge Pedreira, as escolheram com base em antigas relações
de negócio. Com efeito, “a firma Henry Hope & Co. pretendera, por mais de uma vez,
27
28
John Orbell, Baring Brothers & Cº., Limited. A history to 1939, p. 23.
Larry Neal, The rise of financial capitalism, p. 180.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
***
A partir do Verão de 1796 as trocas de correspondência entre os agentes da coroa
portuguesa, Bandeira e Quintela, e as casas bancárias Insinger, de Amsterdão, e Hope
e Baring, de Londres, em momentos diferentes, ilustram as vicissitudes que rodearam
a frustrada operação, com intervenções de permeio, dos irmãos Stephens (John e
William), da Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande.
Inicialmente a proposta portuguesa era a de obter um empréstimo de 1,2 milhões
de libras (cerca de 11 milhões de cruzados), sobre hipoteca de diamantes, a depositar
no Banco de Londres, que cobrissem não só o valor do empréstimo, como os juros,
num total de 2 milhões de libras. Joaquim Pedro Quintela, na fase preliminar de
contactos com os banqueiros, ainda no decorrer de 1796, dirige-se quase em
simultâneo a Londres e a Amsterdão, diversificando as possíveis fontes de financiamento,
precavendo-se desse modo para a hipótese de um deles não aceitar a operação.
29
Desde 1765 que a casa Hope & Cº. de Amsterdão, tentava obter o contrato dos diamantes. Para o efeito, de
acordo com Buist, os contactos com Portugal foram processados através do representante diplomático
dinamarquês em Lisboa.
30
Jorge Pedreira, Os homens de negócio da praça de Lisboa (1755-1822). Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo
social, p. 180 e segs.
31
Idem, ibidem.
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191
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
arrebatar a Daniel Gildemeester o monopólio da venda dos diamantes no
estrangeiro29. Nunca atingira o seu desiderato mas, em 1791, conseguira fazer-se
escolher por Joaquim Pedro Bandeira, o novo concessionário, para seu agente em
Amsterdão”30.
Quanto a Francis Baring, considerado “porventura a personagem mais influente
da City na transição para o séc. XIX, mantinha um antigo relacionamento comercial
com John Standley, negociante britânico em Lisboa que servia também como
guarda-livros a Jacinto Fernandes Bandeira”31.
Sobre a primeira tentativa de obtenção de financiamento nos mercados
internacionais em 1796/1797 são escassas as referências a tal pedido, provavelmente
por o mesmo não ter chegado a concretizar-se. A ela aludem, de forma muito
sucinta, Philip Ziegler e Marten Buist nas histórias dos Baring e Hope. Contudo, a
mesma documentação a que tiveram acesso contém abundante informação que
justifica uma análise mais aprofundada, particularmente a que se encontra em
Londres.
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
192
Em carta datada de 25 de Junho, remetida a H. Insinger, entre outras questões
abordadas, o negociador português pedia que este disponibilizasse a soma em
questão, caso o empréstimo solicitado a Henry Hope, de Londres, (a quem primeiro
se dirigira) fosse recusado, como veio a acontecer.
Em 18 de Julho o responsável da Insinger & Cº., em carta dirigida ao agente português, dizia responder “muito mal à confiança que deposita em mim, devido à
situação precária a que nos conduziu a ruinosa guerra, e ao esgotamento das nossas
finanças”32.
Ao longo da missiva espraiava-se em alegações diversas, argumentando que o
governo holandês para encontrar dinheiro tivera de recorrer a empréstimos internos
forçados, acrescentando: “se emprestássemos ao estrangeiro soma tão considerável, o
nosso governo poderia acusar-nos de anti-patriotismo. Os procedimentos de um
empréstimo do Rei da Sardenha são ainda muito recentes na memória de cada um,
para que não cause embaraços num negócio que é, um pouco, da mesma
natureza”33.
Alguns dias depois, Quintela replicou dizendo que conhecia muito bem os “avis
publics”, segundo os quais havia pouco dinheiro em circulação. E, quanto a
Amsterdão, acrescentava: “Mas para uma cidade tão rica e fértil, e que em dois anos
emprestou tantos milhões ao Imperador, 3 milhões de cruzados são uma bagatela”34,
e com fina ironia terminava dizendo que a hipoteca que oferecia aos emprestadores
num dos “ditos” bancos públicos, ou nas suas próprias mãos, se assim o quisessem,
“est pour le moins aussi bien sure que la promesse d’une tête couronnée”.
Prevendo que do mercador-banqueiro holandês não obteria quaisquer fundos, e
conhecendo a conflitualidade existente no mercado distribuidor dos diamantes, J P
Quintela pressiona-os, dizendo que poderia procurar noutro país quem lhe fizesse o
empréstimo, estando para isso disposto a fazer o depósito dos diamantes em
Hamburgo ou Londres “de tantas pedras para 4 milhões de cruzados”, em troca da
obtenção da quantia dos ditos 3 milhões, “que me é necessária sobre hipoteca”.
Na documentação existente nos arquivos do extinto Baring Brothers & Cº. Ltd.
(actual ING Baring Holdings, Ltd.), em Londres, este assunto é retomado em Fevereiro do
32
Baring Archive, NP, 1 A-19.7. Carta de H. A. Insinger a Joaquim Pedro Quintela, 18 de Julho de 1796.
O rei da Sardenha obtivera um empréstimo de 200.000 francos da casa holandesa, sobre hipoteca de
diamantes aí depositados, no valor de 11 milhões de francos. Mas, com a tomada de Amsterdão pelos
franceses, esse tesouro foi confiscado. Apesar desse esbulho, Insinger garantia a Quintela: “pode dizer-se
que estamos em paz com os portugueses, e que a propriedade da vossa nação será respeitada aqui”.
34
Baring Archive, NP, 1 A-19.7. Carta de Joaquim Pedro Quintela a H. A. Insinger, 25 de Julho de 1796.
33
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35
Baring Archive, NP, 1 A-19.7. Carta de Jacinto da Costa Bandeira para Sir Francis Baring, 21 de Fevereiro de
1797.
36
As actuais ilhas Reunião e arquipélago das Comores.
37
John James Stephans (1748-1826), irmão e sócio de William Stephans. Após a morte deste em 1802, herdou
a Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande (Cf. Maria Cristina Pancada Correia, A Marinha Grande sob o sopro
do vidro, De c. 1748 a c. de 1810. Lisboa: 2002, p. 57. Tese de Mestrado em História Local e Regional. Faculdade
de Letras de Lisboa (Texto policopiado).
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
193
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
ano seguinte, através da carta que Jacinto Fernandes da Costa Bandeira remeteu a Sir
Francis Baring, banqueiro a quem recorreu, após a recusa de Insinger.
Embora as condições propostas fossem as mesmas (empréstimo de 1,2 milhões
de libras por hipoteca de diamantes), Bandeira avança com uma outra garantia
hipotecária, no caso de a oferta não ser satisfatória: a penhora ou mesmo a venda das
ilhas de Timor, Solor e Boléu, ou ainda, se necessário, o território de Moçambique35,
esclarecendo que as ilhas asiáticas eram “todas subordinadas a Goa, e que nos dizem
ter alguns bons portos, abundância da melhor madeira de sândalo, cera e algumas
mercadorias necessárias à China”. Francis Baring, entusiasmado com as garantias
territoriais, dá a conhecer o assunto ao Gabinete britânico, na pessoa do seu Primeiro
Ministro, William Pitt. Aduzindo razões para persuadir o governo a concordar com
o empréstimo, argumentava que as ilhas poderiam ser utilizadas pela Companhia da
Índias Orientais. Acrescentava ainda que a East Indian Company podia usufruir, o “rico
reino e ilhas de Moçambique, um excelente porto na costa oriental de África, lugares
esses que, em tempo de guerra, podem refrear os franceses das ilhas Bourbon36 e da
Maurícia”.Tendo presente a situação de guerra no continente europeu, crescentemente
dominado pelos seus inimigos, acrescentava que as ilhas e territórios portugueses
“podiam ser hipotecados e de grande utilidade para o comércio africano da East Indian
Company”, logo que a navegação pelo Cabo da Boa Esperança fosse restabelecida.
Pedia uma resposta pronta do Governo inglês, uma vez que, sendo o empréstimo
politicamente aprovado pelo Governo de Sua Majestade Britânica, o Príncipe Regente
de Portugal encarregaria o seu representante em Londres, de ratificar as condições
do acordo, entregar os penhores, receber as prestações a dinheiro e adequar os
prazos de resgate.
À cautela, o banqueiro expediu no mesmo dia uma cópia desta missiva a John
James Stephans37, negociante inglês há muito radicado em Portugal. O memorando
“muito secreto” em que respondeu ao banqueiro, começava por confirmar que a
carta de Bandeira com vista à abertura das negociações para o empréstimo, havia sido
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
194
sancionada pela Corte, embora sem a concordância unânime do governo quanto à
proposta de hipotecar Moçambique ou as ilhas da costa ocidental africana.
De forma muito pragmática, Stephans dizia que se a East Indian Company quisesse
emprestar o dinheiro, os territórios oferecidos podiam ser aceites. Mas acrescentava:
“se bem que tenham bons portos, como garantia privada não servem para nada”;
donde, se o empréstimo fosse concedido pela Casa Bancária John & Francis Baring & Cº.
, os penhores deveriam ser ou em diamantes ou com a hipoteca dos rendimentos do
contrato do tabaco ou da Alfândega. Não se esqueceu de oferecer os seus préstimos
para participar na negociação com os portugueses, dos quais poderia obter na
“presente emergência” em que se encontrava o governo de Lisboa, um juro de 7%
ou mesmo um pouco mais, com as garantias em mão.
A 7 de Março de 1797, em carta dirigida à firma William & John James Stephens & Cº,
de Lisboa, Sir Francis dizia que procurava obter outros pareceres, uma vez que “a
situação deste país no que se refere aos seus poderes pecuniários e recursos é tão
frágil e tão diferente do que já foi”. O entusiasmo perante as condições oferecidas
pela Coroa portuguesa, levava-o a considerar que, muito embora as dificuldades em
Inglaterra fossem grandes devidas à escassez de capital, entendia que elas não eram
obstáculos intransponíveis.
Sem dúvida que a tentação era grande. Mas era necessário obter previamente o
aval político do governo britânico. No dia 14 de Março, William Pitt recebeu pessoalmente o banqueiro a quem comunicou as suas reservas quanto à possibilidade de ser
concedido o empréstimo a Portugal. Justificava-se dizendo recear “que as condições
actuais e a situação difícil que Portugal atravessava, aconselhavam o impedimento do
empréstimo” 38. O Primeiro Ministro enjeitou a hipótese de venda, ou mesmo a
cedência temporária das possessões ultramarinas portuguesas, deixando claro que,
no caso dos banqueiros avançarem com a transacção, esta seria exclusivamente da
responsabilidade privada dos emprestadores.
Não era pois, o momento ideal para o governo servir de garante a operações de
financiamento a governos estrangeiros, ainda que, e estritamente em termos
políticos, Pitt encarasse com bons olhos o sucesso da operação de ajuda ao seu aliado
continental.
Ao tempo o governo inglês debatia-se com crescentes dificuldades financeiras,
não obstante o recurso continuado ao aumento dos impostos sobre os mais variados
38
Baring Archive, NP, 1 A-19.7. Carta de Francis Baring para William & John Stephens, 14 de Março de 1797.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
39
40
Idem, ibidem.
Publicada em D. Rodrigo de Souza Coutinho, Textos políticos económicos e financeiros, vol. II, p. 103-105.
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195
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
produtos (chá, tabaco, açúcar, bebidas alcoólicas, cavalos, entre outras). Apesar
dessas medidas o défice orçamental continuaria a subir, atingindo em Novembro de
1797, 22 milhões de libras, situação que a breve prazo iria tornar insustentável a
posição do primeiro-ministro britânico.
Falhada a tentativa de obter a garantia do governo inglês, o interesse de Francis
Baring na operação ficou seriamente comprometido. Em nova carta que enviou aos
irmãos Stephans dava conta da recusa governamental em apoiar o empréstimo, e
acrescia alguns outros argumentos de interesse para este estudo. Desde logo a
constatação de que “não sendo para a Coroa portuguesa muito agradável entregar
parte das suas possessões territoriais nas mãos de privados, o assunto ficava confinado
aos diamantes e às rendas do tabaco...”. Entrava depois no que considerava a “parte
mais desagradável deste assunto”, a saber, a preocupante situação em que Portugal,
e mesmo outros países, se encontravam no que se referia a operações monetárias a
que, e no caso concreto da Corte de Lisboa, se somava a sua frágil situação política.
E rematava o seu raciocínio do seguinte modo: “It maybe necessary to observe to
you, that it will be impossible to procure bills on Portugal, to remit for large sums,
and we have no gold to send”39.
Mediante o cenário de risco e sem apoio político, os irmãos Baring optaram por
recusar, em data que desconhecemos, a proposta de Jacinto Fernandes Bandeira.
Recorde-se que, quase em simultâneo com as diligências dos negociantes portugueses para obtenção do empréstimo na Grã-Bretanha, o governo português –
depois de a Espanha, em Outubro de 1796, ter declarado guerra aos britânicos –,
procurava outras fontes para aumentar os seus recursos financeiros, diante de um
quadro que, tudo indicava, seria de guerra iminente. Assim, por alvará de 13 de
Março, o empréstimo interno de 10 milhões de cruzados, decretado em 29 de
Outubro do ano anterior, foi actualizado para 12 milhões.
Muito embora do lado inglês a recusa já estivesse assumida, em Portugal, ainda
em Abril de 1797, D. Rodrigo de Souza Coutinho, a pedido do Regente, dava o seu
parecer acerca deste empréstimo40.
No plano que elaborou prova, através de cálculos detalhados, que para realizar
esta operação bancária, só o pagamento de juros a 5% num período de 25 anos
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
196
atingiria o valor de 1,33 milhões de libras, excedendo os 1,2 milhões do empréstimo
pedido, além de que os ingleses obrigavam ao depósito, no Banco de Inglaterra, de
diamantes que garantissem o total do empréstimo e dos juros. Razões bastantes para
que Souza Coutinho – para mais quando se conhecia a generalizada descapitalização
do tesouro público, geradora de uma natural desconfiança sobre a nossa solvência –
fosse de parecer que o empréstimo não deveria sequer ser tentado. Nesta conjuntura
o responsável pelo Erário Régio “aproveitou a ocasião para concluir a favor de uma
reforma completa da administração da Fazenda Real, acompanhada da reforma da
fiscalidade”41.
Nos anos seguintes, o governo português iria procurar – através do aumento das
rendas e recorrendo ao endividamento interno – fazer face às despesas extraordinárias
para a defesa do Reino, operações essas cuja análise não cabe neste breve estudo42.
3. O primeiro empréstimo obrigacionista português (1802) Como “os tiros que o governo
francês despedia sobre Londres reverberavam sempre para o Tejo”43, cinco anos
depois, e sem que a almejada neutralidade pudesse ser alcançada, a Corte de Lisboa
ver-se-ia obrigada, uma vez mais e pelas razões já aduzidas na primeira parte deste
trabalho, a voltar ao mercado internacional e ao auxílio dos banqueiros ingleses.
Se a primeira tentativa da França revolucionária em 1795, para colocar Portugal
sob o domínio da Espanha, acabou por não se concretizar, a segunda, em 1801,
resultou na invasão do Alentejo, com a anexação de Olivença, e na assinatura de
outro Tratado nos termos ditados pelos vencedores. Era mais uma tentativa para, por
um lado, forçar o derradeiro aliado continental dos ingleses a aderir à estratégia de
Napoleão para quem o controlo sobre Portugal se tinha tornado essencial44 e, por
outro, a prova de que a defesa da neutralidade que o país perseguia, mais não era do
que um adiar do que viria a ocorrer em 1807.
Para comprar a paz e retomar a soberania sobre o território, Portugal assina,
primeiro o Tratado de Badajoz, no qual se previa o pagamento de uma indemnização
41
Nota de Andrée Diniz Silva in D. Rodrigo de Souza Coutinho, Textos políticos, económicos e financeiros
1783-1811, Tomo II, p. 103.
42
Sobre esta matéria vd.: Luís Espinha da Silveira, “Aspectos da evolução das finanças públicas portuguesas nas
primeiras décadas do século XIX (1800-27)”; Nuno Valério et allia, As finanças públicas no Parlamento português.
Estudos preliminares.
43
José Acúrsio das Neves, História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, vol. I, p. 180.
44
Sandro Sideri, Comércio e Poder. Colonialismo informal nas relações anglo-portuguesas, p. 173.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
45
Marten G. Buist, At spes non fracta. Hope and Co., 1770-1815. Merchant bankers and diplomats at work, p. 387. Este autor
refere uma primeira aproximação, feita em Março de 1800, por Quintela a Henry Hope & Cº. para a
concessão de um empréstimo que foi recusado. Esta firma, no entanto, manifestava-se disposta a avançar,
em conjunto com a casa Sir Francis Baring & Cº., uma quantia de 100.000 libras esterlinas, por um prazo
de 2 anos, a um juro de 6%, e 5% de comissão, garantido por 40.000 quilates de diamantes avaliados em
147.000 libras esterlinas.
46
Idem, ibidem.
47
De entre as condições impostas pelos banqueiros estrangeiros, ressalta a obrigação do Príncipe Regente
decretar a prorrogação do contrato geral de tabaco por mais 9 anos sem ir à praça, “com o aumento de
cem mil cruzados por ano, “assegurando a Quintela, Bandeira, Cruz Sobral e demais sócios o monopólio
da venda deste produto. (Decreto de 8 de Fevereiro de 1802). O produto do contrato ficava consignado
ao cumprimento das obrigações para com os emprestadores, “na parte que for necessária”.
Ver tb. Raul Esteves dos Santos, Os tabacos, p. 49 e Fernando Dores Costa, Crise financeira, dívida pública e
capitalistas 1796-1807, p. 78.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
197
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
de guerra no valor de 15 milhões de libras tornesas, importância esta que a voracidade de Napoleão subira, pelo Tratado de Madrid, de Setembro de 1801, num
primeiro momento para 25 milhões, que depois reduziu para 20 milhões, a realizar
em dinheiro, pedras preciosas e outros valores comerciais.
No final do mês seguinte (Outubro de 1801), John Standley aborda a Casa
Baring quanto à possibilidade de um empréstimo de 300.000 libras esterlinas a
conceder à Coroa portuguesa, pedido que obteve parecer favorável45. Segundo Buist,
o governo francês exigia a Portugal o pagamento de 4 milhões de cruzados em
dinheiro, diamantes no valor de 3 milhões, e outros 3 milhões em algodão e açúcar,
sendo que 1/3 destes valores deveriam ser satisfeitos até meados do mês seguinte,
isto é Novembro.
Contudo, pouco depois, os franceses mudaram de opinião e exigiram que a
exacção fosse satisfeita na sua totalidade em numerário. Por essa razão Standley
propôs ao seu correspondente o aumento para 1,2 milhões de libras esterlinas.
Nas abordagens iniciais junto do banqueiro Francis Baring este recomendou ao
governo português a participação de Quintela, uma vez que lhes parecia “insensato
ignorar uma tão respeitável e poderosa casa”46. Esta circunstância veio determinar o
afastamento, nesta operação, de John Standley, que assim viu gorada a possibilidade
de auferir as elevadas comissões que se propunha.
Em Novembro, a Coroa portuguesa, através dos já mencionados negociantes
Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira47, formalizou junto da casa
bancária Sir Francis Baring & Cº., um pedido de empréstimo, por dez anos, no total de
13 milhões de florins (1,2 milhões de libras esterlinas), mediante o lançamento de
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
198
uma emissão obrigacionista nos mercados internacionais. Portugal garantia a
operação por via de um depósito imediato de diamantes no valor aproximado de
300.000 libras esterlinas, e para o pagamento dos juros e comissões, a hipoteca das
rendas dos tabacos e das propriedades da Coroa.
Em princípios de Dezembro de 1801, George Baring, filho do sócio principal
da casa bancária londrina, acompanhado do banqueiro Pierre Labouchère, da firma
Hope & Cº. empreendem um tormentosa viagem até Lisboa, onde chegam a 28 de
Janeiro do ano seguinte para negociarem, in loco, as condições da operação.
Refeitos da lenta travessia dos Pirinéus48, efectuada no dorso de mulas depois da
fracassada tentativa de alugarem um barco em Bayonne, logo que aqui chegou,
Labouchère desdobrou-se em diligências, numa intensa actividade pluridisciplinar
(advogado, contabilista, banqueiro, tradutor)49, a fim de, segundo dizia, no mais breve
espaço de tempo possível Portugal poder dispor da quantia que lhe era necessária.
Segundo Buist, uma das primeiras decisões tomadas foi a de transferir a operação
para a casa Hope & Cº., de Amsterdão por sugestão dos banqueiros londrinos, o que
seria de interesse da Coroa portuguesa também “porque os empréstimos estrangeiros
eram difíceis de colocar em Inglaterra e muito dispendiosos”50.
Mas, de acordo com o preâmbulo do contrato terá sido o banqueiro inglês
quem, face ao elevado montante da operação, propôs que a Casa Hope & Co., então a
operar em Londres, participasse na operação a fim de se “juntar a eles para a recolha
da dita soma de um milhão e duzentas mil libras esterlinas (...)”51.
Assim, com a anuência do governo português, as casas Baring e Hope concertavam esforços e dividiam responsabilidades.
A 8 de Fevereiro de 1802, um dia após o genro de Sir Francis ser recebido por
D. Rodrigo de Souza Coutinho, o Príncipe Regente emitia a carta de confirmação e
aprovação das condições que regulavam esta operação financeira52, consignando no
48
O percurso de Bayonne a Madrid demorou 9 dias. Cf. Buist, p. 389.
The bicentenary of the 1802 Kingdom of Portugal bond issue, p. 4.
50
Buist, p. 390. Mas não só por estas razões. Tinha sido previamente acordado que o grau de participação de
cada casa seria de 5 para 2, assumindo a Hope & Cº., o maior quinhão.
51
IAN/TT, Livro de Registo, Contrato para o empréstimo de treze milhões de florins, 19 de Fevereiro de 1802.,
fólios 1 a 5.
52
Os textos da confirmação e aprovação das condições do empréstimo (ambos com data de 8 de Fevereiro)
estão transcritos em: D. Rodrigo de Souza Coutinho. Textos políticos, económicos e financeiros, 1783-1811, Tomo II, p. 256
e seguintes; Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real (1761-1808). Vol. 420, fls. 172-181.
49
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
*
Semanas depois os intermediários portugueses informavam a Casa Hope & Cº. que
a bordo do navio “Príncipe de Gales” seguia a primeira de uma série de 6 caixas,
contendo 20 000 quilates de diamantes brutos do Brasil, com destino à Casa Bancária
53
Na sequência desta condição de banqueiros da Coroa portuguesa, em 22 de Junho de 1802, a operação de
compra pela Real Fábrica da Cordoaria de 14.000 quintais de cânhamo, foram dadas instruções ao cônsul
português em Riga, Venceslau Teodoro Gama, para que o pagamento fosse feito através de saques sobre a
Casa Baring, a liquidar pela Casa Dias Santos.
54
Na realidade apenas de 11.050.000 florins, depois de deduzidas as comissões e outras taxas.
55
IAN/TT, Livro de Registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Cypriano Ribeiro Freire, 16 de Fevereiro
de 1802, fl. 7.
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199
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
parágrafo 8º, que as casas Sir Francis Baring & Cª. e Hope & Cº. fossem consideradas
“como banqueiros e agentes especiais da minha real Coroa, tanto na Holanda, como
na Inglaterra”53.
Na semana seguinte D. Rodrigo de Souza Coutinho expediu uma carta para os
representantes diplomáticos de Portugal em Madrid e em Paris dando-lhes conta das
condições do empréstimo de 13 milhões de florins54 acabado de negociar.
Em aberto ficava o take over price da operação, acordado provisoriamente em 92%,
devido ao estado precário dos mercados de crédito na Europa. Os negociadores
bancários anteviam mesmo as dificuldades de circulação de uma nova emissão
obrigacionista à taxa de 5%, o que levou a Corte, nas negociações, a aceitar o prejuízo de 8%, que posteriormente viria a fixar-se nos 10%.
No dia 2 de Março, Labouchère e Baring partiram de Lisboa, com destino a
Gibraltar, de onde rumaram a Paris, que alcançaram a 17 de Abril.
Na capital francesa esperava-se que Pierre Labouchère pudesse fazer alguns ajustes
com vantagem para a Fazenda Real. Nas missivas diplomáticas eram dadas instruções
para que junto do representante da Casa Baring se mostrasse “o sistema que se deve
seguir de exagerar aos franceses a dificuldade que há em se achar os sobreditos fundos,
a fim de que ele tente se pode descontá-los com vantagem para a Coroa de Portugal”55.
Em concreto, a Cypriano Ribeiro Freire pedia-se que “se puder sem comprometimento
fazer vacilar o governo francês sobre a possibilidade da exacção dos pagamentos na
época prometida”. Foi esta a alternativa aceite pelos franceses, sendo o primeiro pagamento fixado para antes de 1 de Junho de 1802. Situação que se ajustava igualmente às
pretensões dos banqueiros, então a braços com a participação num empréstimo ao
governo britânico que lhes imobilizava boa parte dos fundos disponíveis.
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
200
Sir Francis Baring & Cº. “a quem enviaremos nos barcos seguintes todos os outros
diamantes que se encontram no nosso tesouro real, e os que esperamos este ano do
Rio de Janeiro”56. Depositadas no Banco de Inglaterra as pedras preciosas seriam
entregues à consignação da firma Insinger & Cº., de Amsterdão, que se responsabilizava
pela sua venda.
Os pormenores relacionados com a transacção dos diamantes e os diferentes
interesses envolvidos nesse negócio vêm descritos num capítulo da obra de Marten
Buist, intitulado “The portuguese diamond loan”, assim como os diversos incidentes
que entretanto ocorreram, radicados na situação política em que a Holanda se via
envolvida, e que teve como consequência a recusa dos governantes batavos em
autorizar que a emissão obrigacionista tivesse lugar em Amsterdão.
Recorde-se, a propósito, que neste período vivia-se a denominada “paz
experimental”, entre a França e a Grã-Bretanha, decorrente do Tratado de Amiens,
circunstância que a casa Hope & Cº. aproveitou regressar a Amsterdão. Para esse
ressurgimento no mercado financeiro do seu país, Henri Hope contava precisamente
com o lançamento dos títulos portugueses, esperando com isso assegurar para a
então República da Batávia, o comércio de diamantes, em detrimento da Grã-Bretanha.
*
Assegurada a operação e reajustados os prazos de liquidação, em 6 de Maio, o
Príncipe Regente, “havendo consignado para o pagamento dos fundos e interesses
do empréstimo (...) não só o produto dos diamantes que existiam no meu Real
Erário e dos que a ele vierem enquanto o mesmo empréstimo não se extinguir, mas
também o que for preciso aplicar das mesadas e quartéis do preço do actual
Contrato Geral do Tabaco, e da prorrogação que por esta causa mandei fazer...”
autoriza o Ministro das Finanças que os descontos que eventualmente tivessem de
ser feitos nas mesadas, fossem não só creditados na conta do tesouro público, “mas
também que sejam infalíveis e inalteráveis sem que lhe obstem casos ou ocorrências
extraordinárias porque a todos deve prevalecer o contrato e convenção assim
celebrados”57.
56
Baring Archive, NP, 1 A-19.8. Carta de Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira, 25 de Fevereiro
de 1802.
57
Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real (1761-1808). Vol. 420, fl. 172.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
*
Na sequência dos compromissos estabelecidos, a 14 de Maio de 1802, o
tesoureiro do governo francês, o cidadão Estève, recebeu os primeiros 3 milhões de
libras tornesas58 entregues pelas casas Perregaux & Cie. e Baguenault & Cie., através de
saques sobre a Hope & Cº.
Os pagamentos seguintes, com início em 30 de Junho de 1802, seguir-se-iam
ao ritmo de 1 milhão por mês, até 31 de Agosto de 1803. A estes 18 milhões de
libras tornesas juntavam-se os 2 milhões em dinheiro metálico que, em Março ou
Abril, os negociadores portugueses deveriam entregar em Lisboa, a Leclerc, cunhado
de Napoleão, para financiar a expedição que este, em 1802, enviou para conter a
rebelião que se declarara na ilha de Santo Domingo, no ano anterior.
Contudo, em Junho, e porque os 2 milhões de libras “se achavam aqui
demorados”, a França exigiu a sua entrega em Paris, operação que foi realizada pelos
negociantes Quintela e Bandeira, não sem que o governo português diligenciasse
através de D. José Maria de Souza, nosso embaixador em Paris, para que este entrasse
em negociações “para ver a indemnização que o governo francês quer conceder
pelas despesas que houve com a remessa destes fundos para Lisboa, e de Lisboa para
Paris, pois é sempre essencial não fazer maiores sacrifícios do que aqueles que são
necessários”59.
Neste período as pressões do governo francês eram tais que em quase todo o
expediente trocado entre Souza Coutinho e os seus correspondentes, se fazia eco das
“insistentes solicitações deste governo que devora tudo, e cuja inquietante ambição
não tem nem repouso nem limite”60. O receio do poderio francês estava sempre
presente e era patente nas missivas do correio diplomático.
58
Cerca de 1 440 000 florins. (Uma libra tornesa em 1803 era equivalente a 0,48 florins, cf. Buist, p. 394)
IAN/TT, Livro de registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a D. José Maria de Souza, 15 de Junho de 1802.
60
Idem, ibidem.
59
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
201
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
Quanto aos diamantes, nas cláusulas do contrato provisório celebrado com
Labouchère ficara estabelecido que os mesmos constituíam a garantia principal do
empréstimo. Tanto os que se encontravam à data no Tesouro Régio, avaliados em
250.000 libras esterlinas, como todos aqueles que, mal chegados a Lisboa, seriam
enviados para depósito no Banco de Inglaterra, e que seriam vendidos à medida das
necessidades da Hope & Cº.
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
202
***
Em 18 de Janeiro de 1803 a casa holandesa dirigia a D. Rodrigo de Souza
Coutinho uma carta, fazendo o ponto da situação do empréstimo português, de que
esta Casa Bancária passava a ser então única responsável, assim como o acompanhamento
das contas para que o Real Erário as conferisse. Segundo a documentação disponível,
no mês anterior os banqueiros ingleses deixaram de assumir a gestão principal do
empréstimo, consignando o negócio definitivo à casa de Amsterdão.
Depois de fazer prova na boa vontade da Hope & Cº., o sócio principal, Henry
Hope, dizia que “apesar das dificuldades dos tempos e das circunstâncias, o nosso
zelo e a nossa dedicação não foram de modo algum retardados, e que se preferimos
o sistema da prudência, não dando a Sua Alteza Real esperanças que os acontecimentos
pudessem desmentir, estamos no entanto vivamente compenetrados da importância
de que esta operação possa efectuar-se nos termos acordados no seu começo”61.
Dava a conhecer que a perseverança do governo holandês ao não autorizar a
assinatura das obrigações por um notário local, coagia a uma “pequena alteração, não
na obrigação original, que está concebida de maneira a servir em todos os casos”, mas
na solicitude de Jacinto Fernandes Bandeira e de Joaquim Pedro Quintela, que deviam,
em Lisboa, procurar a assinatura de um notário nas reimpressas “obrigações parciais”
que a Casa Sir Francis Baring & Cº. mandara fazer, nas quais a palavra “Amsterdão” fora
substituída por “Londres”. Os títulos seriam, a pouco e pouco, enviados para Lisboa
por via marítima, após o que retornariam a Amsterdão para a assinatura dos banqueiros
que asseguravam a operação. Este incidente esteve na origem de algum atraso no
lançamento das obrigações no mercado holandês, suportando os banqueiros os
“dissabores” decorrentes do imprevisto acontecimento.
Este episódio motivara já uma carta, em Agosto do ano anterior, de Souza
Coutinho a João Paula Bezerra, nosso representante em Haia, para que procurasse
remover “todas estas dificuldades e conseguir do governo batavo que consiga a favor
de uma potência amiga aquelas mesmas facilidades que tem acordado a respeito de
outras potências, e que são muito conformes aos seus interesses económicos, dando
um novo movimento ao comércio que existe entre os dois países”62. Mas, ao que
61
Baring Archive, NP, 1 A-19.8. Carta da firma Hope & Co. a D. Rodrigo de Souza Coutinho, 18 de Janeiro de
1803.
62
IAN/TT, Livro de Registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a João Paulo Bezerra, 20 de Agosto de 1802,
fl. 21 v.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
63
Os atrasos na chegada dos diamantes a Londres, que eram objecto de constantes reparos de Sir Francis Baring,
obrigaram o Presidente do Real Erário a esclarecer que “o distrito dos diamantes no Brasil estava bastante
afastado das costas, para que as ordens da Corte aí chegassem tão prontamente quanto os desejos de Sua
Alteza Real” (Carta de 20 de Novembro de 1802).
64
Baring Archive, NP, 1 A-19.8. Carta de Henry Hope para John Standley, 18 de Janeiro de 1803.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
203
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
consta, as diligências não tiveram sucesso, em parte devido à frágil situação política
holandesa, então “colonizada” pela França.
Ainda pela missiva de 18 de Janeiro de 1803, já mencionada, ficamos ainda a
saber da pouca receptividade dos investidores em subscrever as obrigações. Contudo,
a Hope & Cº. estava esperançada nos esforços que envidaria para que fosse possível a
subscrição da totalidade das 13 000 obrigações. E fazia esta profissão de fé, na
sequência da carta que o responsável pela Fazenda Pública portuguesa enviara a
Francis Baring, justificando o atraso na entrega dos diamantes do Brasil, “que
esperamos com impaciência pela feliz chegada”.
Na longa exposição que a Casa Hope & Cº. juntava à contabilidade da operação,
ressalta as cautelas com que estes banqueiros, não obstante os sucessivos protestos
protocolares pela consideração que tinham para com Souza Coutinho e para com o
Príncipe Regente, não deixaram de fazer notar que os progressos da emissão, estavam
dependentes da chegada ou não dos diamantes necessários para cobrir o
investimento63. Mas não só. A qualidade das pedras preciosas fazia também oscilar a
conta corrente, resguardando-se sempre os banqueiros com o argumento de que
“até que possamos reconhecer o valor das parcelas esperadas, não podemos dar às
nossas vendas toda a actividade que desejamos”, razão pela qual não podiam adiantar
valores a crédito da Coroa portuguesa. A conta corrente, no final de Dezembro de
1802, acusava um saldo positivo de mais de 3 milhões de florins a favor de Portugal,
quando ainda faltava saldar junto do governo francês prestações no valor de 8
milhões de libras tornesas (cerca de 3,8 milhões de florins). O défice resultante seria
liquidado através de saques mensais de 100 000 libras sobre Quintela ou Bandeira.
Na mesma data, numa outra carta remetida para Lisboa, John Williams Hope,
confessava a John Standley, e depois de dar nota da conta-corrente do empréstimo,
que se tinha convertido à ideia de que Portugal “tem mais do que amplos meios para
providenciar todas as suas necessidades, desde que possa, por muito tempo, ser
governado com a mesma sabedoria e moderação”64.
A elogiosa referência tinha como destinatário D. Rodrigo de Souza Coutinho,
responsável pelas finanças públicas portuguesas que, com determinação e empenho,
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
204
vinha desde 1801 a implementar o programa de saneamento das contas do Estado.
Segundo Cardoso, “a coerência e determinação com que [D. Rodrigo] defendia uma
orientação anti-francesa na política externa, em Junho e Agosto de 1803, viriam a
ser a última oportunidade de demonstrar que queria estar no governo para exercer
a sua política(...)”65. O que era verdade. Datado de 20 de Junho de 1803, Souza
Coutinho, a pedido do Regente, lavra um parecer sobre a compra da neutralidade à
França66, onde manifesta a opinião de que “as proposições da França não podem de
modo algum ser aceites em primeiro lugar porque nenhuma potência poderia
actualmente dar 36 milhões de libras67 sem recorrer a empréstimos (...). Para o
responsável pelas finanças públicas, melhor seria utilizar tal quantia na defesa de
Portugal, sustentando a sua independência “do que sujeitar-se a um sistema de
escravidão perpétuo” tornando o Regente feudatário do governo francês. Incita D.
João a defender-se, pondo-se “à testa da sua Nação, ou para morrer independente
com ela na Europa, ou para ir em último resultado criar um grande império no
Brasil” e de onde pudesse vir a retomar os seus domínios no continente europeu.
Justifica-se aqui uma nota sobre a subscrição das obrigações portuguesas.
Segundo Buist (p. 403), no final de 1802, das 5.000 obrigações vendidas, 3.418
foram adquiridas pela Casa Hope; esta revendeu 1.793 títulos a diversos membros
da sua família, enquanto 942 foram contabilizadas nas reservas da Casa Bancária,
Outras 972 foram adquiridas por investidores particulares, familiares de Labouchère,
Quintela, Bandeira e o embaixador José Maria de Souza. Em 1803 a Casa hope
comprou mais 3.000 e um grupo de empresários liderados por Willem Borsky
comprou 1.000. Estes grupo, no final de 1804, tinha em carteira 2.678 obrigações
do empréstimo português.
Em Agosto de 1803, a Hope & Cº. liquidaria a última prestação à França. Pouco
mais de um ano depois, Sir Francis Baring, a propósito dos empréstimos concedidos
a Portugal e aos Estados Unidos, escrevia a Henry Hope: “(...) The Portuguese
government was weak, its Ministers ignorant, thinking to receive the law at your
65
José Luís Cardoso, O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII, 1780-1708, p. 187.
Publicado em Ângelo Pereira, D. João VI. Príncipe e Rei, p. 123-124.
67
Este valor poderá corresponder à soma das indemnizações de 20 milhões de libras tornesas (Tratado de
Madrid de 29 de Setembro de 1801), e de 16 milhões de francos estipulados na Convenção de subsídios
assinada em 19 de Março de 1804, mas que provavelmente em Junho de 1803 era já do conhecimento
de Souza Coutinho.
66
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68
69
70
71
72
Baring Archive, NP, 1A 4.59. Carta de Sir Francis Baring para Henri Hope, remetida de Bath, 3 de Outubro
de 1804.
Monstro fabuloso com cabeça de mulher e corpo de abutre.
José Acúrsio das Neves, História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, p. 170 e 186.
Ângelo Pereira, D. João VI. Príncipe e Rei, p. 114.
Carta do General Marquês de Alorna a D. João, 19 de Janeiro de 1804 (in Ângelo Pereira, p. 141).
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205
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
hands. Not so those with whom Alexander negotiated”68. E acrescentava: “Mas não
aqueles com quem Alexander [Baring] negociou”, isto é, com os americanos.
Opinião possivelmente não partilhada pelo destinatário, cujo irmão, e como
anteriormente ficou referido (nota 51), louvara os governantes de Lisboa.
Ainda antes do final desse ano, e como já referido, a França voltaria a exigir o
pagamento de outra indemnização, de novo com a promessa de garantir a
neutralidade a Portugal. Para Acúrsio das Neves, Napoleão “vendia Tratados para ter
dinheiro, e faltava a eles para obter novas vendas”, pois só assim era possível
“satisfazer a vontade destas harpias69 que queriam devorar Portugal”70.
Com efeito, mesmo depois da partida da Corte para o Brasil, na véspera da
primeira invasão francesa, o nosso país continuaria, ao longo dos anos, e embora de
forma irregular e com muitos incidentes de permeio, a solver os compromissos
internacionais que assumira para a compra de uma neutralidade que os invasores,
em circunstância alguma estiveram interessados em respeitar, donde o reconhecimento
de que, “(...) nem as habilidades diplomáticas, nem o ouro do Real Erário,
conseguiram refrear as ambições imperialistas de Bonaparte”71.
A invasão do território nacional iniciara-se em 1801, com a conivência de uma
Espanha que cometera “a aleivosia de nos pedir socorro contra os franceses; de nos fazer
a guerra porque o demos; de nos dar aparências de que não principiará as hostilidades;
e de cair de repente sobre as nossas praças”72. A compra da paz a que Portugal se
sujeitou, esteve na origem da exacção de 20 milhões de libras tornesas que a Coroa
teve de procurar além fronteiras. Não podendo contar com a mobilização forçada de
recursos militares para as suas campanhas, o que obrigou às nações europeias que
conquistou, a França exigia – a um país onde a abundância de diamantes vindos do
Brasil era uma excelente alternativa –, um pesado tributo para garantir a paz.
E, em 1810, quando Portugal ainda não saldara as suas dívidas junto da banca
europeia, já as divisões francesas invadiam o território do último aliado britânico,
lançando a mais total devastação sobre o país.
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
206
Conclusão Este estudo apresenta os resultados da investigação a decorrer sobre o primeiro
empréstimo obrigacionista português, com base nos arquivos da Casa Baring e na
documentação conhecida existente nos Arquivos Nacionais.
Não obstante a inglória busca de uma neutralidade que poupasse o País à
devastação que assolou a Europa, Portugal ver-se-ia arrastado para o torvelinho da
conflitualidade europeia, vítima dos ardis da política da Corte castelhana (que
acabaram por lhe ser fatais) e das conveniências estratégicas de um aliado secular
com uma visão unívoca das suas responsabilidades enquanto parte contraente da
mais antiga aliança europeia.
Dessa situação de grande fragilidade do reino de Portugal aproveitou a França
para exigir ao aliado da sua inimiga, contributos financeiros incomportáveis para a
fazenda pública nacional, que os responsáveis pelas finanças portuguesas procuraram
prontamente cumprir de acordo com as instruções do Príncipe Regente.
A situação financeira internacional existente à data dos pedidos feitos pelo
governo português, entre 1797 e 1802, não se apresentava favorável aos desígnios
nacionais. Com efeito, as alterações que a Revolução francesa provocou em toda a
estrutura política, social e económica da Europa – de que os pedidos portugueses
foram uma consequência – não eram de molde a favorecer as pretensões da Coroa
portuguesa, no esforço para encontrar os meios monetários que satisfizessem a
voracidade dos novos senhores da Europa.
Os argumentos invocados pelos banqueiros a quem Portugal se dirigiu giravam
à volta das dificuldades dos mercados internacionais para a realização de operações
que, no contexto da guerras napoleónicas, assumiam elevado risco, que manifestamente
não estavam dispostos a assumir sem sólidas garantias.
Com base em considerações de natureza ou política ou financeira, ou mesmo
ambas, consoante os momentos, os banqueiros e governos da Grã-Bretanha e da
Holanda (muitas vezes cruzando argumentos) justificaram as suas dúplices atitudes,
em relação às operações que lhes foram submetidas por Portugal.
E se, em 1797, os argumentos político avançados pelos ingleses impediram os
banqueiros Baring de mediarem uma apetecida operação financeira, para mais
garantida (e se a hipoteca da produção diamantífera não fosse suficiente), pela oferta
dos territórios da África oriental sob domínio português, em 1802, os cobiçados
diamantes do Brasil, a par das rendas do contrato do tabaco, sossegaram o espírito
dos credores. Mas também porque as condições, sobretudo políticas, tinham sofrido
mudança.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
FONTES MANUSCRITAS
Arquivo Histórico do Tribunal de Contas
Fundo. Geral do Erário Régio
Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real, 1761-1808.
Livro 420 (1801-1803)
Cartório Avulso
Caixa 40
Baring Archive at ING Bank (London)
Northbrook Business Papers
1A – 4.4, 4.6, 4.25, 4.52, 4.59, 13.3, 19.7, 19.8.
1D – 11.6
73
Carl Von Clausewitz, Princípios da guerra, p. 20.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
207
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
Do primeiro momento sobressai a recusa da Casa Insinger & Cº., de Amsterdão, em
emprestar dinheiro aos portugueses, com base no “anti-patriotismo” de que poderia
ser acusada pelo seu governo. De igual modo os ingleses, segunda escolha dos
negociantes Bandeira e Quintela, recusariam o seu envolvimento alegando a
inoportunidade do momento, ao verem rejeitada a garantia política que desejavam
do governo de William Pitt. Mas este, a debater-se com sérias dificuldades na
condução da sua política interna, não quis expor-se a maior desgaste.
Em 1802, e tendo como pano de fundo a confrontação franco-britânica,
prevaleceu o “business as usual”, que proporcionou à França receber de Portugal as
prestações mensais de um milhão de libras tornesas, inicialmente através dos
banqueiros ingleses.
Não obstante a conjuntura depressiva que Portugal suportou e as humilhações
a que foi sujeito, a orientação estratégica de D. João permitiu evitar que o país se
sujeitasse à vontade do inimigo, e pudesse continuar a lutar, na esteira dos
ensinamentos de Von Clausewitz, um dos quais estipula que “teremos o dever de
intervir quando as hipóteses de sucesso são diminutas, desde que a única alternativa
seja a inacção e a capitulação”73.NE
208
Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo
Ministério do Reino
Maço 616, Caixa 178, 27 de Setembro de 1762
Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias
Ministério da Fazenda
Livro de registo pertencente ao empréstimo de Baring & Cª. e Hope & Cª.
Livro 3974, 16 de Fevereiro de 1802 a 11 de Junho de 1807
FONTES IMPRESSAS
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NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210
João Sabido Costa*
A política diplomática portuguesa anterior à transferência
211
■ Abstract:
At the beginning of the so-called Napoleonic Wars, Portugal kept an extremely
advantageous trade position regarding France and England. Therefore, although
entering the Roussillon War, in a first moment, in order not to be excluded from an
alliance between Spain and England, Portugal tried its best to be neutral vis-â-vis the
different belligerent parties. That option was nevertheless antagonised by France,
who tried to push Portugal into its side. Highly dependent of sea traffic to keep its
economic growth, Portugal had only the alternative as to join England in the process
of war. England was then – as always – the main world sea Power, whose consent
was essential to sustain any regular trade by sea. While secretly negotiating with
England the necessary conditions to keep its sovereignty, territorial integrity and the
safety of its huge overseas territories in Africa, America and Asia, Portugal maintained
simultaneously a constant dialogue with France with a view to postpone a possible
invasion of its territory in Europe until the negotiations with England were ripe.
Imagining a defenceless and terrified Portugal, fearful of its martial power, Napoleon
never thought that with the resourceful solution of moving the Court to Brazil, the
Prince Regent D. João would put the Portuguese sovereignty out of his reach. In fact,
unable to control the Portuguese lawful rulers, any French presence in Portugal was
to be limited to a military one. Dealing with two of the world main powers of the
time, the Prince Regent D. João played a skilful but extremely dangerous diplomatic
game that nevertheless lead to the keeping of the Portuguese royal house as well as
of all of the Portuguese territories.
COMO SE SABE, há duzentos anos atrás, no início de 1808, a Corte Portuguesa chega ao Brasil,
para aí se instalar durante algumas décadas. Foi uma acção pioneira, para a época,
o fato de uma Corte Europeia, o que na altura significava o centro nervoso de todo
*
Diplomata, Cônsul-Geral em Salvador.
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A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
da Corte para o Brasil
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
212
um país, se transferir para uma das suas colónias, isto é, para um dos territórios
ultramarinos que nessa altura várias potências da Europa detinham e administravam,
por descoberta ou conquista.
Afinal, que tipo de circunstâncias levava, assim, a essa deslocação, a que muitos
mais tarde (efectivamente mais tarde) chamaram fuga? O circunstancialismo,
indubitavelmente, foi o das Guerras Napoleónicas, que então grassavam pela Europa. E
a deslocação portuguesa para o Brasil, de certo modo, alargando o cenário – bélico e
diplomático – europeu, para outro continente, provava que a Europa já não se podia
considerar um espaço geoestratégico fechado, mas que outras regiões do mundo
influenciavam – inclusive por motivos económicos – o que nela se forjava.
Na verdade, o julgamento que dessa decisão de “transmigração” pela Corte
Portuguesa, no final de 1807, foi mais tarde analisada e julgada à lupa das necessidades
de justificação de outro sistema social e político, que transformou o cultivo da ciência
histórica num quase panfleto onde tudo cabia: caricatura, análises comportamentais,
intuições que até poderiam ser geniais senão desprovidas de suporte documental,
suficiente espírito crítico e consistência com o quadro geral do período focado. Essa
foi uma análise histórica que causou uma percepção que “ficou”, em Portugal e não
só, nomeadamente devido à ausência de uma historiografia posterior que a esse
período se dedicasse com espírito verdadeiramente científico e analítico.
Por outro lado, mesmo nos dias de hoje, a ausência de uma historiografia
verdadeiramente “diplomática” leva a que a intenção da análise dos “passos” da
diplomacia do período antecedente, as negociações, o envio e retirada de representantes,
fossem entendidas de um modo literal, sem se atender ao objectivo geral visado, que
é essencial na percepção de qualquer processo diplomático e que dá um sentido a
todas as peças dessa sequência, que não podem ser entendidas desgarradas. Do mesmo
modo, é um fato que o conteúdo de qualquer declaração, proposta, ou mesmo ameaça
num processo internacional não pode ser vista como diferenciada das reais
possibilidades da sua concretização.
Igualmente, o recurso à personalidade dos personagens históricos, incluindo os
“defeitos” e “qualidades” que as posteriores gerações lhes atribuem, só com muito
cuidado podem ser usadas para justificação dos fenómenos históricos e da sua
sequência.
Na realidade, diz-nos a experiência da observação, ou a leitura de estudos
históricos, que a vontade humana, ou a falta dela, pode bem pouco na complexa
conjuntura de fatos cruzados e concatenados que desliza, com inércia imparável, nos
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
1
Citado por Braga de Macedo, págs. 30 e 31.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
213
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
corredores do tempo. Mesmo que fosse só pela multiplicidade quase infinita das
vontades humanas envolvidas – em níveis de decisão ou influência diferentes, é certo –
ficava demonstrada a incapacidade de um só ser derrotar o fado inelutável dos destinos
da História.
Isso não significa claro, que defendamos a anulação da vontade e do querer
humano na determinação da História. Queremos, é, dizer que qualquer vontade
individual terá de ser, em qualquer estudo, relativizada, sendo certo que qualquer
grande príncipe ou soberano da História soube aproveitar a massa quase esmagadora
de factores políticos, sociais e económicos que se antepunham, em vez de tolamente
se lhes procurar opor.
Outro aspecto que tem prejudicado a nossa visão histórica de um período tão
importante para Portugal – e Brasil – é que, na ausência de estudos nacionais
suficientes, os factos da época são relidos pela óptica de historiadores de outras
nacionalidades, vulgo europeias, que, naturalmente, tendem a enaltecer o ponto de
vista do seu país, descurando – muitas vezes até por desconhecimento e menor
compreensão da nossa Língua – a documentação eventualmente explicativa que segue
guardada nos nossos arquivos: afinal, continua sendo uma quimera a possibilidade
científica de uma História Universal verdadeiramente imparcial e objectiva.
Como refere Braga de Macedo1: “(...) a história diplomática tem sido escrita na
óptica das grandes potências, desprezando a pequena dimensão. (No entanto, sem) a
pequena dimensão, a análise limita-se a organizações que, como é o caso dos impérios,
sendo estatais, às vezes ultrapassam a nação”. A dimensão nacional da História, e a sua
“diferencialidade” específica são, assim, essenciais para a compreensão pelo português
ou outro, da História de Portugal.
Valeria a pena referir, neste contexto, o importante papel que a historiografia e os
autores brasileiros, a propósito das Comemorações de 1808, deram para a revisão
histórica deste período, de um modo muito mais racional, permitindo explicar os
importantes acontecimentos que, a partir daí, conduziram, inclusive, à independência
do Brasil.
De qualquer modo, se pretendermos ter uma perspectiva do que foi a política
internacional seguida por Portugal nos anos antecedendo a partida da Corte para o
Brasil, teremos de focar os seguintes aspectos.
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
214
As Guerras Napoleónicas e a Política de Napoleão As Guerras chamadas “napoleónicas”
iniciaram-se, na realidade, ainda antes “de Napoleão”, no final do século XVIII, como
consequência da Revolução Francesa. Esta veio pôr, de modo drástico, em causa o
sistema político e social vigente em França, criando uma perspectiva de alteração de
equilíbrio internacional na Europa, e dando origem a uma reacção tendencialmente
articulada de diversas potências contra o Estado Francês.
Foram várias, entre 1792 e 1806 as sucessivas coligações negociadas contra
França, no início das quais Portugal participou, todas elas vindo, de certo modo, a ser
desfeitas na sequência do conflito com as tropas francesas. É nessa série de fatos
políticos e bélicos, já iniciada, que se vem a destacar a figura de Napoleão Bonaparte,
depois arvorado à mais alta chefia da Nação.
Nesse sentido, as “Guerras Napoleónicas”, as terrestres, combatidas em solo
europeu, procuraram assegurar, para França, condições de defesa, garantias de
estabilidade e um papel por ela considerado suficiente e adequado na “balança” da
Europa. Decorridas em primeiro lugar nas fronteiras geográficas orientais de França,
nos “Países Baixos Austríacos” e no Piemonte, foram-se desenvolvendo – inclusive por
outras regiões sucessivamente mais a Leste (até pelo aproveitamento por Napoleão das
vantagens estratégicas dos Alpes) –, à medida que tal se tornava necessário para França
assegurar a instalação de soberanias amigas em regiões estrategicamente interessantes,
ou para firmar juridicamente, através de Tratados, as condições de Paz e de favorecimento
que este país pretendia obter das potências com as quais havia estado em guerra.
Surge, assim, a República Italiana, em 1802, a Coroação de Napoleão como Rei de
Itália, a Coroação de José Bonaparte como Rei de Nápoles, em 1806, a de Luís
Bonaparte como rei da Holanda, no mesmo ano. São, por outro lado, sucessivamente
firmadas a Paz de Basel e a Paz com Espanha, ambas em 1795, o cessar-fogo com o
Piemonte, em 1796, o cessar-fogo de Leoben e a Paz de Campo Formio com a Áustria,
ambos em 1797, a Paz de Lunéville, em 1801, a Paz de Amiens em 1802, a Paz de
Pressburg em 1805 e a Paz de Tilsit em 1807.
Fator importante da influência de Napoleão na política europeia foi a aceleração
da dissolução do Sacro Império Romano Germânico, instrumento importante da
política da Áustria na Europa, entidade que, na realidade, já estava bastante abalada pelo
crescente relevo de um Estado como a Prússia.
Napoleão contribui para criar, assim, um complexo de Estados germânicos, alguns
dos quais se tornam seus importantes aliados, como a Baviera, vendo alguns, inclusive,
elevado o seu estatuto no plano internacional. É o que acontece, por exemplo, para
além da Baviera, com o Würtemberg, Mainz, Baden, Berg e Hesse-Darmstadt. Também
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
Situação inglesa Com a Inglaterra a situação era completamente diferente. Estrategicamente
oposta a Napoleão desde a primeira hora, procura evitar intervenções de grande vulto
no continente enquanto comprova ser completamente capaz de derrotar as forças
navais francesas (e espanholas). Nessa sua política, e à medida que Napoleão dominava
a Europa, os portos portugueses continuavam a prestar um apoio precioso às esquadras
inglesas, intervindo a Marinha portuguesa, quando necessário, ao lado da inglesa.
Posição portuguesa anterior ao Bloqueio Continental Após a decapitação de Luís XVI,
no início de 1793, o desejo da França era que Portugal se mantivesse neutro no
seu conflito com outros países europeus. No entanto, o “(...) Governo de Lisboa,
preocupado com a aliança que fora entretanto celebrada entre a Grã-Bretanha e a
Espanha, de que não fazia parte, resolveu participar na coligação contra a França
(...)”3, celebrando dois acordos com aqueles dois países. Terá de se recordar que, aliado
tradicional da Inglaterra, não interessava a Portugal qualquer aproximação deste país a
Espanha, principalmente se esta se concretizasse de forma que o excluísse.
Como já se viu, desse belicismo português resultou a sua entrada na Guerra do
Russilhão, que terminou com uma paz separada entre França e Espanha. Procurando
2
3
Reifenscheid, pág. 281.
Magalhães, pág. 121.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
215
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
o Chefe da Casa de Nassau se torna Gtão-Duque e o de Leyen, Príncipe2, alterando o
equilíbrio do mapa político europeu.
Já a Oeste, pelo menos até 1808, a política napoleônica foi mais simples. Tendo
ganho com sucesso a Guerra do Russilhão, de 1794, contra a Espanha – esta, nomeadamente, ajudada por Portugal – a França firma, em Junho de 1795, uma paz com
aquele país, pela qual ele se torna seu aliado e, se necessário, instrumento para controlar
Portugal, o mais ocidental país da Europa – na perspectiva francesa, seria, assim,
suficiente uma articulação com Espanha para determinar o destino de Portugal.
Será de dizer, contudo, que logo esse último ponto de vista se desfaz, com os
resultados fracos da “Guerra das Laranjas”, de 1801, invasão espanhola de território
português da qual resulta – para Espanha – o ganho de fato da aquisição de Olivença,
e, para o “mundo”, a evidência de dois exércitos que se “poupavam” (principalmente
o português) e de um invasor que não mostrava grandes desejos – ou capacidades – de
conquistas extensas num território com as características do de Portugal.
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
216
recuperar o terreno perdido, e uma vez que a guerra deixara de lhe interessar, Portugal
tenta estabelecer uma paz com França, sendo, em 10 de Agosto de 1797, celebrado
um Tratado, a que se seguiu “(...) outro relativo ao pagamento de dez milhões de
francos à França, com data de 20 de Agosto”4. Portugal concederia também
facilidades comerciais a França e interromperia a ajuda militar a Inglaterra. Seriam
também revistas as fronteiras da Guiana francesa. Após peripécias várias, os tratados,
depois de serem assinados por França, são-no, por fim, por Portugal, mas então já
sem ser aceites pela Parte francesa.
A partir daí, vai ser a França que não se contenta com a neutralidade portuguesa,
pretendendo atrair Portugal “para o seu campo”5. Não conseguindo, orquestra com
Espanha a já referida invasão de Portugal.
Após esta “Guerra das Laranjas”, resultam, em 1801, tratados de paz com
Espanha e França. “Por estes tratados Portugal comprometia-se a fechar os portos aos
navios britânicos devendo a Espanha restituir as praças tomadas (salvo Olivença).
Portugal teria de pagar à França uma indemnização de 15 milhões de libras tornesas,
aceitar as fronteiras da Guiana (francesa) até à foz do rio Arawani e autorizar a
importação de lanifícios franceses no regime de nação mais favorecida”6. O fim do
apoio português a Inglaterra continuava a ser uma das condições impostas. Estas
condições foram depois agravadas, por iniciativa francesa, em Setembro de 1801.
No entanto, Portugal mantém, de facto, o apoio militar a Inglaterra, tanto através
da colaboração da esquadra portuguesa, como da aceitação de acções inglesas
organizadas a partir de Portugal. Como refere Light7: “Portugal (...) era forçado a
recorrer a um jogo político bem orquestrado a fim de manter a França à distância e,
ao mesmo tempo, conservar boas relações com o seu aliado tradicional, a Grã-Bretanha”. Tal significava, também, para o Governo português, ignorar as referidas
disposições negociadas com França em 1801 relativas ao encerramento dos seus
portos aos ingleses.
“Em 19 de Março de 1804, as negociações com França culminaram com a
“Convenção de Neutralidade e Subsídios entre o Príncipe Regente D. João e a
República Francesa”, assinada pelo plenipotenciário português José Manuel Pinto de
Sousa, ministro de Portugal em Estocolmo, e pelo plenipotenciário francês, general
4
Idem, 122.
Idem, pág. 124.
6
Idem, 123.
7
Pág. 22.
5
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
A política económica francesa – o Bloqueio Continental Parte essencial deste processo bélico,
e na sequência do estabelecimento por Inglaterra de um bloqueio naval às costas de
França, foi o recurso (por Napoleão) à “guerra económica” a Inglaterra, através da
decretação, em 21 de Novembro de 1806, do chamado Bloqueio Continental, “pelo
qual se proibia o comércio com a Inglaterra, país considerado em estado de sítio e se
declarava boa presa todo e qualquer barco que tivesse tocado em porto inglês. Estas
decisões do bloqueio foram alargadas por um decreto de 17 de Dezembro de 1806,
que ampliava a designação de boa presa aos barcos que houvessem pago imposto ao
Tesouro britânico ou tivessem recebido a visita de um navio inglês”9.
“O objectivo era fechar o continente europeu às produções, industriais e outras,
remetidas de Inglaterra e suscitar assim a desorganização deste país, cuja prosperidade
assentava no envio, para diferentes regiões, da sua produção, realizada em excelentes
condições técnicas e distribuída por um aparelho comercial também de excepcional
valor”10.
Das decisões de Napoleão foi notificado o Governo Português, que não se terá
importado muito por diversas razões. Na realidade, tanto ou mais importante que
para Inglaterra, o era o comércio através dos portos portugueses para França.
Efectivamente, já no Tratado de Paz de 29 de Setembro de 1801, “(se) estipulava (...)
o encerramento dos portos portugueses à navegação inglesa, condição que,
evidentemente, não teve (como se viu) qualquer efeito”11.
Também a seguir à “ruptura da Paz de Amiens e das medidas inglesas sobre o
bloqueio da costa francesa, a Corte de Lisboa publica o decreto de 3 de Junho de
8
Light, pág. 20.
Macedo, pág. 38.
10
Idem, pág. 38.
11
Idem, pág. 41.
9
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
217
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
Jean Lannes. Estipulava-se o pagamento e o preço para manter a paz, equivalente a
40 mil libras por mês”8. Este tratado haveria, porém, de vir a ser ignorado por
França, quando determinou impor (também a Portugal), a política conhecida como
Bloqueio Continental.
De salientar que as vantagens comerciais que nessa altura Portugal mantinha face
a França e Inglaterra justificavam que, para obter a neutralidade, se afigurasse
disposto a aceitar exigências francesas (aliás, aparentemente nunca concretizadas)
que, noutro circunstancialismo financeiro, seriam francamente intoleráveis.
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
218
1803 (...)12”, aprovando medidas de fiscalização da neutralidade portuguesa, mas
que “(...) estavam longe de ser cumpridas à risca. Salvavam as aparências, em face da
situação difícil criada para a Inglaterra depois daquela paz13”.
Na realidade, pelo facto de a sua Marinha controlar os mares, a Inglaterra
tolerava o comércio francês, que se desenrolava paralelamente ao seu. Essa tolerância
pararia, porém, pela própria intolerância francesa, caso se quisesse impor realmente
o bloqueio continental. “O encerramento dos portos portugueses (...) era um
projecto cuja realização prejudicava França em virtude dos grandes abastecimentos
de produtos coloniais que daqui recebia14”. “Para levar a efeito o esforço que o
Bloqueio impunha, os franceses foram forçados a cortar a sua mais segura via de
abastecimento em produtos coloniais”15.
Esse fato é claramente referido no Manifesto do Príncipe Regente, já no Rio de
Janeiro, a 1 de Maio de 180816: “A França recebeu de Portugal desde 1804 a 1807,
todos os géneros coloniais e matérias-primas para as suas manufacturas. A aliança da
Inglaterra com Portugal foi útil à França, e na decadência que tiveram as artes e
indústrias, em consequência de uma guerra perpétua por terra e de outra desastrosa
por mar, em que ela só teve desbaratos, foi sem dúvida de grande vantagem para a
França o não ter sido o comércio de Portugal interrompido; por certo foi ele
igualmente útil a ambos os países”.
Por outro lado, sem poder marítimo suficiente, a França (e com ela Espanha)
nunca teria hipóteses de verdadeiramente controlar os portos portugueses. “Napoleão,
na sua estratégia, ao ter que entregar às armas a solução da resistência portuguesa ao
Bloqueio Continental, teve que anular uma fonte essencial para os seus abastecimentos
em matérias-primas”17.
Já para Inglaterra, o comércio português não se centrava tanto nos produtos
coloniais, nomeadamente brasileiros. A “(...) distribuição do comércio inglês era
mais harmónica do que o francês, pois apresentava uma participação mais equilibrada
de produtos ultramarinos e metropolitanos e ainda de produtos reexportados (...).
O vinho, o sal, o azeite e as lãs continentais equilibravam ou, por vezes, ultrapassavam
12
13
14
15
16
17
Idem, pág. 41.
Idem, pág. 41.
Idem, pág. 61.
Idem, pág. 69.
Citado por Macedo, pág. 50.
Macedo, pág. 54.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
Alternativas colocadas a Portugal perante a imposição do Bloqueio Continental Como
refere Borges de Macedo21, perante a nova situação criada com a (então já mais
forte) obrigação imposta pela França a Portugal de aderir ao Bloqueio Continental,
e embora a preferência portuguesa continuasse a ser pela neutralidade, a única
opção seria a “guerra ao lado de Inglaterra, que dominava o mar”. Pois “(...) era
do Atlântico que Portugal recebia a prosperidade, a riqueza e a segurança, expressas
no amplo comércio colonial que se movimentava nos seus portos: por aí, tinha a
garantia permanente de poder receber auxílio militar com que podia fazer face aos
perigos da fronteira terrestre”22.
18
Idem, págs 54/55.
Idem, pág. 55.
20
Idem, pág. 40.
21
Pág. 40.
22
Macedo, pág. 40.
19
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219
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
o algodão, o açúcar, as madeiras, os couros ultramarinos”18. O “(...) comércio inglês
mergulhava no interior (de Portugal) e interessava-se igualmente pela produção
metropolitana. O fato não é de pequena importância, para se compreender a
vitalidade da união de interesses anglo-portugueses na luta contra a hegemonia
continental da França e a dificuldade desta potência encontrar, em Portugal, para
além de indivíduos isolados, camadas sociais interessadas em relações políticas mais
profundas entre os dois países”19.
Para os portugueses do continente, o comércio com Inglaterra era muito mais
interessante do que aquele com França, que beneficiava mais as cidades costeiras e
os territórios coloniais. Tal ficou, aliás, comprovado, pela raiva provocada no povo
português contra França aquando da partida de mercadores ingleses, em Outubro de
1807.
Desse modo, pela consciência da ambiguidade dos interesses franceses, o
Governo Português foi descurando o cumprimento das “instruções” emanadas de
Napoleão, ao mesmo tempo que “(...) procurava tranquilizar o País, pondo em
evidência que o Oceano Atlântico escapava ao domínio napoleónico20”.
Claro que, em 1807, tudo mudou, com o agravamento das imposições francesas.
Dá-se, assim, início ao “Verão quente” desse ano, que se prolongaria até Novembro,
com a saída da Corte para o Brasil.
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
220
Tal não significava naturalmente, que não tivesse havido divisões dentro do
Estado Português sobre o rumo a tomar. É, assim, normalmente, apontado o Ministro
António de Araújo de Azevedo como o defensor de que o “second best”, a seguir à
manutenção da neutralidade, seria a opção por França: isto é, a tentativa de um
entendimento com França que a persuadisse “a não invadir Portugal”23- era a visão
depois classificada como “francófona”.
A esta perspectiva opor-se-ia outra geralmente classificada de “anglófona”, que
defenderia o corte imediato com França e a entrada na guerra ao lado de
Inglaterra.
Nesse sentido, no Conselho de Estado de 19 de Agosto, D. Rodrigo de Sousa
Coutinho defende que, em vez de manobras dilatórias, deveria partir para a guerra
com França e Espanha, sendo a possibilidade da ida da Corte para o Brasil uma
estratégia de recuo em caso de fracasso da força militar no continente.
Venceu, contudo, o parecer de manter as duas frentes “abertas” – eventualmente
com vista a “não fechar portas” antes da formalização de um entendimento com a
Grã-Bretanha. Portugal procurou mostrar aos franceses a inutilidade dos seus
esforços e a vantagem (principalmente comercial) que a própria França teria na
manutenção do “status quo”. Por outro lado, como apontam muitos autores,
prevendo-se a possibilidade da transmigração da Corte para o Brasil, urgia ocultar
todos os preparativos (que tinham de ser volumosos), deixando sempre aberta a
possibilidade de uma tergiversação face à França.
De todas as formas, apesar de todo o apoio inglês, não se podia pôr de lado um
possível desentendimento com aquele país – nesse caso, sendo útil a manutenção de
uma política “francesa”. O não encerramento de relações com França permitia,
assim, colocar uma certa pressão diplomática sobre as negociações que prosseguiam
com Londres, através de um perigoso jogo de “bluff ” só completamente esclarecido,
à última hora, à boca do Tejo, no momento da saída para o Brasil da Família Real.
Nesse sentido, poder-se á classificar como “realista” a linha diplomática
prevalecente, que mantinha os canais comunicação abertos com França –
nomeadamente para obstar a uma invasão militar do solo português – até ter a
certeza das condições concretas dos compromissos ingleses (firmadas no Tratado de
22 de Outubro de 1807).
23
Light, pág. 19.
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24
25
Macedo, pág. 15.
Light, pág. 28.
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221
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
Por outro lado, a total imperícia da diplomacia francesa, transformando diligências
em quase ameaças militares não deixou espaço na opinião pública portuguesa para
qualquer espírito de negociação “séria” com França, principalmente por tais “ameaças”
não serem susceptíveis de concretização devido à inferioridade naval deste país. Na
realidade, no deslumbre dos seus sucessos bélicos, Napoleão terminou caindo na
armadilha da teorização excessiva, confundindo as condições de imposição do Bloqueio
ao Leste Europeu com as possíveis em Portugal. “Aí (no Leste Europeu), o bloqueio
continental negociara suportes políticos que lhe eram concedidos pelas autoridades
legais. O mesmo sucedia no Mediterrâneo“24. Com Portugal, Napoleão nunca chegou
a negociar esses suportes, julgando poder angariá-los facilmente pela força.
Teremos de pensar também nas “ameaças” francesas de invasão – como, aliás, referida também na Paz de Tilsit – e “desmembramento” de Portugal, declarações datando
já de 1806 e feitas, de certo modo, como forma de pressão sobre a Inglaterra – ciente
a França da importância que para Inglaterra tinha a possibilidade de acesso aos
portos portugueses. Esse tipo de intenções vem mais tarde a concretizar-se no
famoso Tratado de Fontainebleau, ratificado por Napoleão em 29 de Outubro de
1807, segundo o qual o território português seria dividido em três partes: “Entre-Douro e Minho seriam dados à Rainha da Etrúria, formando a Lusitânia Setentrional,
em troca da Toscana; Alentejo e Algarves pertenceriam a Godoy (ministro de Espanha
e doravante Príncipe dos Algarves); e Beira, Trás-os-Montes e Estremadura seriam
mantidos pelos Bragança, se certas condições fossem cumpridas (inclusive a
improvável devolução de Gibraltar à Espanha), senão reverteria para soberania da
França. As colónias portuguesas seriam divididas entre a França e a Espanha”25. O Rei
de Espanha alcançaria o título de Imperador das Américas e protetor dos Novos
Reinos da Lusitânia e dos Algarves. Teria também o direito de investidura desses
novos reinos no caso de interrupção das linhas reinantes.
É neste ambiente que prosseguem os contactos diplomáticos entre Portugal e
França (e Espanha), principalmente já no Verão de 1807, quando as pressões
francesas no sentido do Bloqueio se tornam mais agudas:
Em 17 de Julho de 1807, “Talleyrand recebe ordem para advertir, mais uma vez
e mais energicamente, o Príncipe Regente D. João de que de deve fechar definitivamente os portos aos ingleses: confiscar-lhe os bens e prender os residentes em
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
222
Portugal, dentro de um prazo que terminava a 1 de Setembro desse ano. Dez dias
depois da advertência – a 27 de Julho -, começa a concentrar-se em Baiona o corpo
de exército que deveria invadir o país”.26
Em 29 de Julho, o Ministro interino dos Negócios Estrangeiros francês,
Hauterive, transmite a D. Lourenço de Lima, que regressava de Tilsit, as exigências
francesas, informação que chega a Lisboa a 10 de Agosto, tendo o Embaixador de
Portugal em Espanha, o Conde da Ega, recebido igual notificação, que também foi
apresentada pelos representantes de França e Espanha em Lisboa, em 12 de Agosto.
Tem então lugar, em Lisboa, o Conselho de Estado de 19 de Agosto, que toma
diversas decisões estratégicas, com o intuito de evitar ou adiar uma invasão. Daí
resultou a decisão de “aceitar” o encerramento dos portos, mas não o confisco dos
bens ingleses em Portugal. Importante, seria também “dar a conhecer” a Londres a
situação portuguesa, ao mesmo tempo em que seria dado início a negociações com
o Governo britânico.
António de Araújo consegue prorrogar, entretanto, o prazo do “ultimato”
franco-espanhol para 1 de Outubro, vitória dessa “política de proscratinação”27.
Mas a reacção portuguesa às ameaças francesas continua sendo lenta. Portugal
vem a “aderir” ao Bloqueio Continental apenas a 25 de Setembro. Como decidido
em Conselho, na carta de “adesão” ao Bloqueio, o ministro António de Araújo de
Azevedo recusa-se “a fazer o confisco dos bens ingleses (alegando que os bens
portugueses na Inglaterra poderiam ser confiscados por represália e eram muito
superiores28)” e põe “a questão evidente de que o Bloqueio Continental, a ser levado
a efeito, acarretaria o bloqueio inglês aos portos portugueses29”.
“Insinuava, por outras palavras (o ministro português), que a França não tinha
poder naval para empreender, com êxito, operações no Atlântico (...)30”.
De todas as formas, em 1 de Outubro deixam Portugal os representantes
diplomáticos de França e Espanha.
Depois disso, a 20 de Outubro, é dada ordem de saída dos barcos ingleses. “Essa
ordem é recebida pelas autoridades do Porto de Lisboa, dois dias depois de os
26
Macedo, pág. 39.
Light, pág. 35.
28
O que numa primeira fase começou por acontecer.
29
Macedo, pág. 45.
30
Idem.
27
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31
Idem, pág. 43.
Idem, pág. 45.
33
Light, pág. 55.
32
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223
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
elementos comerciais ingleses mais importantes – discretamente avisados – terem
saído ou terem tomado as suas precauções31”. Portugal garante à Inglaterra que
nunca prenderia os súbditos britânicos, admitindo a Inglaterra a possibilidade de
encerramento dos portos portugueses, se tal fosse condição para impedir uma
invasão. Estava, assim, ciente, o Governo de Londres que, salvo se se verificasse uma
invasão francesa de Portugal, seria difícil a França, inferior em poder marítimo,
verificar eficazmente o cumprimento das condições do Bloqueio.
Mesmo assim, a ordem régia só é posta em execução quinze dias depois, através
das seguintes (quase risíveis) medidas: “vedou-se a saída a uma escuna (inglesa) e
deram-se indicações a cinco militares para vigiarem um brigue!32”
Entretanto, a 22 de Outubro, Napoleão comunica ao Encarregado de Negócios
português em Paris a sua decisão de declarar guerra a Portugal, já depois da saída do
Embaixador D. Lourenço de Lima, que viajava para Lisboa para relatar a ameaça
napoleónica, por ele pessoalmente ouvida, de pôr termo ao reinado da Casa de
Bragança em Portugal, notícia só recebida na capital portuguesa a 27 de Outubro.
É com base nesta informação que o Conselho decide, em 30 de Outubro, o
envio a Paris do Marquês de Marialva, como Embaixador Extraordinário, para
informar Bonaparte das providências tomadas contra os ingleses. Com vista a suster
uma possível invasão, Marialva poderia também negociar o casamento do Infante D.
Pedro com uma sobrinha de Napoleão, para além de transportar consigo diamantes
e presentes valiosíssimos – não chegará, contudo, nunca, a passar de Madrid.
Ainda com o objectivo de impedir uma invasão, em 5 de Novembro, o Príncipe
Regente assinou o decreto atendendo ao restante das exigências de Napoleão, tendo
sido instruído Lord Strangfdord, representante diplomático inglês, para abandonar
Lisboa.
Contudo, a notícia, recebida a 23 de Novembro “de que tropas francesas estavam
em território (português) forçando a marcha para chegar a Lisboa, somada à
informação exibida no (jornal francês) Le Moniteur (de 11 de Novembro, eventualmente
trazido para Lisboa por um barco inglês), sobre o destino que Bonaparte reservara
para Portugal e sua família real, fechava quaisquer opções que, até então, esta pudesse
ter tido”33.
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
224
O Conselho de Estado de 24 de Novembro decidiu, assim, que “a família real
deveria partir para o Brasil34”, sendo instituído um Conselho de Regência. Foi
concedida audiência a Lord Strangford, que permanecia num barco inglês, ao largo
de Portugal.
O aviso ao público da sua partida foi já feito por D. João a 28 de Novembro,
quando já estava embarcado.
Negociações com Inglaterra Tinham prosseguido, entretanto, as negociações com Inglaterra,
que culminaram num Tratado só ratificado por esta em Janeiro de 1808, mas cujas
principais disposições tinham sido acordadas, em Londres, desde 22 de Outubro.
Para as compreender, será necessário apreciar quais as principais preocupações
das Partes, Inglaterra e Portugal, no decurso das mesmas.
Posição inglesa Além de todas as razões comerciais e económicas atrás citadas, para a
Inglaterra, Portugal era um dos raros pontos de apoio da armada britânica, que usava
o Algarve para bloquear os portos do sul de Espanha.
Interessava-lhe, assim, manter o acesso à costa portuguesa.
No entanto, como as tropas francesas bem o experimentariam (e os ingleses
tinham noção desde o início), são imensas as dificuldades do poder militar de
ocupação sem o apoio político ou da população no território ocupado. Para a
Inglaterra era, assim, mais preocupante um D. João colaborador com os franceses que
um Junot ocupando Lisboa, pois só o Príncipe português teria condições de, mesmo
que só a partir de terra, tornar mais completamente efectivos os preceitos do
bloqueio.
A Inglaterra defendia, assim, vigorosamente, na perspectiva da inevitabilidade
da invasão francesa de Portugal, a partida do Regente para o Brasil, o que, não só,
salvaguardaria a soberania sobre o solo metropolitano português como – segunda
grande preocupação inglesa – evitaria que a esquadra portuguesa passasse para o
serviço dos seus inimigos. Pois interessava à Grã-Bretanha a preservação da
operacionalidade (não em mãos francesas) da esquadra de Portugal. Como refere
Keneth Light35, embora já não tivesse a importância relativa que tivera, a força da
34
35
Idem, pág. 55.
Pág. 61.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
Posição portuguesa Para Portugal, o importante era assegurar a soberania sobre o seu
território – e a permanência da Casa de Bragança, posta em risco por Napoleão.
Necessitava, assim, da formalização pela Inglaterra de compromissos concretos, que
nomeadamente salvaguardassem contra eventuais ameaças inglesas, sempre possíveis
(pelas próprias necessidades bélicas e estratégicas dos contendores) no decurso de
uma guerra tão abrangente como aquela que se verificava.
A pressão sobre Inglaterra não poderia, assim, ser muito grande. Por exemplo,
a já referida decisão de encerramento dos portos portugueses a Inglaterra, de finais
de Outubro, não incluía, como já se viu, a ilha da Madeira. Mesmo assim, são
tomadas medidas de defesa dos nossos portos, inclusive no Brasil.
Por outro lado, em todas as medidas de aparente cedência à França, a diplomacia
portuguesa conseguiu, mesmo quem sempre imediatamente, ir sossegando os seus
aliados ingleses da pouca consistência destas. “Em Londres, o governo de S.M.
reconheceu as circunstâncias especiais e incomuns que tinham forçado Portugal a
fechar os seus portos. O sentimento em relação a Portugal, longe de ser beligerante,
era compreensivo e condescendente; como resultado, as ordens dadas na primeira
reacção às notícias recebidas de Portugal foram canceladas; os navios e bens
pertencentes a mercadores portugueses na Grã-Bretanha foram liberados”36.
Vale a pena, contudo, focar ainda um dos aspectos mais controversos dos
acontecimentos desse período, a “transmigração” da Corte Portuguesa para o Brasil,
conforme designada por alguns actuais historiadores.
36
Light, pág. 96.
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225
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
frota portuguesa era ainda considerável, sendo composta por 23 naus de linha, 18
fragatas e uma dúzia de corvetas, bergantins e escunas.
Outro aspecto, que depois se vem a concretizar, é o da garantia de um importante
porto no Atlântico oriental, nomeadamente no caso da ocupação – mesmo que
momentânea - pela França dos portos portugueses. Centram-se, assim, as atenções
na ilha da Madeira, que nunca é envolvida nas disposições adoptadas por Portugal
contra Inglaterra nos termos do Bloqueio Continental.
Resta dizer que, caso essas condições não fossem conseguidas, pelo menos
aquelas concernentes à esquadra, Londres estaria prestes a impô-las à força contra
Portugal.
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
226
A ¨”transmigração” da Corte para o Brasil A possibilidade da transferência da Corte
Portuguesa para o Brasil, com vista a, a partir daí, melhor defender (e se necessário
recuperar) a totalidade do seu território, criando uma base operacional mais
defensável do que a do território europeu, datava já de há vários séculos. Após o
início das Guerras Napoleónicas, fora, no entanto, expressamente referida pelo
Marquês de Alorna, em 1801, e por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em 1803.
Esta ideia teria já sido discutida, em 1806, entre a Inglaterra e Portugal, na
sequência das “ameaças” feitas por Talleyrand a Lord Landerdale sobre a possibilidade
de invasão e desmembramento de Portugal.
Não era, naturalmente, uma tarefa leve, ou fácil. Como diz Lilia Moritz
Schwarcz37: “Organizar um esquadrão (naval) sem grande aviso prévio e fazer a
realeza mudar de casa, levando de quebra a pesada estrutura burocrática portuguesa,
não era tarefa fácil: ao contrário, era sina das mais monumentais”.
“Os preparativos para transferir a Família Real e a Corte para o Brasil (...)
tiveram início bem antes que os representantes francês e espanhol junto à Corte
Portuguesa entregassem os ultimatos dos seus países. O plano teria seguido várias
fases: chamar de volta várias esquadras de suas tarefas normais para o posto de
origem em Lisboa, a fim de serem aprestadas para a longa jornada; suspender o
transporte de mercadorias e riquezas do Brasil; e o recolhimento, em terra, de tudo
que fosse transportável e pudesse ser levado, inclusive o arquivo do Estado,
bibliotecas e metade do erário”38.
Coloca-se também a possibilidade de ser apenas um príncipe português,
eventualmente D. Pedro, a ir para o Brasil, em vez do seu pai. Na realidade, essa
eventualidade – que chegou a ser divulgada - alicerçar-se-ia em duas razões: uma, a
que visava disfarçar os preparativos da ida total da Corte, encabeçada pelo Príncipe
Regente; a segunda a de, de qualquer forma, assegurar a soberania portuguesa sobre
o Brasil – inclusive em face da Inglaterra – independentemente do rumo real que os
acontecimentos seguissem na metrópole.
Em 7 de Setembro, é enviado ao Rio de Janeiro o bergantim Gavião, avisando da
possibilidade da transferência para o Brasil da Corte Portuguesa.
Ainda em 21 de Novembro, António de Araújo manifesta preferir que a
deslocação para o Brasil pudesse ser usada como “moeda de troca” com Napoleão,
37
38
“Apresentação: Entre a melancolia e a obstinação”, in Light, pág. 9.
Light, pág. 21.
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O Tratado com a Inglaterra Da Convenção que em 22 de Outubro com a Inglaterra, ressaltam
os seguintes aspectos40:
Ter-se-á, primeiramente, que ver que, no ritmo a que os acontecimentos se
precipitaram, o seu texto não levava necessariamente em conta a definitividade de
uma invasão francesa de Portugal metropolitano, que poderia, talvez, pensava-se,
ainda ser evitada. Procurava-se, sim, obter garantias inglesas, mesmo face a “cedências
“que pPortugal se visse obrigado a fazer a frança para evitar a invasão.
O objectivo da Convenção é, pois, apontado como a conservação da Monarquia
Portuguesa, a Ilha da Madeira e as mais possessões portuguesas.
O Art. I visava evitar qualquer acção inglesa – sem coordenação com Portugal –
contra a Ilha da Madeira e possessões portuguesas sem “algum passo ou declaração
hostil” de França contra Portugal, mesmo se, para evitar guerra com França, Portugal
praticasse algum “acto de hostilidade contra a Grã-Bretanha, fechando os seus portos
à bandeira inglesa” (como se viu, a Inglaterra estava disposta a aceitar o encerramento
dos portos – que, de qualquer modo, seria sempre difícil de verificar por França, se
isso mantivesse o território português em “mãos amigas”).
Do mesmo modo, D. João vedaria o Brasil e a ilha da Madeira a franceses,
mesmo que ao serviço de Portugal.
O Art. II A Inglaterra comprometia-se a concordar e apoiar uma eventual
deslocação do Príncipe Regente para o Brasil, mesmo “sem ser a isso forçado pelos
39
40
Pág. 13.
Consultar Light, pág. 242 e segs.
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227
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
para este não invadir Portugal. Mas não foi essa a opção de D. João, que decide não
dar, sequer, essa satisfação aos franceses, a de revelar o que se encontrava em
negociação com Inglaterra.
No entanto, a decisão final sobre a deslocação só foi tomada em 24 de Novembro
de 1807.
E sobre esse acontecimento, diz, assim, Kenneth Light39: “A importância da
jornada empreendida rumo ao Brasil, em 1807, pela Família Real portuguesa, pela
maioria de sua corte e por um grande número de cidadãos – um total de 12 a 15
mil homens, mulheres e crianças, considerando as tripulações – deriva da
consequência que essa ação teve na História”.
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
228
procedimentos dos franceses dirigidos contra Portugal”, bem como de um “príncipe
de sua família”.
Segundo Art. III, em caso de Portugal se vir forçado a fechar os portos aos navios
ingleses, Portugal admitiria o uso provisório pela Inglaterra da Ilha da Madeira, em
termos a acordar com o Embaixador português em Londres.
O Art. IV continha disposições sobre a esquadra portuguesa, incluindo a
exigência inglesa da entrega dos fortes costeiros de Portugal que protegessem a
partida da Corte para o Brasil e a interferência inglesa nas designações dos
comandantes dos barcos que a transportassem.
Pelo Art. VI, a Inglaterra obrigava-se a respeitar a soberania da Casa de Bragança
sobre o território metropolitano português, assim como a manter “relações de
amizade” com a regência que, em caso da partida da Corte para o Brasil, seria
deixada em Portugal.
A Convenção foi ratificada por Portugal em 8 de Novembro, com a ressalva por
Portugal das disposições prevendo, nomeadamente, a entrega à Inglaterra do
comando dos fortes que protegessem a partida da Corte, algumas disposições
relativas à esquadra portuguesa, nomeadamente a interferência na escolha dos
comandantes dos barcos que transportassem a corte para o Brasil, e a cedência de um
porto franco no Brasil.
Estas reticências levam a que a Inglaterra, como referido, atrasasse a ratificação
do documento.
Como se viu, uma das cláusulas do Tratado foi a tão apregoada “escolta inglesa”,
que para muitos, ainda hoje, é interpretada como uma espécie de “dependência”
portuguesa da dominação britânica. Na realidade, mal grado tudo, a negociação da
protecção naval britânica, para além dos seus aspectos práticos – como aquele,
referido por Light41, de que “as naus (de guerra) da armada (portuguesa) estavam
transformadas em navios de transporte”, não ao podendo, desse modo, defender-se –
permitia classificar a ida da Corte Portuguesa para o Brasil como um gesto integrado na estratégia de guerra conjuntamente seguida por Portugal e pela Inglaterra,
e não como um gesto unilateral de D. João, exposto às ilações que a Grã-Bretanha
quisesse tirar desse ato: a escolta “selava” a coerência da viagem com a Aliança luso-inglesa.
41
Pág. 21.
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Conclusão Em resumo, após uma fase inicial de belicismo contra a França, devido ao risco
(depois dissipado) de Portugal ficar excluído de uma aproximação anglo-espanhola,
a política diplomática portuguesa consistiu, essencialmente, nos seguintes aspectos:
tentar a todo o custo manter a neutralidade no conflito europeu – pelo menos a partir
de 1795; caso isso não fosse possível, negociar com Inglaterra as melhores condições
de sobrevivência integral de Portugal (que nessa altura era muito maior que a sua
parte europeia), ao mesmo tempo que tentava, por todos, os meios, postergar (ou
evitar) uma agressão militar francesa contra o território português.
Tratava-se, afinal mais-ou-menos, daquilo que percepciona o personagem de
José Norton, em “O último Távora”44: “(...) não ter a Inglaterra em força aberta
contra nós (portugueses) e conseguirmos que a França se ponha connosco em
estado de não dar auxílio a Espanha contra nós (...)”.
A imposição napoleónica do Bloqueio Continental e o pouco respeito
demonstrado por Portugal por parte do próprio Napoleão e seus representantes
tornam também impossível qualquer negociação com França, e a nossa política para
com este país passa a ser a da dilação, enquanto se negociam com Inglaterra as
42
Light, pág. 101.
Citado por Light, pág. 109.
44
Pág. 141.
43
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A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
Por outro lado, no que respeitava às condições não ratificadas por Portugal, de
entrega dos fortes e monitorização do comando da esquadra, é o próprio Lord
Strangford que desaconselha a sua imposição, aliviado que ficara com a constatação,
quase no último minuto, da intenção de partida da Corte42. A subtileza da diplomacia
portuguesa nessa questão, aliás, reflecte-se nas próprias palavras de Sir Sidney Smith,
comandante da esquadra inglesa que acompanhará D. João ao Brasil, que por sua vez
tentara convencer o Príncipe regente a aceitar o propósito inglês de que lhe fosse
transmitido o comando dos fortes portugueses que protegessem a partida43: “Sua
Alteza Real recusou com grande delicadeza e sentimento, mas estava bastante fixo em
sua determinação nesta direcção, embora tenha dito que ele ficaria feliz em vê-los
(os fortes) em minha posse, se eu pudesse obtê-los por negociação com a regência
que ele tinha estabelecido, e à qual ele não gostava de dar ordens sob suas presentes
circunstâncias, para não comprometê-la, e aos habitantes de Lisboa, com os
franceses”.
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
230
condições de uma estratégia portuguesa, que incluía a deslocação do Governo para
o Brasil. Afinal, Napoleão haveria de estar certo quando mais tarde reconhece ter sido
D. João o (único) soberano que o ludibriou.
Com a partida para o Brasil, e perante o seu envolvimento num conflito
internacional, onde “o poder político (português) acompanhou a disposição
estratégica dos seus recursos reais (afinal, a orientação do príncipe D. João VI) mais
não fazia do que aplicar a regra de ouro de Von Clausewitz, quanto à estratégia que
é de evitar sujeitar-se à vontade do inimigo e poder continuar a luta militar”45.
“Curiosamente, quem primeiro beneficiou com uma tal situação jurídica (ou
sua ausência, criada pelas tropas francesas em Portugal), foi a própria Espanha,
também (de início) invasora. Ao substituir, como rei, Fernando VII, herdeiro
Bourbon do trono espanhol, por José Bonaparte, a ilegitimidade da presença francesa
em Portugal alargava-se a toda a Península (Ibérica) que assim se tornava território
ocupado”46.
Tratou-se, afinal, das “ligações efectivas entre a diplomacia, os interesses
económicos e a segurança nacional”47 perante o aumento do peso da ideologia
oriunda dos ideais da Revolução Francesa.
A partida da Corte para o Brasil constituiu, também, o reforço e confirmação da
Aliança Inglesa e de um “destino” atlântico português. Acompanha, também, a
ascensão da Inglaterra na Europa e, com isso, certa dominação inglesa sobre o
continente, com consequências também para Portugal. Mas isso transcende já o
objectivo deste texto.NE
BIBLIOGRAFIA
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da 2.ª Edição Revista e Ilustrada da História Diplomática Portuguesa”, in Negócios
Estrangeiros, 10 de Fevereiro de 2007;
Light, Kenneth, “A viagem marítima da Família Real – A transferência da Corte
Portuguesa para o Brasil”, Zahar 2008;
45
Macedo, pág. 15.
Idem, pág. 15.
47
Idem, pág. 14.
46
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Macedo, Jorge Borges de, “O Bloqueio Continental”, Gradiva, 2.ª Edição 1990;
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das Laranjas”, in Nova História Militar de Portugal, Direção de Manuel Themudo
Barata e Nuno Severiano Teixeira, Vol. III, Círculo de Leitores, 2004;
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231
A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil
Norton, José, “O último Távora”, Editora Planeta do Brasil, 2008.
Francisco Knopfli*
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
232
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
■ O Brasil e Portugal tiveram sempre um processo de relacionamento com vicissitudes
que foram sempre resolvidas pela boa vontade dos seus Povos. A experiência adquirida
como Cônsul em Santos e Embaixador em Brasília levam a concluir que do Império
até à Democracia os caminhos não-coincidentes se inscrevem num contínuo. O
momento actual, e após a assinatura do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta,
assinado pelos Ministros Jaime Gama e Luís Filipe Lampreia, em 22 de Abril do ano de
2000, e a actual disposição dos governantes de hoje, faz acreditar que os velhos do
Restelo das nossas relações não têm razão de ser.
DIZEM
que terão sido quatro os portugueses que ficaram na Costa do
Descobrimento enquanto a frota de Cabral seguia o seu caminho para Calecute.
Estes quatro “luso-brasileiros” tinham destinos cruzados, dois ficaram porque
quiseram, eram grumetes desertores, provavelmente seduzidos pela sensualidade da
Terra. Os outros dois eram degredados, exilados à força, a Mata Atlântica que
prenunciava o Pantanal e o Amazonas e a afabilidade dos Tupiniquins, era-lhes
indiferente, tal o desejo que guardavam de voltar ao Reino.
Durante três décadas os portugueses foram ao Brasil em busca de pau-brasil não
havendo notícia de qualquer acto violento entre os portugueses, os franceses e os
tupiniquins.
A exploração da madeira consolidou as feitorias onde conviviam soldados e
artesãos orientados por um feitor coadjuvado por um escrivão.
Cabo Frio, São Vicente, Igaraçu, Porto Seguro, Santo Aleixo, Santa Cruz foram
algumas delas que perduraram até à decisão de D. João III iniciar a colonização oficial
do Brasil.
Até aqui as lutas eram sobretudo entre portugueses e franceses e seus aliados
índios e nunca entre americanos e europeus.
OS HISTORIADORES
*
Diplomata. Ex-Embaixador de Portugal em Brasília.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
233
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
Será a introdução do cultivo da cana-do-açúcar que trará a violência entre os
portugueses e as nações índias. A conquista da terra, a necessidade de braços escravos
rompem o “idílio” luso-tupi.
Com a administração portuguesa estabelecida em Salvador, por decisão de
D. João III, e com a chegada dos primeiros jesuítas a paz esfumou-se nas relações luso-índias.
O colonizador, como se referiu, necessitava da mão-de-obra indígena, em breve o
escambo ou compra de cativos “deixaram a breve trecho de satisfazer as presentes
necessidades de braços para a lavoura canavieira”.
A revolta dos Caetés na capitania de Pernambuco já no terceiro quartel de século XVI e
a cena de antropofagia que tirou a vida a cerca de cem náufragos da nau Nossa Senhora da
Ajuda – o Bispo Sardinha era um dos que o mar havia poupado para morrer às mãos dos
Caetés – são duas cenas que demonstram o reabrir da tensão entre colonos e indígenas.
Com a expedição punitiva que de imediato se organizou e com o aparecimento
da varíola, mais de trinta mil índios pereceriam só na região da Bahia/Pernambuco
provocando a paralisação da economia agrária.
Acrescente-se a constante atenção dos jesuítas às costumeiras irregularidades dos
colonos na tomada de índios, e fácil será entender como em poucos anos o paraíso
brasileiro se tornou em terra madrasta para a maioria dos seus filhos.
O Rei D. Sebastião, em 1570, inspirado na “filosofia” jesuística, proíbe por
diploma régio a escravização dos índios convertidos, deixando de fora todos os outros
que não haviam querido ou podido abraçar a religião católica.
A fuga constante dos índios em particular dos Tupinambás, mas também dos
Tamoios e Carijos, dos engenhosos que deles dependiam a quase 100% levou a que da
escravatura se passasse a modelos de trabalho voluntário pago. Mas a inadequação dos
índios para a pecuária e metalurgia trouxe problemas acrescidos.
A solução seria a de importar escravos de África, o que foi feito de forma
sistemática na segunda metade do século XVI.
Durante os últimos quarenta anos do século XVI terão atravessado o Atlântico, em
particular vindos da Costa da Guiné, primeiro, e já no fim do século de Angola, cerca
de 100.000 escravos.
Os escravos africanos passaram a substituir os índios nos engenhos de açucar no
cultivo da folha do tabaco e na criação de gado, continuando os índios a trabalhar nos
campos de cultivo de mandioca.
O Governador-geral Tomé de Sousa, que fundara Salvador em 1550, cessa funções
em 1553 depois de ter iniciado a exploração de sertão e mandado fortificar as poucas
vilas na costa Sul.
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
234
Mas o Brasil Português foi constantemente cobiçado, primeiro pelos franceses
com o desejo de constituírem a França Antárctica, na região do Rio de Janeiro, sonho
frustrado de Nicolau Durand de Villegagnon, e depois pelos holandeses de Maurício
de Nassau, já durante a monarquia dual.
Recuperada a coroa por D. João VI, consolidada a soberania portuguesa nos
territórios ultramarinos, caberá ao Marquês de Pombal, já na segunda metade do
século XVIII abrir uma nova página política e económica sobre a América Portuguesa,
onde havia sido descoberto, em Minas Gerais, ouro e diamantes em quantidades
suficientes para obrigar a mudança da Capital de Salvador para o Rio de Janeiro.
Sublinhe-se que o aportar de Cabral a Santa Cruz não foi fruto de um qualquer
acidente de navegação como alguns já pretenderam, correspondendo antes a uma
estratégia clara e previamente definida de Portugal e a um conhecimento científico
da arte de navegar e da construção naval. As longas negociações do Tratado de
Tordesilhas em 1494 são também a demonstração do bom conhecimento geográfico
dos portugueses e de uma Diplomacia hábil e segura.
A colonização do Brasil por outro lado também não foi fruto do destino. A
administração portuguesa, nomeadamente a partir de D. João III, lançou as bases de
uma verdadeira e efectiva organização territorial e administrativa das novas terras de
Santa Cruz, da foz do rio Amazonas, no actual Estado do Pará até ao que hoje é o
Estado de Santa Catarina.
Os Negócios da Índia afastaram Portugal do Brasil por quase 50 anos, todavia o reconhecimento territorial foi feito logo nos primeiros anos do século XVI graças às expedições
de Gonçalo Coelho, logo depois foram criadas as capitanias hereditárias, processo já
utilizado com êxito nas ilhas atlânticas: primeiro, atribuindo à iniciativa particular a posse
e usufruto das terras, experiência que deixou sinais de sucesso, pelo menos, em S. Vicente,
no litoral paulista e em Pernambuco; e depois através de um regime de administração por
delegação directa do monarca que inaugurou o sistema do Governo-Geral no Brasil, com
sede inicial na Bahia, e que transitou depois para o Rio de Janeiro, já em 1793, época em
que o titular da representação real passava então a ter título de Vice-Rei.
Com um sistema de administração colonial bem implantado no terreno, cedo se
desenharam, por parte dos governantes portugueses, os propósitos de desenvolver,
promover e aproveitar as inúmeras riquezas que a terra brasileira guardava. Inaugurava-se também o ciclo de cana-do-açúcar e da actividade dos engenhos. Já no século XVII
o Brasil seria o primeiro produtor mundial de açúcar.
Durante a monarquia exógena ocupou o Brasil posição de importância e destaque
no que alguns autores consideram ser a “atlantização da política externa de Portugal”
(tendência compreensível, aliás, face às condicionantes geopolíticas então impostas a
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
235
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
Portugal no contexto europeu) com o seu consequente afastamento das conexões e
laços continentais.
Como regra de sobrevivência, Portugal privilegiou, naquele conturbado e difícil
período da sua história, mais do que com África, as relações com o Brasil, tornando
mesmo dispersa e ocasional a frequência das grandes linhas de tráfego com o
Mediterrâneo e o Mar do Norte onde a importância relativa da Feitoria da Flandres
ia progressivamente diminuindo, tendo até em conta a transferência, entretanto
operada, do comércio das especiarias para Lisboa.
Não obstante a Restauração da Independência de Portugal, em 1640, ter assinalado,
de facto, o seu “regresso à Europa” e o inevitável envolvimento nas contendas que opunham a Espanha e a Casa de Áustria à França e à Holanda, não nos restarão hoje dúvidas
acerca da proeminência e relevo do papel desempenhado pelo Brasil, em momento
particular da nossa história comum, no quadro da política externa portuguesa da época.
Evidenciavam-se então as principais coordenadas e linhas de força de uma
diplomacia própria em que a vocação atlântica se afirmava, naturalmente, como
traço caracterizador determinante e onde o Brasil era peça fundamental.
É ainda, por esta altura, que se começou a traçar, no Brasil, o primeiro esboço
de uma consciência propriamente brasileira, de um amor e apego à terra que
brancos, portugueses ou descendentes de portugueses, negros vindos de África e
índios nativos indistintamente partilhavam e que então originou o movimento
denominado Insurreição Pernambucana.
A revolta genuína dos locais contra a presença do invasor holandês que assolou o
Nordeste brasileiro durante o domínio espanhol em Portugal traduziria, por
antecipação, essa natural capacidade de integração e adaptação de muitas raças e povos
a uma terra que já então consideravam sua e que veio a constituir, porventura, nos
planos antropológico e sociológico, uma das maiores riquezas do Brasil moderno.
Ficou o século XVIII assinalado por vários factos integrantes do passado comum
de portugueses e brasileiros, compondo um painel histórico rico de acontecimentos
e que testemunham, uma vez mais, a importância do Brasil para Portugal,
nomeadamente no quadro da sua história diplomática e da sua afirmação enquanto
potência europeia.
São exemplos do referido:
I – Descoberta do ouro que iniciou o “ciclo de ouro”, (1700 e 1770), durante
os reinados de D. João V e D. José o ouro afluiu então generosamente ao
Reino, contribuiu para a magnificência, majestade e prestígio da Corte
portuguesa no contexto da política europeia e do seu relacionamento com
as outras Casas Reais ao longo de quase toda a centúria;
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
236
II – Assinatura do Tratado de Madrid (que veio estabelecer as fronteiras entre as
possessões Portuguesas e Espanholas na América do Sul, até aí regidas pelo
já anacrónico tratado de Tordesilhas, provocando a consolidação territorial
e geográfica do Brasil Moderno);
III – Acção do Marquês de Pombal no Brasil (caracterizada por inúmeras
iniciativas destinadas a reforçar as estruturas administrativas locais, tais
como a instrução pública, a lavoura, a indústria, a navegação, a arrecadação
da Fazenda, a organização militar. No plano das reformas judiciárias, da
protecção dos seus confins territoriais e nas providências sociais); em todos
estes domínios, como alguém já afirmou, “o dedo gigante de Pombal ficou
assinalado no Brasil”;
IV – O movimento emancipacionista denominado “inconfidência mineira”, em
1792, que teve como figura proeminente o alferes José Joaquim da Silva
Xavier, o Tiradentes, conhecido na história brasileira como o protomártir
da Independência, A revolta dos conjurados de Minas Gerais foi então
duramente reprimida mas não deixou de constituir sinal dos tempos que se
avizinhavam e haveriam de trazer consigo, trinta anos depois, a declaração
de independência do Brasil.
Cheio, pois, de significados e premonições o século XVIII para o devir da terra
brasileira. Pleno de antecipações históricas que contribuiriam para o que haveria de
ser o Brasil nas duas primeiras décadas da 19.ª centúria e o projectariam para uma
existência enquanto Grande Nação independente, de dimensão continental e factor
geopolítico incontornável na perspectiva da evolução do continente sul-americano.
Em 1808, como consequência dos graves imperativos internacionais prevalecentes
na nova ordem europeia e em que os desígnios expansionistas de Napoleão Bonaparte,
dando corpo a uma concepção visionária e utópica de uma França Imperial, constituíam
expressão mais evidente, determinou o Príncipe Regente de Portugal, D. João, a
transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. De 7 de Março de 1808 até
26 de Abril de 1821 seria aquela cidade a capital da Monarquia portuguesa, facto de
extraordinário significado para o futuro político do Brasil. Fácil é-nos hoje imaginar
o incentivo e a projecção aqui verificadas com a instalação da Família Real e da
máquina política e administrativa portuguesa, implicando a transmigração de cerca
de 15.000 pessoas e propiciando a criação de uma aristocracia e nobreza locais e de
quadros superiores que haveriam de constituir as elites dirigentes da Nação.
O Brasil passou a ser sede de órgãos administrativos semelhantes aos de Portugal.
O Corpo Diplomático tinha sede no Rio de Janeiro, de onde partiam as instruções
para a representação portuguesa no Congresso de Viena, chefiada pelo Duque de
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
Significativamente, com a aclamação do Príncipe Regente como Rei, após a
morte de D. Maria I, no Rio, em 20 de Março de 1816, a Monarquia Portuguesa passa
a denominar-se Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Na verdade, o Brasil deixava
aqui de ser colónia pois já era parte integrante do Reino.
O Brasil acedeu à independência em 1822 numa conjuntura internacional
marcada pela fragmentação do Império Espanhol nas Américas e pelos ventos
emancipistas que sopraram no que hoje é a América Central na esteira da Revolução
Americana, da Revolução Francesa e do fenómeno napoleónico.
Foi, contudo, um processo diferente, já que não foi fruto de uma guerra como
na América espanhola, e singular, dados os particulares condicionalismos históricos
que o rodearam, radicados na longa presença da Corte portuguesa no Brasil e nos
laços entretanto aqui criados pela Família Real.
Sem dúvida, o processo de independência dentro do regime monárquico
originado de Portugal foi factor de grande importância para a manutenção da
unidade territorial do Brasil como Grande Nação Soberana que hoje é.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
237
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
Palmela. Foi instaurado o livre acesso à actividade industrial, criadas as escolas de
medicina na Baía e no Rio, a Academia Militar no Rio de Janeiro, o Banco do Brasil
e o Jardim Botânico. Permitiu-se a entrada de estrangeiros, o que contribuiu para
abrir o Brasil ao Mundo e dotá-lo de um imenso capital humano que tão fundamental
se revelaria para a construção da independência que estava próxima. Colocou o
Governo a tónica da sua acção nas actividades económicas, financeiras e fazendárias
com a abertura dos portos, a criação de uma cadeira de ciência económica no Rio
de Janeiro e a criação de uma Companhia de Seguros na Baía.
Fica caracterizado:
I – Uma vez mais a clara vocação atlantista de Portugal no quadro da sua acção
externa;
II – A consolidação da estratégia dos nossos governantes em dotar o Brasil
de sólidas estruturas de poder, culturais e de organização e estabilidade
territorial que se revelariam fundamentais para a sua independência;
III – A afirmação do Brasil como natural extensão geográfica de Portugal,
enquanto a sua projecção estratégica no Atlântico Sul, assente numa
relação cujas componentes humana, sociológica, linguística e cultural lhe
atribuíam posição especialíssima no contexto do seu Império Colonial:
quer em relação a África, onde só após a Conferência de Berlim houve a
necessidade da “ocupação efectiva” em virtude da falência da tese que ali
defendemos dos “direitos históricos”, quer mesmo em relação ao Império
do Oriente onde não podemos manter intactas as nossas posições.
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
238
Desde o reconhecimento da independência por Portugal, em 1825, até à
segunda metade do século XX, e não obstante as vicissitudes por que passaram as
relações entre as duas Pátrias irmãs, foi longo e fecundo o caminho percorrido.
Alcançada a maturidade dos regimes e a Democracia plena, e após o labor da
estruturação jurídica das suas relações bilaterais, feito, todo ele, ao longo do século XX,
alcançámos patamares de entendimento, diálogo e relacionamento.
Estes parecem agora propiciar, mais do que nunca, uma real convergência luso-brasileira em que as relações políticas e económicas se apresentam já à altura das
expectativas legítimas geradas pela natureza dos laços que nos unem.
Em particular, nos finais do século passado, em que, no plano político se
reforçaram mecanismos de cooperação bilateral, com a periodicidade dada às Cimeiras
Governamentais e o processo regular de consultas políticas, estas últimas permitindo a
concertação de posições dos dois países em temas relevantes da agenda internacional.
Por outro lado, são incontáveis as visitas de Estadistas, Ministros, Secretários de
Estado e responsáveis de ambas as partes, bem reveladoras do interesse que Portugal
e o Brasil suscitam nos dois lados do Atlântico. A clarividência e vontades dos nossos
Governantes em impulsionar e redimensionar o relacionamento bilateral aos mais
diversos níveis, de acordo com critérios mais modernos e inovadores, sob um
adequado e bem estruturado enquadramento político, é também visível no plano
económico, financeiro e dos investimentos.
Por outro lado, a presença activa de Portugal no processo de integração na
Europa e o papel do Brasil no contexto do MERCOSUL têm facilitado o fluxo de
investimentos de ambas as partes à procura de novos e mais promissores mercados.
Em particular, sabe o Brasil que tem em Portugal, na União Europeia, já hoje o seu
principal parceiro comercial, um aliado preferencial. Acresce, naturalmente, o
indiscutível interesse de Portugal em levar para a União Europeia o peso e o prestígio
da sua relação com o Brasil.
Refira-se que a abertura do Brasil à economia internacional e o retomar do crescimento económico chamaram os investimentos portugueses para participar, de forma
determinante, no processo de desenvolvimento e reforço da economia brasileira.
Com efeito, podemos afirmar que as relações económicas entre Portugal e
Brasil, num plano global, são hoje excelentes e atravessam uma fase de dinamismo
sustentado.
Mas é sobretudo na área dos investimentos directos de capitais portugueses no
Brasil que a transformação e a evolução do relacionamento é mais visível.
Estes investimentos distribuem-se fundamentalmente pelos sectores de cimentos,
bancos, energia e telecomunicações e estão presentes praticamente em todo o
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
239
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
território brasileiro. Capitais portugueses participam nos Bancos Itaú, Inter-Atlântico.
A Portugal Telecom adquiriu participações no processo de privatização da Telebrás
num valor estimado em mais de US$ 3 biliões, concretizando o maior investimento
já realizado por uma empresa portuguesa no estrangeiro; por outro lado, a CIMPOR-Cimentos de Portugal comprou 4 fábricas brasileiras do sector, totalizando um
investimento de cerca de US$ 500 milhões.
Estes são apenas alguns exemplos do vigor e expressão dos negócios que estamos a
fazer em terra brasileira. Já em 1996, o montante de capitais portugueses no Brasil
representou 30% do total de investimentos directos externos portugueses nesse ano e o
investimento acumulado de Portugal, para 1997 – ano que assumi a gerência da nossa
Embaixada em Brasília – atingiu valores superiores a US$ 4,5 biliões. Refira-se, por outro
lado, que segundo dados do BNDS – Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e
Social – Portugal era, na altura, o quinto maior investidor estrangeiro no Brasil.
Uma última palavra para referir ainda que ao interesse da relação bilateral e da
relação entre espaços integrados juntam-se as relações com a África lusófona, traduzidas
na criação e afirmação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
São, pois, estes, alguns dos termos fundamentais de um processo histórico
comum que nos levou, juntos, do sonho e da utopia de Cabral à realidade hodierna,
que nos projecta no futuro e que as Comemorações dos 500 Anos da Descoberta
pretenderam demonstrar perante o Mundo.
Estas últimas tiveram acertos e desacertos, mas foram passos dados por caminhos
certos que, espero, ajudem a que o vector multilateral não se sobreponha ao bilateral,
no contexto das nossas relações.
Será ainda de destacar que o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a
República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, que foi assinado pelo
Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal e pelo Ministro de Estado
para as Relações Exteriores do Brasil no dia 22 de Abril de 2000, em Porto Seguro,
dia em que se comemoram os 500 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil,
representa um novo marco no relacionamento bilateral entre os dois países.
O novo Tratado encontra-se ajustado às coordenadas políticas e ao sistema de
valores prevalecente nos dois países, reflectindo o facto de Portugal e o Brasil serem
hoje países assentes na organização democrática do Estado de Direito, no respeito
dos direitos e liberdades fundamentais e na busca de uma maior justiça social.
O Tratado é igualmente compatível com o novo enquadramento internacional,
caracterizado pelo crescente peso dos movimentos de integração regional, tomando
em linha de conta o impacto na definição das relações bilaterais resultante da
adesão de Portugal em 1986 à Comunidade Económica Europeia e da adesão do
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
240
Brasil ao MERCOSUL, bem como da integração de ambos na CPLP desde a sua
fundação em 1996.
Quanto ao seu conteúdo, o Tratado incorpora e amplia o conteúdo dos vários
Tratados bilaterais até aqui existentes, que ficam na sua maioria expressamente
revogados (ver lista em anexo), retomando-os num novo enquadramento doutrinal,
sendo de destacar:
a) a definição de uma forma sistematizada, dos mecanismos institucionais
previstos para prossecução e acompanhamento das relações bilaterais;
b) o estatuto dos portugueses no Brasil e dos brasileiros em Portugal, onde se
verifica uma importante inovação que constitui a redução de cinco para três
anos do período mínimo de residência exigido para acesso ao estatuto de
igualdade relativamente aos nacionais do Estado de residência.
c) no âmbito da cooperação cultural, científica e tecnológica, inova-se ao
estabelecer como regra a validação mútua dos graus e títulos académicos
emitidos pelas Universidades, as quais vêem expressamente reconhecidas a
sua competência nesta matéria; do mesmo modo, é igualmente respeitada a
autonomia das ordens profissionais quanto às autorizações para o acesso e
exercício da profissão em condições de igualdade;
d) na área da cooperação económica e financeira, é introduzido um preceito
programático visando a criação de dispositivos legais que permitam um tratamento tendencialmente unitário das pessoas singulares e colectivas de ambas
as nacionalidades no outro país, com o objectivo de propiciar uma eventual
aproximação mais profunda entre as economias portuguesa e brasileira;
e) o Tratado abrange ainda as áreas do Meio Ambiente e Ordenamento do
Território, Segurança Social, Justiça, Administração Pública, Acção Consular,
e contempla o alargamento da cooperação a novos domínios nas áreas da
Saúde e das Forças Armadas, onde é referida a cooperação militar no quadro
das Operações de Paz das Nações.
A iniciativa de elaborar um Tratado-Quadro entre os dois países foi proposta
pelo Governo português às autoridades brasileiras em, Abril de 1996, por intermédio
do Ministro dos Negócios Estrangeiros português Jaime Gama. Uma vez convalidada
a ideia pelos dois Governos em Dezembro desse ano, a Cimeira de Brasília de 1997
deu luz verde à negociação do novo Tratado.
O Tratado consubstancia-se, no fundo, no desejo bilateral de simplificar o
ordenamento jurídico que nos liga, esquecendo o supérfluo para dinamizar o nosso
relacionamento actual. Esse foi o desejo dos seus criadores, entre os quais incluo os
diplomatas portugueses acreditados, na altura, no Brasil.NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
ANEXO
241
Acordo entre Portugal e os Estados Unidos do Brasil para a Supressão de Vistos
em Passaportes Diplomáticos e Especiais, celebrado em Lisboa, aos 15 dias do mês
de Outubro de 1951, por troca de Notas.
Tratado de Amizade e Consulta entre Portugal e o Brasil, celebrado no Rio de
Janeiro, aos 16 dias do mês de Novembro de 1953.
Acordo sobre Vistos em Passaportes Comuns, entre Portugal e o Brasil, concluído
em Lisboa, por troca de Notas, aos 9 dias do mês de Agosto de 1960.
Acordo Cultural entre Portugal e o Brasil, celebrado em Lisboa, aos 7 dias do
mês de Setembro de 1966.
Protocolo Adicional ao Acordo Cultural de 7 de Setembro de 1996, celebrado
em Lisboa, aos 22 dias do mês de Abril de 1971.
Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre portugueses e brasileiros,
celebrada em Brasília, aos 7 dias do mês de Setembro de 1971.
Acordo, por troca de Notas, entre Portugal e o Brasil, para a abolição do
pagamento da taxa de residência pelos nacionais de cada um dos países residente no
território do outro, celebrado em Brasília, aos 7 dias do mês de Julho de 1979.
Acordo Quadro de Cooperação entre o Governo da República Portuguesa e o
Governo da República Federativa do Brasil, celebrado em Brasília, aos 7 dias do mês
de Maio de 1991.
Acordo entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República
Federativa do Brasil relativo à isenção de Vistos, celebrado em Brasília, aos 15 dias do
mês de Abril de 1996.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241
Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio
INSTRUMENTOS JURÍDICOS BILATERAIS EXPRESSAMENTE REVOGADOS PELO
TRATADO DE AMIZADE, COOPERAÇÃO E CONSULTA ENTRE A REPÚBLICA
PORTUGUESA E A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Jorge Azevedo Correia*
242
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião:
três contributos para uma fundamentação do
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
liberalismo
■ Abstract:
In a time where the liberal lexicon presents itself as the hegemonic language of
contemporary political paradigm and liberal principles are being submitted to
profound reshaping we can observe several proposals for redefining the meaning
of “liberty” and “liberalism”. In the present article we analyze three proposals for a
new definition of the principles of liberal societies, namely Pierre Manent’s “A Razão
das Nações” (Edições 70, Lisboa, 2008), Marcello Pera’s “Perché Dobbiamo Dirci Cristiani”
(Mondadori, Milano, 2008) and John Gray’s “Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of
Utopia” (Penguin Books, London, 2007). These proposals are based on an understanding
of the inadequacies and insufficiencies of the liberal lexicon and liberalism and set
themselves to find a more profound foundation of liberalism in either community
or religion. These proposals seem to cast away the specter of the “disenchantment
of the world” – viewed by many as an inevitable consequence of Modernity – and
rediscovering community and religion as the way for preserving liberal society.
Introdução AS SOCIEDADES MODERNAS são recorrentemente confrontadas com o anúncio ou
o panegírico da extinção das comunidades políticas, da dissolução das diferenças
num mundo em uniformização e globalização, originado no crescimento de uma
racionalidade materialista que relega as concepções religiosas e filosóficas para o
plano meramente pessoal. Nos últimos três séculos assistimos frequentemente a
estas exageradas certidões de óbito do fenómeno religioso e de “desencantamento
do mundo”1. Comte, Marx ou Nietzsche, criaram as suas ideologias preparando
o mundo para a inevitabilidade da confrontação com a inexistência do Criador,
que, segundo perspectivavam, provinha do apogeu da compreensão moderna do
mundo. Segundo a sua interpretação, os homens religar-se-iam segundo a nova
*
1
Assessor do Instituto Diplomático, MNE.
Max Weber, “Politics as a Vocation” in From Max Weber: Essays in Sociology, tradução e edição de H. H. Gerth and C.
Wright Mills, New York: Oxford University Press, 1946, p.155.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
2
3
4
5
6
Ver Andrew Wernick, Auguste Comte and the Religion of Humanity:The Post-Theistic Program of French social theory, Cambridge
University Press, Cambridge, 2001, pp. 153-220.
Karl Marx e Friederich Engels postularam no seu Manifesto Comunista a união universal dos trabalhadores, sendo
a sua última mensagem no manifesto “Proletários de todo o Mundo, Uni-vos!”.
A ideia de que Nietzsche foi uma figura fundamental no surgimento de uma nova ideia política, o nazismo,
é ainda hoje debatida, sendo, contudo, indiscutível que a nova percepção do Homem comportaria uma
renovada estrutura comunitária. Uma das interpretações mais frequentes dessa ordenação é a o “anti-fundacionalismo de Foucault. Já Ernst Junger, Armin Mohler ou Oswald Mosley fundamentaram nas teses
de Nietzsche a formulação da sociedade nacional-socialista.
Ver a este propósito Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, Lisboa, 2008.
Em particular, David Held Democracy and the Global Order: From the Modern State to Cosmopolitan Governance (1995),
Cosmopolitan Democracy: An Agenda for a New World Order (com Daniele Archibugi) (1995) e Cosmopolitanism: A
Defence (2003).
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
243
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
compreensão das coisas terrenas, abandonando assim as comunidades tradicionais,
baseadas na fé e no costume. Em Comte as várias comunidades caminhariam para
um culto da Humanidade, através da “filosofia positiva”, e encontrariam desta
forma uma comunidade mundial em que se realizaria o sonho da racionalidade
perfeita2. Na teoria de Marx, o mesmo sonho de uma “cosmópolis” subsiste na
defesa do internacionalismo proletário, que se afirma nesta concepção como única
construção social lícita à luz dessa interpretação do futuro do Homem3. Nos escritos
de Nietzsche existe, da mesma forma, uma reconfiguração necessária da comunidade
para que esta acomode a essência do laço preponderante entre todos os seres
humanos, a “vontade de poder”4.
A própria teoria liberal, que pertence ao núcleo duro da ideologia contemporânea,
contribui, em muito, para a presente ilusão sobre o fim da comunidade e a emergência
de uma ordem universal. A “razão”, como factor determinante da existência humana,
impeliria, segundo a teoria de Kant5, a Humanidade a uma submissão a leis com a
abrangência de toda a Criação e, através dessa obediência, constituir-se-ia uma nova
jurisdição universal, com valor cogente. Recentemente, no mesmo sentido, os estudos de
David Held6 debruçam-se, sob um ponto de vista liberal, sobre a forma como o mundo
moderno e as suas interacções geram depreciação dos particularismos e fortalecem a
“inclusividade” no seio da ordenação política. Estas características são um factor decisivo
no mundo contemporâneo e nos processos de integração global que o caracterizam.
A emergência do Liberalismo, contudo, parece ter resultado num tipo de sociedade
diferente, onde as suas várias parcelas (indivíduos, famílias, grupos, associações
profissionais) se encontram num estado de autonomia ou independência, ainda que
muitas vezes meramente teórica, face à comunidade. O Liberalismo como ideia política,
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
244
expressão teórica desse impulso autonómico, apresenta-se, portanto, como uma ideia
abrangente, capaz de proceder a uma organização da sociedade que prescinde de uma
estrutura de univocidade política. Tal posição resulta na aposição de valores à
comunidade política, como defendeu Rawls, a apresentação de uma concepção de
Justiça desprovida de fundamento ontológico, e que se sobrepõe a todas as considerações
de cariz religioso e moral. É neste desígnio de supremacia face às várias percepções de
Bem e as finalidades lícitas da comunidade, que o Liberalismo se apresenta como ideia
de neutralidade, superando assim a perspectiva religiosa enquanto ideia suprema da
comunidade. A pretensão liberal de que o sistema de autonomia individual se constitui
como cúpula neutral da organização política, pressupondo uma doutrina em que o
Liberalismo e seus valores e objectivos possuem um valor próprio e auto-sustentado,
não dependendo de perspectivas ou concepções culturais ou religiosas para a sua
afirmação é amplamente contestado no nosso mundo, mas sustentado por autores
liberais de todos os quadrantes, sendo uma das pedras-de-toque da sociedade
contemporânea. A veracidade desta proposição é debatida por autores que a vêem como
um erro que mina toda a nossa compreensão da política e pelos liberais que fazem a
sua apologia, compreendendo ambos que se fala da própria fundamentação das
sociedades ocidentais e que dessa concepção partirá toda a aceitação ou rejeição da
forma como as comunidades se estruturam presentemente7.
O Liberalismo tem dificuldade em conviver com a sua própria natureza enquanto
ideia abrangente. Se por um lado se arroga como ideia motriz da sociedade, por
outro lado, por considerar a autonomia individual como seu desígnio fundamental,
apresenta algum pudor na delimitação clara do seu sistema de valores e das suas
finalidades, permanecendo um enorme debate entre os que acreditam que as
finalidades do liberalismo político se podem encontrar na própria compreensão
liberal do mundo (a Autonomia) ou que se submetem a finalidades externas. No
nosso tempo esta clivagem é patente pela forma como o Liberalismo, por si só, se
apresenta cada vez mais como incapaz de dar soluções ao problema fundamental da
obediência política, não comportando hoje o paradigma liberal, ou dizendo melhor
7
À aceitação da neutralidade liberal de pensadores liberais como Bruce Ackerman em Justice in the Liberal State, Yale
University Press, New Haven CT, 1980; John Rawls em Justice as Fairness: a Restatement, Erwin Kelly (ed.), The
Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge MA, 2001; ou Ronald Dworkin, “Liberalism” in A
Matter of Principle, Harvard University Press, Cambridge, 1985; responderam autores em sentido inverso como
são os casos de Michael Sandel em Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge University Press, Cambridge,
1982; Alasdair MacIntyre, After Virtue, Duckworth, London, 1981; ou Charles Taylor, Sources of the Self, Harvard
University Press, Cambridge MA, 1992.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
8
No Liberalismo Clássico a fundamentação última da ordem jurídico-política repousa num conjunto de
axiomas religiosos que transbordam para a razão secular. No Neoliberalismo presente, por seu turno, a
defesa das virtudes do sistema liberal é feito enquanto permite um conjunto de finalidades externas ao
próprio liberalismo (progresso, bem-estar, segurança, propriedade) e não segundo a perspectiva de que o
Criador colocou o Homem na Terra com o poder de tomar sua uma parte da criação que seria inviolável
por outrém.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
245
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
“neoliberal”8, a capacidade para erguer uma sociedade fundamentada em axiomas
que validem universal e racionalmente esta função social. Qualquer apologista da
“escola liberal clássica” pode aperceber-se dessa incapacidade pela forma como a
nossa justiça “liberal” comporta um sem-número de transacções involuntárias de
propriedade, sem que estas sejam observadas como uma violação do direito
fundamental à propriedade. Em sistemas políticos onde a referência política máxima
é a Democracia, onde o valor principal é a Vontade da comunidade, como pode ser
arguida qualquer concepção que seja superveniente e que possa evitar que a política
recaia num despotismo maioritário? Como pode um sistema de propriedade
individual defender a sua fórmula quando aceita que a Democracia, a vontade dos
cidadãos, é a racionalidade última da argumentação política?
As três obras analisadas por este artigo consistem em compreensões da referida
incapacidade do Liberalismo Político dotar a comunidade de valores que sejam de
maior valor normativo que a apologia da autonomia individual. Pierre Manent
discute os condicionalismos comunitários (sociedade civil, discursividade comum,
identidade, religião) que possibilitam a existência de uma sociedade liberal e
democrática que não incorra na assumpção de que não existem normas externas a
si. Este é um argumento que segue uma longa linhagem na filosofia política ocidental
e cristã, concentrando a sua atenção nas condicionantes sociais indispensáveis à
existência de um regime constitucional bem ordenado. Só numa sociedade em que
existam crenças fortes acerca da ordem política pode repousar nas mãos da
população o poder de eliminar dívidas, de transferir propriedade individual para
finalidades colectivas, de decidir da vida e morte dos concidadãos. Essa condição do
sistema liberal-democrático é possível apenas numa sociedade em que os laços vêm
de um profundo sentido partilhado de Justiça. Onde não exista esse forte sentido
colectivo, que coloque acima das transacções e opiniões políticas as estruturas
civilizacionais que possibilitam a existência intocada de esferas de liberdade social,
a liberdade dos indivíduos e das colectividades encontra-se à mercê da vontade das
maiorias, predominando aí relações de força social e não de direito. O propósito da
comunidade e em particular do Estado-Nação, é dotar os cidadãos de um enqua-
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
246
dramento que permita a manutenção de consensos, condição prévia do político,
acerca dessas estruturas essenciais. A Nação é, dessa forma, segundo Manent, uma
instituição geradora ou respeitadora da “sociedade civil”, afirmando-se como
conjunto de elementos que transcendem o carácter meramente volitivo da política
liberal. No conceito de Estado-Nação repousam os conceitos que subjazem a uma
sociedade, os seus dogmas e postulados tácitos, que constituem o verdadeiro reduto
da comunidade, a sua pressuposição colectiva.
O livro de Marcello Pera desvia-se deste argumento político, quanto à natureza
da comunidade. Ao invés de estabelecer a preponderância da comunidade na
determinação dos significados das coisas humanas, Pera remete para as insuficiências
da afirmação autónoma e não-transcendente do liberalismo que é timbre do nosso
tempo. Sob uma perspectiva liberal, seguindo os trilhos marcados por Lord Acton,
ou mais presentemente Joseph Weiler, o autor procura demonstrar de que forma o
Liberalismo contemporâneo e os sistemas liberais não podem – como o não fizeram
no tempo de sua concepção – prescindir de uma compreensão de Deus para revestir
de carácter normativo as suas prescrições. Recorrendo a uma análise dos founding
fathers do liberalismo, e à forma como estes repudiaram a construção de sistemas
onde não existisse a presença ou o reconhecimento de Deus, Pera passa a elaborar
uma justificação para a reordenação do sistema liberal, para a sua refundação ou
recentramento no seio dos preceitos do Cristianismo. Contra as definições actuais do
Liberalismo que postulam o afastamento da questão da transcendência da esfera
pública (Rawls, Habermas, Rorty)9, o senador italiano pretende ancorar no
liberalismo os preceitos da civilização judaico-cristã, como complementos essenciais
para a interpretação e enquadramento dessa mesma ideia política.
Se o argumento de Pera consiste na necessidade de um Deus que complete a
construção do Estado fundado no jusnaturalismo liberal, o argumento de Gray acerca
da Modernidade caminha no sentido de mostrar como as próprias concepções que
possuímos na contemporaneidade sobre as relações entre a Religião e a Política se
baseiam em falsos pressupostos de laicismo e irreligiosidade. Todo o laicismo que é
apanágio do nosso tempo não é mais, segundo Gray, que um reflexo da visão cristã do
Mundo, um Cristianismo segundo a perspectiva da Modernidade. O Cristianismo sem
Deus, do nosso tempo e dos últimos séculos, vive de um conjunto de elementos
cristãos que sofreram adulterações modernas: a crença no fim da História e na existência
9
Aquilo a que Pera chama “equação laica”. Pera, p. 25 e segs.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
Pierre Manent: A Comunidade como Intangível
“A nossa democracia extrema, que intima ao respeito absoluto das identidades, junta-se ao
fundamentalismo que pune de morte o apóstata. Já não há mudança legítima, porque já não há
preferência legítima. Sob o flash da sua unidade proclamada, a humanidade imobiliza-se para
uma adoração contínua e interminável de adoração de si” 11.
10
A irredutibilidade de posições e a crítica por vezes demasiado simplificada demonstram até que ponto os
pressupostos para o debate racional se encontram inquinados. A título de exemplo veja-se a recensão de
A. C. Grayling “Through the Looking Glass”, in The New Humanist, vol.122, n.º 4, Jul/Aug 2007.
11
Manent, p. 15.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
247
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
de um sentido da mesma, na perfectibilidade humana, na possibilidade da ciência dotar
o Homem de certezas. Estas características são, para o filósofo britânico, apenas um
longo epílogo do Cristianismo e um ressurgimento de conceitos cristãos despidos da
sua espiritualidade e transcendência. Este é um severo ataque à pretensa neutralidade
do ateísmo e do agnosticismo dominantes no ideário liberal observado em Pera, mais
precisamente à ideia de que a política é, conforme o cânone contemporâneo e pós-moderno, mero fruto dos desejos do Homem e concepção independente das visões
extra-subjectivas dos cidadãos. Esta concepção, de que todo o ordenamento político
implica uma escolha positiva e nada equidistante perante as várias propostas político-morais de sociedade, vai ao cerne do problema do político do nosso tempo, tendo, por
isso, gerado um apaixonado, ainda que comprometido, debate10.
As três obras apresentadas são um reequacionar da forma como vemos o
Liberalismo Político (nas suas formas clássica ou reformada), questionando o papel
crucial que a contemporaneidade lhe atribui como ideia autónoma, fundadora, auto-suficiente ou equidistante e portanto, superior no plano político. As três obras
apresentam-se como tentativas de salvar a sociedade e o ethos liberal, através da
dotação de significados mais profundos a essa concepção política. No caso de
Manent é a comunidade e as suas instituições sociais que têm a função de evitar o
totalitarismo, a consequência lógica do liberalismo. Já para Pera é a religião e a
perspectiva que a sociedade tem desta que tem esse papel de coluna vertebral da
fórmula liberal, servindo-lhe de correctivo e de referencial interpretativo. Em Gray o
Liberalismo é assombrado por um conjunto de mitos do passado que lhe dão um
carácter agressivo, precisando o liberalismo de os substituir por formulações de
maior benevolência.
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
248
Relativamente desconhecido em Portugal, Pierre Manent é um autor francês de
créditos firmados, que goza de enorme aceitação no mundo anglo-saxónico e
nalguns sectores da análise teórica política que se reclamam do legado intelectual de
Leo Strauss. Depois do sucesso entre os académicos que foi a publicação de Les
Libéraux12, uma história do percurso filosófico do liberalismo francês, que mereceu
uma reedição em 2001 e uma versão em inglês pela Princeton University Press13,
bem como da revificação da problemática tocquevilliana da democracia14, operada
em Tocqueville et la nature de la démocratie (1982, reed. 1993)15, Manent surge com uma
obra eminentemente política. Reflectindo, mais uma vez, na questão das condições
da democracia, Manent introduz como característica essencial da democracia a
comunidade e em particular o Estado-Nação, como forma política que permite a
conjugação da responsabilidade colectiva com a possibilidade de uma realização em
que os fundamentos da sociedade não se encontram sujeitos a um escrutínio
permanente16. Este é um eco evidente da problemática de Alexis de Tocqueville que
em De la Démocratie en Amérique (1835 e 1840), analisou a forma como a sociedade
democrática e moderna poderia manter a sua estrutura intocada por determinadas
visões igualitárias que perigam a liberdade. Afirmava Tocqueville que só através de
um escrupuloso respeito pelas várias esferas da sociedade (a família, a comunidade
e a religião) poderia a Democracia sobreviver sem que o impulso igualitário, uma
força da mesma modernidade que origina a proposição democrática, tomasse conta
do governo e destruísse as estruturas da propriedade e da autonomia humana17.
Manent prossegue esta linha argumentativa e reflecte sobre as condições de
permanência de esferas da vida social imunes à “vontade humana” (a autoridade
12
13
14
15
16
17
Editado pela Gallimard em 2001, após primeira edição de 1986.
Sob o título An Intellectual History of Liberalism, trad. Rebecca Balinski, Princeton University Press, Princeton, NJ:,
1994.
Uma descrição iluminadora do renascimento desta problemática por via de pensadores como Leo Strauss e
Irving Kristol pode ser encontrada em Bruce Frohnen, Virtue and the Promise of Conservatism: the legacy of Burke and
Tocqueville, pp. 90-118, University Press of Kansas, Kansas, 1993.
Também traduzida para inglês nos EUA como Tocqueville and the Nature of Democracy, trad. John Waggoner,
Rowman & Littlefield, Lanham MD, 1996.
Contra a tese de Ernest Renan em “Quest’ce une Nation?” (1882) em que esta é entendida como subproduto das
vontades de permanecer em comum, Manent apresenta a nação como um acervo de valores comunitários
que constituem o próprio entendimento da comunidade. Valores que são prévios à vontade e ao seu auto-entendimento.
Transformando assim o entendimento da própria definição de liberdade. Através desta inversão conceptual,
a liberdade deixa de ser encarada como esfera de autonomia individual, para ser entendida enquanto
capacidade dos indivíduos para obter determinados fins. Sobre este assunto a fonte clássica mais referida
é o artigo de Isaiah Berlin, “Two Concepts on Liberty”, The Clarendon Press, Oxford,1961.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
18
Aristóteles, Política, Livro VI.
Idem.
20
Manent, p. 12.
21
Manent, p. 14.
22
Este é um tema do straussianismo que Manent perfilha. Em “The Three Waves of Modernity” in An introduction to
Political Philosophy: ten essays by Leo Strauss, ed. Hilal Gildin, Wayne State University Press, 1989, pp. 86-98, Leo
Strauss observa de que forma a emergência da filosofia moderna, em particular a de Rousseau, compõe
uma visão da comunidade como mero produto humano e como esta perspectiva conduz ao totalitarismo
da perspectiva marxista.
19
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
249
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
paternal, o respeito pelos ancestrais, o respeito pelo divino, são redutos em que a
vontade humana não consegue subverter as tradições estabelecidas), que, segundo
Tocqueville, mantêm a possibilidade de uma sociedade livre da reinvenção totalitária.
Esta reinvenção, segundo Manent, só pode ser limitada ou abortada através de uma
estrutura identitária, que subjugue a vontade do presente às responsabilidades do
passado. Como Aristóteles observou há mais de 2300 anos, os regimes democráticos,
ao consagrarem como vinculativa apenas a vontade dos cidadãos, possuem a
capacidade de não respeitar os anteriores vínculos da “cidade”18, sendo que por isso
terão tendência para se tornarem uma máquina de extorsão dos pobres, a maioria,
aos ricos, a minoria, e um regime de arbitrariedade que ninguém beneficia19. A
razão de ser do Estado-Nação prender-se-ia com essa mesma representação histórica
de continuidade que permite uma síntese entre a liberdade e a autoridade.
Possibilitando que o presente tenha a necessidade e a capacidade de redimir o
passado, torna-se possível que a política possua uma “memória institucional” onde
reside a concepção do “justo” e do “injusto”20.
A emergência da União Europeia, um projecto essencialmente político, é, no dizer
de Pierre Manent, um perigoso desafio que não pode prescindir do Estado-Nação,
dado o risco que constitui um kratos sem demos21. Onde não existe uma comunhão entre
a comunidade e onde aquilo que é comum – o elemento que une e é prévio às
perspectivas individuais dos vários membros que permite que um agregado humano
se qualifique como tal – nasce o espectro do relativismo. Estamos aqui perante um
ponto straussiano. Uma comunidade que não possui um conjunto de significações
partilhadas sobre o que é Bom, ou que não é detentor das ferramentas civilizacionais
para tal, trilha o caminho do relativismo (seja pela via historicista ou pela via
igualitária), sendo que em tal concepção político-moral o papel do diálogo racional
declina e perde qualquer importância. A aceitação de qualquer visão como lícita,
porque situada, subjectiva e inconsequente na estrutura política é uma característica
do totalitarismo, que a União Europeia, pela sua ausência de uma concepção de justiça
supra-subjectiva que lhe sirva de identidade, parece perfilhar22.
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
250
O que o Manent descreve no capítulo dedicado à Democracia é uma interessante
reflexão sobre o papel do Estado Moderno no mundo contemporâneo (poder-se-á
dizer numa era pós-moderna). O Estado Moderno que tinha o papel de disciplinador
e de nivelador na “disciplina napoleónica” é destituído em prol de uma concepção de
governo como elemento respeitador e gestor de diferenças23. O Maio de 68, com todo
o seu apelo autenticista e expressivista, é o grande momento de afirmação dos ideais
do relativismo, que se condensam socialmente na perspectiva do Estado como mero
administrador dos recursos colectivos e respeitador de diferenças insanáveis e
insondáveis dos indivíduos. Ao conceber o Estado como mero administrador e não
como elemento reflexivo da comunidade, a Europa (que tem como lema “a unidade
na diversidade”), abraça como sistema de valores a abrangência e a tolerância. Sem
possuir um sistema valorativo que não seja o respeito por todos os sistemas, como
expressões de individualidade, o político reduz-se a uma acção arbitrária de resolução
de conflitos que tem como propósito único a manutenção do próprio sistema
político24. A crítica de Manent, embora velada, é evidente. Um sistema que se baseia
na tolerância e na abrangência não possui em si os elementos que permitam discernir
entre a posição lícita e ilícita, tendo por isso a incapacidade de traçar fronteiras entre
os “seus” e os “outros”. Sem incorrer em dicotomias schmittianas, Manent denuncia a
ilogicidade desta concepção de Estado, que se expressa no paradoxo de um Estado que
não aceita a pena-de-morte para os assassinos, mas que pede aos seus cidadãos
cumpridores que dêem a vida por si25. O Estado que não encontra diferenças que sejam
passíveis de excluir alguém da sua égide e de remeter o indivíduo para fora da sua
esfera de protecção (lançando o prevaricador na terra de ninguém do estado-de-natureza) é reflexo dessa decisão de não tomar posição sobre o que é ou não justo.
Para Manent, o Estado-Nação é o ponto de equilíbrio entre a obediência e o
voluntarismo, que permite que sejam preenchidas as condições para uma relação de
justiça partilhada pelos cidadãos, residindo aí a verdadeira comunidade. Afirma: “É a
comunidade política que mantém em conjunto e faz retinir todos os registos da
palavra, e toda a comunicação verdadeira apoia-se nessa escala harmónica.”26. A
inexistência dos significados partilhados de que se reveste a verdadeira comunidade é
23
Manent, p. 22.
O autor descreve esta “ideologia” pós-moderna na frase citada que serve de mote ao presente segmento do
artigo.
25
Manent, pp. 30-32.
26
Manent, p. 39.
24
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
Marcello Pera: Os Fundamentos Cristãos da Liberdade
“Ma Atene e Roma non annullano a Betlemme, né Betlemme annulla Gerusalemme. Il
cristianesimo è l’anima dell’Europa, non perché non si sia mescolato con altre culture, ma perché
le ha portate ad unità, le ha articulate, fuse, composte in un quadro che ha fatto della terra in
cui sbarcarono Pietro e Paolo il «continente cristiano».29
27
Escolhe kantianamente não ter escolhas, identidade ou matriz cultural, mas identificar-se com princípios
abstractos.
28
Um império universal que o autor descreve na citação inicial.
29
Pera, p. 96.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
251
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
uma das razões da degenerescência da governação para a governance. A governação,
relação entre governantes e governados que vai no sentido das normas que preenchem
os sentidos da justiça da comunidade, é substituída pela governance, conjunto de acções
político-administrativas que visam interacções com o exterior e não a relação directa
com os governados, com vista à manutenção do Poder. Essa substituição é uma
degradação da política em sentido clássico, uma vez que uma relação política, em que
o interesse ou bem dos cidadãos não é a máxima regra, se torna em massa informe,
uma sociedade em que a força (violenta ou não) triunfa e onde não existe lugar para
qualquer bem-comum ou concepção de justiça (ou de “dever ser”) que sirva de
orientação imparcial ao aparelho político.
A Europa Unida é uma concepção política em que a comunidade recusa ter uma
identidade substantiva27 e recusa uma concepção sobre qualquer forma de transcendência.
A miragem do Estado Neutro, um equívoco da neutralidade da teoria liberal
contemporânea, esconde apenas uma posição agnóstica e que possui claras implicações
políticas: uma implicação de identificação e outra de delimitação, onde não existe uma
fronteira inequívoca do “nós”, religiosa e cultural, onde impere apenas a identificação
da aceitação do “outro” enquanto fronteira essencial da delimitação do “eu” ou do
“nós”, não existe uma limitação espacial do domínio político, o que remete para uma
estrutura imperial de Poder com todas as suas vicissitudes28. A outra incapacidade
prende-se com a impossibilidade de dotar a comunidade de uma estrutura valorativa e
independente das estruturas de vontade individual, que tenham a capacidade de formular
e enquadrar concepções de justiça. Sem uma escolha moral concreta, o político tende a
transformar-se numa mera declaração de intenções, ou numa mera gestão de diferenças
com intuitos económico-políticos. Esta degradação dos vínculos políticos é diagnosticada
por Manent e um ponto-de-partida para a reflexão teórica de Marcello Pera.
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
252
Prefaciado por carta do Papa Bento XVI, o livro de Marcello Pera é de interesse
para a compreensão da encruzilhada liberal. Compreender de que forma o Liberalismo
pôde prescindir de uma compreensão de Deus, até que, sem grande controvérsia,
emergiu como pensamento “sem traço de divindade”30, é, possivelmente, a questão
mais importante para compreender o presente das sociedades ocidentais. Apresentando-se como uma “ideia abrangente”31, o liberalismo contemporâneo interpreta-se como
uma ideia dirigente da sociedade que prescinde das escolhas morais fundamentais,
remetendo tais decisões para o foro privado/individual de cada membro da sociedade.
Esta visão esquece que, no passado mais recente (sécs. XVII- XIX), as próprias
fundamentações da liberdade, o liberalismo clássico, se encontravam intimamente
ligadas a uma concepção teológica. Ainda que se tenha tornado ideia fundamental do
nosso tempo, o liberalismo não conseguiu tornar-se num sistema de valores, numa
concepção política que guarda as respostas fundamentais sobre as questões humanas.
As variadas tentativas de transformar a liberdade individual em finalidade da
comunidade (do marxismo ao anarco-capitalismo libertário) terminaram em descrédito
ou sendo absorvidas por outras finalidades políticas sem essa finalidade libertária
(progressismo, neo-liberalismo, social-democracia, sindicalismo…). Dessa incapacidade
nascem inúmeros conflitos no nosso tempo, e a incapacidade do liberalismo responder
a assuntos que lhe são directamente relevantes, como o caso de determinar os limites
da “Vida Humana”, para que esta possa ser protegida juridicamente, é apenas um dos
casos em que se demonstra de que forma o liberalismo se terá de socorrer de outras
formas de pensamento (religião, filosofia, ciência, democracia), para a prossecução de
suas finalidades.
É no seguimento destas insuficiências do liberalismo, que hoje em dia parecem
ser salientadas um pouco por todos quadrantes, desde a “crítica comunitária do
liberalismo” à Teoria Crítica, que Pera conduz um argumento interessante acerca das
origens e do espírito do liberalismo. Segundo este autor, o jusnaturalismo, a ideia de
que a comunidade deve agir em conformidade com a Natureza e não com critérios
voluntários, é um elemento essencial do liberalismo, servindo-lhe de limitação. Esta
visão de Pera sobre Locke, os Founding Fathers, ou Kant, é fundamental, uma vez que este
vê o Liberalismo enquanto forma política supra-democrática, ou seja, um reduto que
30
31
Richard Rorty in Pera, pp. 25-26.
Na teoria política anglo-saxónica o termo descritivo é “comprehensive”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
32
Reduto máximo da expressão comunitária que serve de limitação ao poder dos indivíduos e que distingue
os “regimes constitucionais” das “democracias” na tipologia aristotélica. Ver Aristóteles, Política, Livro IV.
33
Pera pp. 46-47.
34
Pera pp. 46.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
253
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
se encontra imune às pressões do político e que ordena toda a estrutura legislativa. As
afinidades com Pierre Manent são evidentes. Onde em Manent a Constituição – em
sentido clássico32 – se encontra nos preceitos comunitários, em Pera o reduto máximo
da inteligibilidade do sistema liberal reside no Cristianismo, sendo este quem dota o
liberalismo das várias finalidades e significados de que o Liberalismo, por si só, é
incapaz de possuir33. Pera considera que o Cristianismo garante ao liberalismo, como
já havia sido reivindicado pelos fundadores do liberalismo, um ponto exterior,
imperativo, natural, uma formação que se baseia não em estruturas de arbitrariedade
individual e colectiva – como as arguidas por Rousseau e seus seguidores –, mas na
existência e submissão a um construção racional que se funda na Natureza da Criação.
A essência jusnatural do Liberalismo, que Pera defende na senda dos grandes liberais
clássicos, é um factor decisivo na obtenção de duas conclusões de relevo: que o
liberalismo é insuficiente na sua formulação contemporânea e que a formulação
contemporânea, ao rejeitar pressupostos religiosos na sua formulação, não só se afasta
do desígnio dos seus fundadores, mas perde a sua inteligibilidade enquanto sistema de
valores. O afastamento dos conceitos religiosos da “esfera pública”, da discussão
central das nossas sociedades, acarreta, dessa forma, não apenas uma degradação do
Cristianismo ou, se se preferir, da religião, mas a própria erosão dos conceitos
formativos do sistema liberal.
A liberdade, segundo a concepção jusnaturalista, que Pera observa nos liberalismos
clássicos e que defende, não se funda num conjunto de axiomas de preferência, nas
vontades comunitárias (mesmo as inconscientes e involuntárias que Manent releva),
mas por um respeito por concepções de Humanidade que se encontram nas
formulações do Cristianismo e que determinam a Igualdade do Género Humano34. A
alternativa a estas concepções seria um Estado sem qualquer traço ético, uma agregação
política que não se orientasse no sentido de obter quaisquer finalidades éticas benéficas
para os seus membros. Pera rejeita esta formulação política, que parece estar “na
mesa”, num momento em que as propostas políticas para a Europa Unida fazem uma
apologia da neutralidade ou mera operacionalidade/funcionalidade dos preceitos
jurídico-políticos. Por toda a obra é latente a compreensão de que num discurso
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
254
político depauperado de uma reflexão sobre os princípios éticos e religiosos, os
conceitos que presidem ao respeito pelas liberdades de terceiros se encontram numa
situação crítica. E da mesma forma, contra Habermas, Pera afirma que o patriotismo
constitucional liberal35 não possui capacidade para fundamentar uma comunidade
política como a Europa, dado que o seu apelo reside no que cada uma das várias
interpretações europeias, as culturas nacionais, tomam por Europa e não por um
conjunto de valores que residam na mesma. Pera fala da perspectiva do “patriotismo
constitucional” de Habermas como um “cosmopolitismo” fundado em camadas de
memória histórica (o Holocausto e os Totalitarismos e as lutas pela democracia, pelo
Estado-Social, a paz e contra a hegemonia americana36) que nada têm de originalmente
europeu. No mesmo sentido, uma união não se faz de diferentes perspectivas ou
interpretações sobre um mesmo objecto, mas de perspectivas ou percepções comuns
sobre a mesma. Construir uma Europa baseada em perspectivas sobre um mesmo
objecto, a Constituição Europeia, ou outra, é proceder a uma falsa unificação, sem
espessura37 para responder aos desígnios que dela se exigem e que só se coadunam
com a existência de uma resposta ao desafio ético do nosso tempo38. Fundamentar o
liberalismo é, desta forma, mais do que pretender inserir a religião na vida liberal,
conseguir destruir os falsos pressupostos de neutralidade liberal que sustentam as
formas de liberalismo que o estão a destruir e que será a grande razão para a reflexão
que John Gray elabora sobre a Modernidade.
John Gray: A Religiosidade do Secularismo
“The age of utopias ended in Fallujah, a city razed by rival fundamentalists. The secular era is not
in the future, as liberal humanists believe. It is in the past, which we have yet to understand.” 39
Passadas as ilusões do “thatcherismo”, onde se distinguiu com um livro notável
que reabilitou F. A. von Hayek enquanto pensador político40 – numa época em que era
visto como mero economista –, e do New Labour, por onde passou na década de 90,
John Gray emergiu como crítico dos humanismos e um autor de relevo em termos
35
36
37
38
39
40
Pera pp. 79-86.
Pera p. 84.
Pera p. 86.
Pera pp. 86-90.
Gray p. 261.
Hayek on Liberty, Blackwell, Oxford, 1986.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
41
John Gray, Straw Dogs: thoughts on humans and other animals, Farrar, Straus & Giroux, 2007.
Ver Nota 1 deste artigo.
43
É interessante observar como as fórmulas liberais de declaração de direitos subsistiram num mundo em que
as concepções deístas já não são afirmadas como fonte das mesmas.
44
John Gray interpreta na Modernidade uma obsessão com o Progresso, que é bastante similar à posição de Leo
Strauss em Thoughts on Machiavelli (University of Chicago Press, Chigago IL, 1995.), onde esta é vista como a
obsessão com a compreensão das leis da Natureza não para a submissão às suas normas (como é apanágio
do pensamento clássico), mas para uma reformulação do mundo à vontade humana, perspectiva de que
Maquiavel foi o grande precursor.
42
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
255
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
de pensamento original. Em Straw Dogs41, o seu livro anterior, o propósito era
denunciar a inquietude do Mundo Moderno, a sua reverência pela funcionalidade, a
religiosidade da produção e a incapacidade de gerar contemplação. Em Black Mass:
Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, o autor tenta traçar uma genealogia do erro das
sociedades modernas, no intuito de libertar o sistema liberal da sua fundamentação
humanista, que, segundo este, impregna toda a vida ocidental.
Black Mass não é apenas mais um livro de questionamento da sociedade ocidental,
mas uma obra em que é traçada uma História da Modernidade e uma interpretação
do Iluminismo e da sua descendência política e filosófica enquanto subproduto de
uma mesma substância religiosa. O argumento não é, de forma alguma, original,
mas encontra força ao longo das páginas do livro, onde se vão explicando os
processos sob os quais o Cristianismo foi transmutado em “religião política” ou
“religião secular” pelos intérpretes da Modernidade. A substituição da escatologia
Cristã por um conjunto de elementos religiosos adulterados e imanentizados, onde
a salvação do Cristianismo se metamorfoseia no Mundo Novo, no ponto ómega do
Progresso, no fim-da-escassez do socialismo científico de Marx, no Comunismo de
Estaline ou no Homem Novo do Nazismo é uma ideia que perpassa todo o livro.
Contra as teses de “desideologização” ou de desencantamento do Mundo42,
Gray mostra ao longo do livro como nada existe de secular no secularismo e como
este se encontra decisivamente povoado por ideias que não são mais do que
aplicações à mentalidade materialista da modernidade dos preceitos da religião. Tal
tem implicações profundas na forma como apercebemos o nosso tempo, como a
generalidade das comunidades ocidentais não questionam posições como os Direitos
Humanos, que se inscrevem claramente numa tradição religiosa-filosófica há muito
abandonada43, como as nossas sociedades apresentam o Progresso como uma
imperatividade insofismável e inescapável, como vivem absorvidas com o controlo
de imprevistos e de circunstâncias naturais44.
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
256
Como é evidente, existem numerosos conceitos do Estado Contemporâneo que
saem maculados pela exposição de Gray, que expõe como a suposta neutralidade do
Estado liberal e democrático o seu posicionamento não-valorativo45, a sua equidistância
perante as formas de vida e as crenças morais, não passam de um simulacro, não sendo
mais do que uma enfabulação com finalidades políticas. Se a religião formalizada é
despromovida e subordinada ao domínio da esfera privada, a “religião política” torna-se hegemónica e traz consigo o perigo do Totalitarismo, a dogmatização dos cultos
secularistas do progresso e o seu predomínio político através da máquina estatal.
A “missa negra” a que o título original da obra alude, e que foi com enorme
prejuízo retirada do título da versão portuguesa do livro46, é uma descrição da
corruptela religiosa em que a nossa ideologia, a religião política contemporânea, se
transmutou e que, na senda do milenarismo cristão, acreditando ser possível o
estabelecimento da perfectibilidade humana e o estabelecimento da utopia no nosso
mundo, criou uma “para-religião” da perfectibilidade humana47. A acção política,
desta forma, passa da perfectibilidade moral, a busca da obediência ao preceito, à acção
sobre o mundo e a tentativa de construção do paraíso terreno. A política e as próprias
ciências do fenómeno político adquirem um significado radicalmente diferente do
anterior, passando a visar não a compreensão ou explicação de fenómenos, mas a acção
sobre o mundo, a erradicação dos seus males, do sofrimento à exclusão social. A
sociologia engagé dos anos 60 e 70 que se destinou a eliminar aquilo que considerava
serem as “doenças sociais” do seu tempo, nada mais foi que um estado terapêutico,
que acreditou na eternidade das coisas físicas e na morte das coisas perenes, sem nunca
se questionar sobre a legitimidade do enquadramento e das suas expectativas utópicas.
O neoconservadorismo da Era Bush cai nesse mesmo erro, sendo uma tentativa
“evangélica” de cumprir a missão divina de instaurar o paraíso terreno: o “Fim da
História” liberal e democrático, da escatologia de Fukuyama48. O laço entre estas duas
ideias é evidente e Gray é eficaz a demonstrar as semelhanças de weltanschauung entre o
milenarismo utópico do socialismo revolucionário e a crença no carácter redentor da
Democracia e “Destino Manifesto”49 americano que enformou a política externa
45
Atente-se no que foi dito sobre este assunto a propósito de Manent na p.10 deste artigo.
A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas (Guerra e Paz, Lisboa, 2008) não parece ser um título capaz
de descrever com as mesma precisão que a “missa negra” a forma como a religião cristã e seus mitos se
apresenta para Gray como uma presença que mancha o pensamento liberal.
47
Gray, p. 23.
48
Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, Free Press, 1992.
49
O “Manifest Destiny” que corresponde à crença no carácter redentor dos Estados Unidos da América.
46
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
50
Gray, p.36.
Em Gray p. 173, o autor descreve de forma muito interessante a relação entre Alexandre Kojéve e Francis
Fukuyama que traduz para a linguagem neo-liberal e capitalista um conjunto de conceitos provenientes
do marxismo, em particular a inevitabilidade da emergência de uma ordem capitalista.
52
Gray, p. 173.
53
John Gray descreve (Gray pp. 34;37;46) a forma como a violência e a guerra são, no mundo moderno,
encaradas como forças descisivas, no sentido de fornecerem ao mundo o seu sentido verdadeiro. Gray
descreve essa tendência como “optimismo beligerante”.
54
A crença numa relação directa entre os representantes da comunidade política americana na Administração
Bush foi um assunto muito debatido a partir da véspera da tomada de posse, de no discurso pré-inaugural:
“Tomorrow, I will take an oath and deliver an inaugural address. You’ll be pleased to hear I’m not going to
deliver it twice. But I will speak about freedom. This is the cause that unites our country and gives hope
to the world and will lead us to a future of peace. We have a calling from beyond the stars to stand for
freedom, and America will always be faithful to that cause.”
51
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
257
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
americana dos últimos anos, numa característica amálgama de neoconservadores,
securitários, nacionalistas americanos e democratas-radicais. Segundo esta aliança, o
mundo pode e deve emular uma determinada interpretação do american way of life, sendo
esta transição o último estádio da História.
Segundo Gray, a perspectiva sobre o fim-da-história neoconservador está
intimamente ligado ao problema central da Guerra Moderna e à forma como esta
adquire na cultura moderna um carácter catártico e redentor. Gray observa como na
Idade Média nenhuma guerra era vista como uma prática que poderia mudar o
mundo50, mas apenas como uma última ratio na resolução de disputas. A isto se contrapõe
a Guerra no Iraque, de clara feição neoconservadora, em que, apesar da multiplicidade
de modos de acção possíveis, o conflito bélico é visto como um degrau para a obtenção
de um Mundo Novo, dos “amanhãs que cantam” do capitalismo global51.
Desta posição, claramente contra a política externa da Administração Bush, não
podem ser depreendidos quaisquer alinhamentos políticos utópicos ou marxistas, uma
vez que Gray claramente imputa aos neoconservadores americanos a forma mentis do
trotskismo52, onde o carácter redentor da violência como portadora do “paraíso
terreno” está, e se mantém, bem patente53. Daí que Gray dê caça a todos os movimentos
modernos, às pretensões imanentistas das Utopias de esquerda ou direita, e a todos os
que pretendem, como Bush, assumir relações directas com Deus através de
“chamamentos para além das estrelas”54 ou da história das relações de produção. O
problema encontra-se, segundo este, na crença de que o Mundo tem um sentido, que
irá desembocar num mundo mágico, onde não existe “pecado” (seja este um erro
racional dos iluministas, o espírito individualista do marxismo ou o anticapitalismo
do paraíso “neocon”) e onde a humanidade se encontra em perfeita sintonia cósmica
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
258
com o Universo. Qualquer que seja a Fé que provenha da árvore imanentizadora55 da
Modernidade, a prática encontrará sempre dificuldade em adequar-se à realidade, seja
na crença absoluta da liberalização e da livre-iniciativa empresarial como panaceia –
Gray traça uma brilhante genealogia do liberalismo como religião do mercado de
Adam Smith a Margareth Thatcher56 –, seja na fé marxista na acção reguladora e
omnipotente da centralmente planificada economia do Bloco de Leste, que vai
ganhando adeptos por todo o mundo na sua versão adulterada.
A crença de que vivemos numa era pós-religiosa é, segundo Gray, uma ilusão
criada pelo Iluminismo, como forma de justificar todos os crimes (afogamentos
colectivos, decapitações) da Revolução Francesa, é uma mera ilusão justificativa.
Acreditar que vivemos numa época de superioridade face ao passado foi a estratégia
encontrada para reconciliar a sociedade moderna com o facto de não conseguir
transcender os mitos redentores do Cristianismo e defender a violência como forma
de garantir a preservação contra a violência religiosa. Só através da criação de uma
Paz definitiva no nosso mundo, se pode justificar a violência secular para terminar
com a religiosa. É desta forma que o secularismo, através da Utopia, se crê acima da
disputa religiosa e num “moral high ground”.
Conclusões: Fundamentar o Liberalismo – Um Novo Liberalismo? As propostas dos autores,
sumariamente apresentadas, passam pela inscrição do Liberalismo em estruturas de
pensamento que o transcendem, evitando o monopólio da vontade humana como
fundamento legislativo, que o liberalismo entendido como finalidade em si própria
parece acarretar. Pretendem da mesma forma contrariar esta formulação, que parece
gerar situações de ingovernabilidade ou situações em que os direitos são utilizados
para destruir a fonte de direitos donde os primeiros emanam57. Quando tomados
como princípios absolutos ou finalidades, a “autodeterminação” do indivíduo ou a
inviolabilidade da propriedade, sem que estejam inseridos numa estrutura que ordena
o seu alcance – um quadro interpretativo –, entramos no domínio axiomático, onde
55
A crença de que o homem tem na sua existência terrena a única dimensão existencial.
Gray, pp. 108-131.
57
Grande parte da literatura conservadora do século XX parte do “paradoxo de Weimar”. A questão essencial
para autores conservadores como Leo Strauss ou Eric Voegelin, que foram emigrados do Reich Nazi,
prendia-se com as condições existenciais da democracia e com a forma como um sistema constitucional
liberal, pleno de garantias e “evoluído”, como ainda hoje é proclamada a “República de Weimar”,
permitiu a ascensão dos regimes totalitários.
56
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
58
Afirmações como “quero “x”, porque sim” são impedimentos a qualquer discussão racional e impedem
qualquer diálogo que vise a compreensão ou fundamentação, tornando impossível qualquer fundamentação
filosófica.
59
Gesellschaft no alemão original.
60
Gemeinschaft no alemão original.
61
O direito a desprezar os símbolos nacionais é hoje, cada vez mais, um direito consagrado nas estruturas
legislativas e nas práticas sociais das nações europeias.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
259
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
nada é possível explicar ou fundamentar58. E os autores alertam com veemência para
o perigo de explicar a liberdade com a liberdade, não explicando os seus benefícios
numa escala de valores, mas apresentando-a como única finalidade possível.
A obra de Pierre Manent propõe a Comunidade como elemento corrector do
liberalismo. O Estado-Nação, uma forma específica desta, é, segundo o autor, a melhor
forma de, recorrendo aos elementos que se encontram na sociedade, evitar o colapso
do liberalismo sobre si próprio, evitando as consequências lógicas da Modernidade e do
Liberalismo que concorrem para o niilismo e para uma sociedade desordenada. Aqui
surge, porém, uma dificuldade na perspectiva de Manent. Ferdinand Tönnies estabeleceu,
em Gemeinschaft und Gesellschaft (1887), uma distinção fundamental entre associações
humanas voluntárias e involuntárias. Às primeiras chamar-se-ia “sociedade”59, enquanto
que às segundas “comunidades”60. Emerge daí uma distinção imprescindível, que
consiste em saber se o Estado-Nação presente não tem mais de “sociedade” do que de
“comunidade”, ou seja se o elemento preponderante das nossas agregações políticas
não é o carácter voluntário das instituições e a forma como um cidadão se pode não
rever nas própria nação61. Este é, também, um problema tocquevilliano, sendo
fundamental perceber de que forma na sociedade as instituições sociais naturais foram
impregnadas pelo voluntarismo que caracteriza a ideia liberal e, por consequência, a
ideia democrática. Analisando o problema, facilmente se poderá detectar que não
estamos perante um Estado-Nação monolítico, mas perante uma “idealização” do
conceito, dado em muitos Estados da Europa as estruturas sociais autónomas (onde
segundo a teoria de Alexis de Tocqueville repousaria a essência da liberdade moderna)
foram há muito adulteradas pelo Estado com o seu carácter voluntário e igualitário,
assim como pela imposição dos seus princípios, sendo neste momento meros reflexos
da ordenação estatal. A forma como o casamento e a família se encontram neste
momento subordinadas a concepções meramente civis, sendo tomadas pela política e
sociedade como matérias referendáveis, demonstram como essa “teoria da sociedade
civil”, que Manent anexa ao Estado-Nação, se apresenta extremamente débil na Europa
do nosso tempo. Onde o Estado parece ter penetrado as várias esferas da existência
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
260
humana, pouco espaço há para a autonomia organizacional das estruturas sociais.
Nessas circunstâncias o papel do Estado-Nação enquanto elemento correctivo do
carácter autonomista do liberalismo é dúbio, para dizer o mínimo.
O argumento de Marcello Pera, encontra também um conjunto de problemas que
se prendem com as particularidades do Catolicismo quando colocado perante o
Liberalismo. Socorrendo-se da concepção constitucional americana do Divino, que é
claramente influenciada pelo Deísmo lockeano62, Pera faz uma defesa de uma concepção
do Divino como guardiã das normas do liberalismo. A aplicação do paradigma americano
ao processo de constitucionalização da Europa encontra, porém, bastantes problemas
conceptuais. Marcello Pera ressuscita as formulações do Constitucionalismo Americano,
a ideia de um Deus tido constitucionalmente como um referencial externo que garante
a igualdade e a vinculatividade da ordenação política, é uma parte importante do legado
lockeano na tradição americana. Mas essa influência reflecte-se num dúplice problema:
a formulação lockeana pressupõe a exclusão da ordem política de pessoas que não
perfilhem essa visão protestante de Deus, sendo também uma formulação situada no
tempo, com difícil transposição para o enquadramento católico.
Ambas as objecções estão claramente interligadas. A primeira, a exclusão de
católicos e ateus da sociedade, provém da própria natureza da revolução americana, um
projecto de auto-governo que visava libertar do passado europeu as populações
protestantes do Novo Mundo. Contudo, a influência de Locke e da vinculatividade
jusnaturalista da constituição, tem vindo a ser erodida no século XX. Este facto
representa um problema para a tese de Pera. Ou o autor toma como exemplo as teorias
fundacionais americanas e se desliga do espírito do tempo actual americano, que já
pouco reconhece o carácter imperativo da concepção protestante do Divino, e aceita
como natural a exclusão dos católicos e ateus da ordem política (contra o espírito do
tempo actual do liberalismo), ou aceita o espírito americano e a forma como as
interpretações constitucionais presentes afastam qualquer relação com Deus da
ordenação política. Não se verificando o espírito do tempo do momento fundacional
da ordem americana, é difícil ver como tais conceitos poderiam ser transpostos para
uma ordem constitucional europeia. O mesmo se pode aferir quanto à perspectiva
constitucional americana ser transplantada para uma ordem com uma formulação
social (aceitando verdade na tese de Pera de que a Europa ainda encontra a sua
62
Ver S.G. Hefelbower, The Relation of John Locke to English Deism, University of Chicago Press, Chicago IL, 1918.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
63
A concepção protestante aceita a comunidade política como realidade meramente humana, sendo por esse
facto que toda a teoria jusnatural secularista se apoia nessas premissas. Já a perspectiva católica clássica,
perfilhando o jusnaturalismo clássico, crê na comunidade política como ferramenta de propósitos que não
os meramente seculares, como postulada pela visão de justiça política de São Tomás de Aquino.
64
Pera, pp. 49-54.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
261
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
formulação mental essencial, a base da sua cultura, no Cristianismo) onde imperem
pressupostos católicos, dada a diferença entre ambas as visões da política, a cultura
protestante e católica63.
Da mesma forma, é bastante problemática a observação da forma como Pera tenta
compatibilizar o hegelianismo de Benedetto Croce64 e a sua apologia do Espírito
Cristão da contemporaneidade com o Catolicismo. Segundo o autor italiano, o
liberalismo não pode prescindir do Cristianismo, uma vez que é esse o “espírito do
tempo” que ainda predomina nos sentidos que damos ao mundo e nos valores de que
o povoamos. Esta asserção esconde, contudo, uma afirmação mais profunda: que a
assertividade social do catolicismo provém da forma cultural dos indivíduos e não da
verdade intrínseca da sua mensagem. Coloca dessa forma o Cristianismo como fórmula
mental das sociedades europeias, e dá-lhe, em virtude desse posicionamento, carácter
de trave-mestra dos sentidos da sociedade liberal. A forma como Pera apresenta o
Catolicismo e o Cristianismo como pura forma cultural, sendo independente da sua
estrutura e hierarquia de valores e meramente dependente do sentir dos crentes. Ao
colocar a questão nesses termos o Cristianismo torna-se líquido e modelável, podendo
a qualquer momento ser confundido com formulações que lhe poderão ser opostas.
Importaria saber qual a autoridade, bem como o quadro interpretativo, que, em caso
de necessidade de esclarecimento desse espírito cristão, procederá à limitação do
quadro liberal. Que autoridade poderá assumir a tarefa de interpretar os sentidos do
liberalismo para que este não resvale no niilismo?
Para John Gray, a fundamentação do liberalismo e a forma como este resvala
invariavelmente em “religiões políticas” deve-se sobretudo à presença de mitos
fundadores incompatíveis com a mensagem liberal. Onde Pera considera a necessidade
de fundamentar o liberalismo na cultura cristã, Gray considera que a principal tarefa
do liberalismo presente é apartar-se dos mitos cristãos que geraram a Modernidade e
empreender uma refundação da sua fórmula mental sobre formas mais inócuas, mais
capazes de preservar o respeito pela alteridade que fundamenta o liberalismo.
Encontramo-nos aqui num momento pós-moderno de refundação do liberalismo,
onde, ao estilo heiddegeriano, o próprio passado é visto como uma construção do
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
262
presente, onde são as finalidades presentes a determinar o mito. Encontramo-nos assim
perante uma solução ultra-moderna para um problema moderno, onde o desejo de
alterar ou aperfeiçoar o paradigma existencial conduz a uma reconstrução da própria
estrutura espiritual do indivíduo e da sociedade. Apoiando-se fortemente na obra de
Hobbes e Oakeshott65, na observação sociológica das religiões orientais66, Gray apela a
uma construção que rejeita toda a teleologia cristã e moderna, em favor de uma
sociedade sem quaisquer finalidades transcendentes. Tal sociedade, afirma, respeitará a
subsistência física e moral de todos os seus membros por possuir como finalidade
política a mera contemplação do tempo e do mundo natural.
Quanto a este ponto da reformulação do pensamento ocidental, os problemas com
que Gray se depara são inúmeros, sendo o seu livro omisso quanto a quaisquer
respostas concretas. Na base de todo o livro subjaz a ideia de que o Cristianismo é a
causa motriz da Modernidade, não sendo, em grande medida, os dois conceitos
absolutamente destrinçáveis. Tal pode ser observado na forma como Gray descreve o
Cristianismo como principal força da Modernidade que determina o seu carácter
teleológico e salvífico, dotando-se da capacidade de fazer o Bem e de nesse processo
proceder a todo o tipo de crimes.
É, contudo, fundamental retroceder um pouco, observando o que escreveram
outros autores que se debruçaram sobre a Modernidade enquanto religião secular, para
proceder a uma compreensão mais profunda da natureza do secularismo e da sua
relação com o Cristianismo. Autores como Max Weber ou Karl Löwith postularam-na
como reflexo da concepção judaico-cristã, da esperança do Cristianismo e da espera
judaica67. Mas aquele que é, sem dúvida, o grande teórico das “religiões políticas”, Eric
Voegelin, ancorou as formas ideológicas da Modernidade numa acção de “imanentização
da escatologia cristã”, significando esta a redução do horizonte humano ao eixo de
existência terrena, onde elementos claramente escatológicos como o Paraíso é
transformado em Utopia, a salvação é transmutada na crença na perfectibilidade
humana, onde a Fé é substituída pela certeza científica racionalista, onde a Paz Cristã
é substituída pela ausência de conflito. Ao contrário de Gray, que vê no Cristianismo a
fonte de toda a imposição sobre o “outro”, Voegelin define como problema estrutural
da Modernidade o abandono da posição tradicional do Cristianismo, a metaxia, onde
toda a avaliação da realidade repousa sobre uma visão do “outro mundo”, transcendente,
65
Gray, pp. 260: 294.
As religiões sem catecismo aludidas em Gray, p.297.
67
Yotam Hotam, Gnosis and Modernity, in “Totalitarian Movements and Political Religions”, n.º 8 : 3, pp. 59-68.
66
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
68
O autor explica como a Igreja se opôs, na Idade Média, às religiões políticas, mas não discute a eficácia ou
como esta resistência seria ou não eficaz no mundo de hoje.
69
Vários autores vêem como origem desta concepção de paz social como grande finalidade política, que
terá importância fundamental na tradição política anglo-saxónica, na obra de Marsílio de Pádua Defensor
Pacis.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263
263
O regresso da Comunidade e a ascensão da religião
para uma concepção meramente imanentista do cosmos. Em Voegelin, a Modernidade
é um Cristianismo degradado, onde os seus conceitos-chave foram substituídos por
uma concepção meramente terrena, residindo nessa degradação a própria degradação
do pensar contemporâneo. Em Gray, porém, o Cristianismo alberga tanto as ideologias
modernas, como os preceitos tradicionais que se lhe opuseram, incluindo, desta
forma, uma coisa e o seu contrário. O facto de Gray não explorar a forma como o
Cristianismo e a Igreja se opuseram à concepção imanentista e secularista, apesar de a
mencionar68, cria um problema de definição do que é o Cristianismo e de que forma
se deve às suas concepções a fonte dos males modernos. A rejeição do Cristianismo e
a sua substituição por mitos mais inofensivos, parte dessa premissa insuficientemente
analisada, numa linha em muito tributária da filosofia política britânica de Hobbes e
Oakeshott, onde a paz civil se sobrepõe às concepções de justiça provindas das posições
filosóficas e religiosas da comunidade69. O desígnio de Gray de reconstruir a fórmula
mental de toda uma civilização, desprezando os seus elementos constitutivos, com o
propósito da sua pacificação decisiva, não corresponderá ao mesmo impulso e método
das religiões políticas totalitárias?
O Liberalismo encontra-se, na sociedade pós-moderna, perante um problema
essencial. É ele a gramática comum da sociedade, o detentor de toda a fórmula
discursiva de Direitos e Deveres, de esferas individuais, de premissas libertárias da
comunidade e, contudo, dada a sua falta de subsistência metafísica e afirmação da sua
visão peculiar do mundo, tornou-se uma concha vazia à espera de hospedeiros que lhe
preencham os sentidos e definições. A própria história do liberalismo pode ser
confundida com esse processo. O triunfo da discursividade liberal significou pouco em
termos de sedimentação dos seus conceitos e mesmo o socialismo mais férreo se
esconde sob o manto dos direitos laborais e das garantias adquiridas, para subverter as
premissas do liberalismo. Da mesma forma, os autores e obras que foram observados
procedem a essa mesma tentativa de dotar o discurso liberal de um conjunto de
significados (clássico, medieval e moderno ou ultramoderno, respectivamente) que
são estranhos à formulação liberal clássica da sociedade, buscando outras argumentações,
mais amplas que o próprio liberalismo.NE
Fauzia Nasreen*
264
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios
Estrangeiros do Paquistão, Embaixadora Fauzia Nasreen,
por ocasião da assinatura do Protocolo de Cooperação
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
entre o Instituto Diplomático e a Academia
His Excellency Ambassador Carlos Neves Ferreira.
President of the Diplomatic Institute of Lisbon
And Officers of the Portuguese Foreign Office
I AM DELIGHTED to be in Lisbon – a city that has fascinated me for a very long time. I have been
captivated by its mystique and charm. Equally charming are the people of Portugal.
The warmth and hospitality which I have received since my arrival here has touched
me deeply.
I am thankful to the Portugese Ministry of Foreign Affairs and the Diplomatic
Institute of Lisbon for making it possible for me to visit your beautiful country. My
special gratitude goes to His Excellency Ambassador Carlos Neves Ferreira for
organizing this morning’s activities. I am confident that the conclusion of the MOU
which we have concluded today will be a precursor to a valuable partnership between
our two institutions.
I also attach great importance to the opportunity to share my thoughts with the
officers of the Portugese Foreign Office on the foreign policy of Pakistan. My views
reflect the understanding of a person detached from the official positions on day-to-day developments in the external relations of Pakistan.
Let me at the outset remind you that, among the different factors influencing the
foreign policy of any country are two categories of factors: the determinants and the
variables. In the case of Pakistan by and large the determinants can be identified as
• Geography or geo-strategic location of Pakistan;
• Historical legacies and outstanding disputes;
• Ideological and cultural moorings; and
• Aspirations of the people of Pakistan.
*
Directora-Geral da Foreign Service Academy of Pakistan.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
265
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
The most significant factor in the variables is the international setting and the
regional environment. Since foreign policy is constantly operating within these
paradigms and change is a constant factor, adjustments have been an imperative also
for us. Building on the guiding principles of inter-state relations Pakistan’s foreign
policy lays paramount emphasis on the internationally recognized norms which
include sovereign equality of all states; non-interference in the internal affairs of other
states; respect for the sovereignty and territorial integrity of all states; non-aggression
and peaceful settlement of disputes. As a matter of policy we have desired to develop
friendly and cordial relations with all countries of the world. As we all know
management of foreign policy is a complex phenomenon especially for a country like
Pakistan as we do not have the option of withdrawing into isolation neither we would
want to exercise that option.
Let me refer to our founder leader’s vision of Pakistan. It was of a country that
desired peace and good neighbourly relations and of a country that was to be a
moderate Muslim state. These ideals came into collision with disputes and conflicts
that emerged as soon as the state was created. The exercised by the leaders in earnest
good faith were inspired by making the country not only survive but stand on its own
feet. Security challenges gave hardly any option and obviating vulnerabilities as well as
sustaining defence equilibrium with the eastern neighbour dictated the direction of
our foreign policy for several decades. The Cold War scenario also posed grave options
for Pakistan. The foreign policy pursued reflected the interplay of domestic compulsions
and opportunities and challenges arising from the global and regional developments.
I will start with the most significant determining feature of Pakistan’s foreign
policy that is the geo-strategic location. From time to time the nuances have changed
while referring to our location. Our linkage with four important regions: South Asia,
Central Asia, West Asia and the Middle East, has provided continuity in the foreign
policy preoccupation. In the 21st Century Pakistan wants to leverage its geography by
promoting infrastructure connectivity and by becoming a hub of economic and
commercial activity and a trade, energy and tourism corridor. These can be actualized
through foresight, determination and focused strategies. Our geo-strategic location is
our inherent strength. Since one of the crucial objectives of foreign policy is to
promote economic prosperity, Pakistan’s diplomacy and policy framework have
progressively evolved to achieve these goals.
The discussion automatically leads me to the perennial debate about security and
economic prosperity or development especially on the question which takes
precedence. It is being regarded as a crucible in the context of reconstruction and
stabilization of Afghanistan and indeed some of our own regions. The arguments have so
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
266
far produced inconclusive results but beyond doubt they are intertwined. Security in a
broader context would imply comprehensiveness. An umbrella of secure frontiers with
solid human security and strength that will make a country’s voice credible and powerful,
occupy a pivotal position in the foreign policy calculations and effective diplomacy. As a
major participant in the global efforts to curb transnational terrorism, Pakistan stands at
an enhanced level of strategic relevance for the interested major powers. Therefore the
geographical location can be regarded both as a bane and a boon.
The success of any foreign policy is co-related to the degree to which national
interests are protected and promoted. It is inherent in withstanding pressures and
converting challenges into opportunities. More importantly it is in creating necessary
space for maneuverability. Considering that “Pakistan’s foreign policy has been
extension of its national security requirements” in my view to a large extent the
foreign policy has managed to deliver. In the present day context as I see it Pakistan is
confronting some challenges in the spheres of
• Fight against teror and dove tailing the external demands with domestic
clamourings;
• Constructive engagement with main partners such as the United States, the
European Union and China;
• Utilization of external relations for the economic and social development of
Pakistan;
• Image building of the country and correction of misperceptions;
• Conversion of the Composite Dialogue with India into a result oriented process;
and
• Developing identity of perceptions with Afghanistan on regional security and
internal stability of Pakistan and Afghanistan.
With regard to fight against terror there are no two opinions about the dangers it
poses to Pakistan's own security, the region and the world at large. Its history in the
context of Afghanistan is all too familiar to us. However the principled stand of
Pakistan is intrinsically linked with its own security, economic prosperity, development,
eradication of poverty and the welfare of the people. Therefore it has constituted a
major plank of our foreign policy. Our decision to join the international community
and the coalition against terror in the aftermath of 9/11 was to ensure:
• Security of the country against possible threats;
• Non-disruption of economic measures;
• Safety of our strategic assets; and
• Regional security.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
Ladies and Gentlemen,
Allow me to dilate upon Pakistan's relations with some of our major partners.
Establishing long term, broad based and strategic relations with major powers
especially the US, EU and China is of abiding and strong interest to Pakistan.
Notwithstanding the periodical hiccups the strategic interests of Pakistan converge
with the US on wider spectrum of bilateral, regional and global issues. The relations
have shown considerable resilience. The shared objectives of eradicating global
terrorism and promoting regional peace and security have added impetus to these ties.
The leadership of the two has reaffirmed their desire to extend the cooperative
relationship beyond the war on terror to include areas of defense, economy, trade,
investment, education and technology. During the recent visit of the Prime Minister of
Pakistan to Washington, the US President described Pakistan as a "strong ally and a
vibrant democracy" and reiterated interest in forging a long-term multifaceted
relationship with Pakistan. However the latest spate of US violations of Pakistani
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
267
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
The end goals of combating terror have remained constant. The means have to be
molded in a way that they lead to the higher aims. With this central theme Pakistan has
advocated a three-pronged approach resting on political and economic means backed
by the use of force. Our commitment to fight terror has been unswerving. We are
fighting terror because we believe that this is in our interest as we have been its victim.
In 2007 alone there have been more than 2000 civilian casualties in various bombing
incidents across Pakistan, including the loss of former Prime Minister Benazir Bhutto.
The latest horrific incident of terrorist attack in Islamabad on 20th September is a
gruesome reminder of the danger to our security. While it has strengthened our resolve
to eradicate this menace, we also favor concerted action for formulation of a
comprehensive strategy to counter terrorism in all its forms and manifestations.
It is also an un-denying fact that terrorism and its heinous form of suicide
bombings have created an atmosphere of fear, uncertainty and chaos depriving the
nation of Pakistan of economic prosperity and geo-strategic dividends. It has restrained
us from achieving our true potential. It has marred the image of Pakistani Diaspora,
denying educational and employment opportunities for Pakistanis abroad. It is taking a
heavy toll on the psyche of the nation. Hence there is an overarching consensus on
effectively dealing with terrorism. This can be done by possibly separating the hard core
terrorist elements and the pliable extremist elements and those who are willing to
renounce terrorism and changing the mind set of the latter. Addressing some of the
fundamental catalyst factors such as injustice, desperation, economic deprivation, social
inequity and poverty could have salutary impact on the overall counter terror strategy.
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
268
territory through predators has caused consternation and anguish with the Government
of Pakistan spelling out that "any action against the militants inside our territory is the
sole right of Pakistan." It also stated that matters would be settled diplomatically. The
President of Pakistan, Mr. Asif Ali Zardari's meeting with President Bush on 23rd
September in New York was aimed at arriving at an understanding that would facilitate
achievement of our mutual interests. Exchange of views has therefore been useful.
European Union’s global strength as a cohesive body gives it interests with
wider reach and dimension. Pakistan is cognizant of its long term relations with the
Union as a whole as well as with individual member countries. Pakistan’s relations
with the European Union are multifaceted with special interest in political,
economic, commercial and migration issues. EU is the largest trading partner of
Pakistan with a bilateral trade to the tune of US $10 billion. EU is also the largest
investor and its ODA to Pakistan spans areas of poverty alleviation and sustainable
development. Pakistan recognizes with interest EU priorities in the areas of
consolidation of democracy, poverty alleviation and curbing rise of religious
extremism and militancy in our region.
The political dialogue revived in 2004 serves as a useful vehicle for exchanging
views and ideas on a range of peace and security and other political issues. It also
enables the two sides to set the pace for mutual, collaboration. The next Pakistan-EU
troika meeting at the ministerial level took place in New York on the sidelines of the
General Assembly meeting. A comprehensive review of relations took place. Pakistan
has underscored its desire to forge greater cooperation. A roadmap for such a
consolidated relationship was also discussed between the two sides. My view is that
with the EU’s eastward thrust our ties with the Union have acquired a new dimension.
The dynamics of Central Asia resting on energy together with EU member countries
in Afghanistan, Pakistan should figure prominently in the Union’s calculus. We value
EU’s understanding and support for Pakistan’s multi-pronged strategy to deal with
extremism and militancy. With the strength of experience and sense of history the EU
can play a pivotal role in dealing with the complexities of the regional situation.
I think I will be remiss if I did not talk about Pakistan’s relations with Portugal.
In addition to our interaction with Portugal within the framework of the European
Union whose Commission’s President is the illustrious His Excellency Jose Manuel
Barroso, our two countries enjoy multifaceted bilateral relations. These range from
defence and security to commerce and political related exchanges. We deeply
appreciate the solidarity displayed by Portugal when the devastating earthquake
struck certain parts of Pakistan in October 2005. Your assistance has been valuable
and touched the hearts of many Pakistanis. The sharing of the grief of the people of
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
Ladies and Gentlemen,
Pakistan and China enjoy close and time tested relations. The two countries have
convergence of political interests especially in the preservation of peace and stability
at the global and regional levels. Political fundamentals of bilateral ties are sound
reflected in the frequent high level exchanges and mutual cooperation. Numerous
consultative mechanisms exist for promoting cooperation, understanding and
support for each other in international forum. The two countries have signed a large
number of agreements to enhance relationship in various fields. The recent efforts
are aimed at giving boost to bilateral economic relations to bring them to a higher
level, compatible with the political content of relationship. With an eye on future
perspective, expansion of relations in educational and cultural fields as well as
people-to-people contact is being encouraged. In addition to Chinese assistance for
mega-projects, the two countries have identified a wide number of projects under
the Five Year Programme on Trade and Economic Cooperation. These projects are in
the sectors of energy, agriculture and infrastructure. Pakistan and China as partners
want to bring peace and prosperity to the region through further consolidation of
their relationship.
We attach seriousness to the pursuit of tension free and cooperative relations
with India. Our two countries have come a long way from the tense period of the
years 2001 and 2002. The Composite Dialogue process has been in place since 2004.
The latest fifth round was launched in New Delhi in July 2008. Both sides have
agreed on several confidence building measures to remove mistrust and improve the
atmosphere. Foreign Minister of Pakistan during his June visit to India held useful
parleys with his interlocutors. He emphasized the necessity of a meaningful,
constructive and result oriented dialogue aimed at resolving the core issue of Jammu
and Kashmir. Pakistan is in favor of greater trade and economic relations with India –
a relationship that should be based on a win-win partnership. Pakistan also wants to
promote large scale multidimensional ventures such as Iran-Pakistan-India and
Turkmenistan-Afghanistan-Pakistan-India gas pipelines.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
269
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
Pakistan who have been victims of terrorism is evident from the appreciation of our
role in the fight against terrorism. Portugal’s sympathy expressed at the highest level
over the grievous loss of the former Prime Minister Benazir Bhutto shows the acute
awareness here of the tragic dimension of terrorism and the price Pakistan is paying
for combating this menace. My earnest hope is that your country will, in the
backdrop of strategic patience, facilitate our efforts in reversing this catastrophic
trend globally and regionally.
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
270
We remain hopeful that the recent adverse developments will not result in the
frittering away of gains made over the last four years. Our national priority is on
socio-economic development – a prerequisite for internal and regional stability. This
objective can be achieved only if there is a stable and peaceful neighborhood. It is
also in the vital interest of our neighboring countries to ensure that stability prevails
in all the countries of the region including Pakistan. The condemnation expressed at
the highest level by India over the tragic loss of innocent lives in the terrorist attack
of 20th September indicates the awareness at the regional level about the grievous
and catastrophic trend internationally. President Zardari’s recent meeting with the
Indian Prime Minister in New York has been productive. The Composite Dialogue
will be resumed in October and the meeting of the Joint Anti-Terrorism Mechanism
will also be held at the same time. The Indian Prime Minister has also invited
President Zardari to visit India. These are positive indications of a forward
movement.
Let me also briefly mention about our multilateral diplomacy. Playing an active
role at the multilateral institutions especially the United Nations is a priority in the
policy of engagement with the international community and playing a constructive
role in the international system. This engagement is a cornerstone of our foreign
policy. Compatible with these objectives Pakistan has maintained a high profile
through active participation in the UN activities and election to important UN
institutions. Our areas of prime focus have been projection of Pakistan as a moderate
Muslim country, developing international consensus on issues of prime concern to
us, development issues and reform of the UN Security Council. On the last issue
Pakistan favors a kind of reform that will not exacerbate the divisions and discord
among the UN members. Pakistan also contributed as co-chair of the UN High Level
Panel for UN System Wide Coherence at the head of government level. The Panel’s
report highlighted the deficiencies in the UN delivery mechanism at the country
level. A number of measures were presented to address the issues involved. Pakistan
was selected as a model country for implementing these proposals.
Ladies and Gentlemen,
Economic prosperity, social stability and development are the overriding
objectives of any government policy. Foreign policy is no exception. The idea behind
creating economic interdependence in the region is to ensure a favourable situation
for all parties. This is to be achieved through bilateral, regional and multilateral
mechanisms that would create stakes and bring dividends to all concerned. This
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
271
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
entails target oriented engagement with major powers, the US, the EU, Asian, Latin
American and African countries. Several initiatives have been undertaken to widen
the scope of collaboration. Intelligent management of our geo-strategic location is
imperative if we want to convert challenges into opportunities. Our linkages with
four important regions mentioned earlier have acquired even more significance in
the 21st century. We do hope that the on-going discussion on the Reconstruction
Opportunity Zones with the United States will come to early fruition and that the
EU would also show its action oriented interest in this venture.
Our philosophy is that economic interdependence that ensures benefit to all can
be achieved through prudent policies taking into account the enlightened self interest
of all concerned. Creating stakes of all concerned will bring the desired dividends to
the region.
Let me turn to our neighbouring country Afghanistan. It is a very important
country for Pakistan and the security of our two countries is interlinked. As far as
Pakistan is concerned we have always stood by Afghanistan in times of trial and
tribulation. We have hosted for over a quarter of a century, millions of Afghan refugees
on our soil. We are facilitating their honorable and dignified return to their home
countries. We have supported the Bonn process and have pledged $320 million of
assistance. Pakistan is one of the leading participants in the reconstruction of that
country. Today, both countries are facing the twin menace of terrorism and extremism.
No country is affected more, or has more stakes in Afghanistan’s success in fight
against terrorism and extremism than Pakistan. Common threats demand collective
responsibility based on deep trust and mutual understanding. Both the President and
Prime Minister of Pakistan have met the Afghan President recently with both sides
reiterating common desire to move forward leaving behind the blame game. Pakistan
will continue to make sincere efforts to address and allay Afghan misgivings with the
expectation that the same maturity will be shown by the other side.
In conclusion let me emphasize that all foreign policies operate within certain
constraints and limitations. They stem from a number of factors. However in a
democratic dispensation domestic constituency assumes enhanced importance. The
contours of our foreign policy be they in the context of relations with the countries
of the region, or major powers and Muslim countries, are framed on the basis of the
changing realities of the international system and the world in the 21st century.
Nothing is permanent but change. Therefore foreign policy has to take into
consideration this factor on a continuous basis. Adjustments in emphasis and nuances
are necessary and inevitable.
I end with words of thanks to all of you for a patient hearing. I want to thank our
very capable Ambassador Fauzia Sana who has coordinated arrangements with such
care and attention. With her focused and meticulous approach, I can see that she has
made substantial contribution in forging our bilateral relations and in particular in
promoting mutual understanding between Pakistan and Portugal. I thank you.NE
Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão
272
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272
Notas de Leitura
273
274
Leonardo Mathias*
UMA AUTOBIOGRAFIA
DISFARÇADA
de João Hall Themido
Editora: Instituto Diplomático, MNE
João Hall Themido
Uma Autobiografia
Disfarçada
NÃO É DA nossa tradição a publicação de
memórias de diplomatas. É uma das razões que
me levam a saudar este livro do Embaixador
Hall Themido, conjunto de recordações
de uma carreira brilhante e diversificada,
que enriquecem os reduzidos testemunhos
da nossa diplomacia em termos de obras
publicadas. Terão sido redigidas em roda livre,
como nos diz o autor, sem apoio de notas
ou arquivos, e quando atinge os oitenta
anos. Sem compromissos portanto e liberto
*
Embaixador.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 275-276
de responsabilidades que o pudessem inibir.
Mas é uma obra, como o são os livros de
memórias, circunscrita a um espaço, o que
dá outro prazer à leitura pelo que revela de
um mundo próximo onde os acontecimentos
marcaram um tempo da vida portuguesa que
o autor não tem a pretensão de criticar mesmo
se, aqui ou ali, deixa escapar um comentário
que pode ser assumido como tal. É uma
história que as novas gerações desconhecem
mas que terão de começar a estudar.
O português clássico, das Necessidades,
que se reconhece facilmente, retrata-nos
momentos, cidades e países bem como
personalidades que cruzaram a vida pessoal
e profissional do seu autor: Tanger, com
um episódio pitoresco que se não esquece;
Nova Delhi, e o trabalho de cifra no período
que vai anteceder a invasão e ocupação de
Goa; Estocolmo e os trabalhos para a tese do
concurso a Conselheiro. E ainda a compra em
Roma da Vila Barberini que se fica a dever ao
seu bom gosto e à sua noção da dignidade
da representação externa do Estado. Depois
os grandes postos da carreira, Washington,
Roma, Londres, quando difíceis, complexos
e inesperados desafios se colocam com mais
regularidade aos Chefes de Missão. E antes
disso ou entre essas capitais, o exercício de
altas funções em Lisboa. São casos numa
275
Uma autobiografia disfarçada
Uma vida dedicada à Diplomacia
Uma autobiografia disfarçada
276
Carreira que fazem de João Hall Themido
actor ou observador atento das graves crises
que nessa altura o país conhece. E fala-nos
da Rodésia, do Biafra ou da situação em
Macau, entre tantos assuntos que surgem
no contexto da política ultramarina e da sua
defesa. Como alto funcionário cumpre as suas
obrigações com competência e lealdade. E
assim o Ministério, mobilizado, está sempre
presente e nele a rica personalidade de Franco
Nogueira que seduz os homens da sua geração,
e tantos outros, e não deixa indiferentes os
que discordam dele. Estes momentos, cuja
história está ainda por fazer, precisam de
obras como esta para se ir juntando às demais,
que de uma forma ou de outra, contribuem
para o seu estudo quando se multiplicavam
as ameaças ao país velho de séculos e a sua
acção em África era contestada por cada vez
maior número de nações. “Uma política
de compromisso seria fácil mas levaria, a
curtíssimo prazo, ao desaparecimento do
Império português, que era justamente o que
se pretendia evitar”. Pertencia a um grupo de
elite, diz-nos o autor, onde todos colaboravam
de forma desinteressada para o bem do país,
por puro patriotismo e sentido do dever.
Posso comprová-lo.
A este respeito o autor demora-se a
referir a evolução das nossas relações com
os Estados Unidos, onde teve o privilégio
de servir durante mais de dez anos, antes
e depois da Revolução de Abril de 1974.
Neste último caso por inteligente iniciativa
de Mário Soares, que assim demonstrava
não estarem em causa as orientações gerais
da política externa nacional. O Embaixador
lembra-nos que com Kennedy na Presidência
se tinham alterado essas relações para pior.
Embora melhores com Nixon, acabariam por
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 275-276
ficar definitivamente comprometidas pelo
ultimato do Outono de 1973, quando a
guerra do Yom Kippur impõe a utilização das
Lages pelas forças americanas em apoio ao
seu aliado Israel, sem qualquer consideração
pelos interesses portugueses na altura. Hall
Themido é depois testemunha da tentativa de
reparação que nos é feita.
Merece assim a este respeito observar
a leitura que o Embaixador em Washington
faz destas realidades. Alude às relações entre
Portugal e os Estados Unidos que antecedem
de meia dúzia de meses a Revolução de Abril
e depois a forma como trata dos avanços e
recuos a que essas relações ficam submetidas.
Nota alta justifica-se para a excelente síntese
que é o retrato de Mário Soares ou para as
menções a Sá Carneiro, Costa Gomes ou Vasco
Gonçalves e, no lado oposto, para Kissinger
ou Carlucci. A literatura política dos últimos
trinta anos tem-nos dado conhecimento dessas
vicissitudes. Mas aqui é um dos principais
actores portugueses que nos descreve como
viveu e o seu depoimento é despojado, como
são as melhores Informações de Serviço do
Ministério dos Estrangeiros. E para melhor
esclarecimento dos factos, e conhecimento
da personalidade do autor, observa ainda Hall
Themido ter resistido a uma carreira política
que Theotónio Pereira lhe proporciona e não
ter autorizado Franco Nogueira a sugerir o seu
nome como seu substituto nas Necessidades.
Pela qualidade intelectual de quem
o escreveu, pela maneira como alude aos
homens, aos factos e aos momentos políticos
e diplomáticos que acompanhou, este livro
do Embaixador João Hall Themido é um
documento que preenche uma lacuna e
enriquece uma biblioteca. Por tudo isso vale
a pena ser lido.NE
Pedro Catarino*
Um livro sincero e corajoso
PORTUGUÊS
de Luís Esteves Fernandes
Editora: Prefácio
LI COM PRAZER e interesse o livro de memórias
de Luís Esteves Fernandes, muito bem
sintetizado no excelente prefácio de Teresa
Patrício Gouveia.
Constitui uma contribuição interessante
e valiosa para a história político-diplomática
dos anos abrangidos pela sua longa e brilhante
carreira (1920-1961), mas dá sobretudo
*
ao leitor a imagem e o sabor do exercício
da profissão de diplomata, quer nos seus
aspectos substantivos, como agente da política
externa e representante do seu país e como
observador privilegiado da realidade política,
quer no respeitante à gestão do quotidiano
no relacionamento com a sua capital e com
os meios locais.
É o próprio LEF que o diz quando na
introdução sublinha que “se começasse a
desfiar o rosário, seria um não acabar”. Por
isso propôs-se descrever em pinceladas largas
o essencial das situações que foi vivendo, para
o leitor ter a percepção da atmosfera em que
actuou, acrescentando as reminiscências da
sua experiência pessoal que mais vivamente
permaneceram no seu espírito.
E fá-lo com notável espírito de síntese,
com a perspicácia de um observador inteligente e culto e com a maturidade e
profundidade de um profissional experimentado e de alto calibre.
Anote-se que as memórias são escritas,
conforme nos é revelado pelo seu filho, que
em tão boa hora decidiu editar o presente
livro, entre 1964 a 1966, sendo portanto
uma retrospectiva dos factos relatados.
Após umas considerações preambulares
e um capítulo dedicado a “Portugal no início
do Século XX” e outro sobre “a Universidade
Embaixador.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281
De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português
DE PEQUIM A WASHINGTON.
MEMÓRIAS DE UM DIPLOMATA
277
De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português
278
e início de carreira”, acompanhamos o
percurso de LEF através de uma sucessão
impressionante de postos, todos eles postos
de topo, de grande relevância política.
Vale a pena atentar nos títulos altamente sugestivos dos diversos capítulos,
correspondentes a cada um dos postos e nas
respectivas datas, para se ter ideia da riqueza
e intensidade das experiências vividas por
LEF.
Bem diz LEF no preâmbulo: “só um
cego ou um surdo não teria muito que contar
em situação semelhante à minha”.
Vejamos os capítulos:
A China pós-imperial face ao colonialismo (1925-31); a França exangue
(1932-33); Necessidades (1933-34); Reino
Unido – ocaso de um Império (1934-35);
África do Sul: a fénix Bóer renasce (1935-37); Sociedade das Nações – corrida para
o abismo (1937-38); Espanha – triunfo dos
nacionalistas (1939); no Japão da 2.ª guerra
mundial (1940-45); Lisboa – Direcção-Geral
dos Negócios Económicos e Consulares;
primórdios do multilateralismo (1946-50);
Washington de Truman a Kennedy; anticolonialismo onusiano e a política de avestruz
(1950-61).
LEF deixa patente a alta qualidade da
sua prestação profissional como diplomata,
bem como a sua dedicação à causa
pública, ao mesmo tempo que mostra a
sua forte personalidade e o seu espírito
independente, fortalecido por uma visão
universal e humanista, refinada certamente
pela diversidade das suas experiências nas
cinco partidas do mundo.
Há dois postos que o marcam de uma
forma mais profunda, o que se sente pela
forma emotiva e pessoal como a eles se
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281
refere, pouco habitual para a personalidade
fria e analítica de diplomata como era a de
LEF. Trata-se da China e do Japão nos quais
vive situações de natureza muito diferente
que lhe suscitam sentimentos também muito
diferentes.
Publicou aliás, em 1948, um interessante livro intitulado China de Ontem, China
de Sempre, constituído por “esbocetos da vida
chinesa” escritos durante a sua estada em
Pequim.
Estes dois postos terão contribuído,
mais do que quaisquer outros, para o
amadurecimento da sua atitude e
personalidade. Talvez por se tratar de
sociedades e culturas tão radicalmente
diferentes da nossa, cujo contacto nos
induz a um esforço reflexivo sobre nós
próprios e sobre as nossas idiossincrasias,
talvez por ter em ambos vivido situações
extremas de enorme intensidade emocional
correspondentes a períodos críticos da
história da China e do Japão, ou talvez
pela escala do sofrimento humano cuja
proximidade sentiu, esses 2 postos terão
gerado em LEF uma impressão e sentimentos
tão profundos.
As experiências nos restantes postos, à
excepção de Washington, embora tenham
sido sempre em lugares pairando nos cumes
da política mundial, foram passagens mais
ou menos fugazes – nunca ultrapassaram os
2 anos – que serviram para amadurecer o seu
espírito, diversificando e aprofundando a sua
experiência.
O seu relato e as suas observações
sobre tais postos não são contudo menos
interessantes.
Finalmente Washington, onde permaneceu 11 anos, foi o posto que culminando
embaixada, as instruções de Lisboa primavam
pela carência, o que não importava, acrescenta.
Refere com ironia que, aquando da
sua partida para Pequim se despediu do seu
Ministro, um homem culto e inteligente,
acrescenta, este lhe fez um relambório
sobre a epopeia dos descobrimentos dos
portugueses sem lhe dar uma palavra de
directivas ou instruções. Depois do seu
regresso, após durante 5 anos ter vivido
situações inimagináveis de tumultos civis
e militares e um fervilhar das ambições
das grandes potências, LEF foi apresentar-se ao novo Ministro. Este, já do novo
regime, na época cognominado de Revolução
ou Ditadura Nacional, faz-lhe também um
relambório glorificando a nossa epopeia dos
descobrimentos e missão civilizadora. Nem
um comentário ou informação lhe pediu
sobre a sua estada na China ou qualquer
outro assunto.
Em Paris, a chancelaria era escura e suja,
definível no vocábulo – inverosímil. A posição
portuguesa consistia no alheamento total ao
que se passava na Europa. E quanto a África só
na hora zero é que se reagia. “Santa Bárbara
só é lembrada, quando troveja, ao menos no
Palácio das Necessidades” – observa LEF.
Em Londres, LEF lembra a diligência
feita por instruções de Lisboa junto do
Foreign Office no sentido de apoiar a invasão
da Etiópia pelo exército italiano. E, no final
da sua curta estadia em Londres desabafa:
“desencantado como estava com os meus
dias em Londres, ingratos e frustrantes,
recebi agradavelmente a notícia da minha
próxima nomeação para a União Sul
Africana na qualidade de Encarregado de
Negócios”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281
279
De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português
a sua carreira, num período de grande
intensidade política para Portugal – a pressão
da ONU em relação à política colonial
portuguesa, o assalto ao paquete Santa Maria,
os ataques dos movimentos de libertação em
Angola – faz sobressair o choque, sempre
latente desde os tempos iniciais da sua
carreira, entre a sua personalidade e a visão
e espírito aberto que tinha do mundo e
a sociedade fechada, arcaica e dogmática
prevalecente no Portugal de então.
Este embate, superlativado no período
final da carreira de LEF, vem de certo modo
fazer-nos compreender o desencanto e a acidez
com que vai comentando as dificuldades com
que se foi sempre deparando, resultantes de
uma administração que não consegue dar
coerência aos seus esforços, nem superar as
suas contradições.
Assim, logo após ter concorrido ao
Ministério, embora tenha ficado em 1.º
lugar no concurso de admissão, a nomeação
para a primeira vaga é dada a um afilhado
de casamento do Presidente Bernardino
Machado! Dentro da legalidade, sublinha, por
se tratar de um antigo revolucionário, agente
consular na Galiza no tempo das incursões
monárquicas.
As descrições que faz do Ministério são
cáusticas: um alguidar de lacraus, o ar que se
respirava no domínio intelectual asfixiava, o
trabalho… uma rotina monótona.
Mas não havia razão para preocupação,
no dizer de um velho director-geral dirigindo-se aos colegas mais jovens, que cita “isto era
assim ainda os senhores não eram nascidos,
assim continuará e todos vamos vivendo”.
Na Embaixada em Pequim, apesar da
existência de Macau, que justificava, nas
palavras de LEF a própria existência da
De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português
280
Enquanto na África do Sul conta que se
desloca a Lourenço Marques para consultas
com as autoridades da colónia, mas estas
pouco ou nada se mostraram interessadas.
Observa LEF: “à maneira portuguesa,
prescindíamos da preparação, confiantes
nos nossos dons de improvisação, de que
usamos e abusamos”.
Em Genebra, LEF, nos meandros da
diplomacia multilateral, refere alguns
episódios reflectindo a posição do Estado
Novo para o qual a Organização Internacional
do Trabalho era um antro socialista
comunizante que transformava o equilíbrio
social existente. Uma das questões ali
debatidas dizia respeito às responsabilidades
imputadas a Portugal no comércio de ópio
em Macau. Foi um posto em que mais uma
vez primou a falta de instruções.
Depois de uma breve estadia em Espanha,
em San Sebastián onde funcionava a capital,
LEF é colocado em Tóquio como Ministro à
frente da Legação de Portugal. Antes de partir
vai despedir-se do Ministro das Colónias uma
vez que a razão de ser da Legação em Tóquio
derivava da presença portuguesa em Macau
e Timor. O titular daquela pasta alude ao
desmembramento da China e ao dinamismo
da acção japonesa e recomenda a LEF, pasme-se, que procure obter o apoio nipónico para
a resolução do velho litígio Portugal-China –
a questão de soberania sobre a Ilha da Lapa!
No regresso a Lisboa, LEF, diz que
na Secretaria de Estado deparou com um
deserto e desabafa: “senti-me isolado em
país estranho”. O espírito de solidariedade
e de camaradagem primavam pela ausência.
Em relação à decisão do Governo português
de recusar o Plano Marshall e dispensar
qualquer ajuda financeira, empréstimos
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281
ou dádivas, comenta: “pobres, atrasados e
arrogantes”.
As observações e críticas atrás referidas,
escolhidas entre tantas outras, reflectem o
estado de desânimo que ganhou o espírito
de LEF e têm tanto mais força quanto a sua
estatura moral, profissional e intelectual é
bem reconhecida.
Em Washington e perante a política
colonial do Governo, virada para o passado,
irrealista e sem futuro, LEF esforça-se por
introduzir alguns elementos de dinamismo
que fizessem quebrar o dogmatismo daquela
política.
Fala com o Subsecretário do Ultramar,
com o seu Ministro, na altura Franco
Nogueira, com o próprio Salazar.
Sugere um referendo em Goa, relatórios
apresentados à Assembleia Nacional e
fornecidos a título de informação à ONU,
a criação nas províncias ultramarinas de
escolas, liceus e universidades, a participação
dos Governadores de Angola e Moçambique
no Conselho de Ministros.
Sugestões sempre rejeitadas, sem debate
e sem discussão.
Fraca a influência dos diplomatas, se
poderá concluir, sobretudo quando se trata de
aspectos da política do Governo consideradas
por este como fundamentais.
LEF sente por outro lado a falta de
informação que deixa por vezes a embaixada
em situações de embaraço, a retórica vazia das
nossas posições oficiais, os actos e decisões
insensatas.
Desiludido, frustrado, desanimado, LEF
pede o regresso a Lisboa para se reformar.
Ainda lhe é oferecido o prestigioso posto
de Londres e o cargo de Secretário-Geral,
chefe da carreira. Recusa em ambos os casos.
são um excelente meio de transmissão
da experiência passada às novas gerações,
que assim vão gradualmente recebendo e
incorporando na sua capacidade genética
um acervo de conhecimentos e faculdades
essenciais para o exercício da sua profissão.
Neste contexto, as memórias de LEF
constituem um importante contributo e
devemos-lhe a nossa gratidão por ter tido a
generosidade de as ter deixado.
Concluo, com um episódio que me foi
contado pelo nosso saudoso colega Eduardo
Condé, já falecido. Ele estava colocado em
Washington no período em que o embaixador
era LEF. Outro colega mais novo, António
Cabrita Matias, também já falecido, acabara
de chegar ao posto e Condé apressou-se a
acompanhá-lo ao gabinete do Embaixador
para os cumprimentos da praxe.
LEF era um homem alto com uma
figura imponente e austera. Levantou-se
cortêsmente para cumprimentar o novo
secretário de embaixada, que com o
nervosismo da sua inexperiência e timidez,
pegou na mão do velho embaixador e
beijou-a respeitosamente.
Muitas vezes pensei neste episódio, nos
4 anos e meio que estive em Washington,
onde, como LEF, terminei, 45 anos depois, a
minha carreira no estrangeiro.NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281
281
De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português
Permitam-me uma reflexão final. A
força da diplomacia é ditada muitas vezes
por factores intangíveis que não podem ser
quantificados e que se ligam à qualidade dos
diplomatas.
Tais factores prendem-se com a experiência acumulada através dos anos e que vai
sendo absorvida por uma grande diversidade
de meios pelas novas gerações.
É claro que é essencial que a diplomacia
demonstre capacidade de se modernizar,
adaptando-se aos novos condicionalismos
e desafios da sociedade e que neste sentido
vá sempre renovando e actualizando os
seus métodos de actuação e a sua própria
mentalidade.
Mas tratando-se de uma profissão em
que as relações humanas são tão importantes
e que põe em confronto os seus agentes com
uma tão grande diversidade de culturas,
mentalidades e interesses, haverá sempre um
savoir faire que só se consegue afinar através
da experiência.
Portugal, com uma história de mais de
8 séculos e com uma riqueza de contactos de
longuíssima duração e enorme diversidade,
tem uma diplomacia que se vem exercitando
há muitas gerações em toda a espécie de
tratações e com toda a espécie de povos e
países.
É claro também, saliente-se, que a
diplomacia vale o que valer o país que
representa com o seu substrato social, peso
histórico, nível cultural, desenvolvimento
económico, com a força das suas instituições,
com o seu nível científico e tecnológico,
com a sua coesão.
As memórias dos nossos diplomatas
sejam elas análises sócio-políticas ou meras
reminiscências pessoais do seu quotidiano
Rui Reininho*
Compositora e Intérprete
Letra e música
282
LETRA
E MÚSICA
de Paulo Castilho
Editora: Oceanos
NADA NEM NINGUÉM pode ser tão ou mais
refrescante do que uma memória; estendida,
bem ou de males passados ela é forçosamente
a origem de um romance, já que a matéria
sintética de que se servem os poemas não se
estende o suficiente até aos finos rebordos
de uma pizza média, familiar.
As décadas, eras prodigiosas que se
contêm em ciclos mais ou menos menstruais
arrumam-se em estantes, com os discos, os
*
Compositor e intérprete.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284
albuns de fotografias e os outrora livros de
razão: reconhecemos aqui e ali uma brecha
da cultura de cada um mas, sobretudo a
civilização.
Os diários, os escritos, é mais em
gavetas, baús e sotãos; as músicas brotam
das caves como os musgos e líquenes, os
cogumelos e outras alucinações.
Londres, Sintra, as avenidas (ainda)
novas, um Maio soixanteouitarde, “we all
come to look for America...”.
Não houve coincidências – os que
primeiro pousaram aos pés da Loura Albion
para ouvir a Lola dos Kinks, sabiam de
antemão que esta fora a britania dos mods,
dos teddy boys, até dos cockneys.
Sob um céu vitoriano de Camdem em
que os taxistas não param de falar, para citar
alguém de origem irlandesa e coração de leão.
Aos primeiros acordes de uma guitarra
eléctrica, antes e durante o choro azulado
de um blue num pub dos arredores, quantas
freaks de boas famílias não sonharam pertencer à psicadélica minoria que haveria
de substituir o lema ‘Honny Soit qui Mal
Y Pense’ pelo leitmotiv “sex’n’drugs and
rock’n’roll”?
A linha IMaginot de Cascais e do Estoril
de príncipes exilados, a Granja Fozeira com
Perdemo-nos da Mónica por um par
de anos e isso custou-nos uma nova década.
Apareceu-nos uma lisérgica nuvem ácida
de novos ventos, ainda mais ambígua e
decadente com um Bowie aos comandos
de uma nave futurista, decadente, camp; a
moça portuga que toca por aí então chama-se Ana Silva e as...Raincoats.
Um adido cultural da embaixada portuguesa na altura submete-nos uma banda
com um maxi single de uns tais Police e um
tema (Rock Sand? Roxanne?) e a Mónica
Mendes é uma giraça que tem um programa
musical de autor na Rádio Comercial; o Rui
Reininho é uma personagem de um conto
(curto) do Pedro Paixão que se passa algures
entre o Aniki BoBo e a Boavista do Porto.
Sim, esse que odeia lavar pratos mais
do que um dia, troca pences nas lavandarias
às senhoras bifas (Hi, Love...) e sonha
conhecer o Brian Eno e tocar no Marquee ou
no Astoria enquanto entorna pints mornas
no 100hundred Club.
Todos fomos mais ou menos Mónicas,
sonhando com o mais glamouroso palco da
europa/mundo que se poderia abrir para as
américas, lá Jefferson Airplane e a sua Elkie
Brooks, se calhar a Janis Joplin, mesmo a
Judy Blue Eyes ou a Joni Mitchell.
A diplomacia é, segundo os grandes
mestres, Paulo Rocha realizador no Japão e
Ian Flemming em todo o lado, um nicho de
espionagem privilegiado de comportamentos
e criações.
Quando não se confundem nas volutas
da poesia, no ópio da política ou nos
contornos das azeitonas dos gins mais ou
menos secos, temos al fresco argutos nacos
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284
283
Letra e música
os seus aristocratas arruinados, a Figueira
mai-los do putsch Coimbrão summer 69,
ei-los a bordo do trem expresso Marrakech,
Stones, yardbirds e outros pássaros exóticos
do terreiro.
O Soho das pegas e boxeurs como o
Bairro alto dos Faias e Severas dos papás,
num voo kamikaze suicidário pós-guerra
que não deixaria pedra sobre pedra da velha
Miss Europa, entretanto viúva.
E a Mónica. M de Matou, dial M for
Murder.
A aventura vivida essencialmente no
feminino, como só Almodovar faria renascer
mais tarde, com uns homens acessórios,
fracos, inúteis e imprestáveis para lá
das suas erecções e companheirismos,
ver cumplicidades: a história começa, o
quadro compõe-se e demoramos páginas
emocionantes de câmara à mão sem
nos apercebermos do sexo da primeira
pessoa; ela mantém-se indefinida, como os
cabeleireiros e as drugstores ambíguas da
época.
Confusão de sentimentos, diria
Somerset Maugham mas também Oscar
de realização para Wilde (e Waugh, no seu
BridesHead, visitado pelos Vingadores de
guarda-chuva, chapéu de coco e as minis
op-arte de Miss Peel).
A swinging London, por um lado Pop
Beatle, condecorada pela rainha até cuspida
pelos punks de Chelsea, a seita de Malcom
Mclaren: o Blow-up de Antonioni com a
guitarra bluesy a desfazer o amplificador no
pesadelo de overdose de Hendrix, o hino
do ultramar, o nosso Vietnam em Angola ou
na Guiné.
Letra e música
284
de prosa, pinceladas subtis que perduram
pendentes em quadros vivos, nas casas, nas
estradas e nas cidades que visita.
O conde Drácula nunca entraria no
sistema circulatório de uma casa (na Matilde)
sem ser convidado: a Isabel é o Filipe mais
o Pat menos o Chaz mais a mãe menos o
arquitecto.
O nosso ponto de vista, é o da Joana
que já não sonha com o jesus christ superstar
nem o Oh calcuta nem a ratoeira da Agatha
Christie e o general hospital, os tin soldiers
and nixons coming, a L.A. woman que diz:
“conheci a Mónica muito bem, sou co-autor
das canções”.
Nem o de personagens que vivem na
real idade, como tentou a popstar da Rebelo
Pinto ao deitar-se com o Robbie Williams
em High Street Kensington.
Mas este livro dava um filme (outra
Letra e Música, com Hugh Grant e a Drew
dos Barrimore).
Como um bom velho vinho e uma
mota vintage e ao som do “Born to be Wild
do nosso SteppenWolf:
Gostámos mais do livro...NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284
Vasco Graça Moura*
Algures no Mediterrâneo
EM CAPRI OU O
DIÁRIO ITALIANO DE GORKI
de Marcello Duarte Mathias
Editora: Oceanos
COM UMA ESCRITA despojada e flexível, precisa
e sugestiva, que sabe distribuir os materiais
segundo uma economia criteriosa de modo
a assegurar o ritmo da narração, é capaz de
grande atenção aos pormenores cenográficos
(paisagens, lugares, referências históricas,
atitudes, gestos...) e, last but not least, dispõe
de uma agilidade de formulação aforística
fora do comum, só comparável à de Agustina
*
Bessa-Luís, este Encontro em Capri ou o diário italiano
de Gorki, de Marcello Duarte Mathias, coloca
uma série de problemas muito interessantes.
O primeiro é o da remissão para o
contexto histórico em que as coisas acontecem. O radicalismo político e a proximidade
ideológica de Máximo Gorki com os social-democratas russos (os futuros bolcheviques)
tinham-lhe valido a atenção da Okhrana, a
polícia secreta russa, e também, por mais de
uma vez, a ida para a prisão.
Como escritor, Gorki já era célebre
no seu país a partir de finais do século
XIX. Em 1902, em represália pelas suas
simpatias revolucionárias, o czar Nicolau
II tinha anulado a eleição de Gorki para a
Academia Imperial, o que levara à demissão
de escritores como Tchecov e Korolenko e do
matemático Markov.
Depois da tentativa revolucionária gorada
de 1905, o escritor, por razões de saúde e
também por razões políticas, instala-se em
Capri no ano seguinte. É aí que vai viver
durante sete anos. E em Capri, onde escreve
algumas das suas obras mais importantes,
Gorki é visitado por duas vezes pelo seu
amigo Vladimir Ulianov, mais conhecido por
Lenine.
A primeira guerra mundial e a revolução
russa ainda estão longe. Mas há já surdos
Escritor e eurodeputado.Texto de apresentação por ocasião do lançamento do livro, no dia 15 de Novembro de 2008.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290
Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki
ENCONTRO
285
Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki
286
pressentimentos no horizonte, quer quanto a
uma quer quanto a outra.
Quanto à guerra, sabemos pelos
trabalhos de historiadores das origens da
guerra de 1914-1918, como A. J. P. Taylor e
David Fromkin, a que ponto o estado-maior
alemão pensava que a guerra na Europa,
envolvendo a Alemanha, a França, a Áustria,
a Rússia e a Inglaterra seria inevitável mais
tarde ou mais cedo.
Quanto à revolução na Rússia, embora a
tentativa de 1905 tivesse falhado, as nuvens
começavam a adensar-se cada vez mais
sobre o horizonte político de Nicolau II
e da sua corte. Gorki tinha assistido aos
acontecimentos, porventura com alguma
implicação neles: precisamente, durante
o massacre do Domingo Sangrento de
S. Petersburgo, o padre Gapon, um dos
promotores da pacífica movimentação social
que esteve na sua origem, tinha acabado por
se refugiar no apartamento do escritor. Esta
participação é, de resto aludida por Stefan
Zweig no seu relato de um encontro com
Gorki aqui referido.
O período que vai do princípio
do século XX a 1914 foi recentemente
objecto de um compacto estudo de Philipp
Blom, sugestivamente intitulado The Vertigo
Years, Change and Culture in the West, 1900-1914
(Os anos da vertigem, mudança e cultura
no Ocidente, 1900-1914). Esses anos da
vertigem são os quinze anos em que se
inscreve premonitoriamente quase tudo o
que veio a acontecer no século XX, das
grandes conquistas do espírito às grandes
catástrofes humanas, das descobertas de
Einstein e dos Curie ao genocídio no Congo
de Leopoldo II, dos vários Modernismos,
da eclosão do Futurismo e do Cubismo
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290
ao culto da máquina e da velocidade, das
rupturas culturais e epistemológicas de Viena
às repercussões europeias da Revolução
Industrial, ao crescimento urbano desmedido,
à criação dos grandes dispositivos para
acolhimento das massas nas metrópoles
urbanas, centros comerciais, cinemas, etc.
Ou, citando o próprio Philipp Blom na
sua introdução, “tudo o que ia tornar-se
importante durante o século XX – da física
quântica à emancipação da mulher, da arte
abstracta à viagem no espaço, do comunismo
e do fascismo à sociedade de consumo,
do massacre industrializado ao poder dos
media – tinha deixado fundas marcas nos
anos anteriores a 1914, pelo que o resto do
século foi pouco mais do que um exercício,
alternadamente maravilhoso e horrível, de
viver e explorar essas novas possibilidades”.
É nessa mesma linha que Marcello
Duarte Mathias nos diz agora quanto às
grandes encruzilhadas ideológicas e
impasses intelectuais e sobretudo à por vezes
complexa fronteira entre, de um lado, ética
e humanidade, e, do outro, pragmatismo,
cinismo, violência e acusações de traição,
cujos ecos e contra-ecos vêm reverberar a
Capri para aí se personificarem, polarizados
em Gorki e Lenine: “No fundo, encontramos
aqui, avant la lettre, o debate dos grandes temas
da intelectualidade europeia dos anos Trinta
e dos anos posteriores à Segunda Guerra
Mundial”.
Das duas personagens principais,
Máximo Gorki e Lenine, ambas pela casa
dos quarenta anos, são-nos dados retratos
muito cuidados, quer no aspecto físico, quer
no aspecto moral e intelectual. O de Gorki,
procurando o desenho de corpo inteiro, o de
Lenine, concentrado na expressão das feições.
questões morais e dramas da existência,
enquanto Lenine é um pragmático, dominado
pela sua obsessão ideológica e política, e,
provavelmente por causa disso mesmo,
interessado em compreender a visão que
o escritor lhe podia fornecer da Rússia,
valorando a responsabilidade do escritor e do
artista apenas na medida em que ela contribua
para a consecução dos objectivos políticos
que ele próprio defende com exclusão de
todos os outros. Debate que, ainda hoje, tem
os seus cultores.
Tudo o mais passa para segundo plano,
incluindo os envolvimentos amorosos. E
é de notar que ambos os protagonistas se
situam, nas suas preocupações, à margem
dos grandes movimentos que estão, nesse
preciso momento, a preparar uma revolução
nas artes. Neste aspecto, parecem contentar-se com os primórdios do realismo socialista,
de que Gorki é um dos founding fathers, apesar
de, segundo Marcello Mathias, a poetisa Anna
Akhmatova e o pintor Amedeo Modigliani
terem passado por Capri, apesar de na Rússia,
nessa Rússia de que Gorki tanto sente a falta,
estarem a revelar-se nomes de vanguarda
como os dos pintores Malevitch ou Larionov,
dos músicos Sytravinsky ou Scriabine, de
escritores como Maiakovsky ou como Ivan
Bunin, Andrei Bely ou Leonid Andreyev, estes
por sinal marcados pelo desespero e pela
tragédia apocalíptica dos acontecimentos do
Domingo Sangrento.
Mas essas questões de ruptura formal
com a tradição criativa não interessam aos
dois amigos que, de resto, estão longe de se
entender quanto a todos os pontos no tocante
à revolução e à política. Como Marcello
escreve, “a ideologia política não era aquilo
que os aproximava, era precisamente aquilo
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290
287
Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki
“Se o primeiro era corpo, figura, silhueta,
sombra, ossos, o segundo era só rosto.
Dele dimanava a intensidade e a violência
contidas que são o traço principal do seu
carácter”. Mas Lenine, que segundo o diário
de Gorki não tem problemas de identidade,
é ainda apresentado como viajando com
outros adereços e acessórios típicos do
revolucionário profissional (perucas de cor
e formatos diferentes, uma pistola Browning,
nomes falsos e falsas profissões, bengala de
cavalo-marinho com estoque).
De quem é a voz que nos narra os
acontecimentos? De um investigador? de um
ensaísta? de um jornalista? de um ficcionista?
de um simples curioso? Essa voz fala na
primeira pessoa e chega a citar Antero, essa
voz elabora sobre os materiais de que dispõe,
põe-se a conjecturar que o primeiro encontro
entre Lenine e Gorki terá sido anterior a
1905, provavelmente por alturas de 1898,
não sabendo todavia se antes ou depois do
exílio de Lenine na Sibéria. E situa assim o
caso: “Independentemente da verdade no
tocante a este ponto, o certo é que logo
se estabeleceu uma corrente de simpatia
que, mau grado desavenças várias, perdurou
pela vida fora. Nem de outro modo se
compreende as idas de Lenine a Capri por
dois longos períodos de tempo no meio de
afazeres e compromissos de toda a ordem”.
Retenhamos aquele início de frase:
“Independentemente da verdade no tocante a
este ponto”... Essa consideração vai projectar-se em muitos outros pontos cuja factualidade é estabelecida “independentemente da
verdade” no tocante a eles.
Da contraposição dos retratos resulta um
Gorki (pseudónimo que, sintomaticamente,
significa “amargo”) ensimesmado em
Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki
288
que os separava”, embora muito mais
tarde, já na década de trinta, as posições
de Gorki se tenham caracterizado por uma
grave ambiguidade pró-estalinista. Ou, como
escreve Simon Montefiore, “mais tarde, Gorki
tornar-se-ia amigo do ditador, escandaloso
apologista, troféu patético e possivelmente
vítima”.
Na fase de Capri todavia, Gorki vive
outro tipo de escrúpulos. E, como escreve
numa entrada do seu diário, Lenine comentou
ao vê-lo com A Morte de Ivan Ilitch debaixo do
braço: “Os escritores, os artistas só falam da
morte, não sabem falar de outra coisa. São
uns derrotistas. Não é com gente como esse
teu Tolstoi, um piegas bem-intencionado,
que havemos de fazer a revolução, mas com
os milhões de miseráveis que não sabem ler
nem escrever e constituem, apesar de tudo,
a verdadeira substância da nossa pátria. São
eles, acredita, o nosso primeiro e último
recurso”.
Mas não é só da relação com Lenine e da
necessidade de o entender na sua veemência
política obstinada que o livro nos vai
dando conta. “Lenine é um revolucionário;
Gorki um revoltado. Ou, melhor dito,
um inconformado”. Neste aspecto, ganha
também especial sentido a evocação de
Tolstoi e da natureza das experiências vividas
que o separam de Gorki: “(…) o essencial da
discórdia resultava sobretudo das origens de
cada um. Gorki duvidava do inconformismo
social de Tolstoi e do seu empenho em libertar
o povo […]. Via-o como um grande senhor
aristocrata que afectava não o ser, não sendo
no íntimo outra coisa. Para Tolstoi, Gorki era
um autodidacta em tudo, até no despeito”.
O processo do diário é provavelmente
o ideal para espelhar a maneira fragmentária
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290
como Gorki vê Lenine, numa espiral
admirativa e crítica, mas por vezes também
perplexa, hesitante e contraditória. Isso
permite a Marcello Mathias incorporar no livro,
também premonitoriamente, uma realidade
que viria a desmultiplicar-se no futuro
histórico: o mesmo Gorki que, nos 50 anos
de Lenine, ficava maravilhado por ver “este
homem simples, amável, afectuoso, rindo
com um sorriso magnífico, transformar-se numa figura titânica, cuja importância
é difícil de abarcar”, é quem, poucos dias
depois da Revolução de Outubro, escreve
que “Lenine e Trotsky não têm nenhuma
ideia da liberdade e dos direitos do Homem.
Já estão corrompidos pelo sujo veneno do
poder”. Gorki tinha desde essa altura relações
instáveis com os bolcheviques e chegara a
ser ameaçado de morte por uma carta do
próprio Lenine em 1919. E esse aspecto
fragilizador e fragmentário da maneira como
Gorki constrói a sua imagem de Lenine
não escapou a Trotsky que achava muito
fraco o que ele tinha escrito sobre Vladimir
Ulianov, com uma textura de descrição que
parecia feita dos elementos mais diversos e
a presença constante do moralista pequeno-burguês. Este afrontamento, ora implícito,
ora explícito, entre o criador artístico e
o activista e ideólogo político é uma das
alavancas permanentes do encontro em
Capri.
Um outro problema de crucial importância para este livro é o da relação entre
o verdadeiro e o falso e a de ambos com o
simplesmente conjectural.
Grande parte das situações, dos
documentos invocados e até das personagens
mais ou menos secundárias que são referidas
no livro não têm qualquer correspondência
das coisas que fomos e deixámos de ser, a
vertigem do passado e a saudade de todos os
outroras”.
Ora também em Capri, o diarismo
fragmentado de Gorki corresponde a estas
notas, espelhando uma consciência do
exílio, incluindo o exílio da língua materna,
as recordações da infância distante, as
solidariedades políticas e outras, as meditações
e as incertezas da condição presente do
escritor.
O mais curioso é que com a transcrição
do diário coexiste, em contraponto, um
comentário dubitativo e conjectural. Por
exemplo, ao tratar da relação de Gorki com
as mulheres e com as sucessivas mulheres
da sua vida, o narrador interroga-se sobre
o tipo de relação que Gorki terá “mantido
com as mulheres que conheceu. De ternura?
De conflito? De exasperação? De culpa?
De encantamento?” E remata a sequência
perguntando-se se Gorki terá encontrado
nelas “uma cumplicidade em termos de
equilíbrio afectivo, uma felicidade dos
sentidos, uma grata dependência partilhada”
para concluir: “Creio bem que sim”.
Há aqui portanto uma dupla pista de
ficcionalidade: a de um diário que nunca
existiu e onde portanto o suposto autor
nunca escreveu nada do que nos é dito no
livro que ele escreveu e a do próprio narrador
que conjectura outras coisas em paralelo com
a suposição de existência e conhecimento do
conteúdo desse diário.
E assim, ao lado de personagens
históricas que realmente existiram, Marcello
inventa outras personagens históricas, factos,
peripécias, textos, testemunhos, encontros,
viagens, situações que nunca se verificaram...,
incluindo a ida a Capri de Ana Akhmatova
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290
289
Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki
histórica. Nunca existiram. São pura invenção,
como diz o autor.
Nunca existiu o diário de Gorki de
que tanta citação é feita e que eu (e, como
eu, qualquer leitor que se disponha a
entrar no jogo) venho tomando como real
para os exemplos e citações que dele vou
extraindo. Salvo poucas excepções, nunca
existiram jornalistas e entrevistas, factos
referidos, personalidades cujos testemunhos
são invocados. Armadilhando esses e outros
aspectos da sua narração com um coeficiente
de verosimilhança do mais elevado grau,
é exactamente através do vero-símil, do
semelhante à verdade, que Marcello Mathias
procura chegar a essa verdade através da
ficção, de uma ficção a cujo serviço põe o seu
conhecimento muito vasto das problemáticas
da autobiografia e da diarística (um dos
temas que lhe são caros), de par com a sua
leitura da História e a sua análise das paixões
humanas, passando, ou melhor, fazendo a
sua personagem Gorki passar “da teoria à
prática” e pondo-a a dedicar-se à escrita desse
diário.
Num longo ensaio intitulado “Autobiografias e diários”, publicado há alguns
anos na revista Colóquio/Letras, Marcello
enumera algumas das notas que caracterizam
este tipo de atitude e de escrita, entre as quais
se incluem “o acaso, as horas de convívio, o
lusco-fusco da memória e as encruzilhadas
do tempo; a reflexão sobre os caminhos
da criação, as mil expressões do nosso
imaginário, mas também o inexprimível,
o sagrado, certa maneira de estarmos no
mundo, de o interpretar e refazer, o que afinal
nos liga a ele e dele nos separa; a projecção
da nossa individualidade, o confronto com
os anos de infância e adolescência, o fluir
Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki
290
com Modigliani, incluindo o estudo que
Gorki estaria a redigir em 1909, “a conselho
e por insistência de Lenine”, sobre Mazzini e
Garibaldi, uma vez que no seu exílio de Capri
as figuras de Garibaldi e Mazzini também
acabam por se transformar em fantasmas
políticos dessa estada mediterrânica.
Este é mesmo o pretexto para uma
espécie de mise en abîme em que Lenine teria
incitado Gorki a desenvolver todo o livro
sobre Mazzini e Garibaldi “em torno de um
único e hipotético encontro que reunisse
todos os outros”, uma vez que, para ele, “a
verdade factual era meramente adjectivante
quando comparada com a dimensão filosófica
do diálogo político, o confronto de vontades,
os temperamentos e as prioridades”, sendo
certo que essa maneira de falsear a História
por motivos de ordem ideológica repugnava
a Gorki, o qual consignava no diário saber
que “Lenine é uma consciência mutilada pela
fé ideológica”.
Ora a “verdade factual” deste encontro
em Capri torna-se, ela também, meramente
adjectivante e instrumental para a construção
e o diálogo destas personagens que assim
encontraram o seu autor e encenador.
De resto, foi a leitura das memórias
inexistentes de uma não menos inexistente
Angelina que, diz o narrador, “me levou
ao diário italiano de Gorki e me incitou
mais tarde e a escrivinhar estas dezenas de
páginas”.
Temos portanto um texto suposto,
as memórias de Angelina, de que somos
informados já vai o livro em meio, as
quais induzem à leitura de outro texto
suposto, o diário de Gorki, por sua vez
estudado primeiramente por um especialista
ele também inexistente, o belga Maurice
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290
Martin-Merrère, professor de língua e
literatura russas na Universidade de Bruxelas,
quanto a cuja intervenção se chega a pôr a
hipótese de ter implicado supressões ou a
censura de partes do texto, o que, aliás, o
próprio sempre terá negado. Deste modo
se desdobra um jogo de espelhos fictícios
que se vão incessantemente reenviando
essas imagens virtuais e apresentando um
conjunto interessantíssimo de questões para
a teoria da literatura e do romance realista,
até pela ambiguidade da forma romance,
aqui contaminada, tanto pelo ensaio e pela
reflexão, como por uma intromissão na
História a partir de uma série de fontes
absolutamente apócrifas com o objectivo de
construir uma realidade ou de se objectivar
a partir dela.
Na penúltima página, fala-se neste
“pequeno ensaio sobre o diário italiano de
Gorki”; na última, lemos: “ (...) qualquer
romance é uma tarefa comum que transcende
o autor. No fundo, pede-se agora ao leitor que
o reescreva, já sem ninguém a seu lado”.
E é esse o convite aliciante para a
solidão de uma leitura em que uma outra
solidão humana se nos apresenta, nas suas
estranhezas e nas suas amarguras, algures no
Mediterrâneo, num dos tais momentos que
prenunciaram e preludiaram muito do que
no século XX veio a acontecer.NE
José Carlos de Vasconcelos*
TANTO MAR? PORTUGAL, O
BRASIL E A EUROPA
de Francisco Seixas da Costa
Editora: Thesaurus Editora
«AO LONGO DE quase quatro anos no
Brasil coloquei sempre duas questões a
mim mesmo: o que é hoje o Brasil para
Portugal? E Portugal para o Brasil? Não
sei se obtive ou obterei alguma vez a
verdadeira resposta, mas ouso arriscar a
minha», escreve Francisco Seixas da Costa
na introdução ao seu novo livro Tanto Mar?. E
*
a resposta, ou melhor: as respostas, directas
ou ‘indirectas’, a estas duas questões, são
inteligentes, estimulantes e deviam mesmo
constituir uma espécie de ponto de partida
obrigatório para quem pretende reforçar e
aprofundar, com realismo, as relações entre
os dois países.
O volume reúne 49 intervenções,
artigos, mensagens, entrevistas, que
constituíram «posições públicas assumidas»
durante o período, agora chegado ao fim,
em que Francisco Seixas da Costa (FSC) foi
embaixador de Portugal em Brasília. E o
título, claro, é tirado da famosa cantiga de
Chico Buarque, escrita logo após o nosso 25
de Abril, com Portugal em plena euforia da
liberdade conquistada e o Brasil ainda em
ditadura. De «tanto mar» a nos «separar»
falava então o poeta/ compositor/ cantor.
FSC, logo em Outubro de 2005, na Folha de
São Paulo, no que constitui o primeiro artigo
coligido, após aquela excelente introdução,
que dá uma visão englobante, sistematizada,
das ideias e perspectivas do autor, FSC, dizia,
comenta: «Desde que cheguei ao Brasil, há
uma coisa que aprendi: Chico Buarque não
tem razão. Hoje já não há tanto mar a nos
separar».
Jornalista e escritor.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 291-293
291
Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa
Portugal/Brasil: compreender e agir
Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa
292
O livro divide-se em três partes. A
primeira, que trata especificamente de
«Portugal e o Brasil», está por sua vez
dividida em cinco capítulos: Política,
Comunidade, Cultura, Economia, História. A
segunda, a mais curta, chama-se «Portugal,
o Brasil e a Europa» (que é o subtítulo,
descritivo, do próprio volume). A terceira,
«Diálogos», colige 11 entrevistas a órgãos de
comunicação social portugueses e brasileiros,
ou a parte delas relativa às matérias aqui
em pauta, sendo de destacar a concedida ao
programa «Roda Viva», em rede nacional da
TV Cultura.
Como se vê ou infere, dentro de uma
unidade temática fundamental, há uma
diversidade grande de assuntos; e também da
forma de os abordar. Porque o livro é, além
do mais, de certo modo, uma consequência, um
reflexo, um resumo e uma espécie de balanço final
da acção de Seixas da Costa na sua «missão
brasileira».
Assim, nestas páginas têm presença
marcante questões que vão das sobretudo
atinentes à comunidade portuguesa e aos
luso-descendentes, às económicas – com
destaque para as importantíssimas relações
entre os dois países nesse domínio – e às
culturais, em particular as da língua. E estas
são absolutamente essenciais, até porque na
base do que especifica e mais profundamente
nos liga, há cinco séculos e para sempre –
do que FSC tem plena consciência, sabendo
muito bem, ao contrário de outros, que a
língua e o ‘cultural’ são decisivos mesmo para
o económico.
Quanto à relativa diversidade de forma
ela resulta nomeadamente dos vários destinos
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 291-293
dos textos e fins que visaram atingir. Não
podem deixar de ser diferentes, como
são, não só no conteúdo como na forma,
mensagens no Dia de Portugal ou no Dia
da Comunidade Luso-Brasileira, intervenções
para empresários, investidores, intelectuais
ou mesmo no Senado Federal, artigos para
múltiplos órgãos de comunicação social,
incluindo alguns dos mais importantes do
Brasil, como a referida Folha de São Paulo, O
Globo, etc.
Quanto a estes artigos, sublinhe-se que as
mais das vezes eles representam o exercício a
elevado nível, e por meios (em duplo sentido)
só acessíveis a alguém com a qualidade e
o prestígio de Seixas da Costa, da acção de
embaixador de Portugal. Designadamente,
mas não só, na pronta resposta a posições,
afirmações ou insinuações injustas e lesivas
da dignidade, do prestígio e dos legítimos
interesses do nosso país. Creio, aliás, que essa
deve ser uma das ‘tarefas’ dos representantes
portugueses no estrangeiro e também neste
aspecto FSC se distingue.
Desde há muito que o redactor desta
nota cursiva tem uma relação intensa com
o Brasil, defende o aprofundamento das
relações entre os dois países a que não
por acaso durante muito tempo se chamou
«irmãos»: aprofundamento em todos os
domínios, a nível bilateral e no quadro
de uma Comunidade de Países e Povos
de Língua Portuguesa, como decorrência
lógica e imposição da História, devendo
constituir em todas as circunstâncias uma
primeiríssima prioridade da nossa política
externa. E, desde o 25 de Abril de 1974
seguindo de muito perto o que nesse sentido
se faz ou não faz, julga poder afirmar que
nenhum embaixador em Brasília fez mais e
melhor do que Seixas da Costa.
Este Tanto Mar?, além de ser um expressivo
testemunho disso mesmo, constitui, como
comecei por dizer ou sugerir, um assinalável
contributo para o bom conhecimento e
a adequada avaliação de uma situação e
dos problemas que comporta, em ordem
a discuti-los e tentar resolvê-los, por parte
de um diplomata de invulgar competência
e dedicação, que ao mesmo tempo é um
homem de cultura e de ideias.
«O Brasil é muito mais do que o que
Portugal por aqui deixou (….) Quem em
Portugal não entender isto, não vai conseguir
entender nunca o Brasil. O que não significa
que não nos reste muito ainda em comum,
a começar pela tolerância que permite esta
sã convivência de culturas e pessoas – essa
sim uma das duas valiosas heranças que por
aqui deixámos. A outra é a língua (…) que
liga ambos os países a outros continentes e
que se procura agora evitar que se afaste na
sua forma escrita, para melhor nos servir na
nossa afirmação individual e colectiva pelo
mundo», sublinha, por exemplo, Seixas da
Costa.NE
Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa
293
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 291-293
Vicente Jorge Silva*
Todo-o terreno. 4 anos de reflexões
294
TODO-O
TERRENO. 4 ANOS DE
REFLEXÕES
de Ana Gomes
Editora: Rui Costa Pinto Edições
A MINHA JÁ longa amizade e cumplicidade
com a Ana Gomes tem sido acompanhada
por uma admiração crescente pelo que ela é
e pelo que ela faz.
A admiração conforta a amizade – a
velha irmandade que nos une.
Uma irmandade de ideais, de princípios,
de inconformismo, de insubmissão, de
recusa do cinismo, de fidelidade a causas e
princípios que outros diriam quixotescos no
*
Jornalista e cineasta. Texto lido no lançamento do livro.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 294-295
mundo em que vivemos. Tudo coisas que têm
o seu preço, particularmente em Portugal.
Acusam-na de excessiva, demasiado
apaixonada, fogosa e pouco diplomática –
ou seja, acusam-se de não ser hipócrita ou
cúmplice com os jogos de conveniências,
mesuras, disfarces, os pequenos cálculos
medíocres da diplomacia e, nomeadamente,
da diplomacia leve leve e planadora, de caixeiro
viajante – como ela diz, e que é, infelizmente,
a nossa.
Ao contrário de mim, porém, a paixão
da Ana pela acção política tem-se revelado
muito mais consequente. E este livro é a prova
provada disso. Confesso que pessoalmente não
resisti ao confronto com os constrangimentos
da actividade política em que estive envolvido
efemeramente como deputado à Assembleia
da República. Talvez por não ter jeito para
isso, porque as regras e costumes da política
‘real’ eram adversos à minha maneira de ser
e porque me senti estrangeiro e inútil nesse
espaço de que continuo a ser observador,
espectador comprometido, mas não actor.
Mas a Ana continuou, continua a bater-se e viaja até aos quatro cantos do mundo
para demonstrar que vale a pena, depois de
ter sido ela quem protagonizou em Portugal
a causa de Timor. Ela esteve em quase toda a
parte onde a dor humana e os conflitos mais
Além disso, ela teve razão sobre o Iraque
e a denúncia do embuste catastrófico a que
conduziu a Administração Bush, envolvendo
algumas cumplicidades europeias que hoje
se procuram disfarçar e a que o Governo de
Durão Barroso esteve associado na cimeira
das Lajes. Ela tem razão ao denunciar essa
outra vergonha que é Guantánamo e ao exigir
que se faça luz sobre as cumplicidades e
encobrimentos que envolveram os chamados
voos da CIA em território português.
Não estou de acordo com ela sobre
tudo, e ainda bem. Mantenho-me céptico
em relação ao Tratado de Lisboa e sobre o
destino político da Europa em que ela
continua a acreditar contra ventos e marés,
apesar de sermos ambos apaixonadamente
europeus. E a forma condescendente como
se prepara a renovação do mandato de
Durão Barroso, lamento dizê-lo, só me
parece apontar para a permanência dessa
Europa minimalista e inconsequente
em que vivemos. Tenho também muitas
dúvidas sobre a independência do Kosovo
e, já agora, sobre a existência do Sistema
Integrado de Segurança Interna dependente
do primeiro-ministro, como ela aceita. E
discordo dela acerca dos polémicos cartoons
dinamarqueses sobre Maomé, o que daria
pano para mangas numa dessas longas
conversas que temos regularmente com
outros amigos.
A Ana pediu-me para ser crítico. Lamento
não o ser tanto como ela porventura desejaria,
porque a verdade é que concordo com ela na
grande maioria das questões, e a crítica e a
discordância, além de serem fundamentais no
debate democrático são também indissociáveis
da verdadeira amizade. Pelo menos como ela
e eu o entendemos.NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 294-295
295
Todo-o terreno. 4 anos de reflexões
tétricos parecem insanáveis: dos Balcãs ao
Darfur, passando pelo Iraque, pelo Afeganistão,
pela Etiópia, pela Palestina… Para ver, para
ouvir, para discutir, para tentar perceber o
que se passa, para tentar contribuir para a
mudança e combater a fatalidade. Não foi
por acaso, percebe-se assim, que tenha sido
eleita no Parliament Magazine como a deputada
activista de 2008.
Acontece que ela tem razão. Yes, we can,
como diria Barack Obama. Aliás, a vitória de
Obama – que a Ana e eu desejámos e previmos, apesar do cepticismo de tantos amigos
comuns – dá-nos hoje um novo motivo para
acreditar que o mundo pode ser mudado
para melhor apesar de todas as decepções e
desilusões que apareçam no horizonte.
António Guterres diz no prefácio deste
livro que a Ana é uma força da natureza. Eu
diria que ela é uma força da natureza porque
é, ao mesmo tempo, e sobretudo, uma força
de carácter.
Todo o Terreno – um título que é todo um
programa e que tão bem resume a adrenalina
e a energia únicas da Ana – recolhe textos
publicados ao longo de quatro anos e uma das
coisas que nele mais impressiona é a coerência
da reflexão, a insistência na busca da verdade,
a recusa das mentiras e mistificações, o
optimismo da vontade. Lê-los em perspectiva
dá-nos um pensamento em acção e uma
acção que não desiste de procurar saídas para
os imbróglios e tragédias do mundo.
Leiam-se, por exemplo, os seus textos
sobre a questão do Irão e da proliferação
nuclear e constate-se como, ao contrário
das acusações que lhe fazem, ela revela um
pragmatismo no melhor sentido, a procura de
saídas coerentes e consistentes para um dos
problemas mais inquietantes da actualidade.
Manuel Duarte de Jesus*
António Feijó – diplomata
296
ANTÓNIO FEIJÓ –
DIPLOMATA
de Fernando de Castro Brandão
Editora: Europress, Lda.
Fernando de Castro Brandão
ANTÓNIO FEIJÓ
DIPLOMATA
colecção
SE ALGUM DIPLOMATA, em Portugal, se tem
dedicado com afinco, seriedade e abundância
à história da diplomacia portuguesa tem sido
o Embaixador Fernando Castro Brandão.
Historiador de formação e paixão,
diplomata de profissão, Castro Brandão
tem-nos presenteado com uma enorme
quantidade de livros preciosos para qualquer
investigador das relações externas do nosso
país, desde a época afonsina.
*
Embaixador.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 296-297
Enveredou por um género – não
em exclusividade – que alguns poderão
considerar de menor relevância. Certamente
que nenhum historiador ou investigador do
domínio das relações externas de Portugal
partilha esta opinião.
Estas suas obras constituem uma base
de dados, um referenciário obrigatório para
aqueles que se dedicam à investigação: as
cronologias.
Mas desta vez, Castro Brandão apresenta-nos um livro, que se lê como um romance,
com a diferença de que as personagens e os
factos são reais e resultam de uma apurada
investigação de fontes: António Feijó –
diplomata.
O António Feijó que conhecemos –
quase intimamente – no seu livro não podia
ser mais português – as suas neuras, o quase
constante desalento por querer algo sempre
de diferente, sem, por vezes, saber identificar
o desiderato, as suas depressões.
A Secretaria de Estado, com as óbvias
diferenças entre os nossos dias e a sua
época, continua sempre com um fundo
substantivo igual a si próprio – a lentidão
nas decisões, os silêncios como respostas,
por vezes entrelaçadas com gentilezas
pessoais, também tão portuguesas.
posta de rastos pela imprensa internacional,
independentemente do regime.
Feijó viveu os seus últimos dias na
amargura e tristeza pelo desaparecimento
prematuro de sua mulher, Mercedes Dagmar
grande amor de sua vida. Certamente,
período que lhe inspirou alguns dos seus
poemas do “Sol de Inverno”.
Por lá faleceu em 1917, em plena
Grande Guerra, tendo-lhe as autoridades
suecas manifestado o seu apreço através de
invulgares cerimónias fúnebres.
Dez anos mais tarde, a Suécia, que não
havia esquecido aquele diplomata português,
prestou-lhe esta última homenagem: em
1927, o cruzador sueco Fylgria trazia para
Lisboa os seus restos mortais. Portugal,
pelo seu lado, homenageou-o, então, com
uma cerimónia que incluiu o Ministro dos
Negócios Estrangeiros da altura e o próprio
Chefe de Estado.
Este magnífico livro poderia integrar
uma série começada, mas infelizmente,
interrompida – a dos Diplomatas Portugueses –
uma série em boa hora lançada pela AAHD
(Associação dos Amigos do Arquivo
Histórico-Diplomático) e a APHRI (Associação Portuguesa de História das Relações
Internacionais) com o apoio do IDI (Instituto
Diplomático).NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 296-297
297
António Feijó – diplomata
Mas, para além destes factos, deparamo-nos com um diplomata de grande valor
na análise das circunstâncias geopolíticas
regionais e mundiais, sempre atento à
definição dos interesses nacionais e capaz
de ultrapassar etapas difíceis.
Depois de uma breve passagem pelo
Brasil, que lhe não deixou saudades, passou
o resto da sua vida no complexo mundo
escandinavo da altura.
Castro Brandão descreve, como se de
uma reportagem se tratasse, o seu contacto
com o aparecimento das grandes e ordeiras
manifestações socialistas, as peripécias
diplomáticas e políticas ligadas à autonomia
da Noruega e o fim do Pacto Uninacional
que a unia à Suécia.
Afigura-se-me do maior interesse
ver como o nosso Cônsul-Geral e depois
Ministro Plenipotenciário zelava por uma
diplomacia económica activa e quão curioso
é verificar como a nossa balança comercial
com a Suécia nos era favorável.
Das passagens que li com maior interesse
dizem respeito à sua experiência única de
ter assistido à entrega do primeiro Prémio
Nobel e das peripécias tão portuguesas com
os qui-pro-quos, atrasos e erros administrativos
que enfermaram as candidaturas de Antero
de Quental.
Feijó, como bem descreve o autor,
passa pelos difíceis períodos do regicídio e
depois, da implantação da República. A sua
prudente habilidade foi notável.
Naquela altura uma, se não a sua
principal preocupação foi o que hoje se
chamaria de “diplomacia pública”. Como
poupar e defender a imagem de Portugal,
Filipe Ribeiro de Meneses*
Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia
298
GUERRA
CIVIL DE ESPANHA:
INTERVENÇÃO E NÃO
INTERVENÇÃO EUROPEIA
de Luís Soares de Oliveira
Editora: Prefácio
GUERRA CIVIL DE Espanha, de Luís Soares de
Oliveira, é uma obra rara na historiografia
portuguesa: o estudo de um acontecimento –
ou antes, da evolução de um fenómeno
diplomático – no qual Portugal participou,
mas em que essa participação não se sobrepõe
à de outros países. Por outras palavras,
estamos perante uma análise da reacção
internacional à Guerra Civil de Espanha,
*
Professor. National University of Ireland, Maynooth.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 298-301
prenúncio, mas não necessariamente causa,
da Segunda Guerra Mundial, que levou à
formação do Eixo Berlim-Roma, permitiu a
Hitler conquistar, sem um só soldado morto,
a Áustria e a Checoslováquia, contribuiu
para o desprestígio da Sociedade das Nações
e, por fim, levou Estaline a desistir de uma
coligação antifascista, resolvendo chegar a
um acordo com Hitler que desse à União
Soviética mais alguns anos de paz.
Soares de Oliveira opta por acompanhar
o desenrolar cronológico da crise
espanhola, criando espaços de reflexão,
de quando em quando, para explicar as
circunstâncias domésticas que ajudam a
compreender as posturas diplomáticas dos
vários intervenientes. Fá-lo com excepcional
clareza, por exemplo, em relação a França,
detalhando as pressões que levaram Léon
Blum, líder socialista e primeiro-ministro
de um governo de Frente Popular, a
optar inicialmente por apoiar o governo
republicano espanhol – também ele nascido
de uma Frente Popular – e pouco tempo
depois a mudar de caminho, instando por
uma política de não intervenção. Guerra Civil
de Espanha traça a rota desta política de não
intervenção, que serviu, na prática, não para
impedir a intervenção militar em Espanha,
The House as a whole felt sympathy
with Mr. Eden. There was not one
of them, however ambitious or self-confident, who would like to bear Mr.
Eden’s load from day to day – a load
which, as anybody could see, had aged
him faster than the passage of the years
[apoiados].
A não intervenção resultaria, em teoria,
na criação de um vácuo em torno do
território espanhol, para que os dois lados
1
na contenda resolvessem a sua querela sem
interferências estrangeiras. Assim sendo,
negou direitos de beligerância quer aos
rebeldes militares quer ao governo legítimo
de Madrid, a primeira de muitas traições que
este iria sofrer ao longo dos próximos três
anos. O acordo de não intervenção serviu
também para impedir a discussão da questão
espanhola da Sociedade das Nações. Quando
a política de não intervenção foi proposta,
Blum tinha a esperança que a República
espanhola, controlando as grandes cidades e a
capacidade industrial do país, pudesse ganhar
a guerra. Porém, quando ficou demonstrado
que a não intervenção não estava a funcionar,
aprofundou-se o erro, em vez de o corrigir,
criando-se um comité para implementar
o “acordo de cavalheiros” (como se tal
fosse possível na década de Trinta). Este
começou a funcionar em Setembro de 1936,
transformando-se rapidamente numa farsa
custeada pela população espanhola. Por trás
desta farsa estavam a já referida política de
apaziguamento e os reflexos financeiros
da Grande Depressão. As imprensas alemãs
e italiana, totalmente controladas pelos
respectivos governos, aplaudiam abertamente
o esforço de guerra dos seus voluntários, mas
nada de concreto se fez no comité para
impedir tais apoios, assim como o da União
Soviética a favor dos republicanos. A política
de não intervenção atingiu o seu ponto
Luís Soares de Oliveira exagera o impacte do bombardeamento de Guernica, e do quadro de Picasso, a este
respeito. A noção de que a próxima guerra seria “apocalíptica”, graças ao bombardeamento aéreo das
grandes cidades, tinha-se popularizado em toda a Europa antes da Guerra Civil de Espanha. Mesmo em
Portugal esta ideia se tinha espalhado; ver, por exemplo, A Grande Ameaça: A Guerra de Amanhã, um “romance
documentário” de Adolfo Coelho, publicado em 1934.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 298-301
299
Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia
mas, sobretudo, para a regular e negociar,
de forma a não permitir que ela provocasse
uma conflagração generalizada. Tendo a
Grã-Bretanha decidido apadrinhar a não
intervenção, a figura central desta política, e
por isso mesmo da obra de Soares de Oliveira,
é Anthony Eden. O autor é extremamente
crítico de Eden, homem privado, segundo
Soares de Oliveira, da imaginação necessária
para ser um grande líder, o que se viria
a confirmar, supostamente, durante
a crise do Canal do Suez. Eden, porém,
estava numa posição impossível, devido
à vontade popular, manifestada na Grã-Bretanha e em França, de apaziguamento
e às consequências políticas deste desejo de
paz,1 o que Winston Churchill reconheceu
num discurso na Câmara dos Comuns em
Dezembro de 1937:
Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia
300
mais baixo em 1937, quando submarinos
italianos começaram a torpedear tudo o
que navegasse no Mediterrâneo a caminho
de portos republicanos, sendo tais actos
de guerra atribuídos a submarinos piratas, de
forma a não provocar um confronto entre
as três potências navais daquele mar: Grã-Bretanha, França e Itália. Quando Londres e
Paris se puseram de acordo, fora do comité,
para pôr fim a esses ataques, graças a
um patrulhamento activo do Mediterrâneo,
Mussolini reclamou para a Itália, e obteve, o
direito de se juntar a esse patrulhamento. No
seu já citado discurso, afirmou Churchill,
I must pay my tribute to Signor
Mussolini, who joined in the common
exertions of the Mediterranean Powers
[risos] – and whose prestige and
authority by the mere terror of his
name quelled the wicked depredations
of those pirates [muitos risos]. Since the
days of Caesar himself there had been
no more salutary clearance of pirates
from the Mediterranean [risos].
Dada a natureza absurda de todo o
processo de não intervenção, quase todos os
autores que sobre ele escrevem – no contexto,
por exemplo, de narrativas da Guerra Civil de
Espanha – limitam-se a descrever em algum
detalhe o início dos trabalhos, referindo-se depois a alguns pontos de viragem: a
colocação de observadores nas fronteiras
terrestres de Espanha, o bloqueio naval e
a retirada de voluntários em 1938. Soares de
Oliveira, porém, revela grande persistência,
acompanhando de perto os trabalhos do
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 298-301
comité de não intervenção e demonstrando,
pelo exame das suas regras e das ambições
dos vários intervenientes, porque se manteve
de pé durante todo o conflito. É nesta
persistência que reside o mérito do autor e o
valor da obra.
Podemos, porém, apontar-lhe duas
lacunas. A primeira é a surpreendente
falta de discussão sobre os motivos que
influenciaram a diplomacia portuguesa.
Oliveira Salazar, Armindo Monteiro, Pedro
Teotónio Pereira e Teixeira de Sampaio – os
actores principais da diplomacia portuguesa
da época – agem, neste livro, de acordo
com princípios que não são discutidos ou
suficientemente analisados, apesar de não
serem de todo óbvios. Salazar decidiu que
uma vitória republicana seria uma ameaça
para o Estado Novo e por isso mesmo para
Portugal: mas as bases desse juízo eram
risíveis e por vários canais lhe chegaram,
no início da guerra, indicações de que
era possível um entendimento com os
republicanos. Nesse sentido, a documentação
existente no Arquivo Histórico-Diplomático,
incluindo a reunida na série Dez Anos de
Política Externa, não chega para explicar o
posicionamento de Salazar, porque não é
nela que são discutidas as alternativas. Por
outras palavras, não está dita a última
palavra sobre a diplomacia do Estado Novo,
e não se pode escrever sobre o período
sem introduzir um elemento de dúvida
sobre o que realmente motivava Salazar,
explicando as contradições presentes na sua
acção. Segundo Soares de Oliveira, “para
o estadista português [Salazar], a política
tem que conjugar forma e substância e não
sendo por isso necessário aguentar até
que os dois conflitos se tornassem num
só. Havia uma concordância de fins entre
Negrín e os comunistas que não implicava
a subordinação das outras forças políticas
ao Partido Comunista Espanhol. A influência
deste partido, e dos seus mentores russos,
é sobre-estimada por Soares de Oliveira
quando afirma que o PCE “detinha o
controlo de todo o aparelho militar e por
decorrência, também do aparelho político
da República”. Se Franco triunfou em 1939,
não foi só por causa do apoio recebido
de Berlim, Roma e Lisboa; se Negrín saiu
derrotado da contenda, não foi só porque
a certa altura Moscovo mudou de opinião
quanto à necessidade de apoiar a República
Espanhola.NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 298-301
301
Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia
pode existir sem uma e outra”; tal afirmação
transmite uma imagem de Salazar que se
não coaduna com muito do que sabemos
hoje sobre a sua forma de governar.
A segunda lacuna, mais grave, refere-se
à própria Espanha, e ao que nela se passou
antes e durante a guerra. A Introdução, ao
defender a tese da inevitabilidade da Guerra
Civil, devido em parte ao “particularismo”
do caso espanhol, diminui a responsabilidade
de quem iniciou o conflito; a compressão
necessária para explicar com brevidade as
causas da guerra pode muito bem estar
por trás desta descrição simplista, mas não
deixa de causar dúvidas e mal-entendidos
(como por exemplo, a afirmação de que
Largo Caballero foi ministro da Guerra
após as eleições de Fevereiro de 1936 e
que enquanto tal “construiu o seu exército
com milicianos recrutados nos sindicatos
e enquadrados por graduados eleitos”:
nada disto aconteceu, já que os ministros
da Guerra deste período foram o General
Masquelet e, mais tarde, Casares Quiroga).
Quanto às principais figuras espanholas do
conflito, são apresentadas – sobretudo as do
lado republicano – como simples joguetes
na mão de interesses estrangeiros; a Guerra
Civil, a partir de certo ponto, não é nada
mais do que o choque desses interesses. De
Juan Negrín, afirma Soares de Oliveira que se
submeteu “ao mando de Moscovo”; e tudo
o que é eficiente na República é apresentado
no livro como sendo enviado de, ou liderado
e enquadrado por, Moscovo. Mas Negrín
apoiava-se nos comunistas porque queria
resistir a Franco, e julgava – correctamente –
que uma guerra europeia vinha a caminho,
Gonçalo Santa Clara Gomes*
Teatro de sombras – Contos
302
Entre Ironia e Cumplicidade
TEATRO
DE SOMBRAS – CONTOS
de António Pinto da França
Editora: Prefácio
CREIO QUE FOI Horace Walpole que disse
que o mundo é uma comédia para os
que pensam e uma tragédia para os que
sentem. Ao ler Teatro de Sombras, o último
livro de António Pinto da França, veio-me a frase à memória acompanhada pela
pergunta – como é o mundo para os que
simultaneamente sentem e pensam com
quase a mesma intensidade? O Teatro de
Sombras em que género se situa?
*
Embaixador.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 302-303
António Pinto da França é, provavelmente, tão sensível como inteligente
(ou será vice-versa?). Mas, por inclinação
ou por escolha, distancia-se do mundo, e
das gentes (e de si mesmo, às vezes) e o
pensamento domina – e de tal modo que até
pensa com o sentimento. O Autor tem uma
curiosidade sôfrega, olha constantemente
quem o rodeia, não lhe escapa o ridículo
e a estranheza das pessoas, mas sente por
elas simpatia e até cumplicidade. Daqui
resulta uma ironia tingida por ternura para
com os personagens que recria, mesmo
os mais caricatos, os mais obnóxios e as
mais pernósticas. Essa simpatia é tão grande
como o mundo e este é o teatro em que as
histórias deste livro se desenrolam.
Entre razão e sentimento, quando um
não afoga o outro, resulta uma tensão
permanente: tudo é sério e nada o é.
Não há sistema racional, não há uma
visão do mundo que possam abarcar tanta
disparidade. Um certo relativismo instala-se
e a ordem sofre, perturbada constantemente
pela irrupção de elementos excêntricos,
esdrúxulos, maníacos. Mas por detrás das
aparências ou sombras vislumbra-se uma
outra realidade.
Os diplomatas, sabem melhor que
ninguém que “o diabo está nos detalhes”.
que morre gloriosamente livre ao realizar o
seu sonho, com “uma expressão beatífica”.
E os elos tecidos podem até desenrolar-se
em longas cadeias no tempo – no “Anel”
passam duzentos anos até um reencontro se
dar por interpostas pessoas. E deparamos,
por vezes, com a saudade do que podia ter
sido, a tristeza de oportunidades perdidas.
Pinto da França vem da diplomacia,
do serviço público, da escrita oficial, de um
esforço de décadas para explicar claramente
a gente simples e apressada o que se passa em
mundos que eles ignoram. Passou daí para a
escrita mais personalizada, mas igualmente
didáctica, que são as memórias do que se
passou por onde passou. Saltou agora para a
ficção; mas não o fez totalmente – há muito
de memorialístico ainda nestes contos e,
mais frequentemente que Hitchcock nos
seus filmes, encontramos a cara sorridente
e os olhos penetrantes do António nalgumas
esquinas. Perdoa-se-lhe: é a eterna criança
deslumbrada, divertida, endiabrada que não
resiste a soltar gargalhadas enquanto faz das
suas.
Na apresentação deste livro, o Pinto
da França prometeu – melhor, ameaçou –
que não haveria mais livros dele. Era o que
faltava: “cada um de nós é vários, é muitos,
é uma prolixidade de si mesmo”, diz o Livro
do Desassossego. O António ainda só viveu três
ou quatro vidas e não deve fechar a boca
ao ficcionista que desponta. Ele tem muito
tempo à frente para amadurecer – pelas
minhas contas, pouco mais terá que 70
anos…NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 302-303
303
Teatro de sombras – Contos
Não é o verdadeiro diabo, é um diabrete
que cria a confusão do mundo e perturba a
ordem, ou o que passa por o ser. O ironista
encontra as fraquezas, as pretensões e os
limites humanos por todo o lado e segue
os passos do mafarrico perturbador com
minúcia e com delícia. Devo dizer que,
neste livro, os contos que mais apreciei são
justamente aqueles em que o próprio Autor,
benévolo e tolerante, solta o diabrete e aponta
o fracasso das tentativas humanas de criar e
impor ordem nas vidas e comportamentos.
“Os Custódios” é um conto paradigmático
disso – além de uma construção narrativa
quase perfeita, é difícil imaginar como a luta
pela ordem, pela conservação, pela travagem
do tempo e do espaço possam ser vistos
como tão absurdas, tão deliciosamente sem
sentido. Reencontrada a liberdade, Pinto
da França não poupa sequer o MNE: um
diplomata em Copenhaga, em “Os Elos da
Cadeia” tem de justificar habilidosamente
a escolha entre a abstenção e o votar com a
maioria, única alternativa que Lisboa deixa
aos seus enviados.
Mas também há coincidências que são
mais do que isso – entre pessoas, cenários
e factos há teias e laços que não são acaso.
Eu diria que há em Pinto da França algo
de quase herético: Deus talvez não tenha
criado este mundo – pelo menos deixou aos
homens o encargo de o completar – mas olha
para ele com tolerância benevolente e não
resiste a intervir ocasionalmente provocando
coincidências, acasos e encontros. Através
dessas tangentes e secantes o que parece
inevitável deixa de o ser e há quem consiga
fugir e escape dos círculos viciosos em que
se fechou, ou em que o enredaram. Há fugas
e figas ao destino em contos como “Tiago”
Elsa Maria Dias Dinis*
China – cooperação e conflito na questão de Taiwan
304
CHINA – COOPERAÇÃO E
CONFLITO NA QUESTÃO DE
TAIWAN
de Luís Cunha
Editora: Prefácio
CHINA – COOPERAÇÃO E Conflito na Questão de Taiwan
é uma obra única no contexto nacional
da literatura e da investigação académica
sobre a República Popular da China (em
diante RPC). Luís Cunha – o autor, jornalista
e presentemente doutorando em Relações
Internacionais – desafia o olhar do leitor
sobre as questões chinesas, preocupando-se
*
Assistente Convidada do ISCSP-UTL.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 304-307
em apresentar uma perspectiva sobre a China
que se concentra muito mais na República
da China (Taiwan) e na problemática
internacional por resolver do reconhecimento da
soberania deste estado e da sua independência
política em relação à Grande China.
Habituados que estamos a um mercado
editorial – nacional e internacional – que
se concentra em estudos sobre a envolvente
política, económica, cultural e social da RPC,
não podemos deixar de nos sentir enriquecidos
em termos nacionais com este livro que agora
nos é apresentado, pela perspectiva inovadora
de estudo e reflexão que revela.
Importa neste ponto recordar a histórica
tradição lusófona de chegar a mares nunca dantes
navegados que nos ajuda a enaltecer o feito
de termos sido um dos primeiros povos
ocidentais a aportar em Taiwan (local que até
aos nossos dias também se chama de Formosa,
supostamente por baptismo português). Com
o seu olhar sobre a China direccionado pela
Questão de Taiwan, Luís Cunha faz juz à nossa
tradição diferenciadora, trazendo à estampa
uma reflexão que se encontra entre uma das
muito poucas produzidas em Portugal – e em
Português – sobre a actualidade internacional
deste tema.
1
destino verbalizado na famosa expressão de
campanha de Bill Clinton em 1992 – “It’s the
economy stupid!” – se poderá voltar a aplicar
com sucesso na resolução de uma questão
política, desta feita entre dois Estados1. E
se é verdade que a história é fundamental
quando a conhecemos, analisamos e aprendemos com as suas lições, o livro China –
Cooperação e Conflito na Questão de Taiwan tende
a levar-nos a reflectir na ideia de que a
RPC terá olhado para o seu passado e
retirado aprendizagens relevantes no que
respeita à resolução de questões políticas...
A leitura deste trabalho projecta-nos para
uma perspectiva nova do tema, colocando
a forte dependência económica que China e
Taiwan têm consolidado no centro da leitura
política do facto histórico por resolver do
retorno de Taiwan a soberania chinesa.
A abordagem ao tema da China e dos
equilíbrios de Cooperação e Conflito na
resolução da Questão de Taiwan é feita em
quatro capítulos distintos e estruturantes. O
contexto do tema é dado pela perspectiva
histórica da Questão de Taiwan no
sistema internacional e as actuais forças
motrizes da relação entre os dois Estados
são perspectivadas no capítulo sobre as
relações económicas entre Taiwan e a RPC
James Carville, estratega da campanha política de Bill Clinton à Presidência dos EUA em 1992, é considerado o
responsável pela fama desta expressão, usada para explicar que o candidato democrata seria melhor escolha
que o seu concorrente republicano George H. W. Bush. Ainda que George W. Bush fosse considerado
imbatível em questões de política externa, a campanha democrata pretendeu demonstrar que não são
apenas as questões políticas que sustentam a força de uma grande nação, sendo que os EUA em recessão
económica não teriam, com toda a certeza, alcançado os mesmos sucessos internacionais. Recordamos
que esta campanha política decorreu no contexto de grande popularidade do Presidente George W. Bush
pela 1.ª invasão do Iraque em Março de 1991, ano em que os EUA sofreram uma das mais fortes recessões
económicas do pós-2.ª Guerra Mundial.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 304-307
305
China – cooperação e conflito na questão de Taiwan
Resultado de um trabalho de investigação académica que se materializou
em Dissertação de Mestrado, a obra tem
o dom de agregar o espírito da escrita
jornalística do autor com as suas sólidas
reflexões intelectuais enquanto politólogo e
internacionalista. Ao longo de mais de 200
páginas de escrita fluída e inovadora sobre o
tema, Luís Cunha aborda a questão de Taiwan
nos seus prismas de «relação interna» entre a
República da China e a RPC, e considerando,
em simultâneo, os paradoxos da análise do
tema no contexto das relações de poder do
sistema internacional (e suas consequências
num contexto dominado por uma RPC em
sólida ascenção para discussão do lugar de
prima potentia do sistema).
O autor preocupa -se ainda em
enquadrar a sua hipótese de trabalho no
contexto de uma das mais interessantes,
ciclícas e permanentes dicotomias do sistema
internacional – a primazia das relações
políticas entre estados versus a relevância
dos laços económicos e ponderação de
equilíbrios na dependência entre soberanias
criada por estes laços, em cada momento de
vida do sistema.
A investigação que esteve na origem
da presente obra prova que o fatídico
China – cooperação e conflito na questão de Taiwan
306
e interdepedência que se tem gerado em
torno dos crescentes contactos directos entre
as duas soberanias. Discute-se num terceiro
momento o elemento do nacionalismo em
ambas as realidades sociais e a sua relação
com as clivagens ideológicas que afastam a
RPC e a República da China desde 1949. A
obra encerra com um capítulo fundamental
de discussão acerca do já famoso conceito
de soberania com características chinesas!
Para além da riqueza de discussão
intelectual que o livro encerra, importa ainda
referir a sua relevância enquanto fonte de
informação potencial muito completa. Com
efeito, o autor recorre a uma incomparável
bibliografia e webgrafia, com referências
e autores de todas as nacionalidades e
quadrantes de conhecimento.
Do ponto de vista pedagógico e intelectual, importa-nos aqui referir dois elementos fundamentais a destacar nesta obra:
1. A abordagem à temática do
nacionalismo enquanto ideia política
dominante na vivência quotidiana da
soberania da República Popular da China
e na sólida argumentação usada por Taiwan
internacionalmente para se defender de um
regresso à autoridade de Pequim. Destacamos
sobretudo o facto de a reflexão em torno
do nacionalismo chinês nos fazer recordar
Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray,
quando afirmava “De que serve um homem
conquistar o mundo e perder a própria
2
alma?”. Luís Cunha recorda-nos sempre e
em cada momento que a RPC pode estar em
posição de conquistar o mundo, mas não
esquece que a alma do Estado está incompleta
pelo menos há século e meio quando a
intervenção externa de outros poderes deu
origem a partições do seu nacionalismo. A
Questão de Taiwan é o último reduto deste
afastamento que a Grande China pretende
ver resolvida até meados do século XXI2.
2. As reflexões em torno do conceito
de soberania com características chinesas que nos
direccionam, enquanto estudiosos do
conceito de Estado e poder na sua vertente
interna e externa, a olhar para a sólida
evolução que a RPC sofreu neste contexto
nos últimos 30 anos. O poder político chinês
parece ter evoluído para um comportamento
que assegure o cumprimento de um dos seus
mais antigos provérbios: A ordem movimenta-se
devagar, mas com segurança. A desordem vai sempre
apressada. A Questão de Taiwan será resolvida
com uma paciência de chinês, no contexto
de uma evolução significativa do conceito
de soberania na RPC, fundamentada numa
ordem que é sustentada no sucesso da
soberania com características chinesas! Por outro
lado, a Questão de Taiwan – que tende
a ser analisada como única no contexto
internacional – não pode deixar de ser vista
à luz dos tão actuais conceitos de Estado de
facto e Estado-ficção, ainda recentemente
trazidos a lume pela problemática da
Na mesma ordem de ideias, recordamos que os acordos de transferência de soberania de Hong Kong e Macau
que a RPC assinou, respectivamente, com o Reino Unido e Portugal, prevêm períodos de transição dos
modelos políticos em ambas as Regiões Administrativas Especiais até 2049, sob o signo do conceito “Um
país, dois sistemas”.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 304-307
3
UTL há já muitos anos, o fundamental é
perceber o que se encontra por detrás da
primeira evidência.
Tendo assimilado de forma exímia
esta máxima da aprendizagem Iscpiana, o
Luís Cunha não deixou de nos surpreender
com a sua capacidade de análise sobre as
múltiplas perspectivas do poder de um
Estado na sua relação internacional, na
humildade de quem – tendo vivido 14 anos
em Macau – acredita ser alguém que não
sabe da RPC o suficiente para escrever um
livro sobre aquela soberania...NE
Entre outros poderemos referir a abertura da China ao mundo e as reformas económicas iniciadas em 1978 que
são a base dos sucessos actuais daquele Estado enquanto potência económica.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 304-307
307
China – cooperação e conflito na questão de Taiwan
independência do Kosovo. Ao analisar a
ideia de soberania com características chinesas e
o princípio de Uma Só China, Luís Cunha
recorda aos teóricos e académicos que,
na prática, o olhar sobre a soberania de
facto de um Estado não pode apenas ser
orientado para a sua capacidade económica
de sobrevivência...
Assinalando-se em 2008-2009 alguns
marcos históricos de relevância para a RPC3,
esta obra será uma importante abordagem
nacional a um dos principais desafios
que este Estado enfrenta nos nossos dias.
Por outro lado, não podemos deixar de
mencionar que se assinalam também neste
período os 30 anos do restabelecimento das
relações diplomáticas entre Portugal e a RPC.
A obra que Luís Cunha nos trouxe neste
momento de relevância assume um interesse
ainda maior para investigadores, políticos e
diplomatas, estudantes ou simples leitores,
como fundamento para compreensão de
parte dos muitos mistérios que aquele país
parece encerrar!
Por último, enquanto amiga e
admiradora, recomendo vivamente a leitura
desta obra. As longas conversas que tive
oportunidade de ter com o Luís sobre o
livro apenas me abriram o apetite para
muitas e diferentes leituras. Enquanto
docente regresso inúmeras vezes a esta obra
para recordar (a mim e aos meus alunos)
que nenhum facto ligado ao poder de um
Estado tem apenas uma explicação e que,
como me ensinou um docente do ISCSP –
Nuno Wahnon Martins*
Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story
308
INSIDE
THE JIHAD – MY LIFE
WITH AL-QAEDA, A SPY’S
STORY
de Omar Nasiri
Editora: Basic Books
“DEATH COMES TO all, but for him [the
Jihadist] there is martyrdom. He will
proceed to the Garden, while his conquerors
go to the Fire.”
Sayyd Qutb
Os atentados ocorridos no dia 11 de
Setembro de 2001 criaram uma interrogação
na população ocidental: Porque é que eles
*
Research Fellow no Le Cercle.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312
nos odeiam? A resposta comum é a ideia
de que nós, o mundo ocidental, não só
nos metemos nos assuntos internos dos
países muçulmanos bem como humilhamos
constantemente as populações desses
mesmos países. Esta resposta é aceite, quer
dentro do mundo muçulmano, quer dentro
de alguns meios ocidentais. Contudo, ela é
perigosa porque condena a maturidade dos
países muçulmanos, não deixando lugar à
progressão política nessas sociedades.
Em Inside the Jihad encontramos um relato
que nos dá algumas pistas para entendermos
o modo de pensar e de funcionar dos
fundamentalistas muçulmanos (doravante
islamitas). A narrativa contém ainda um
misto de romantismo, ficção e ingenuidade.
O seu autor, Omar Nasiri (nome fictício),
vive no dilema de poder conciliar a sua
convicção religiosa, o acreditar nos preceitos
religiosos do Islão, com o seu modo de vida
ocidental e, em simultâneo, tentar “salvar o
Islão dos seus excessos e inovações.”
Este é um livro que tem como subtítulo,
“A Spy’s Story” e, na verdade, pretende ser
um relato das experiências de alguém que
decidiu ser espião. Essa decisão não foi
tomada por mero acaso, mas por iniciativa
própria e o seu relato, enquanto ficção,
O lado político da obra oferece-nos
uma perspectiva diferente. Ajuda-nos a
compreender as lutas políticas dentro do
mundo muçulmano, as fraquezas do mundo
ocidental, sobretudo no que respeita aos
serviços de inteligência e como o sentimento
Jihadista é verdadeiramente global.
O leitor colocará ao longo do livro
a pergunta sobre qual o significado da
Jihad. Não havendo uma resposta definitiva,
acabamos por perceber que o autor
não define o seu significado, bem pelo
contrário, atribui sim diversos sentidos que
se distinguem consoante o contexto ou
a conotação. O relato acaba por reforçar
a tese de que o que interessa no Islão é a
interpretação do Alcorão. Assim, a Jihad pode
então ter vários significados, que se formam
independentemente do contexto onde se
encontram. Nesta recensão Jihad significa a
luta dos islamitas contra o mundo moderno
e a sua vontade em introduzir um califado
mundial. Este problema de interpretação
acaba por abrir todas as possibilidades na
utilização de um discurso político-religioso.
Sobretudo para os mais radicais, que
consideram como traidores aos princípios
do Islão, todos aqueles cuja mente tenha
sido modificada pelo Ocidente.
O único conceito inerente a todos
os discursos é o de Oumma ou, por outras
palavras, o da comunidade de muçulmanos
para lá de qualquer nacionalidade. Este
conceito explica por um lado, a Jihad global,
ou seja, a união dos muçulmanos islamitas
na promoção da implementação de um
califado em terras do Islão e, por outro, a
inclusão de todo o tipo de muçulmanos
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312
309
Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story
tenta ser fiel ao género literário dos contos
de espionagem. Como nos livros de Ian
Fleming, a personagem principal é cativante,
inteligente, esperta, desembaraçada e,
extraordinariamente, sortuda. A questão da
veracidade da descrição acompanha o leitor
em alguns momentos do livro. Obviamente
que o optimismo da narrativa traz uma certa
panache à narrativa, tornando o narrador num
herói. Mas na vida real o herói não tem
sete vidas! Daí que, e sem tirar o mérito à
sua coragem, parece-nos que haverá algum
excesso de confiança do autor.
Por outro lado, os relatos geográficos são
fabulosos. A história começa em Bruxelas, mas
desenrola-se em locais tão distintos como o
Senegal, a Turquia ou o Afeganistão. O que
mais atrai a atenção do leitor é precisamente
o período em que o narrador vai para o
Paquistão e daí para um campo de treinos no
Afeganistão. Do ponto de vista do relato
histórico-geográfico, as descrições são
exemplares. O relato da Khyber Pass leva-nos ao
mundo do século XIX aquando das Guerras
Anglo-Afegãs e sendo certo que esses territórios pouco mudaram desde então, então
basta utilizar a nossa imaginação e substituir
os personagens e a história é quase a mesma.
Neste canto do mundo o modus vivendi das
populações continua a ser, no mínimo,
exótico. O detalhe da descrição dos campos
de treino é importante para conhecermos o
dia-a-dia na vida de um potencial terrorista. O
autor foca ainda a preparação psicológica dos
voluntários. Esta é essencial no caso de captura
e demonstra igualmente a importância da
ideologia, ou melhor, como esta esvazia a
mente humana de tudo o resto.
Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story
310
nesse significado, considerando os islamitas
e os não crentes em pé de igualdade. A
Oumma pode ser ainda considerada de forma
distinta: uma conceptual, relacionando todos
os fiéis muçulmanos que se designem como
tal, e outra imaginativa, todos aqueles que
podem ser, em potência muçulmanos. Daí
que a deserção ao Islão tenha consequências
nefastas, já que todo aquele que deixa
de ser muçulmano, acaba por deixar, na
verdade, a Oumma. Este é um conceito que
acompanha todo o livro e permite explicar
simplisticamente dois factos: (i) o medo
que os fiéis muçulmanos têm em trair
os seus pares e, consequentemente, (ii) a
dificuldade que os serviços de espionagem
ocidentais têm em arranjar espiões dispostos
a fornecer informações sobre os meios
terroristas.
Podemos ainda considerar duas visões
distintas na forma de abordar os interesses
nacionais com os interesses globais dentro
da Oumma. Para o mundo ocidental, e
para a maioria dos governos dos países
muçulmanos, a política externa é considerada
como a prossecução dos interesses internos.
Para os islamitas, pelo contrário, a política
externa tem como objectivo a realização de
um califado à escala global. Os interesses
nacionais, neste caso, não se podem sobrepor
aos interesses de um Islão transnacional.
Por isso, podemos distinguir dois tipos de
atitudes ao longo do livro. No que respeita
aos membros dos serviços de inteligência
britânicos, franceses ou marroquinos, a sua
maior preocupação é a não realização de
atentados dentro dos seus respectivos países.
Mesmo que haja uma colaboração entre
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312
os vários serviços, esta tem sempre como
fim último o impedimento de possíveis
atentados dentro da esfera nacional. Mas
para o Islamista os diversos campos de
batalha têm como objectivo o de promover
a união entre todos os países muçulmanos e,
em ultima instância, trabalhar em conjunto
para o, acima referido, califado. Em resumo,
enquanto que a Jihad global é precisamente
uma ameaça para todo o mundo, os serviços
secretos nacionais viam nessa ameaça um
perigo para a segurança nacional. Ora, estas
atitudes consubstanciadas em premissas
diferentes, apenas beneficiaram o terrorismo
global e, em consequência, fragilizaram as
seguranças internas dos países ocidentais
porque não se souberam adaptar para a
ameaça global.
A Jihad global é, simultaneamente, uma
característica da modernidade e uma ameaça
à própria modernidade. No primeiro caso
porque os seus ideólogos estudaram no
Ocidente, como Saayd Qutb, ou os seus
agentes são muitas vezes ocidentais que se
converteram ao Islão, assimilando o discurso
niilista dos islamitas. Por outro lado, a
Jihad global é um conceito que ameaça a
modernidade no sentido em que pretende o
derrube do modo de vida contemporâneo.
Tudo é resumido na submissão ao Islão e
todos os conceitos sociológicos e políticos
só fazem sentido, para os islamitas,
enquanto ligados à teologia muçulmana.
Aqui podemos verificar como Omar Nasiri é
um muçulmano que adquiriu características
ocidentais no seu modo de pensar. O autor
não se submete ao Islão, tout court, mas
oferece-lhe luta e argumenta contra alguns
daquelas, em vez de servir para desenvolver
as suas populações, tem sido utilizado sim
para o aumento das riquezas pessoais de
uma pequena minoria e para apoiar a prática
de ataques terroristas. Os recursos naturais
não têm sido capitalizados para desenvolver
a sociedade civil daí que o autor se sinta
“irritado” com a necessidade de aquisição
de meios fornecidos pelo Ocidente para
poder realizar quase tudo. Contudo, parece-nos que este facto deveria dar força ao
autor para criticar ainda mais a fundo o
que está a acontecer um pouco por todo o
mundo Islâmico.
Por último, não podemos deixar de
mencionar que Omar Nasiri conheceu e
privou com algumas das personagens que
vieram mais tarde a tornar-se, tristemente,
famosas. Falamos de Ali Touchent, a cabeça
do GIA e que ainda hoje não se sabe se
se encontra morto ou vivo e Abu Hamza,
o famoso imã, com a mão de gancho, da
Mesquita Londrina de Finsbury Park. Estas
duas sinistras personagens estarão por trás
de vários atentados terroristas um pouco
por todo o mundo. A descrição feita por
Nasiri a respeito do líder religioso Londrino
é interessante, pois o autor mostra-nos uma
pessoa pouco inteligente e que se move
por interesses pessoais, mas que acaba por
influenciar os seus ouvintes.
Inside Jihad é um livro que se lê facilmente
e que demonstra o modo do funcionamento
prático das células terroristas e as razões por
que estas cativam os seus adeptos por todo
o espectro muçulmano. A descrição dos
espaços públicos muçulmanos no Ocidente
é sintomática da propagação internacional
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312
311
Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story
preceitos específicos da teologia islâmica.
Um exemplo disso é o facto de o autor
apreciar “um bom vinho,” ou seja, ao
oferecer ao leitor esta opinião pessoal, Omar
Nasiri sai da tradicional submissão Islâmica
para com o Corão. A submissão, ao contrário
das outras religiões monoteístas, é um
elemento primordial na religião muçulmana.
Tomando como exemplo o episódio bíblico
sobre o sacrifício de Isaac, Abraão, e de
acordo com a tradição muçulmana, aceitou
livremente a ordem divina para que matasse
Isaac. O mesmo não se passa nas outras
religiões do Livro, já que nestas, ele segue
contrariado a ordem divina de sacrifício do
seu filho. Este é um elemento essencial para
perceber a disposição terrorista, bem como
para distinguir as três religiões monoteístas.
Um outro elemento a reter no discurso
de Omar Nasiri é o facto de considerar
que os países muçulmanos dependem do
Ocidente para prosseguir com qualquer
dos seus fins. Através de um episódio em
que os terroristas adquirem Uzis (armas
de fabrico Israelita) para procederem a um
ataque propagado pelo GIA (Grupo Islâmico
de Salvação), grupo terrorista argelino, em
Argel, leva o autor a concluir que a utilização
de meios ocidentais é uma triste necessidade
que faz com que “o moderno Islão viva
numa concha.” Para nós isto constitui um
paradoxo do Islão e dos grupos terroristas.
Se o que os aflige é a modernidade, então a
utilização de meios modernos para atingir
os seus fins é uma contradição dos próprios
termos. Na verdade, apesar de todas as
riquezas naturais existentes nos países
árabes, o dinheiro capitalizado pela venda
Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story
312
dos elementos radicais. Torna-se assim difícil
encontrar neste contexto os denominados
“moderados” do Islão.
O nível do detalhe na crítica aos
islamitas é importante para perceber o modo
de funcionamento dos terroristas. Contudo,
se o leitor estiver à espera de encontrar
alguém que vai criticar o Islão ou colocar
em causa o terrorismo internacional, então
sairá frustrado. O autor procura sim ver nos
islamitas um grupo que está a denegrir a
imagem do verdadeiro Islão, contudo, ele
não deixa de ver no Ocidente uma entidade
arrogante e imperialista, sem necessitar
de distinguir os países uns dos outros,
que humilha sistematicamente o mundo
muçulmano.
Omar Nasiri oferece-nos um bom
livro de espionagem, juntando elementos
importantes para perceber o que antecedeu
os atentados de 11 de Setembro de 2001.
Mas para quem vê nas palavras de Qutb
“uma linguagem que faz sentido” é porque
não está a ser demasiado coerente com a
crítica ao Islão radical ou então está a ser
demasiado ingénuo!NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312
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José Segismundo de Saldanha*
■ Relação da Embaixada e Entrada Pública que deu nesta Corte o Conde de
Valdstein, Embaixador Extraordinário da Alemanha, ao Senhor Rei D. Pedro II,
escrita pelo Conde de Assumar D. João de Almeida vedor da Casa Real que por
ordem de El-Rei lhe fez a hospedagem
DEPOIS DA FELIZ aclamação do Senhor Rei D. João IV de gloriosa memória e da prisão
que o Imperador Fernando [....] fez ao Senhor Infante D. Duarte, o qual o entregou
depois a El-Rei de Castela Filipe IV, que o mandou meter no Castelo de Milão
adonde ultimamente morreu, nunca mais este reino teve trato com o Império, nem
depois do Tratado das pazes que El-Rei D. Pedro II, sendo Príncipe Regente fez com
a monarquia de Espanha, se mandaram Embaixadores de uma a outra corte e como
eram poucos os interesses que entre eles havia, ficou suspenso o comércio até o
ano de 1687, em que S. Majestade mandou à Corte de Heidelberg o Conde de Vilar
Maior, Manuel Telles da Sylva, depois Marquês de Alegrete, por seu Embaixador
Extraordinário, para tratar e concluir o segundo matrimónio com a princesa Maria
Sofia de Neubourg, filha segunda do Duque de Neubourg Conde Palatino do Reno
Filipe Guilherme, Eleitor do Sacro Império. E como este Príncipe havia dado sua filha
primogénita ao Imperador Leopoldo I, que com esta aliança ficava sendo cunhado
de El-Rei Nosso Senhor, desejou muito que assim como ficavam unidos pelo sangue
o fossem também na amizade e para esse efeito procurou com repetidas diligências
persuadir ao nosso Embaixador o grande desejo que o Imperador tinha de ver um
Ministro de Portugal na Corte de Viena, segurando que se S. Majestade se resolvesse
a mandá-lo se lhe faria todo o bom tratamento e as mesmas honras e prerrogativas
que se costumavam conceder ao Embaixador de Espanha.
*
Doutor em História, investigador.
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323
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Chegando o Marquês de Alegrete neste Reino e referindo a S. Majestade toda a
série da sua Embaixada, lhe fez presente as diligências que com ele havia feito o
Eleitor Palatino sobre S. Majestade mandar um Embaixador a Viena. E como lhe
pedira que de sua parte lhe rogasse segurando-lhe o grande gosto e contentamento
que disso poderia receber, a isto se seguiram as repetidas instâncias da Rainha nossa
Senhora que ou por comprazer ao pai ou à irmã ou por desejo particular que tivesse
desta nossa [....], depois que chegou a esta corte não cessou de persuadir a El-Rei
seu marido, a que mandasse um Embaixador ao Império. E foram tão poderosas as
suas instâncias que ultimamente se resolveu S. Majestade no ano de 1696 a nomear
por Embaixador Extraordinário ao Imperador ao Príncipe Senescal de Ligne, Marquês
de Arronches, que sendo filho terceiro de sua Casa havia vindo da Flandres a casar
com a neta herdeira de Henrique de Sousa, Marquês de Arronches, filha de Diogo
Lopes de Sousa, Conde de Miranda, o qual, partindo desta Corte em Novembro do
mesmo ano se deteve em Paris alguns meses a fazer as suas librés e equipagens com
toda a grandeza e luzimento que era possível. E tanto que as teve prontas se pôs a
caminho para Viena a donde, depois de estar alguns tempos, fez a sua entrada pública
com toda aquela pompa e magnificência que é possível, entregando ao Imperador a
carta de crença que de S. Majestade levava e à Imperatriz a da Rainha nossa Senhora,
em que lhe significava o gosto que tinha de ver outra vez unidas em boa
correspondência as duas Coroas, a Imperial e a Portuguesa.
Passado algum tempo, entendendo o Imperador, que era razão mostrar a El-Rei
nosso Senhor a grande estimação que fazia da sua pessoa, do seu parentesco e da
sua amizade, nomeou por Embaixador Extraordinário a este Reino o Bispo de
Passovia, hoje Cardeal Lambert, Príncipe do Sacro Império, para que da sua parte
viesse representar a El-Rei a grande satisfação que tinha de ver de todo extintas as
antigas inimizades e estabelecida outra vez a boa correspondência entre as duas
coroas. Porém sendo-lhe depois preciso valer-se da pessoa e talentos do dito Bispo
na Dieta geral que se fazia na Polónia sobre a eleição do novo Rei em que o Império
tinha tantos interesses e dando-lhe fim à sua negociação com a eleição que fez do
Duque da Saxónia, que era o mesmo que o Imperador queria o ocupou novamente
fazendo-o Presidente da Dieta de Ratisbona em que os círculos e mais Príncipes do
Império se juntavam para regular as dependências do novo eleitorado que
novamente se havia regido na pessoa do Duque de Hanover. E como esta ocupação
lhe retardava o poder vir a Portugal, o dispensou desta jornada, nomeando em seu
lugar ao Conde de Waldstein, cavaleiro do Tozão de Ouro, do Conselho de Estado
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323
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do Imperador, gentil homem da Câmara de El-Rei dos Romanos e filho do seu
Camareiro-Mor e do Conselho do Gabinete, o qual separando-se de sua mulher em
Paris, a donde também esteve dispondo as suas equipagens para vir por terra a
Madrid, donde tinha alguns negócios, a mandou por mar em um navio com a
maior parte do seu fato.
Logo que ela aqui chegou, lhe mandou S. Majestade falúas para desembarcar
para as casa do Visconde de Asseca que lhe tinham tomado e ele mandou dar a boa
vinda por D. Manuel de Azevedo, Tenente General da Cavalaria da Província da
Estremadura, e poucos dias depois chegou pela posta a Aldeia Galega o Conde seu
marido. E fazendo aviso que ali ficava, se lhe mandaram as faluas e mais embarcações
que se costumam para o transportarem a esta Corte. E chegando à praia do Cais do
Carvão, donde desembarcou, o estava esperando o Conde de Monsanto D. Manuel de
Castro, filho primogénito do Marquês de Cascais, nos coches de S. Majestade para o
conduzir a sua casa. E depois de entrados no coche, dando-lhe o Conde sempre ao
Embaixador a mão direita na cadeira de trás, e de ele dar a boa vinda da parte de S.
Majestade, falando-lhe por Excelência lhe respondeu o Embaixador por Senhoria e o
Conde lhe tornou a falar por Senhoria também, e assim foram continuando até que
o Conde o pôs em casa. E queixando-se o Embaixador do tratamento que o Conde
lhe havia dado, lhe respondeu S. Majestade que os Condes de Portugal não davam
Excelência senão a quem lha tomava, e o Embaixador se satisfez e deu várias escusas
de que não sabia este estilo e que perguntando em Aldeia Galega ao Juíz de Fora e
depois a Marco António, o tratamento que os Condes tinham em Portugal, lhe
haviam dito ambos, que era de Senhoria. Porém que ele não duvidava em lhe dar
Excelência e assim o praticou com todos dali por diante.
Foi o Embaixador dispondo os aprestos para a sua entrada pública e antes de os
ter de todo findo, faleceu em Madrid ao 1.º de Novembro El-Rei de Castela Carlos II
e como tinha tanta aliança com o Imperador seu amo, por ser da mesma Casa, suspendeu as prevenções que tinha feito e ia fazendo até avisar Viena, para saber se havia
de fazer a sua entrada de luto ou de gala. Tardou algum tempo a resposta, até que
El-Rei nosso Senhor partiu para Salvaterra com toda a família Real em 19 de Janeiro
deste presente ano de 1701, com motivo de preservar a seus filhos de uma epidemia
de bexigas que havia em Lisboa, e como elas fossem continuando durou a detença
de S. Majestade em Salvaterra até 2 de Maio, dia em que se restituiu a esta Corte.
Pouco depois pediu o Embaixador audiência pública que se lhe retardou alguns dias
por se achar S. Majestade ocupado com a Aliança que fazia com as Duas Coroas de
Cadernos de Arquivo
318
França e Espanha, e logo que o Tratado se concluiu e ratificou, mandou S. Majestade
dizer ao Embaixador que podia fazer a sua entrada e ter a grande audiência de
cerimónia em Quarta-feira 13 de Julho, e em 25 de Junho me mandou encarregar a
hospedagem deste Embaixador, por um escrito do Secretário de Estado Mendo Foyos
Pereira, em que me dizia o que adiante se verá na cópia dele, ao qual avisei o que
contém a minha resposta que também se segue; e mandando S. Majestade consideradas as razões que nela apontava para me haver de escusar de assistir a esta função sem
um embargo delas, foi servido resolver que eu tomasse por minha conta, como
consta dos dois escritos do Secretário de Estado que ao diante vão trasladados, os
quais recebidos, avisei logo ao escrivão da cozinha António Rebelo da Fonseca que
mandasse fazer prestes tudo o necessário para esta função e passei a ver das casas
de Manuel Lobo da Silva, a Santa Apolónia que estavam escolhidas, e não achando
nelas toda a capacidade necessária por ter uma sala muito pequena e incapaz de nela
se pôr um aparador, mandei fazer diligências por outras casas. E vendo-se as do
Conde da Ponte, se não achavam nelas as oficinas necessárias nem tão pouco na
Quinta de D. João de Sousa a S. Bento, nem na do Duque de Cadaval em Palhavã;
por ser pouco o tempo para se fazerem nelas as obras necessárias, foi preciso
acomodar as que estavam escolhidas, por não se acharem outras capazes. Mandei
logo aos mestres das obras do Paço que lhe fizessem os repartimentos que fossem
precisos com a maior brevidade e a João de Leiros, guarda das tapeçarias e adereços
do Paço, ordenei que as ornasse com toda aquela decência que era costume. O que
ele fez, pondo na sala um docel de tela branca com sanefas de tela carmesim e no
rescaldo do docel guarnição do mesmo com cortinas de damasco carmesim.
Debaixo do docel estava um grande aparador com quatro degraus todos cheios de
excelente prata dourada de Bastiões e de Alemanha que chegava quase ao tecto da
casa em que estavam vários vasos de diferentes sortes e algumas figuras de animais
excelentemente feitas. A casa toda estava rodeada de mesas em que se costumam pôr
as iguarias que vêm da cozinha e os triunfos e mais ornatos que se tiram da mesa
em que o Embaixador come. Para dentro se seguia uma saleta pequena com sanefas
de veludo lavrado carmesim e franjas de ouro e cortinas de damasco e com bancos
de encosto para sentarem os criados do Embaixador. A esta se seguia uma casa
grande em que o Embaixador havia de comer, com docel e sanefas nas portas e
janelas de veludo lavrado carmesim com franjas de ouro, cadeiras e panos de bufete
do mesmo. Mais para dentro estava outra casa de bastante grandeza com docel de
damasco de ouro muito rico, sanefas, cadeiras e panos de bufete do mesmo,
NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323
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também com franjas de ouro e cortinas de damasco carmesim. Mais para dentro
estava a câmara em que o Embaixador havia de dormir, na qual estava armado um
leito de ébano e paramentos de damasco verde de ouro mui rico, com boas franjas
do mesmo e as sanefas e cadeiras e panos de bufete do mesmo. Muitas outras casas
estavam também adereçadas com cortinas, sanefas, bufetes e leitos, com vários paramentos para nelas comerem e dormirem os seus gentis-homens e pajens e mais
família que era tão numerosa como adiante se referirá na ordem das mesas. E
porque o Embaixador representou ao Secretário de Estado, que teria mais comodidade em fazer a entrada pública de sua casa a respeito das suas carruagens e
família, que teria grande discómodo em vir de tão longe, me avisou o Secretário da
parte de S. Majestade o que contém o escrito abaixo, e em virtude dele, mandei que
os aprestos que estavam feitos para começarem a hospedagem por ceia se mudassem
para jantar.
Em Domingo 10 de Junho vieram à minha porta quatro coches da família de S.
Majestade em que havia de vir a família do Embaixador e o seu de Respeito em que
eu o havia de conduzir. Meti-me nele pelas nove horas da manhã, levando atrás de
mim um coche com seis gentis-homens e dez lacaios vestidos de pano alvadio com
ferros e bocais nas mangas de pano azul ferrete. Os quatro coches da família iam
diante, logo seguia o em que eu ia e em último lugar o dos meus criados. Assim fui
pela Cruz de Pau, Calçada do Combro, Poço dos Negros, Esperança, até chegar a casa
do Visconde de Asseca, de fronte dos Marianos. Chegando à porta achei nela todos
os gentis-homens do Embaixador e pedindo-lhes que o avisassem de que eu ali
estava, me disseram que podia subir. Apeei-me do coche acompanhado de todos os
seus criados e dos meus e no último lanço da escada junto à lógia achei o Embaixador
que tanto que me viu desceu o último degrau e caminhou para mim, que ainda
estava a poucos passos do coche. Ali me fez logo o seu cumprimento, dando-me
sempre a mão e a porta. Passámos por quatro casas nobres e ricamente adereçadas
com docéis, cadeiras, bufetes e espelhos, tudo muito rico e de bom gosto. Na última
casa em que parámos, me deu a melhor cadeira e eu em me sentando lhe disse que
S. Majestade me havia dado a comissão de o levar para a casa em que mandava
hospedá-lo e que eu lhe havia beijado a mão por esta missão de que fazia a maior
estimação por ter o gosto de poder assistir-lhe e o oferecer-me a seu serviço com
outras semelhantes razões. Ele me respondeu por Excelência, dizendo que ao
Secretário de Estado havia já representado que da sua parte quisesse fazer presente a
El-Rei o quanto se achava agradecido a S. Majestade por me haver nomeado a mim
Cadernos de Arquivo
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para esta função e a grande estimação que fazia da minha pessoa e com muitos
outros cumprimentos. E logo mandou que trouxessem chocolate e entretanto
estivemos conversando em várias coisas até que vieram seis pajens seus com vários
doces e água e depois com chocolates e biscoitos, que tomámos. E no mesmo tempo
se deram na antecâmara aos meus criados várias bebidas. Acabado isto, lhe disse que
tanto que S. Excelência achasse que era tempo que podíamos ir, que estava para lhe
obedecer. E logo nos levantámos e fomos para os coches, no qual entrou o
Embaixador por primeiro e lhe dei a mão direita na cadeira de trás em que também
me sentei com ele, e os seus criados se meteram nos coches da família de S. Majestade
que para isso haviam ido, e assim fomos caminhando pela Calçada do Combro,
Portas de Santa Catarina, Rua Nova de Almada, Rua Nova, Ribeira, Cais do Carvão,
Bica do Sapato, até às casas de Santa Apolónia a donde nos estavam esperando à porta
quarenta reposteiros, João de Leiros e um Moço da Câmara Francisco da Silveira e o
Escrivão da Cozinha António Rebelo da Fonseca.
Abriu o coche o meu estribeiro e nos apeámos, e ali pus logo o Embaixador à
minha mão direita e lhe fui dando as portas e quando chegámos à última casa que
era a câmara em que não havia docel, lhe dei a melhor cadeira e depois de estarmos
algum espaço de tempo me veio o moço da câmara perguntar se o Embaixador
queria ouvir missa e dizendo que sim, fomos para o oratório a donde estava posto
um banco coberto com um pano de damasco de ouro com sua almofada em cima e
outra em baixo, no qual nos pusemos a ouvir missa. E acabada ela voltámos para a
mesma câmara até que me deram recado de que estava pronto o comer.
Fomos para a mesa e antes de chegar a ela chegaram dois reposteiros com duas
salvas douradas em que o Embaixador e eu pusemos os nossos chapéus e logo
vieram outros com dois pratos e dois gomis também dourados, e apertando muito
comigo o Embaixador que lavasse primeiro, não aceitei e cada um de nós lavou as
mãos ao mesmo tempo e em seu prato diverso. Chegámos à mesa e dois reposteiros
nos chegaram também as cadeiras no mesmo tempo. A mesa teria trinta palmos de
comprido e largura ordinária. Estava muito vistosamente ornada com triunfos, várias
outras coisas que a faziam mui luzida. O Embaixador se sentou no topo da mesa e
eu logo na outra à sua mão direita.
Esta primeira coberta era de natas, manteigas, espumas e frutas do princípio,
seladas, presuntos, paios e línguas e tudo o mais que se costuma, muito bem
consertados com cidra e abóbora em que os copeiros tinham feito vários lavores
muito agradáveis. Depois que o Embaixador não quis mais desta primeira coberta
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que teria [....] pratos, pediu de beber e logo vieram dois reposteiros com duas salvas
douradas e em cada uma três garrafinhas de vidro cristalino e um copo. As duas, uma
de vinho tinto outra de branco e a terceira de água, as quais se puseram uma diante
do Embaixador, outra de mim, e brindando ele com vinho e água à saúde de
S. Majestade fiz eu a razão. Feito isto mandei levantar os triunfos e toda a primeira
coberta, ficando só na mesa os talheres dourados e os em que eu e o Embaixador
tínhamos o pão, garfo, colher e faca, e logo veio uma coberta de carnes com 24 pratos grandes e 12 pratinhos de diferentes e várias potagens feitas por diferentes sortes
de todas as castas de aves, e acepipes com que a mesa ficou toda cheia. Comeu o
Embaixador do que melhor lhe pareceu e fez vários brindes na mesma forma do
primeiro. E tanto que se me fez aceno de que na copa estava já pronta outra coberta,
mandei levantar a que estava na mesa e veio outra de assados do mesmo número de
pratos. Depois que o Embaixador não quis mais dela a mandei levantar e veio outra
de massas feita em diferentes tortas, pastelões e empadas com vários lavores, que as
faziam agradáveis não só ao gosto mas à vista.
Levantada esta coberta, outra de doces de toda a sorte assim secos como de
ovos, ornados os pratos em várias formas, todas muito agradáveis. O Embaixador
e eu comemos dos que mais gostámos e logo dois reposteiros nos trouxeram duas
salvas, cada uma com três púcaros, um de água de ginjas, outro de limão e outro
de água pura, todas nevadas, para que cada um bebesse da que mais gostasse. Feito
isto se levantou a coberta de doces e veio a última de frutas de toda a variedade
que o tempo permite, ornados os pratos todos com capelas e triunfos de flores que
faziam a mesa formosamente vistosa e depois que Embaixador não quis mais delas
se levantaram, ficando a última toalha. É de advertir que em todas as ocasiões que
se levantavam as cobertas se tiravam juntamente as toalhas e guardanapos e quando
se levantava a toalha ficava debaixo outra e vinham novos talheres com guardanapos,
facas e garfos da copa. Feito isto vieram para o Embaixador e para mim várias
águas geladas em tigelinhas de vidro cristalino em salvas douradas e em outras
pastilhas de boca e de cachundê, e depois que as tomámos, veio água às mãos que
lavámos como no princípio da mesa e dando-nos os chapéus que tínhamos no
princípio postos em salvas, nos levantámos da mesa e fomos para a câmara do
Embaixador com o qual me entretive um bastante espaço e depois dizendo que o
queria deixar descansar e não incomodá-lo, ele me veio acompanhar até o topo da
escada, e a sua família e a de S. Majestade que ali estava vieram até à minha carruagem.
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Acabada como fica referida a mesa do Embaixador, se entrou logo a servir as de sua
família, que eram quatro, a saber, a dos gentis homens que eram dezoito e em que se
lhes puseram por várias vezes [....] pratos, a dos pajens que eram dez, uma de ajudas da
câmara, porteiros e outras pessoas que por todas eram oito, em que se lhes puseram
[.....] pratos. A de quarenta lacaios em que houve [....] pratos. Todas elas foram servidas
pelos reposteiros no mesmo tempo sem que o comer de uma servisse para a outra, como
também não havia servido para nenhuma o que sobejou da mesa do Embaixador porque
se se reparte todo pelos reposteiros, assim como dela sai sem que torne à cozinha.
De tarde foi o Embaixador visitado pelo Presidente Rullié Embaixador de França
e pelo Residente do Marquês de Brandenbourg e outro do mesmo Príncipe que aqui
veio de Madrid para se embarcar para os seus Estados, aos quais mandei que se dessem vários doces e águas nevadas de todas as sortes e quando o Embaixador saiu,
mandei que o alumiassem com seis tochas que levaram seis reposteiros e quando me
pareceram horas, tornei para a casa da hospedagem a donde me estavam também
esperando outros seis reposteiros com seis tochas que me foram alumiando até à
casa donde estava o aparador, e a mais família me foi acompanhando até à casa de
dentro, donde o Embaixador me veio esperar e entrámos para a câmara a donde
estivemos conversando até que me vieram dizer que a ceia estava pronta e indo para
a mesa se fez na mesma forma que ao jantar.
No segundo dia se fez tudo na mesma forma que no primeiro, sendo sempre o
mesmo número das iguarias, porém diferentes todas, de sorte que a que uma vez
chegou a ir à mesa se não viu mais nela. Na tarde deste dia o foi visitar Monsenhor
Conty Arcebispo de Tarso, Núncio de Sua Santidade, a quem se fez o mesmo que ao
Embaixador de França e também foi o Residente de Holanda.
No terceiro dia houve os mesmos comeres com as mesmas cerimónias e nele
tornaram os Residentes de Brandenbourg a visitar o Embaixador e depois que acabou
de cear e toda a sua família, me vieram dar recado que estava tudo pronto, e assim
descemos pelas escadas abaixo acompanhados de todos os criados de S. Majestade e
dos do Embaixador e os meus, e nos mesmos coches de S. Majestade em que tinha
ido para a hospedagem o conduzi até sua casa que era do Visconde de Asseca de
fronte dos Padres Marianos a donde me apeei com ele e subi até ao seu quarto e
depois de vários cumprimentos me despedi. Ele me veio acompanhando até ao
coche e me viu partir e assim me recolhi para minha casa.
O dito Embaixador mandou dar várias quantias de dinheiro que se repartiram
pelos reposteiros, copeiros e cozinheiros que haviam assistido na hospedagem e ao
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ANTT, Miscelâneas Manuscritas n.º 1096, fol. 132V-139.
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Escrivão da Cozinha António Rebelo da Fonseca mandou dar uma jóia e ao Moço da
Câmara de S. Majestade e Guarde Reposta, outras.
No dia seguinte teve audiência pública de S. Majestade no salão do Forte a que
foi conduzido pelo Conde de Alvor, Francisco de Távora, do Conselho de Estado de
S. Majestade e foi a ela com cinco coches, duas liteiras, e grande número de gentis
homens, pajens e lacaios com uma boa libré e tudo com grande magnificência e
luzimento.NE
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LINHAS DE ORIENTAÇÃO
Os trabalhos devem ser inéditos e ter entre 10 a 30 páginas e deverão ser entregues no
Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, acompanhados dos seguintes
elementos:
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Quando os trabalhos incluírem materiais gráficos ou imagens, devem fazer-se acompanhar
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anónimo. Quando publicados, responsabilizarão apenas os seus autores. O envio de um
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– final version, ready to publish and duly revised for possible typing errors.
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following a peer-review system. The works, when published, will reflect exclusively the
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A energia do país passa por nós.
Fazer chegar a energia onde ela é necessária é uma das nossas missões. Sempre com consciência e preocupação
a nível social e ambiental e com altos critérios de qualidade e segurança. Por isso, a REN – Redes Energéticas
Nacionais – assegura um canal de transporte eficaz de toda a energia do país, seja ela de muito alta tensão
ou de alta pressão tendo em conta os elevados padrões de exigência do mercado. Porque é no futuro de todos
nós que dedicamos toda a nossa energia – Electricidade ou Gás - onde é preciso. Em todo o país.
www.itu.int
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www.ren.pt
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