NegóciosEstrangeiros Abril 2009 número 14 publicação semestral do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros Anton Bebler Carlos Alberto Damas Carlos Neves Ferreira Christian-Peter Hanelt Elsa Maria Dias Dinis Fauzia Nasreen Fernando A. de Figueiredo Filipe Ribeiro de Meneses Francisco Knopfli Francisco Proença Garcia Gonçalo Santa Clara Gomes João Sabido Costa Jorge Azevedo Correia José Carlos de Vasconcelos José Segismundo de Saldanha Leonardo Mathias Manuel Duarte de Jesus Marcello Vaultier Mathias Marina Eleftheriadou Meliha Benli Altunisik Nuno Caseiro Miguel Nuno Wahnon Martins Paulo Vizeu Pinheiro Pedro Catarino Rui Reininho Vasco Graça Moura Vicente Jorge Silva preço E10 J otujuvup ejqmpnujdp Revista NegóciosEstrangeiros N.º 14 Revista NegóciosEstrangeiros Publicação do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros Director Embaixador Carlos Neves Ferreira (Presidente do Instituto Diplomático) Directora Executiva Maria Madalena Requixa Design Gráfico Risco – Projectistas e Consultores de Design, S.A. Pré-impressão e Impressão Europress Tiragem 1000 exemplares Periodicidade Semestral Preço de capa €10 Anotação/ICS N.º de Depósito Legal 176965/02 ISSN 1645-1244 Edição Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) Rua das Necessidades, n.º 19 – 1350-218 Lisboa Tel. 351 21 393 20 40 – Fax 351 21 393 20 49 – e-mail: [email protected] Número 14 . Abril 2009 Índice 5 Nota do Director 9 After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East Christian-Peter Hanelt 18 The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism Marina Eleftheriadou 22 A situação actual no Cáucaso Paulo Vizeu Pinheiro 29 Turkey’s new activism in the Middle East Meliha Benli Altunisik 40 What to do about the Western Balkans? Anton Bebler 53 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia Marcello Vaultier Mathias 76 A nova polemologia Francisco Proença Garcia 112 Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? Nuno Gonçalo Caseiro Miguel 123 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Fernando Augusto de Figueiredo 177 Os pedidos de empréstimos do Estado às casas bancárias Sir Francis Baring & C.º e Henry Hope & C.ª (1797-1802) Carlos Alberto Damas 211 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil João Sabido Costa 232 Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio Francisco Knopfli 242 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião: três contributos para a fundamentação do liberalismo Jorge Azevedo Correia 264 Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, Embaixadora Fauzia Nasreen, por ocasião da assinatura do Protocolo de Cooperação entre o Instituto Diplomático e a Academia Fauzia Nasreen NOTAS DE LEITURA 275 Uma autobiografia disfarçada, de João Hall Themido Uma vida dedicada à Diplomacia por Leonardo Mathias 277 De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português, de Luís Esteves Fernandes Um livro sincero e corajoso por Pedro Catarino 282 Letra e música, de Paulo Castilho Compositora e Intérprete por Rui Reininho 285 Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki, de Marcello Duarte Mathias Algures no Mediterrâneo por Vasco Graça Moura 291 Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa, de Francisco Seixas da Costa Portugal/Brasil: compreender e agir por José Carlos de Vasconcelos 294 Todo-o terreno. 4 anos de reflexões, de Ana Gomes por Vicente Jorge Silva 296 António Feijó – diplomata, de Fernando de Castro Brandão por Manuel Duarte de Jesus 298 Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia, de Luís Soares de Oliveira por Filipe Ribeiro de Meneses 302 Teatro de sombras – Contos, de António Pinto da França Entre Ironia e Cumplicidade por Gonçalo Santa Clara Gomes 304 China – cooperação e conflito na questão de Taiwan, de Luís Cunha por Elsa Maria Dias Dinis 308 Inside the Jihad. My life with Al-Qaeda, a spy’s story, de Omar Nasiri por Nuno Wahnon Martins CADERNOS DE ARQUIVO 315 Relação da Embaixada e Entrada Pública que deu nesta Corte o Conde de Valdstein, Embaixador Extraordinário da Alemanha, ao Senhor Rei D. Pedro II, escrita pelo Conde de Assumar D. João de Almeida vedor da Casa Real que por ordem de El-Rei lhe fez a hospedagem José Segismundo de Saldanha Linhas de Orientação Os artigos reflectem apenas a opinião dos seus autores. Nota do Director COMO 5 SE SABE, mas convém sempre recordar, em revistas editadas por organismos oficiais os artigos de opinião publicados comprometem apenas os seus autores e não representam o ponto de vista oficial, oficioso ou mesmo diplomaticamente discreto, do Governo que tutela a entidade editora. Isso será tão mais verdade quanto mais polémicos possam ser os pontos de vista expressos. Pretender dar alguma vida e animação a uma publicação semestral é pois uma ambição frágil que só se for assente num módico de controvérsia pode adquirir alguma sustentabilidade. Há que fugir do politicamente correcto e das suas variantes oficiosas. É preciso evitar cair num sea of platitudes, para roubar uma expressão de Henry Kissinger, ouvida numa reunião da NATO nos anos 70, em que a procura obstinada do consenso transformava os textos a aprovar numa prosa inócua e esquiva. Não tem a NE um conselho de leitura, por cujo crivo passem os textos publicados. Quer isto dizer que a responsabilidade da sua escolha é integralmente do director da publicação, que se limitou a pedir a um ou outro especialista nas áreas cobertas pelos artigos uma simples opinião de sim ou não quanto ao mérito e à oportunidade da sua publicação. Não há pois qualquer diluição da responsabilidade pela via da sua transferência para um comité que assuma as escolhas que, sendo porventura polémicas, repousam depois na inocência e no anonimato das decisões colectivas. Dito isto, umas palavras sobre o conteúdo do presente número. Saíram em 2008 alguns livros cujos autores são membros da carreira diplomática. Cobrem vários géneros; memórias (embaixador João Hall Themido, Uma Autobiografia Disfarçada, e embaixador Luís Esteves Fernandes, De Pequim a Washington: Memórias de um Diplomata Português); ficção (embaixador Paulo Castilho, Letra e Música, embaixador Marcello Mathias, Encontro em Capri ou O Diário Italiano de Gorki e embaixador António Pinto da França, Teatro de sombras – Contos); compilações de intervenções públicas (embaixador Francisco Seixas da Costa, Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa e embaixadora Ana Gomes, Todo-o-Terereno – 4 anos de reflexões); ensaio biográfico, (embaixador Fernando de Castro Brandão, António Feijó, diplomata); estudos sobre a diplomacia portuguesa (embaixador Soares de Oliveira, Guerra Civil de Espanha: Intervenção e Não Intervenção Europeia). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 5-7 6 São publicadas, também, notas de leitura relativas a outros livros recentemente editados. Há que saudar com entusiasmo estas manifestações de veia literária: algumas que acompanharam a vida profissional dos seus autores, nasceram e maturaram ao longo dela (Marcello Mathias, Paulo Castilho, Pinto da França), outros, que esperaram a guilhotina legal que atira os diplomatas aos sessenta e cinco para a estranhamente denominada disponibilidade em serviço ou para a equívoca alacridade do estado de jubilação; outros, ainda, que traduzem uma vontade constante de intervenção na vida política nacional (Ana Gomes, Seixas da Costa); outros, finalmente, que se espera contribuam para um costume abandonado, o do memorialismo e do testemunho pessoal das causas e dos factos que preencheram vidas profissionais e que se conhecem de forma esparsa por mera tradição oral (Hall Themido, Esteves Fernandes). Por último, é de dar um merecido relevo aos estudos sobre aspectos concretos da vida diplomática nacional e internacional, como os do embaixador Soares de Oliveira e embaixador Castro Brandão, sobre a diplomacia portuguesa no quadro mais vasto da guerra de Espanha e a acção de um escritor-diplomata de prestígio como António Feijó. Os estudos, monografias e ensaios perderam motivação e impulso (irremediavelmente?) quando no sistema de progressão na carreira se optou pela facilidade em nome da equanimidade, e se abandonou a dissertação, prévia à promoção a conselheiro, até aí, obrigatória. Perdeu-se o hábito da análise aprofundada do caso concreto e da sua peer review. Perdeu-se, também, uma fonte sistemática para o registo da visão do país sobre questões determinadas, nacionais ou não, sobre as actuações seguidas, as escolhas feitas e as alternativas rejeitadas. Não foi fácil a selecção dos textos agora publicados. Procurou-se um equilíbrio entre as questões da actualidade com importância e algum relevo para Portugal, entre autores nacionais – diplomatas, civis, militares, académicos –, e estrangeiros que, gentilmente, nos cederam artigos inéditos ou deram a autorização para se reproduzirem textos já editados, porém em publicações de divulgação mais restrita. Um conjunto de notas de leitura acompanha a notícia dos livros editados em Portugal, da autoria de diplomatas de carreira. Muitos dos que acederam a elaborá-las não são do MNE ou com o Ministério terão tido uma NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 5-7 relação remota. Procuraram-se afinidades electivas temperadas com visão crítica, espera-se que isso tenha vindo ao de cima. Numa nova secção, a que se chamou “Cadernos de Arquivo”, passamos a transcrever documentos que são fontes para a História da Diplomacia, e que podem ser encontrados no Arquivo Histórico Diplomático, bem como noutros arquivos nacionais ou estrangeiros. Com esta nova secção espera-se suscitar interesses, despertar curiosidades e, até, estimular vocações científicas para a História da Diplomacia. Nestes Cadernos poderão publicar-se as transcrições de documentos que os leitores ou os investigadores desta área se disponham a enviar ao Arquivo Histórico Diplomático para esse efeito. Quando foi possível e pareceu justificar-se, os artigos publicados foram precedidos de um abstract em inglês. Por último, cumpre registar que este número foi possível porque se manteve a colaboração com a empresa ARED e com o seu director, Didier D’Arcy Dachez. O Presidente do Instituto Diplomático Carlos Neves Ferreira Embaixador NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 5-7 7 8 Christian-Peter Hanelt* After Gaza: a common dialogue platform for the 9 ■ Abstract: If one wants to have peace in the Middle East, one will have to persuade all of the actors to sit around a table and to talk about all of the conflicts. Secret negotiations are just as ineffectual as the exclusion of certain actors. Only a common platform for dialogue will enable the European Union and above all the U.S. to fulfil their peacemaking mission. ■ Key words: Middle East, Conflict-resolution, Europes role in the Middle East, Iran, Syria, USA. I – The Hamas-Israeli War THE WAR AGAINST Hamas has strengthened Israel directly in military terms, but has completely ruined its reputation in the Arab and Muslim world. The danger of Hamas rocket attacks may have been terminated for the time being, but in regional terms Israel’s security situation has not got any better. Can anyone still provide security in the Gaza Strip? The Palestinians are divided and without a legitimate leadership, and the situation seems hopeless and desolate in Gaza. The Annapolis negotiations between Israelis and Palestinians have not yet led to a two-state solution. The strategy which involves strengthening Fatah on the West Bank and isolating Hamas in the Gaza Strip has not worked. The political elites continue to fight shy of an open and honest dialogue with their citizens. Although they are fully aware of the basic facts of a solution to the conflict between Israel and Palestine, they continue to steer clear of spelling out the compromises that will have to be made. Trust in others has reached its nadir. Each side has its own media and perceptions. The Arabs watch Al Jazeera, the Israelis watch Channel 2, the Americans watch Fox News, and the Europeans watch the BBC. The conflict has generated a great deal of emotional turmoil, as the worldwide pro-Israeli and pro-Palestinian demonstrations have shown. Apart from demonstrations in European capitals, hundreds of people took * Senior Expert, Program Europe’s Future, Bertelsmann Foundation. Bertelsmann Stiftung, christian.hanelt@ bertelsmann.de NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 p. 9-17 After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East Middle East After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East 10 to the streets in German provincial towns, too. This poisons the whole atmosphere, and more and more people are prompted to espouse radical views. The moderate forces and governments are being weakened and the prospects of an Israeli-Palestinian two-state solution is becoming increasingly improbable. In the Hamas-Israeli conflict in particular the European Union is once again being called upon to bear the burden of conflict management. This was already the case in the summer of 2006 in southern Lebanon, when the war between Israel and Hizbollah ended only after the deployment of the UNIFIL II mission. Yet this conflict demonstrates that the end of a war does not signify peace by any stretch of the imagination. The international missions monitoring the ceasefire will only turn out to be a success once peace treaties between Israel, the Palestinians and their Arab neighbours have been concluded. II – Everything is Interconnected The convoluted state of affairs continues to worsen because all of the actors in the Middle East taken as a whole have their fingers in the pie somewhere, either with regard to the use of force or to attempts at peace-making, as some examples connected with the most recent Hamas-Israeli war demonstrate: • Syria is allowing exiled Hamas leader Mashaal to act more freely in order to show Israel and the U.S. that Syria wishes to have a say in matters relating to war and peace. • The hardliners in Iran are relieved yet again that international attention has now shifted to Israel and Gaza and away from their nuclear programme. • Israel is attacking Hamas alos in order to deter Hizbollah on its northern border. • Egypt has sealed off Hamas within the Gaza Strip in order to prevent it from cooperating with the Egyptian Muslim Brotherhood. • Iran and Syria are using their influence on Hamas in order to strike the U.S. via Israel, in other words, to demonstrate that they can harm American interests in the region, but that they can also promote them. “Regional Powers are playing the game indirectly.” In these manoeuvres the regional powers are playing the game indirectly. Whilst demonstrating to each other how potentially disruptive they can be, they are not giving anyone a reason to attack them. This method is also used in order to delay or even to torpedo bilateral attempts to resolve conflicts. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17 11 After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East • Turkish attempts to bring about a rapprochement between Israel and Syria has mobilised Lebanese and Palestinians, since they fear that such an agreement will be at their expense. • Mere rumours that Washington is trying to reach a bilateral agreement with Tehran has Saudis, Emiratis, Israelis and Iraqis up in arms. They are afraid that an American-Iranian treaty might fail to take into account their own security interests. • Israel is in favour of peace with Syria primarily in order to isolate Iran, and construes the stand-offs with Hamas and Hizbollah as proxy wars with Iran. • Pictures of the unabated construction of settlements in East-Jerusalem or on the West Bank make it increasingly difficult even for moderate Arab leaders in the Gulf to ask their countries to support the Arab peace initiative with Israel. The attempts to ignore, neutralize or isolate spoilsports and obstructionists have come to grief as a result of regional entanglements. • The Israeli government’s plan to negotiate a two-state solution with Fatah has ground to a halt also because it has been impossible to isolate Hamas, who are in control of Gaza. • The Lebanese Hizbollah emerged strengthened from the asymmetrical war against the Israeli Army in the summer of 2006. It was able to exercise its veto in the context of intra-Lebanese wrangling and, by pointing to the ongoing conflict with Israel, to stop attempts to disarm it. In this regard Iran and Syria have displayed the extent of their influence. A Syrian-Saudi quarrel paralyzed an intra-Lebanese agreement for months. Thus the so-called non-state actors such as Hamas and Hizbollah are in fact tools of the competing regional powers in the Middle East. And to make everything even more complicated, moderate politicians and radical leaders are jostling for power even within movements such as Hamas and Hizbollah. After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East 12 The former CIA case officer and Middle East specialist Robert Baer sums up the situation thus. “Hizbollah, Hamas and the Shiite parties in Iraq look to Tehran for financial aid and support. As long as the U.S. does not solve the Israeli-Palestinian conflict, Iran’s influence will grow.” Thus it is possible to argue that the attempt to isolate the regional powers Syria and Iran has been a failure. Furthermore, bids to conclude bilateral agreements have come to grief on account of the veto powers of neighbouring states. Conflict management as in the case of Israel-Gaza and Israel-South Lebanon may be of importance in order to bring armed conflicts to an end, yet conflict management per se simply increases the potential for further wars. The next step in the dispute relating to the Iranian nuclear programme is already discernible on the horizon. And last but no least, conflict management is becoming more expensive. The international community is having to come up with more and more diplomatic, financial and human resources to support a UN mandate, whilst at the same time endangering the lives of its aid workers and blue helmets. And the missions come to an end only when it is possible to make peace. For example, the UNIFIL II mission in southern Lebanon, which since the summer of 2006 has been run primarily by European blue helmets, will turn out to be a success only after Israel has signed peace treaties with Syria and Lebanon. Each actor in the Middle East is afraid that his interests and anxieties will be passed over or ignored. Each actor wishes to be esteemed, accepted and taken seriously by his neighbours and the USA. Each actor would like to show how important he is in the region and that it is worth supporting him in political and economic terms. Each actor is striving for security and prosperity. Politics is no doubt a sober business of balancing interests. Yet in the Middle East emotions, symbols, vivid ideas and neurotic images also play an important role. Future conflict management and conflict resolution need to pay more attention to such perceptions. III – A Common Platform for Dialogue Future diplomatic efforts should be directed primarily at providing a common platform for all of the actors and thus for all of their interests, fears and cleavages. However, this common platform will not simply be part of a never-ending series of Middle East intergovernmental conferences and not another summit held for its own sake. No actor will be excluded, all interests will have a voice, every conflict will NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17 “Avoid as much diplomatic wrangling as possible.” The methodology of this new approach is based on the idea of inviting all parties to share a common platform on which they can search for ways for a common and sustainable resolution of their various interlinked conflicts. The goal of this quest is not as in the past conflict management as such. Many actors in the region reject the kind of conflict management strategy pursued in recent years, which they believe is nothing more than muddling through and procrastination, and has been unable to reduce the potential for new outbursts of violence. In contrast to this the goal of this quest is nothing less than conflict resolution, though in all modesty on two levels of attainment: The first level, which takes its bearings from the notion of conflict transformation, is a stage in which the dialogue platform becomes the forum within which potential conflicts can be nudged into peaceful channels. The second level presupposes that a serious effort will be made by all of the participants to terminate as many conflicts as possible with the help of peace treaties. Thus the platform could move on from being a dialogue forum to become a negotiating forum. Once all of the actors are sitting round a table, they will have become an integral part of the process. No one will be able to claim that he was not invited or that he was not listened to, and that he thus has every right to opt out of the process and to make trouble for everyone else. Anyone who turns down an invitation is telling the rest of the world that he is trying to hold things up. He can no longer hide behind the claim that an external force, as was the case with the Bush administration, has done all it can to isolate him (as in the case of Iran) or is actually dead set against having him there at all (as in the case of Syria). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17 13 After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East be taken seriously and everyone will have the same opportunity to explain his anxieties and fears about the future. It will all be about honesty, openness, modesty and a new language of reconciliation. It is not about pageantry, showmanship, big promises or bitter accusations. This is not a naive or cosy strategy, and is also all about sending out a symbolic signal: There will be no more secret negotiations of the kind which give rise to nothing but suspicion and opposition. Secretiveness spawns rumours and conspiracy theories, and in the Middle East this always means that everything has already come to grief before it has even got off the ground. The search for peace in the Middle East needs to escape from this vicious circle. After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East 14 All the actors will be invited on the basis of equality. The envoy system will be used in order to avoid as much diplomatic wrangling as possible about status questions before the platform convenes. Every head of state and government will choose an envoy. The Palestinians (in point of fact without a legitimate leadership since 9 January) will decide themselves, without pressure from outside, who is to represent them at the talks. If it is one person from Gaza and one person from the West Bank, then that may initially be possible, though in the course of time they will also have to reach agreement on a special envoy. The platform will be exerting pressure on them to attain a consensus. As a multilateral external actor the European Union should agree on one voice, which might well be that of the High Representative for the Common Foreign and Security Policy, Javier Solana. The meetings will take place on a regular, or, and this would be even better, on a permanent basis, so that invitations to the next gathering will not involve a great deal of diplomatic effort. The envoy solution will make it easier to agree on dates and on an agenda. All the various conflicts will be on the agenda. The discussions will then consider all of the more or less interwoven lines of conflict: Israel-Palestine, Israel-Syria, Israel-Lebanon, Arab World-Israel, Lebanon-Syria, Iraq-Iran-Turkey-Syria, Gulf States-Iran, Iran-Israel, and Iraq and its neighbours. The most important thing is to attempt to create as much consensus as possible and to balance the various interests in an equitable manner. And if progress is made in the discussions and negotiations on the Israeli-Syrian agenda item, for example, it will have a positive influence on the other conflicts. All the fundamental issues on which these conflicts are based, such Israel’s right to exist as a Jewish state, the Palestinians’ and the Kurds’ right to self-determination, the territorial integrity of Iraq, the independence of Lebanon and Syria, Iran’s security interests, or the stability and security of the Arab Gulf states will be taken into account. The comprehensive approach of a common platform for dialogue will give the Arab world the assurance that all the contentious points relating to Israel will be dealt NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17 IV – No time to lose The inauguration of the new U.S. president would seem to be a good moment to start with the initiative. Barack Obama himself has announced that he will quickly become involved in the Middle East conflict. Thus it seems that on this occasion presidential participation, in contrast to Obama’s predecessors Clinton and Bush, can already be expected at the beginning of a term of office and not at the end. That would strengthen the authority and the commitment of U.S. involvement. At the same time Obama will encounter a great willingness on the part of the Europeans and many regional actors to work together closely. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17 15 After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East with, as will Israel’s concerns about its regional security and full incorporation into the region. Iran will be able to make out a case for its wish to be an integral part of the region. The U.S. will perceive that the withdrawal of its troops from Iraq is safe in the regional context. And the smaller countries of the region will also have their say. The symbolism of the venue is of some importance. For this reason the common forum for dialogue will not be meeting in places which remind people of previous Middle East initiatives such as Oslo, Madrid, Annapolis, Camp David or Shepherdstown. Nor will the participants be meeting in places which are associated with important historical agreements such as San Francisco, Rome or Seville (however pleasant it might be, though not all of the actors may be of this opinion). The common forum for dialogue is supposed to stand for a new beginning of a modest, inclusive and goal-oriented kind, and for this reason as many associations as possible should be avoided. It must be a practical working location for the envoys. The best thing would be somewhere in the Middle East, partly in order to emphasize the connection with the region, and the commitment of the actors who actually live there. The greatest responsibility devolves on the host as discussion leader. What is needed is a powerful and very tactful personality. Even if many actors believe that the U.S. has lost its reputation as an honest broker, it continues to be the most powerful external actor. It has a sizeable number of armed forces in the region, a plethora of interests, and the greatest ability to issue certain guarantees. For almost everyone in the region the new American president stands for hope and a new beginning. His envoy should also embody this positive kind of authority. The reason for this is that the American envoy will bear the principal responsibility for the atmosphere of the talks. He must avoid that the multilateral talks will fall apart into bilateral and (semi-) secret negotiations. And last but not least he will also have to incorporate the other external actors (EU, UN, Russia, China, and Japan) on an equal footing. After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East 16 In recent months Obama’s advisers have let it be known that they will be suggesting to the new U.S. administration that there should be multilateral involvement, close cooperation and burden-sharing with the EU, and a dialogue between Washington, Damascus and Tehran. Furthermore, Israel is electing a new parliament in February and thus a new government, and Iran is electing a new president in June. And the Palestinians are being pressured to determine a new legitimate leadership. These are the points which suggest that 2009 may well be a year of opportunity in which it would make sense to embark on a new approach to conflict resolution in the Middle East. The difficult and unpredictable challenges posed by the global economic and financial crisis still constitute a risk. Thus the Obama administration might well have to deal with growing intra-American problems, and this may leave little time for foreign policy initiatives. Similarly, new incidents in the Middle East may lead to crises or wars at a moment’s notice, and this would terminate an ongoing dialogue or defer it indefinitely. V – What is the EU doing? The European Union possesses a wealth of experience and skills with which it can help to implement a new Middle East approach on the basis of a common platform for dialogue. • The EU can impress upon the new U.S. administration that the inclusive approach is better than to act bilaterally and to isolate important players; that Obama must move on the Middle East at the beginning of his presidency and not towards the end; that the strategy should be conflict resolution and not procrastinatory conflict management; that a new negotiating approach must be adopted and that all this taken together can dramatically improve the image of the U.S. in the region, and in the final analysis can even create better regional conditions for a withdrawal of U.S. troops from Iraq. “The isolation of Syria and Iran has failed.” • The EU has resilient relations with all of the actors in the region, and for this reason it can underline the importance of American envoy invitations to states such as Iran and Syria that have hitherto been isolated from the USA. • The EU is the largest financial donor to the Palestinian administration. It is involved in police training (EUPOL COPPS) and in customs clearance at Rafah crossing between Gaza and Egypt (EU BAM). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17 FOR FURTHER READING: Christian Hanelt / Almut Möller (Editors): Bound to Cooperate – Europe and the Middle East II, Bertelsmann Stiftung, 2008 Bertelsmann Foundation: Trans-Atlantic Briefing Book – Managing Expectations, Expanding the Partnership, Shaping the Agenda for 2009, November 2008 Aaron David Miller: The Much Too Promised Land - America's Elusive Search for Arab-Israeli Peace, März 2008 Robert Baer: The Devil we know – Dealing with the New Iranian Superpower, September 2008 Richard N. Haass / Martin Indyk: Beyond Iraq. A New U.S. Strategy for the Middle East, Foreign Affairs, January 2009 Henry Siegman: A Last Chance at Middle East Peace?, The Nation, January 2009 Hussein Agha/Robert Malley: How Not to Make Peace in the Middle East, The New York Review of Books, Volume 56, No. 1, January 2009 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17 17 After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East • Europe needs peace projects in its southern neighbourhood so that the Mediterranean Union can get off the ground and that at long last the great social and economic challenges in North Africa and the Middle East can move to the centre of the policymaking stage. Despite this important potential, the European Union should not adopt a competitive stance towards the USA. In fact the EU should realize that a solution of the conflict will only be possible if there is a new and stronger role for the U.S., which in its turn is placing its hopes in a resilient Transatlantic partnership.NE Marina Eleftheriadou* 18 The Shia protocols: the Iranian project of Shiite The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism proselytism ■ Abstract: Lately there has been a heated debate about Iranian efforts to spread Shiism to Sunni countries. Many Sunni religious and political figures have contributed to this latest addition of anti-Iranian rhetoric, exaggerating the actual extent of the phenomenon of Shia conversions. It seems that once again Iran’s rising regional status challenges Sunni predominance in the region. However, although politically more prolific, religiously, the Iranian example, at least for now, flourishes only under very specific circumstances. IN SEPTEMBER 2008 one of the most prominent Islamist scholars – perhaps the most creative of the Muslim Brotherhood trend – Yusuf al-Qaradawi, condemned the Shiite “attempts to invade the Sunni community… [through] missionary work”. From inside the Sunni front some more or less discreetly nodded their heads, while others in turn dismissed Qaradawi’s remarks in abhorrence usually attributed to someone still evaluating the situation. Qaradawi’s warning was the latest ring in a chain of similar statements starting from Jordan’s king Abdullah who first spoke of the ‘Shia crescent’, followed by Hosni Mubarak, who in 2006 asserted that the Arab Shia were more loyal to Iran than to their own countries. Saudi king Abdullah said in this context that the Shia were trying to convert Sunnis, while assuring at the same time that “the dimensions of spreading Shiism” were under the close scrutiny of the Saudi regime. Furthermore, Qaradawi himself accused the Shia of trying to exploit Hezbollah’s victory against Israel in order to penetrate Sunni societies. In the meantime newspapers and figures of lesser influence and with no real interest in the official political-correctness preserved the issue by adding drama to the debate. The editor-in-chief of Al-Ahram linked Iran’s project of “spreading Shiism” to the desire to “revive the dreams of Safavid” (a Persian dynasty that in 16th century established Shiism as the official religion of the Persian Empire). Accordingly, the Jordanian * Senior Researcher and PhD candidate at the Center for Mediterranean, Middle East and Islamic Studies of the Peloponnese University, Greece. This article was published in the Middle East Bulletin, Issue 13, November 2008, http://pedis.uop.gr NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 18-21 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 18-21 19 The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism newspaper, Ad-Dustour, identified that the project’s plans were to expand Shiism from India to Egypt. However, nothing was more indicative of the Sunni community’s low spirit than the moan of wounded pride in the article published in Al-Siyassa (Kuwait), written by its editor-in-chief Ahmad al-Jarallah. In his article, Jarallah pleaded the “leaders of all Arab countries [to] hold a summit to prevent Iran from stealing Arab issues”. The Middle East witnesses Iran’s second 1979 and the Sunni regimes are alarmed by it, more so since the Sunni community perceives an ongoing transformation of this threat from a political into an existential one. Iran’s current rise might lack the revolutionary charm of 1979; however, quite contrary to the heydays of the Iranian Revolution it is now characterized by firmer foundations. The inexperienced leadership of 1979 entered Islamist and generally Middle Eastern affairs like a bull into a china shop, stirring up the whole region but in the end ‘grabbing’ more than it could hold. Nowadays, the Sunnis argue that Teheran takes one step at a time, sneaking into the former’s open wounds and letting its defiance of regional and global norms of conduct attract followers. A message, which was proven inadequate in the post-1979 “shia expansion”, has been ‘surrounded’ now by an entire – conspiracy – strategy in order to support its validity and consistency. In the past Iran merely managed briefly to mobilize the Gulf Shia: civil unrest in the oil-rich Shia-populated eastern provinces of Saudi Arabia erupted in December 1979 but soon died out although one has to say that its products remained active even after the revolution (e.g. the Saudi Arabian Hezbollah and its attack on the Khobar towers in 1996). The Iranian Revolution also inspired the creation of the Palestinian Islamic Jihad and created its star product the Lebanese Hezbollah. Finally, it gave a note of militancy to the Sunni Islamists which however in their majority preferred to use the Iranian example without adopting its dogma. Soon the Sunni militants would either turn indifferent in the face of the new Islamic ideal in Afghanistan or applaud Saddam as he was bleeding out Iran. Briefly, Iran’s final balance-sheet was far from positive. Nonetheless, in 2008 as the Sunni regimes failed to cope with the mounting crises, they saw their cherished containment of Iran evaporate. On Iran’s east, the Taliban-Pakistan-Saudi Arabia axis might remain strong and potent, however, it has been transformed while additionally the Pakistani and Saudi Arabian link have been highly volatile and therefore less manageable. On Iran’s west the Iraqi bulwark disappeared into thin air, opening thus the gates of the Middle East. As the great force multiplier (nuclear power) is coming into being, Iran is scoring victories in Iraq, Lebanon (via the other Shia player, Hezbollah) and Palestine (through its direct or Syria-intermediate relations with Hamas and smaller rejectionist Palestinian groups, e.g. Islamic Jihad and PF-General Command). The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism 20 In other words, Teheran is stealing the Arab issues while the Arab elites want to secure the Sunni soul. In 1979 Saudi Arabia battled Shia expansionism by highlighting Iran’s Shia particularity as directly linked to Persian nationalism. Today, it is not anymore only about more assertive Shia communities inside Sunni-dominated states but also about losing followers to the Shia. What can seem more threating compared to the image of scores of Shia converts in “Egypt, Sudan, Tunisia, Algeria, Morocco, and other non-Arab countries such as Malaysia, Indonesia, Nigeria, and Senegal…even the Gulf States and Syria, but of course, Syria, Iraq and Lebanon have Shia communities and therefore, unlike countries where there was no Shia, conversion to the Shia sect does not stand out” (Yusuf al-Qaradawi). Actual figures which would allow estimations are lacking and Sunni alarmism blurs the picture even more. However, conversions, although far less common than asserted, seem to occur mostly in predominately Sunni regions, which share some kind of acquaintance with Shia culture. On the contrary, in regions of mixed populations and Shia minority status (Arab Gulf) or in regions of increased Shia assertiveness and tensed Sunni-Shia relations (Iraq and Lebanon) the Sunni identity seems more solid and resistant. An exception to this pattern is Syria which due to the political leverage exerted by Iran and the peculiar sectarian nature of its regime forms the most interesting case. One could also add Jordan. However, Amman’s increasing preoccupation with Shia converts is most probably connected with the social upheaval created by the arrival of thousands of well-off Iraqi Shia refugees. In this context, conversions occur in North African countries, including Egypt, which acquired their religious folk familiarity with Shia practices from the time of the Fatimid rule. When Qaradawi highlighted the case of Egypt: “I left Egypt 47 years ago, it had not a single Shiite and now there are many... who took them to Shiism? Egypt is the cradle of Sunnism and the country of Al-Azhar”. However, he overlooked that Al-Azhar was founded during the Fatimid era or as Qaddafi said: “Cairo cannot escape its Fatimid destiny”. Although Shia in Egypt are said to represent less than 1% of the population (and any sporadic conversions can hardly change that), the authorities, in order to rally the people around the flag vis-à-vis Iran, look worried. So are the Algerians, the Sudanese and the Moroccans. Two years ago the Algerian Ministry of education suspended eleven teachers as they were accused of conducting Shia missionary work. While in Algeria primarily Shia expatriates from Iraq, Syria and Lebanon were held responsible, in Morocco the .messengers. were Moroccans working in Europe where they were approached by Iranian charitable organizations. In Sudan the accusations have been directed towards the Iranians themselves who allegedly took advantage of Khartoum.s friendly disposition towards the Iranian revolution. According to the Sudanese. Supreme Council for Coordination among the Islamic Associations, through the NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 18-21 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 18-21 21 The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism proselytism of the Iranian Cultural Center in Khartoum, “whole villages have been converted to Shiism, and Shi’a mosques have proliferated in Khartoum”. While these predominately Sunni countries are more susceptible to Shia proselytism, the Gulf countries on the other hand, which are home to large Shia communities (20% in Saudi Arabia, 30% in Kuwait, 70% however politically subordinated in Bahrain), are more vulnerable to the prospect of militant Shiism rather than proselytism as the Sunni community, threatened as it feels, is heavily entrenched behind its sectarian identity. This is even more explicit in Lebanon and Iraq. Not only, as Nasrallah, said would it be cheaper simply to produce more children (as the Shia in Lebanon have been doing for the last decades), but also the possible candidates for conversion are more probable to turn to militant Sunnism to safeguard their political position rather than change camp. Syria’s Sunnis present a different situation. Not only have they been indoctrinated for years in a Ba’athist-Alawi regime and subjected to significant Iranian political and economic penetration, but they have also been deprived from a rallying point since the ouster of the Muslim Brotherhood. It is disputed whether conversions predominately affect the Alawi or the Sunni community (official statistics point to the former, while the Sunnis claim it is the latter under the regime’s blessing). However, in any case, both of them are subjected to the same set of powers. Iran’s and Hezbollah’s achievements are multiplied via Iran’s political, economic and cultural inroads into the country. Dozens of Shia shrines have been built or restored, hundreds of hawzas (Shia seminary) and cultural centers have been established and several hundreds of thousands religious Shia tourists (mostly Iranian) flood the country every year. At the same time, Iran’s huge investments engulf the Syrian economy. If the state sector is earmarked for the close circle of Assad’s Alawi loyalists, the private sector is not less cliental, but in this case it is the Iranians who occupy the HR positions. It is exactly the combination of Iranian political and economic involvement and the doctrinal-sectarian proximity of the two regimes that allowed Teheran to establish an enormous mechanism of cultural influence. This explains why for example in Palestine (Gaza), despite the defamatory “Shiites” increasingly attributed to Hamas by Fatah, there is no such phenomenon. In the final analysis, as a Shiite cleric in Saudi Arabia said: “People in the region always complain about a Shiite crescent...That’s just a crescent. What about the full Sunni moon?” The exact extent of the “Shia invasion” little matters. It is more interesting and important to see if the Sunni world and especially Saudi Arabia is capable to recuperate from 9/11 setbacks and put again in motion its extensive counter-Iranian mechanism that worked so effectively in the 1980s.NE Paulo Vizeu Pinheiro* A situação actual no Cáucaso 22 A situação actual no Cáucaso AGRADEÇO AO PROFESSOR LUÍS Filipe Tomás, da UCP, e ao Embaixador Carlos Neves Ferreira, Presidente do Instituto Diplomático que me desafiaram para participar nesta mesa redonda sobre a região do Cáucaso. Aceitei de imediato, pois sabia que seria sempre um enorme prazer regressar, ainda que por breves instantes, à casa onde me licenciei e onde frequentei, em simultâneo, uma pós-graduação e um mestrado. Começaria por uma pergunta provocatória. Qual o interesse de e para Portugal? É que não importamos nem petróleo nem gás. Para Portugal, em termos concretos, quer energéticos, quer económicos ou comerciais, é uma espécie de non issue. Também não é uma zona de passagem dos nossos bens. Não é sequer um entreposto de serviços para o nosso país. • E em termos humanos, de imigração (segurança humana e segurança nacional) a importância do Cáucaso é também reduzida. • O Cáucaso não reflecte nenhum interesse vital ou fundamental, verdadeiramente insubstituível ou incontornável. Também não constitui uma ameaça à nossa segurança. • Ainda para mais é provavelmente a região com maior concentração de conflitos irresolúveis por km2 – os hoje chamados conflitos gelados, mas que, desde há séculos, existem sobre outras denominações. Conflitos anteriores a Pedro o Grande ou Catarina. • Reparem que os períodos de alguma estabilidade e identidade nacional, na Arménia ou Geórgia, são sempre muito curtos. Aproveitando as transições nos ciclos imperiais. O período mais recente, o do fim da URSS, também testemunhou conflitos secessionistas e integracionistas. Ou seja, mesmo no * Diplomata, Director-geral de Política da Defesa Nacional. Intervenção num Seminário organizado pela Universidade Católica. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28 • • • NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28 23 A situação actual no Cáucaso • período ideal para afirmação nacional, de desagregação súbita do império soviético, os conflitos, do início dos anos 90, extremamente sangrentos, não tiveram um desfecho minimamente claro ou estável, como sucedeu, em grande medida, nos Balcãs, em que a antiga Jugoslávia se desdobrou e multiplicou em países viáveis, hoje membros da UE ou NATO, ou a estes candidatos. Mais, por razões de simplificação analítica gostamos de nos referir ao Cáucaso como uma região bem definida. Mas estamos a falar do Cáucaso do Sul, com três países independentes que muito pouco têm a ver entre si em termos políticos, culturais e militares. A Arménia, a Geórgia e o Azerbeijão. O Cáucaso do Norte é todo ele russo, mas também muito diverso em termos de moldura humana, cultural e até confessional. Se me perguntarem o que é que têm de comum a Ingushia, a Chechénia ou o Daguestão, diria que o jugo estatal russo, o rublo, a língua russa e a administração. Mas o Daguestão poderia ser considerado uma extensão natural do Azerbeijão. E a Ingushetia, uma extensão europeizada da Chechénia. E a Chechénia, um país como o Iémen… Mas se espetarem uma vara, em Grozni, ela vem manchada de preto, com petróleo a 1 metro. Muitas casas na Chechénia têm mini-refinarias improvisadas. Em 2000, as Forças russas desmantelavam por mês entre 1500 a 2000 refinarias rebeldes. Agora imaginem aquelas que colaboravam com os exércitos russos. Hitler não hesitou em procurar chegar até Baku para garantir o que hoje chamaríamos segurança energética… e sofreu a maior derrota, a de Estalinegrado, que muito analistas militares consideram o ponto de viragem da segunda guerra mundial. Estes territórios, do norte e sul do Cáucaso, tresandam a petróleo, tresandam a gás, e estão no ponto de passagem que liga a Europa à Ásia, no ponto de passagem comercial por excelência entre blocos de interesses, entre potências comerciais, entre pólos de hegemonia militar. Mas a cultura local não mudou, desde o tempo do “Prisioneiro do Cáucaso”, de Pushkin, que relata as desventuras de um soldado russo na transição do século XVIII-XIX escravizado pelos islâmicos chechenos, isto no apogeu do controlo cossaco. Em 1998, no tempo do moderado autoproclamado Presidente checheno Aslan Maskhadov, aplicava-se a Sharia em Grozni, e todas as semanas havia decapitações e amputações, decretadas pelas Shuras. Em 1999, foram decapitados em segredo, pelos combatentes chechenos, 4 trabalhadores A situação actual no Cáucaso 24 • • • • • britânicos de telecomunicações, acusados de espionagem a favor dos imperialistas ocidentais mas também ao serviço do imperialismo russo. Em 2000, ainda decorrendo a campanha brutal e sangrenta militar russa, eram descobertos, em buracos, “escravos”, normalmente eslavos, mas também de culturas inferiores à chechena, como jordanos ou iemenitas… Estamos a falar de práticas do Século VIII mas no século XXI. A corrente islâmica mais em voga na Chechénia é a do Waabismo saudita, a de Bin Laden. Para Moscovo, nenhum Estado ou mais apropriadamente Província ou Região da Federação russa é separável. E muito menos os do estratégico e economicamente rentável Sul. Importa não esquecer que há outras províncias russas de matriz islâmica, como o Tatarstão ou a Bashkiria. O mesmo se diga de algumas regiões siberianas ou o extremo oriental russo, onde os problemas têm outro nome, como a fragilidade demográfica e a fortaleza económica, comercial e demográfica da confinante China. Daí que desde há muito, já dos tempos de Ieltsin, mas agora agravado pela era neonacionalista expansiva ou musculada de Putin, que os Russos designam por “vizinhança próxima” o Cáucaso do Sul e até a Bielorrússia ou mesmo a Ucrânia, na frente ocidental. E em plena Europa da União Europeia e da NATO, os russos mantêm, com mão de ferro, o enclave de Kaliningrado. Para a identidade Russa, o país tem 11 fusos horários, de Kaliningrado até Kamchatcka, onde a zona de contencioso territorial das Kurilas, tem como adversário o Japão. Ou seja, quando falamos do Cáucaso estamos em grande medida a falar da Rússia e da sua afirmação, crescente e musculada, como pólo de poder, face aos EUA, UE-NATO, incluindo aqui naturalmente a Turquia, mas também o Mundo árabe da região do Golfo, o Irão, a China e a Índia. Mas será que a Rússia tem direito a ter um backyard? É do interesse europeu? Dá-nos mais ou menos estabilidade? Qual o interesse ocidental em jogo? Se me perguntarem se o Cáucaso é importante para a segurança e estabilidade da Europa, da Eurásia e da Ásia, não hesito em responder afirmativamente. • Portugal pode não ter um interesse directo, vital ou não, na região. Mas tem um interesse mediato muito importante, como país da UE, como Aliado da NATO e como nação com uma política selectivamente global e de vocação universalista. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28 25 A situação actual no Cáucaso • Como país da União Europeia, Portugal não pode ser indiferente ao jogo, estrondosamente geoestratégico, eu diria neoclássico, que se está a desenrolar no Cáucaso. E que, pela via colectiva, o afecta, quer em termos económicos, comerciais europeus, quer em termos de segurança de vanguarda ou fronteira europeia. • A segurança energética – e estamos a falar do euro-asiático Cáspio ao euro-europeu Mar Negro – não nos pode ser indiferente. É também um problema português, quanto mais não seja pela inerente pressão crescente do preço mundial das comodities, do crude ao gás, mas também pela pressão que não deixaremos de sentir nos nossos tradicionais mercados abastecedores resultante da diversificação energética dos nossos parceiros europeus. Não nos devemos fiar na elasticidade na área dos recursos energéticos. E muito menos na plasticidade do comércio mundial nesta área, sobretudo conhecendo a OPEP e as tentativas russas de uma OPEP do gás. • E também importa ter em consideração que nem sempre a Europa esteve ou está à altura dos seus interesses e capacidades. O ex-chanceler alemão é um administrador da maior máquina de pressão político-económica russa existente, a Gazprom. E o mercado comum energético europeu continua ainda por alcançar não obstante as evidencias. • E vamos ser claros, a actual crise financeira, económica e comercial mundial, que nos pôs a todos em recessão, em pressão sócio-laboral de magnitude planetária e totalmente imprevisível em termos de estabilidade política governativa à escala nacional e regional, veio tornar ainda mais premente e dramático o jogo caucasiano. Este, desenrola-se às nossas portas, pode contaminar, através de uma geometria política e económica de mutação permanente, o nosso Mediterrâneo, tanto o oriental – que está a passar também por uma situação de contornos dramáticos no Médio Oriente – como o Ocidental, o que está aqui ao nosso lado, que exporta mão-de-obra magrebina e africana negra para o nosso pacato Sul. • Infelizmente, já não existem conflitos puramente nacionais ou exclusivamente regionais. A era da globalização tornou-nos interdependentes uns dos outros, em regiões cada vez mais distantes, para o melhor e para o pior. • E se Portugal joga também os seus interesses no Cáucaso enquanto país da União Europeia, cuja segurança e estabilidade nos afecta directamente, o nosso país também é actor na região enquanto aliado fundador da NATO. E como todos sabem, a Geórgia é um candidato à Aliança, já com lugar prometido na Cimeira da NATO em Bucareste, no ano passado. A situação actual no Cáucaso 26 • No pior dos cenários, Portugal poderá vir a jogar a sua solidariedade ao abrigo do artigo V. Tudo, mas mesmo tudo, devemos fazer para que o Worst case scenario nunca venha a ter lugar. • E aqui entra, ou deve entrar, a nossa diplomacia, política e económica, de vocação universal e de diálogo permanente. Que não é de empreitada ou proxi, que não é subsidiária de interesses ou lógicas de hegemonia ou domínio. • Portugal é, por natureza, um Honest Broker singular, pois sendo do Ocidente, Euro-Atlântico, é também do Sul Afro-Sul-Americano e Oriental, com presença histórica em todo o Grande Médio Oriente, que vai da Mauritânia à Índia. Mas vamos também até ao Japão. E estivemos na Corte Russa, quer nos tempos de Pedro o Grande, quer nos tempos de Catarina. Perguntem a todos estes povos (até em Omã) o que pensam dos portugueses. Perguntem também às elites. Somos uma “ponte natural” intercontinental e subcontinental. Lembro que o nome original da Geórgia é “Ibéria Oriental”. Existe no Cáucaso do Sul, particularmente na Geórgia e na Arménia, uma cultura (incluindo a gastronómica) do tipo mediterrânica. As nossas raízes e os nossos consequentes bons laços interconfessionais e interculturais, a nossa vocação universalista e ecuménica, pode ser particularmente útil nesta região, como tem sido em muitas outras. Veja-se por exemplo a opinião unânime de responsáveis, oficiais ou “fácticos” libaneses, bem como dos israelitas, sobre o profissionalismo, a perspicácia, a tolerância, o diálogo, boa percepção e inserção do contingente português na UNIFIL. • Dizia há dias o nosso Presidente da Comissão Europeia que numa crise mundial desta escala, onde o sistema internacional – quer em termos geopolíticos, quer em termos de governação ou regulação global económica, financeira e comercial – está em processo reconfiguração, de mutação acelerada decorrente em parte da emergência célere, factual, do tão falado mundo multipolar, são precisos mais diplomatas. Mais visão global, integradora, com capacidade de diagnóstico frio ou pragmático mas também de previsão estratégica de novas alianças e parcerias. • E aqui entra Portugal, que tem um potencial único, enquanto país, enquanto exportador de quadros qualificados, mas sobretudo, enquanto construtor de pontes e diálogos. E também como bom e equilibrado parceiro comercial europeu e afro-europeu. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28 27 A situação actual no Cáucaso • Falo-vos da minha experiência em Washington, Moscovo e Tbilisi (deixo de lado África, onde também estive e onde vou regularmente). Falo-vos da nossa participação na Troika (EUA, URSS-Rússia) sobre Angola e Moçambique (processos de paz). Falo-vos da nossa experiência, em Moscovo, da Presidência portuguesa do Conselho da UE em 2000, e particularmente da primeira missão de monitorização europeia na Chechénia, que a diplomacia portuguesa conseguiu desbloquear. Falo-vos da nossa experiência, também no ângulo de Moscovo, da Presidência portuguesa ministerial da OSCE, em que se conseguiu introduzir no Fórum Económico o difícil e conflituoso tema da gestão dos recursos hídricos, explorando modelos de estabilização e criação de confiança. • Mas que pontes podemos nós, portugueses, construir no Cáucaso? Antes de mais ajudar a criar dinâmicas de confiança gradual entre países, directa ou indirectamente, relacionados pelos frozen conflicts, passando por Moscovo, isto é, não contra Moscovo. Tornando a Rússia confiante que pode ser parte ganhadora, política e economicamente, da solução e não parte do problema. • Num dos mais complexos cenários da geopolítica contemporânea, ainda repleto de separatismos, etno-nacionalismos, redefinição de áreas de influência, devemos acentuar o que traz estabilidade, certeza, como os princípios da integridade territorial, não só da Geórgia mas também da Rússia. Como defensores de minorias, incluindo as russas • O 8/8/8 surgiu como a mais mediatizada das tensões “Rússia/“Ocidente”. Uma percepção errada na minha opinião. Não creio que o “Ocidente” tivesse sido ali ameaçado, pelo menos tanto quanto os russos se sentem com a entrada de conselheiros e instrutores militares de países da NATO e a adesão, acelerada, à Aliança Atlântica. Mas efectivamente, a diplomacia que funcionou com a cabeça fria foi a europeia de Sarkozi. Pergunto-me para que servem tantos conselheiros militares quando o problema não é primacialmente militar. Podemos ajudar os georgianos a garantirem a impermeabilidade da fronteira georgiana com a Rússia no vale checheno de Pankissi? • Nos 5 focos de tensão: 1. Ossétia do Sul, Geógia X Rússia; 2. Abkházia, Geógia X Rússia; 3. Nagorno-Karabakh, Arménia X Azerbaijão, 1M refugiados e deslocados; 4. Chechénia, Rússia; 5. Reconhecimento da fronteira comum, Arménia X Turquia. A situação actual no Cáucaso 28 Cabe perguntar do papel que Portugal pode jogar no quadro europeu, não só da UE, mas também da OSCE e Conselho de Europa, onde têm assento interesses russos. Poderemos algum dia ser “os noruegueses do Cáucaso”, mas de forma consistente? • Recentemente, a Turquia, visando uma abrangente cooperação regional, propôs “Caucasus Stability and Cooperation Platform (CSCP) initiative”, «visando o fortalecimento da paz, da estabilidade e da segurança, encorajar o diálogo político regional, fomentar a cooperação económica, desanuviar tensões e desenvolver políticas de boa vizinhança na região». Foi bem recebida pelo Azerbaijão, Arménia e Rússia. A Geórgia, não rejeitando a iniciativa, está ainda hesitante em sentar-se à mesma mesa com a Rússia, pelo menos enquanto decorrem sessões negociais em Genebra; A Turquia tem tentado convencer a Geórgia de que, agora, ainda é mais importante o estabelecimento de um diálogo directo entre as duas partes (dando assim relevo à importância da sua iniciativa). Mas não seria possível contar com uma parceria luso-turca neste domínio? É que, por exemplo, na Aliança Atlântica, temos uma relação muito próxima com Ankara e leituras regionais convergentes. E temos a vantagem de não sermos um país da região! E como reflexão inicial acho que termino por aqui. Muito obrigado.NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 22-28 Meliha Benli Altunisik* ■ Abstract: Turkey has become increasingly active in its foreign policy towards the Middle East in recent years. This article explains Turkey’s new activism with structural transformations in the region as well as with the new vision of the current AKP government. Turkey’s engagement with the Middle is discussed through three cases: Improvement of relations with neighbors; third part roles in regional conflicts; and Turkey’s soft power. It is argued that changes in the regional landscape and Turkey’s domestic transformations as well as expected changes in the US policy under the Obama Administration have poised Turkey to play constructive roles in this region. Yet such a role is also contingent on several variables related to domestic and foreign policies of Turkey. ■ Keywords: Turkish foreign policy; the Middle East; AKP foreign policy; Turkey’s new activism. TURKEY HAS STARTED to play a more active role in the Middle East recently. Dangerously volatile and unstable environment in the Middle East, and thus increasing challenges to Turkish security, can partly explain this new activism. These challenges in the fluid post-Cold War context required Turkey to be more interested in the region and to be more innovative in its policy. Particularly the developments in neighboring Iraq since 1991 War have forced Turkey to be more engaged with the region. The general instability in Iraq as well its implications specifically for the Kurdish issue in Turkey meant that Turkey could not ignore what happens in the Middle East. Yet Turkey’s interest in the region also goes beyond strategic interest. Especially after the coming to power of the Justice and Development Party (Adalet ve Kalkınma Partisi-henceforth AKP) in 2002 the government has developed a comprehensive Middle * Professor. Department of International Relations, Middle East Technical University, Ankara 06531 Turkey. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 29 Turkey’s new activism in the Middle East Turkey’s new activism in the Middle East Turkey’s new activism in the Middle East 30 East policy which underlined the importance of historical and cultural ties and responsibilities to this region in addition to strategic interest. Thus the AKP continued Turkey’s new engagement in the region and added some new dimensions to it.1 In practice this new interest translated into three interrelated policy outputs. First, the AKP developed a “zero-problem with neighbors” policy and thus made an effort to improve Turkey’s relations with its Middle Eastern neighbors. This perspective also meant moving away from security oriented and zero-sum mentality; instead the government emphasized constructive engagement and win-win. Second, the new activism meant engagement in regional conflicts as a third party. This constituted a departure from traditional Turkish policy which avoided entanglement in regional conflicts. Third, the government began to emphasize Turkey’s soft power in the region in addition to its hard power. This article will analyze these three policy outputs and then discuss the opportunities and limitations of this policy. Improving Relations with Neighbors One of the consequences of new forms of activism and engagement has been improved relations with the Middle East. Compared to the most of the 1990s, Turkey’s has been able to develop closer relations with the regional countries. The new strategic environment that emerged after Iraq War of 2003 as well as AKP government’s efforts contributed to this development. The most important example has been the successful transformation of conflictual relations with Syria into a quite cooperative one.2 Turkish-Syrian relations hit the bottom when Turkey threatened Syria with the use of force in October 1998 if it did not cut its support to the PKK, illegal Kurdish organization fighting against the Turkish state. The crisis was resolved with Adana Agreement when Syria committed to end its support to the PKK. After the resolution of this particular conflict Turkey has been determined to take the bilateral relations beyond normalization. As a result, the two countries have been able to establish quite close and diversified relationship since then. 1 For more on this new vision and it’s comparison with other visions see ALTUNISIK, Meliha Benli, “Worldviews and Turkish Foreign Policy in the Middle East”, Special Issue on Turkish Foreign Policy, New Perspectives on Turkey, forthcoming. 2 ALTUNISIK, Meliha Benli and TUR, Özlem, “From Distant Neighbors to Partners? Changing Syrian-Turkish Relations,” Security Dialogue 37, 2 (2006): 229-248. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 3 OLSON, Robert, Turkey-Iran Relations 1979-2004: Revolution, Ideology, War, Coups, and Geopolitics, Costa Mesa, CA: Mazda Publications, 2004; ARAS, Bulent, “Turkish Foreign Policy towards Iran: Ideology and Foreign Policy in Flux”, Journal of Third World Studies, Spring 2001. 4 “First Turkey-Arab League Forum to meet in ·Istanbul”, Turkish Daily News, 11 October 2008. 5 Hürriyet, 19 December 2008. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 31 Turkey’s new activism in the Middle East Turkish-Iranian relations also improved through enhanced security cooperation and deepening economic relations.3 First, the two countries cooperated against the separatist Kurdish organizations of PKK and its Iranian version PJAK. Such cooperation had intensified after Iraq War of 2003. To reflect the new level of cooperation Turkey-Iran High Security Committee, which was established in 1988 but largely remained ineffective in those years, was revived. The 12th meeting of the Committee convened in Ankara in April 2008 was said to be once again dominated by discussion on security cooperation against terrorism. In the meantime, Turkey and Iran started to deepen their energy cooperation. There is already a natural gas pipeline from Tabriz to Ankara that became operational in 2001. As a result Iran has become Turkey’s biggest supplier of natural gas after Russia and accounts more than 20 percent of its imports. In May 2007 Turkey and Iran agreed in principle over dam and power station construction and electricity trade. In July 2007 the two countries signed a deal to use Iran as a transit for Turkmen gas and also agreed to develop Iran’s South Pars gas field to facilitate the transport of gas via Turkey to Europe as part of the Nabucco project. In general, Turkey’s relations with -and the image in- the Arab and Islamic world have improved significantly. Turkey established the Turkish-Arab Cooperation Forum with the Arab League.4 Turkey also got the post of Secretary-General of the Organization of the Islamic Conference (OIC) in March 2008. This was the first time that the Secretary General was determined through election in the organization. Ekmelleddin Ihsanoglu was re-elected in March 2008. Turkey has also been able to develop more cooperative relationships with all the communities in Iraq, including finally with the Kurdistan Regional Government (KRG). Turkey was able to come to a point of cooperation on PKK issues with the US and Iraq in 2008. The central Iraqi government was already more inclined to eliminate the PKK as a negative factor in Turkish-Iraqi relations. Iraqi Prime Minister Nuri el-Maliki reiterated this position during his visit to Ankara in December 2008 and said “PKK’s actions are designed to create problems in Turkish-Iraqi relations”.5 Turkey’s new activism in the Middle East 32 Nevertheless, there were limitations to what the central government could do as long as the KRG refused to cooperate. Thus it was quite significant that Turkey and the KRG were able to develop a working relationship on this issue. Faced with the reality of US withdrawal and increasing power of the central government under Maliki, the KRG realized that it would no longer gain by using the PKK against Turkey. On the contrary, it needed Turkey as an outlet to the world. Thus, the KRG ended its hostile rhetoric against Turkey and started to put pressure on the PKK in its region. Turkey responded by opening an official dialogue, for the first time since 2003. Turkey as a Third Party In addition, Turkey has become more eager to play third party roles, promoted network of economic and political relations, engaged more in coalition building activities. In sum, Turkey increasingly began to favor engagement as a form of dealing with challenges it faced in the region. In the context of bipolar regional system in the Middle East, Turkey defined itself as a constructive power willing and able to talk to both blocs. Eagerness to play third party roles is a relatively new aspect of Turkey’s Middle East policy and in significant contrast to Turkey’s long-held policy of not getting involved in regional conflicts. Again changing geostrategic environment and increasing instability in the region began to have repercussions for Turkey and forced Ankara to be more involved in the management of conflicts. The protracted conflicts led to radicalization and a constant threat of war in the region. The continuation of Arab-Israeli conflict also allows some states to exploit the conflict to increase their power and influence in the region. For instance, the Palestinian conflict has allowed Iran to increase its power and influence beyond its immediate neighborhood and made it effectively a Mediterranean power. These developments upset the regional balance of power and thus are of concern to Turkey. In addition, the current AKP government has also been particularly eager to play third party roles in the region. The government believes that due to its historical ties with this region, Turkey cannot be indifferent to what happens there. The examples of Turkey’s third party roles are many. The involvements in the Israeli-Syrian track as well as the Palestinian issue will be discussed in more detail below. Yet Turkey has also been involved in Lebanon. Turkey is participating in UNIFIL II which was created after the Lebanon War in 2006. Together with Qatar, Turkey was also instrumental in brokering the Doha Agreement that ended the political stalemate in Lebanese politics. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 6 “Iran sought Turkey’s help to mend links with US, says Erdogan,” Guardian, 24 February 2009. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 33 Turkey’s new activism in the Middle East Similarly Turkey has been announcing its eagerness to play roles in Iranian nuclear issue. The possibility of a nuclear Iran imposes limitations on Turkish-Iranian relations. Turkey is disturbed by a nuclear Iran as it would completely alter the bilateral and regional balance of power. This would go against the main principles of Turkish foreign policy in the region and vis-à-vis Iran, which rejects regional domination by a country. This would also be against the Turkish position of having a WMD-free Middle East. Thus, possible nuclearization of Iran, which may provoke a general proliferation in the region, is not clearly welcomed by Turkey. However, Turkey is also concerned about the escalation of conflict between its Western allies and Iran. The failure of diplomatic channels and a possible military operation against Iran entails several minefields from Turkey’s perspective. All the possible scenarios such as chaos in Iran or Iranian retaliation would have enormous economic, political and strategic repercussions for Turkey. Ultimately Turkey is trying to maintain a delicate balance between its desire to see a stable Middle East and its Euro-Atlantic relations. In these conditions so far Turkish policy has been formulated under three pillars: Making it clear that Turkey would not let the use of its territory for an attack against a neighboring country; using Turkey’s relations with Iran, the US and the EU to facilitate diplomatic solution to the problem; harmonizing its policies with the international community, particularly with that of the International Atomic Energy Agency (IAEA). In the meantime, Turkey has been giving Iran the message that it should be transparent about its nuclear program and cooperate fully with the IAEA. During the Bush Administration Washington reacted negatively for any Turkish role to mediate with Iran as well as being highly critical of developing Turkish ties with that country. However, with Obama Administration’s declarations of its willingness to talk to Iran, Turkish Prime Minister Erdogan said that the government was considering raising the issue of mediation with him.6 The intensification of visits recently with Tehran points to a possibility of such a role for Turkey in the new period. Turkey also tried to play constructive roles in Iraq. In 2003 Turkey initiated Iraq’s Neighbors Forum, which later expanded to include Iraq. The Forum continues to meet at the level of foreign and interior ministers and aims to tackle the Iraqi issues on a regional basis and to foster confidence building measures in this sub-region. Turkey’s new activism in the Middle East 34 Similarly Turkey organized a meeting in Istanbul with the participation of Sunni leaders from Iraq to convince the Sunnis to participate the elections in 2005. Mediation between Israel and Syria: Following the gradual improvement of it’s relations with Syria after the October 1998 crisis Turkey began to pass messages to both Syria and Israel that it would be ready to bring them together if they were ready to do so. After the collapse of Syrian-Israeli talks in 2000 and the deterioration of U.S.-Syrian relations under the Bush administration the US was not in the scene to restart the negotiations. Turkey was the only country in the region with good ties to both sides that could play such a role. Ankara believed that resolution of the Israeli-Syrian conflict would not only bring peace and stability to the region, but also engage Syria more constructively into the regional politics. Thus with these considerations in mind Prime Minister Erdogan is said to be involved personally and to have conveyed messages to both sides. Finally in May 2008, after several failed attempts, the two countries started indirect peace talks in Istanbul under Turkey’s aegis. The two parties had their own reasons to engage in the process. As a result, Israel and Syria held four rounds of indirect negations in Turkey after the peace talks were launched in May. The talks were suspended when Israeli Prime Minister Ehud Olmert announced he would step down as a result of charges of corruption brought against him in Israel. During Olmert’s visit to Ankara in December 2008 Erdogan and Olmert had a meeting that lasted more than five hours. Later it was revealed that through telephone diplomacy Turkey had facilitated another round of indirect talks and aimed to bring parties to agree on starting direct talks soon. The parties began working on a common text to that end. However, when five days after Olmert’s visit to Turkey Israel launched its Gaza operation, Turkey announced that it ended its efforts of facilitating Israeli-Syrian talks. Israeli-Palestinian Issue: Historically Turkey has been concerned about the Palestinian problem and for long argued for a negotiated settlement based on two-state solution. Thus Ankara supported the Peace Process that started with the Madrid Conference in 1991. Turkey headed the ACRS (Arms Control and Regional Security) multilateral group within that context and became part of the Temporary International Presence in Hebron which was formed in 1997. Turkey has also been providing development and NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 35 Turkey’s new activism in the Middle East humanitarian aid for Palestinians. Since the Paris Protocol of 1996 Turkey has provided a total of 10 million US Dollars in the fields of health, education, public administration, institutionalization, security, tourism and agriculture. In terms of capacity and institution building activities, Turkey has supported the political reform process and Turkish experts participated in constitutional and administrative reform efforts in Palestinian Authority. Similarly Turkish Foreign Ministry conducted Young Palestinian Diplomats’ Training Program. Another such attempt has been the TOBB-BIS Industry for Peace Initiative, which has been led by the Turkish Chambers and Commodity Exchanges. Part of this initiative is the Ankara Forum, consists of the representatives from the Chambers of Commerce of Israel, Palestine and Turkey, based on the understanding that private sector dialogue is good for confidence building. The Forum has so far had five meetings. Another aspect of this initiative is to focus on the specific project of Erez Industrial Zone. After Hamas takeover in Gaza the project was decided to be moved to the West Bank. This project also is based on the understanding that there is a close correlation between economic development and peace and thus aims to contribute to the Palestinian economy by creating up to 7,000 jobs. The project also offers profit for the Turkish companies and security for Israel on its borders. Thus it is a win-win project for all the parties involved. However, the implementation of the project has been slow due to first worsening security situation in the area and the problems of signing a security protocol with Israel. In addition to TOBB Initiative, projects about pipelines for energy, water and power supply are also under discussion. With the eruption of al-Aqsa Intifada and increasing violence and instability in the region Turkey has supported activities to cease hostilities. Former President Suleyman Demirel was part of the Mitchell Commission which was formed after the eruption of violence in 2000. Turkey formed the Jerusalem Technical Committee to investigate whether the excavation works by Israel are detrimental to Haram al-Sharif. Turkey also supported the Quartet and its Road Map. After the victory of Hamas in the legislative elections Turkey also took a bold step in its role as a third party in the Israeli-Palestinian conflict and invited Khaled Mishal, Hamas leader who is currently residing in Damascus. The Turkish government later announced that Mishal was called to convey the message that now that it won the elections it should act in a reasonable and a democratic way. However, Mishal made no announcement of moderation or change in policy while he was in Turkey and thus the whole saga served only to give legitimacy to him. The visit was thus Turkey’s new activism in the Middle East 36 created a debate in Turkey and raised doubts about previous involvement of the Foreign Ministry in whole affair. The visit of Mishal on the other hand demonstrated how far the AKP government was ready to go in its third party role. In this case Turkey was threading a very fine line that could hurt its longstanding role as an honest broker. More than the idea of talking to Hamas, which could be a valuable third party role for Turkey, the way it was done was problematic. Disappointed by post-Annapolis inaction and the negative impact of the embargo on the Gaza population, the Turkish government emphasized the volatility of the situation throughout 2008. Prime Minister Erdogan referred to Gaza as an open prison and apparently asked the Israeli government to lift the blockade. When the cease-fire between Hamas and Israel ended, Ankara supported Egypt’s efforts to extend it. The Israeli attacks against Gaza created a harsh response from the Turkish government. Prime Minister Erdogan immediately started a regional tour where he paid visits to Jordan, Syria, Egypt and Saudi Arabia. He also had talks with the President of the Palestinian Authority, Mahmoud Abbas. Then the Turkish diplomats got involved in a shuttle diplomacy to broker a cease fire. The government’s response to Gaza attack however seemed to tarnish Turkey’s image as an honest broker in the conflict. Especially the Prime Minister’s approach to the issue was quite emotional. Erdogan was very critical of Israel and yet equally silent about Hamas’ share of responsibilities in the whole saga. The overall Turkish attitude during the crisis gave the impression of Turkey acting as a spokesperson for Hamas. Although this attitude has become popular with the masses in Turkey and in the Middle East, it created tensions in Turkish-Israeli relations. The relations were restrained further when Erdogan clashed angrily with Israeli President Shimon Peres in Davos and stormed out of the meeting. On the other hand, the new setting also created some opportunities for Turkey to be influential over Hamas and to convince it to behave act as a legitimate political party. Turkey has also been active in reconciling Fatah and Hamas, which seems essential for any progress in the peace process. Whether Turkey could use this potential, however, remains to be seen. In any case, however, both the regional and extra regional actors recognize Turkey’s significance in the region. This fact, coupled with Turkish government’s continuing eagerness to be engaged, creates a space for Turkish activism. Both Israel and Turkey have already engaged in downplaying the impact of the recent crisis and engaged in damage control. It is also clear that Turkey stands out as the most important partner for Obama Administration in the wake of new initiatives in the region. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 From Hard to Soft Power In the 1990s Turkey tried to tackle the challenges emanating from the Middle East through traditional power politics approach. Ankara redefined its strategy and identified the Middle East as the number one source of threat to Turkey. Casting of the issue as one of an existential threat called for increasing use of military means towards the region. Turkey’s new policies led to a general deterioration of Turkey’s relations with the region. Thus, in most of 1990s Turkey had problems with its Middle Eastern neighbors. Ankara only perceived threats from the region and tried to deal with those threats through the use of hard power. Turkey used the threat to use of force against Syria, militarily intervened in northern Iraq to deal with the PKK problem and developed its military ties with Israel.7 In recent years Turkey has also been increasing its ability to use soft power. Due to its political and economic transformation, linked strongly to the EU process, Turkey has become an object of attraction. Especially the AKP government has been eager to project Turkey as a soft power in the Arab and Muslim world. In their speeches at different meetings both Prime Minister Erdoğan and then Foreign Minister Abdullah Gül stressed the compatibility of Islam and democracy; the necessity of political and economic reform in the Islamic world; and the promotion of harmony between different cultures and civilizations. Turkey, from this perspective, was an example of all that. In his speech at the Council on Foreign Relations in New York in 2004 Prime Minister Erdogan stated that Turkey as a stable country with a successful development model, its place within the Western world, its rich historical heritage and identity. Turkey will become a symbol of harmony of cultures and civilizations in the 21st century. Turkey will 7 For Turkey’s Middle East policy in the 1990s see ROBINS, Philip, Suits and Uniforms: Turkish Foreign Policy Since the Cold War, Seattle: University of Washington Press, 2003. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 37 Turkey’s new activism in the Middle East In sum, Turkey has increasingly been involved in the management and resolution of conflicts in the Middle East, and its role has been accepted by different regional and external actors. However, it is clear that Turkey needs to study and think more about its goals and the appropriateness of its various methodologies. In doing so, Turkey must to assess its own capabilities and connection to the conflicts, as there is a danger of having an expectations-abilities gap. Similarly, in each case, there should be an assessment of costs and benefits, as the Mishal visit vividly demonstrated. Finally, there is the danger of overextension as Turkey remains eager to play third party roles. achieve this not only through economic and military power, but with its capability to contribute to universal values and to facilitate the interaction of these values among different regions. In this regard, Turkey will be a reliable power for the maintenance of security, a partner for economic development, and an ally in overcoming existing instabilities in its vicinity, primarily in the Middle East. Thus, Turkey will become a source of inspiration for the countries in its region in taking steps which will prevent them from becoming failed states.8 Turkey’s new activism in the Middle East 38 Similarly, Gül in his speeches at the Organization of Islamic Conference (OIC) foreign ministers meeting in Tehran in May 2003 and the World Economic Forum meeting in Jordan emphasized the importance of achieving good governance, transparency, accountability, respect for human rights, and integration with the rest of the world for the Islamic world. 9 Turkey has also been instrumental in trying to fight with the idea of a clash between the Islamic world and the West. Thus together with Spain Turkey became the co-president of an initiative called Alliance of Civilization under the UN auspices. As a country with a Muslim population and historically been part of the Western institutions Turkey is out to lose tremendously from a clash between civilizations. Thus the prevention of such a clash and promotion of links between two worlds has become an important part of AKP government’s policy. Recently Turkey’s image in the Arab world and Iran has further improved as a result of Turkey’s critical stance against Israeli policies and particularly the recent Gaza assault. Turkey’s new policies undermined two powerful criticisms traditionally directed against Turkey in the region: namely, being a stooge of the US in the region and its relations with Israel. Turkey’s new activism is thus characterized by a respected Arab intellectual as “a regional power out of hibernation.”10 Turkey’s newfound popularity is reflected in the popularity of Turkish TV series in the Arab world. The Turkish lifestyle that is reflected in these dramas has clearly attracted a lot of interest in Turkey, as demonstrated in increasing tourism to Turkey as well as interest in learning the Turkish language. 8 ERDOGAN, Recep Tayyip 2004. “Turkish Foreign Policy for the 21st Century”, Council on Foreign Relations, January 26, available at www.cfr.org/publication.html?id=6717 accessed on September 22, 2008. 9 GUL, Abdullah, “Turkey’s Role in a Changing Middle East Environment”, Mediterranean Quarterly, Winter 2004. 10 Adonis, “Turkey: A Regional power out of hibernation,” 2 February 2009 available at http://adonis49. wordpress.com/2009/02/02/turkey-a-regional-power-out-of-hibernation/ accessed on 5 March 2009. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 29-39 39 Turkey’s new activism in the Middle East Therefore, it can be argued that geopolitical threats and opportunities together with AKP government’s willingness as well as changing image of Turkey in the region come together to create new opportunities for Turkey to play constructive roles in the Middle East. Turkey looks attractive to different actors as it promotes cooperation, constructive engagement, stability, regionalism and wealth rather than conflict, instability, and domination. The realization of playing such roles for Turkey, however, is also contingent on several factors. First, domestically Turkey should be able to overcome the politics of polarization that has debilitates the country from time to time and should continue its own reforms and democratization process. Turkey’s own domestic political and economic strengths will increase its assets as to playing more constructive roles in the region. Second, in terms of foreign policy the issue of reconciling Turkey’s activism in the Middle East with that of Turkey’s traditional Western orientation will continue to be at utmost importance. This does not mean to agree totally on every policy issue, and yet it signifies an agreement on the general norms and principles and working towards similar objectives. With the Obama Administration there seems to be more convergence between the US and Turkey in that regard. Continuation of the EU process is also very significant in that respect. The evolution of Turkey’s Middle East policy towards more constructive engagement and increase in Turkey’s soft power potential have occurred within the context of improving Turkey-EU relations. Similarly, it is also clear that there is much for Turkey to contribute the EU’s actorness in this region. Therefore, positive developments in Turkey-EU relations are bound to create new synergies in the region. If Turkey can be successful in achieving these domestic and foreign policy objectives this would contribute immensely to the prosperity and stability in a region where they are badly needed.NE Anton Bebler* What to do about the Western Balkans? 40 What to do about the Western Balkans? ■ Abstract: At the turn of the last century outward tranquillity was imposed on the – Western Balkans, the most volatile and troublesome part of the European continent. The termination of large scale violence however did not add up to long-term stability in the region. Its political elites have proven to be incapable and/or unwilling to resolve among themselves peacefully their differences and to provide for the region’s security. The management of the most burning problems in the Western Balkans would be best assured within the process of European integration. With active and well coordinated roles played by key international organizations, the Western Balkans could be eventually transformed into a region of security, democracy and prosperity. ■ Key words: Western Balkans, Balkanization, Kosovo, security, international community, UN, OSCE, EU, NATO. POLITICAL TENSIONS IN 2008 related to or in Kosovo, Serbia, Macedonia and Bosnia & Herzegovina have again attracted attention to the Western Balkans in mass media and in several important international bodies (UN, OSCE, EU, NATO). The purpose of this article is to elucidate the Balkans’ manifold complexity, its conflict potential, the recent geopolitical shifts in and around the region, the controversial problem of Kosovo, its international implications and the lessons that could be drawn from the international community’s record in dealing with the volatile Western Balkans. The general characteristic of the region During the last two centuries the Western Balkans have well merited the distinction as the most volatile and troublesome part of the European continent. Throughout the XXth century local armed conflicts and coalition * Professor. Faculty of Social Sciences, University of Ljubljana, Slovenia. [email protected] NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 1 Blank, Stephen J. (ed.), Yugoslavia’s wars:The problem from hell, Carlisle, Pa, Strategic Studies Institute, U.S. Army War College, 1995, Chapters 2,3,5,6. 2 Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard, Basic Books, 1997, New York, Chapter 3 ‘Euroasian Balkans’, pp. 7-25, 29-45, 99-108. 3 Johnsen, William T., Deciphering the Balkan enigma: Using History to Inform Policy, Carlisle, Pa, Strategic Studies Institute, U.S: Army War College, 1995, Chapters 2 in 3, pp. 9-60. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 41 What to do about the Western Balkans? wars with continental implications, terrorism, uprisings, revolutions, coups d’etat, mass expulsion of population, outright genocide and other forms of violence have at almost regular intervals punctured the periods of regional peace. After four decades of relative calm the latest bouts of bloody violence and wars in the region took place again in 1990-1995 and in 1998-1999.1 This former upsurge was largely triggered by otherwise positive developments – by the end of the “Cold War”, the breakdown of communist regimes and by the ensuing transition in Eastern European states to more democratic political systems and to market economies. The Western Balkans have once again shown high sensitivity to the shifts in the balance of power among major extraregional actors. In these respects the Balkans have differed very appreciably from all other regions in Europe, including the Northern half of former Eastern Europe Not incidentally the geopolitical fault line stretching from South-Eastern Europe eastward all the way to the Pacific was branded by Z. Brzezinski the “Euroasian Balkans”.2 The geopolitical instability in the Balkans has had deep historical roots. During more than a millennium numerous incursions, conquests and migrations created in the Balkans a unique and most heterogonous mixture of peoples and ethnic groups speaking different languages and professing different religions.3 South Eastern Europe overlaps partly with the Mediterranean, Central Europe, Pannonian and the Black Sea regions. The central part of South Eastern Europe – the Balkans have been for many centuries divided between several empires, all with extraregional centers of power. The Balkans have therefore never become a viable and coherent region in cultural, economic or political sense. Even its present name was invented about three and a half centuries ago by outsiders (German geographers) mistakenly using a Turkish word for a “mountain”. After four centuries of Ottoman domination and their withdrawal from most of their former European possessions the Balkans have become a complicated political mosaic clearly lacking the own center of gravity. The disintegration of ex-Yugoslavia in stages between 1991 and 2008 has greatly increased the number of states in the Western Balkans. The proclamation of Kosovo´s independence was the latest development in this direction. However the potential for further political fragmentation in the region, largely following the ethnic–national lines has not yet been fully exhausted, What to do about the Western Balkans? 42 in spite of the general disapproval of ‘Balkanization’ by major powers. Each of the seven much smaller states which resulted from the breakdown is today much more homogeneous within its own boundaries from the ethnic, religious and cultural view-points than had been the SFR of Yugoslavia. The dramatic change, wars and other developments since the late 1980s have also caused huge economic dislocation and damage to the region.4 The Western Balkans still have not reached the pre-1991 levels of industrial and agricultural production. In some parts of the region war losses, dislocation of human and natural resources, the breakdown of previously integrated transportation and energy systems, economic fragmentation and the loss of markets wiped out the positive results of up to three decades of the preceding economic progress. The very uneven damage to their economies has greatly increased the disparities between the most and the least prosperous parts of the region. The intraregional differentials in GNP per capita and in the level of unemployment inside have gone up dramatically. Huge disparities and poverty in parts of the region inevitably feed illegal trafficking and organized crime. It is estimated, for example, that about three fourths of heroin is being smuggled to the EU area from/via the Balkans. Social instability, economic difficulties and political unrest have very significantly contributed to the continuity of negative national and religious stereotypes created and maintained by the generations-long indoctrination with historical myths.5 Interethnic tensions have been further magnified by modern mass media manipulated and exploited by ruthless politicians. The traumatic history of the region has thus served as a powerful tool for mass mobilization with nationalist, religious and xenophobic slogans. All this has led to the most tragic results in Bosnia and Herzegovina and in Kosovo. The present security situation in the Balkans The tectonic geopolitical shifts in the early 1990s and the crisis of neutralism and nonalignment led to a radical political and military realignment in the Balkans and also in the region’s relations with external powers. With the greatly reduced Russian influence (and the total eclipse of the shortly-lived Chinese political presence in Albania) practically the entire region has become oriented towards the West. As the region lacks large scale mineral, energy or other resources its geopolitical importance has relatively declined. The Balkans have furthermore ceased to be an object of overt contests for political and military control 4 Altmann, Franz-Lothar, Regional economic problems and prospects in The Western Balkans: Moving on, Chaillot Paper no.70, Paris, Institute for Security Studies, 2004, p.p. 69-84. 5 Batt, Judy, Introduction: the stabilisation/integration dilemma in The Western Balkans: Moving on, Chaillot Paper no.70, Paris, Institute for Security Studies, 2004, p.p. 7-19. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 6 Burg, L. Steven, Negotiating a settlement: lessons of the diplomatic process in Yugoslavia’s wars: The problem from hell, 1995, p.p. 47-86. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 43 What to do about the Western Balkans? or domination by external powers. The extra-regional sources of conflict in, over or about the Balkans have been therefore greatly reduced. Most importantly, the Balkans are not anymore Europe’s powderkeg as they were in 1914. Instead the region gained in international notoriety as a source of frequent troubles and as a costly nuisance. On the other hand, the geopolitical shifts have also greatly diminished the big powers’ positive motivation for providing international assistance to the region. Since June 1999 outward tranquility was imposed on the Western Balkans. After several unsuccessful attempts by UN, CSCE/OSCE and EEC/EU6 the end of armed hostilities was achieved primarily by NATO. After considerable hesitation the Western powers had decided in mid-1990s to intervene, politically and militarily in the Balkans. The very positive result of their forceful military and political interventions the termination of armed violence in Croatia, Bosnia and Herzegovina, Kosovo and Macedonia. It was followed by the advances of competitive political democracy which have however remained rather superficial. The tranquility in the region has been since preserved by de facto international protectorates over parts of the region. These systems of external surveillance and assistance have included the stationing of peace-keeping and stabilization troops, the presence of international police, armed and unarmed observers, judges, ombudsmen, administrative overseers etc. As was noted earlier the termination of the East-West political and military rivalry over the Balkans has had security-wise both negative and positive consequences. The suppression of armed violence by superior force did not add up to long-term regional stability, as was manifested in 2008 in Kosovo, Serbia, Macedonia and Bosnia & Herzegovina. The security situation in the Western Balkans still remains precarious and we observe in the region a combination of old sources of tensions and some new positive developments. Under the veneer of tranquility some serious political and security problems still persist in the Western Balkans: the presence of intolerance, pathological nationalism and xenophobia; underdeveloped democratic political culture, the lacking art of compromise; several varieties of non-military threats to regional security and stability (ill-governance, corruption, organized crime, illegal trafficking in arms, drugs, human beings etc.); unresolved problems of interstate borders and minorities; the humanitarian problem of well over one million and a half refugees and displaced persons. What to do about the Western Balkans? 44 Many attempts have been made in the past to create region-wide webs of cooperation and security in the Balkans. These included two Balkans defense pacts, one in the 1930s and the other in the 1950s. The first failed miserably while the second – the Balkan pact between Yugoslavia, Greece and Turkey signed in August 1954 – never became a reality. So far none of the regionally generated initiatives and undertakings has proven viable, largely because they have never led to sustained political activity on a regional basis. Moreover, all Balkans initiatives have as a rule lacked the support and active involvement by the public, mass media and organizations of civil society. A more promising approach to cure the instability in the region has manifested itself in the efforts to induce and infuse from outside economic, political and security cooperation with and among all Balkans states.7 These efforts have resulted since the 1980s in a web of ties among these states and between them and a number of international organizations. This web has been almost exclusively Western in origin and included such nets as the “Stability Pact for South-Eastern Europe”, CEFTA, SECI, NATO’s “Partnership for Peace”, “South East Europe Initiative”, “South East Europe Security Cooperation Steering Group” et. al. Through the “South-East European Cooperation Process” (SEECP) the European Union has fostered multifaceted cooperation among the states of the Western Balkan. Its recent successor – the ‘’Regional Cooperation Council’’ with the seat of its Secretariat in Sarajevo will hopefully continue successfully this laudable effort. The European Union has promoted regional integration also by concluding several types of cooperation, stabilization and association agreements. These agreements have served as preliminary steps to bringing closer to and hopefully eventually admitting all remaining Balkans states into the ranks of its future members. The strategy of staged integration had been successfully practiced earlier with two other groups of former Eastern European states - the Visegrad group and the three Baltic republics. However this strategy has not so far worked well in the Western Balkans as the nets involving these states have been overly dependent on outside donors, mostly understaffed, poorly interconnected and coordinated. As a result of these shortcomings a few of them have proven to be effective. In addition some of these nets have partly blocked one another. For example, the EU enlargement has undermined the pre- 7 Delevic, Milica, Regional cooperation in the Western Balkans, Chaillot Paper no.104, Paris, Institute for Security Studies, 2007, Ch.2,3, pp. 31-72. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 The Kosovo problem and its international implications Kosovo’s proclamation of inde- pendence on February 17, 2008 and the birth of the so far youngest European state have highlighted the salience of historically generated sources of intraregional tensions and conflicts in the region.8 In late XIX c. – early XX c. the Kosovo issue used to be a minor chapter in the wider Albanian question within the decaying Ottoman Empire. Kosovo as a separate and potentially volatile problem was created in 1912-1913 by the Kingdom of Serbia, strongly supported by the Russian Empire and also assisted by other great European powers. Prior to 1912 Serbia, Greece and Montenegro have for many years conspired with the Russian Empire in order to prevent the birth of an independent Albanian state on the ruins of the Ottomans possessions in the Western Balkans. According to their coordinated plans the three Orthodox states were to occupy and partition the lands with the majority Albanian population thus forestalling an Albanian declaration of independence. According to these plans the Serbian army invaded Kosovo in 1912 on its way to conquer Northern Albania and its main port Durres. However Serbia’s plans to gain by force a permanent territorial access to the Mediterranean sea were foiled by Austro-Hungary and Italy. Having bowed to an Austro-Hungarian ultimatum the Serbian Army hesitantly withdrew from Northern Albania in 1913. The European powers – Great Britain, France, Germany, Austro-Hungary and Italy, at Russia’s insistence allowed however Serbia and Montenegro to retain the already occupied Eastern parts of the Ottoman possessions inhabited predominately by the Albanians, by other Muslims and Orthodox Slavic Macedonians.9 These lands (the Sandzhak of Novi Pazar, today’s Kosovo and Western Macedonia) were absorbed by Serbia without a duly legalized annexation. The new Serbian colonial possessions were incorporated 8 Delevic, Milica, The Kosovo problem in a regional perspective in The Regional cooperation in the Western Balkans, Chaillot Paper no.10, Paris, Institute for Security Studies, 2007, p.p. 79-82. 9 Kola, Paulin, The search for greater Albania, Hurst & Company, London, 2003, pp. 10-18. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 45 What to do about the Western Balkans? viously existing free trade and visa-free regimes in the region and in fact erected new interstate barriers. The EU visa rules and the extension of the Schengen regime have also created considerable problems on the practical level which have hampered the movement of persons, economic and cultural cooperation. Moreover, there had been a conceptual incongruity between the “Stability Pact for the South-Eastern Europe’’ and the “Stabilization and Association Process” conducted by the European Union. What to do about the Western Balkans? 46 in 1918-1919 into the Kingdom of the Serbs, Croats and Slovenes10 which was later renamed into the Kingdom of Yugoslavia. Between the two World Wars the problem of Kosovo had represented a serious problem with internal political and security implications. Its destabilizing effect contributed two decades later to the Kingdom of Yugoslavia’s disintegration in 1941. Kosovo continued to create considerable internal difficulties also in the second, post-1945 Communist Yugoslavia and eventually accelerated its breakdown in 1991-1992. After the latter’s demise the Kosovo problem had been for several years totally ignored by the international community and reappeared only in 1997-1998 as an unresolved regional political issue, the last vestige of Yugoslavia’s succession wars. The Kosovo problem has contained at its kernel a political conflict between the Kosovar Albanians’ desire for national emancipation and self-determination and, on the other hand, the Serbia political class’ endeavors to continue ruling the land from Belgrade. For Serbian cultural and political elites Kosovo still remains a cherished symbol of Serbia’s past glory. A compromise solution in the form of Kosovo’s wide autonomy within Serbia had existed in the past under the last SFRY constitution of 1974. This historic compromise was however effectively annulled in 1989. Its brutal unilateral act by the Milosevic regime, accompanied by police intimidation and by the presence of tanks in the streets of Pristina. The termination of Kosovo’s autonomy grossly violated the Yugoslav constitutional order. Moreover, the Yugoslav military and Serbian police committed numerous crimes against the Kosovar Albanians and other Muslims in Kosovo in 1989-1999, the causing i.a. death of at least 10.000 Kosovars. According to the UNHCR statistics about 350.000 persons, mostly Albanians, were forced by the Serbian authorities to leave Kosovo in 1998 and nearly 1,5 million by June 1999.11 The Serbian rule over Kosovo was abruptly terminated by the NATO intervention in March-June 1999. Subsequently it could be reestablished neither peacefully nor by armed force. Since summer 1999 Kosovo had been a NATO protectorate and a de facto increasingly self-governing country under a UN mandate, fully separate from and independent of Serbia. During that period Kosovo had developed a different political 10 Noel, Malcolm, Kosovo, A Short History, London, Macmillan, 1998, pp. 43-50,61-63,129-256,289-294, 314-316. 11 Kola, Paulin, The search for greater Albania, Hurst & Company, London, 2003, p. 363. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 12 Altmann, Franz-Lothar, The status of Kosovo in What status for Kosovo?, Chaillot Paper no. 50, Paris, Institute for Security Studies, 2001, p.p. 19-32. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 47 What to do about the Western Balkans? and economic system and adopted a different currency.12 Under international protectorate the economic, social and political situation in Kosovo has significantly improved. The progress has been due to international assistance (around 21% GNP) and the Kosovars’ remittances from abroad (roughly15% of GNP). Gross national product per capita in Kosovo has quadrupled to around € 1000 p.c. It has remained however twice lower than in the neighbouring Balkans states, while poverty (about 45% of the population) and very high unemployment still prevail (well over 40% generally, and about 70% among the females and the young). The international community has spent on its regular activities in Kosovo about € 2 billion annually, although mostly on providing security and maintaining its personnel. Only a small fraction of international funds (5-8%) flows directly into Kosovo’s economy. The problem of Kosovo´s status was formally resolved by a unilateral declaration of independence, with a tacit approval of USA and major EU members. This action was carried out, however, without a prior UN Security Council resolution. The Security Council however did not subsequently annul Kosovo’s independence, as Serbia demanded. A large EU mission called EULEX started operating on June 15, 2008 when the new constitution of Kosovo came into effect. Its legality was claimed by the Western powers under the UNSC Resolution 1244/99 but challenged by the Russian Federation. As the UN mandate could not terminated due to disagreements in the Security Council the presence of UNMIK, as well as of the missions of OSCE and NATO have continued. After protracted negotiations the EULEX operation was legalized within the framework and with the constraints of the same Resolution 1244/99. The EULEX however was not allowed to carry out the UN-commissioned recommendations by Marti Ahtisaari. The youngest European state has been since its declaration of independence recognized by 54 states, including three permanent members of UN Security Council, a majority of EU and NATO members and by all Kosovo’s neighbours with the sole exception of Serbia. Although its existence has been protected by international forces and its economic survival secured Kosovo remains an incomplete structure with limited viability and sovereignty, lacking control over its entire territory and population. The declaration of independence was a necessity but it did not resolve Kosovo’s burning political and social problems. Kosovo thus still remains on Europe´s political agenda as a divisive issue. What to do about the Western Balkans? 48 Kosovo represents only one of the numerous political conflicts in the world which has been closely related to the ethnic, national, linguistic, cultural and religious divides within sovereign states. In the Euro-Atlantic area alone the geography of these tension areas spans from Quebec, Greenland, Scotland, Ulster, Catalunya and Basque country in Spain, Belgium and Corsica in France, to Slovakia, Estonia, Western Ukraine, Bosnia & Herzegovina, Western Macedonia, Eastern Moldova, Southern Russia and Cyprus. Further to the South-East and East similar trouble spots stretch from Palestine and Northern Iraq all the way to Tibet, Taiwan, Shri Lanka, Philippines and Indonesia. The total number of problems threatening the internal stability of many multiethnic and multireligious states in Africa is also high. Each of these conflicts has been dealt with (or ignored) by the international community separately. Thus the resolution of Kosovo’s legal status did not have to create a spill-over effect and/or be replicated elsewhere. It was quite unnecessary for the Russian Federation to cite the recognition of Kosovo’s independence by the West as justification for recognizing Abhazia’s and Southern Osetia’s independence. In these three, in some respects similar developments the Russian Federation and also most EU and NATO member states acted inconsequentially when they honoured the principle of self-determination by one case and disregarded in the other(s). Since the end of the ‘Cold War’ there have been close to two dozen changes of internationally recognized borders in the Euro-Atlantic area, mostly without a UN Security Council approval. Each of these changes – in Germany, former Yugoslavia, Czechoslovakia and the Soviet Union took its own course. The political effects of the new interstate borders has mostly positively affected European security. The year since the adjustment of Kosovo’s legal status vis-a-vis Serbia to the de facto situation since 1999 has brought largely the same results in spite of occasional flare-ups of protests and low-scale violence in North Kosovo. Once the relations between the two states are normalized the peaceful new interstate border between Serbia and Kosovo could in the future become a positive example of constructive cooperation. International community facing the Western Balkans The political elites in the Western Balkans have proven time and over again their unwillingness and/or inability to reach by mutual accommodation and compromise agreements on conflictual issues with their neighborus. This fundamental feature has been demonstrated, i.a. in the longstanding Greek-Macedonian dispute over the constitutional name of Macedonia and in the Serbian-Kosovar Albanian negotiations on the status of NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 13 Sophia, Clement, The International Community response in Conflict Prevention in the Balkans, (Chaillot Paper no. 30), Paris, Institute for Security Studies, 1997, p.p. 46-74. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 49 What to do about the Western Balkans? Kosovo. When involved in conflicts with their neighbours the Balkans elites usually strive to pull in outside powers instead of trying to solve the problems bilaterally or within a regional framework. Mainly for this reason the recent Balkans conflicts brought about the political and military involvement by four permanent members of the UN Security Council (US, UK, France and the Russian Federation). During the last two decades they have also been frequently on the agendas of the UN, CSCE/OSCE, EEC/EU, NATO and the Council of Europe, often contributing to the already existing divisions and antagonisms among the great powers.13 The Kosovo problem has served as cause or pretext for political tensions, notably between USA, and major EU members, on one hand, and the Russian Federation and Serbia, on the other. In 1998-1999 the Kosovo issue posed a serious challenge also to NATO's inner political cohesion. The Alliance was able then to soften the differences among its members and to reach a consensus concerning the pending forceful military action against the Milošević regime in the Federal Republic of Yugoslavia in March-June 1999. Nine years later the question of Kosovo’s status has again divided EU and NATO members. A strong majority in both organizations has accepted the M. Ahtisaari recommendation as the least bad of all available alternatives and consequently recognized Kosovo’s independence. A minority of EU and NATO members, notably Greece, Cyprus, Spain, Slovakia and Romania have however remained so far close to Serbia’s flatly rejectionist position. The disagreements among the EU members on this issue have been more visible in 2008 than were the discords among the EEC members in 1991 concerning the recognition of Slovenia’s and Croatia’s independence. This comparison does not speak well about the coherence of the EU Common Foreign and Security Policy fifteen years after its official launching in November 1993. The international record of dealing with the sources of instability and insecurity in the Western Balkans has highlighted the importance of: • the clear understanding and realistic appreciation of the complexity of problems in the Western Balkans which defy quick unidimensional solutions; • the previously underestimated interconnection between the security in the region and the security in other parts of the continent; What to do about the Western Balkans? 50 • a robust and well-coordinated international action to improve the economic and social situation in the region and to repair and develop its infrastructure; • the great contribution to conflict management and stabilization in the Western Balkans made by NATO and EU members (France, UK, Germany, Italy, Turkey, Greece) and also by some non-members, including the Russian Federation and Ukraine; • the fundamental need for a consensus among and subsequently coordinated actions by Western powers, particularly by USA and EU members states; • the need for a rational division of labor and effective coordination of activities among numerous international actors operating in and/or dealing with the region (UN, OSCE, NATO, EU, Contact group etc.); and also between various programs conducted under their sponsorship; • avoiding the danger of a vicious circle of dependency on foreign peace-keepers (as it has happened on Cyprus) and the adoption of a realistic exit strategy for them. The more overlapping Balkans institutions there exist and well function, the more states take active part in them the better it is for the region and for the whole Euro-Atlantic community. These observations are relevant also in the case of the youngest Balkans state. Having become an independent state Kosovo ought to be admitted to international financial institutions and other organizations as well as to regional interstate networks in the Western Balkans. Kosovo’s admission into these bodies would have beneficial effects on the overall security situation in the Balkans. All states aspiring to become members of the European Union and/or of NATO have been warned however that their admission into these organizations would be conditional on their commitment to fulfill constructively their responsibilities in the region. The implementation of this injunction would certainly help to promote regional cooperation.14 A note of caution ought to be added concerning the general proposition that the management of Balkans problems would be best assured within the framework of European integration. The ill fate of the ´Treaty on a constitution for new Europe´ and the rejection of the Lisbon Treaty by Irish voters indicated, in addition to unrelated internal political reasons also considerable resistance in the older member 14 Van Meurs, Wim (ed.), Prospects and Risks Beyond EU Enlargement, Southeastern Europe: Weak States and Strong International Support, Opladen, Leske + Budrich, 2003, pp. 16-20. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 states to further enlargement of the European Union into Eastern Europe and the Balkans. It became questionable whether EU will be indeed willing and able in the near future to implement the Thesaloniki commitments to the Western Balkans states without scaling down and delaying their implementation. 51 Balkans leads to the question how best to deal with the Western Balkans? First of all, the Western Balkans countries should be actively encouraged to further develop and strengthen the existing ties among themselves by forming pragmatic regional networks of cooperation in practical matters. On the other hand, one could not realistically expect the Balkans countries to overcome the persisting sources of internal instability in the region entirely by their own efforts. The Balkans elites, if left alone are simply incapable of transforming the region into a viable and peaceful community of nations even distantly comparable e.g. to Scandinavia. The international community’s ability to manage numerous problems in the Western Balkans could be best improved by the further strengthening of the European Union’s and of NATO’s presence and influence, while preventing the appearance of new lines of division within the region. This extension would have better results if coordinated with the UN, OSCE, Council of Europe, World Bank, EBRD etc. The region’s transformation should be firmly imbedded in the broader European integration process. Moreover, international military and police presence will be still needed probably for many years. This has been one of main objectives of Slovenia’s Presidency in the Council of the European Union in the first half of 2008. During those six months the net of stabilization and association agreements was extended to cover the entire region, except Kosovo. Pre-accession negotiations have since continued with Croatia and Macedonia as official candidates for EU membership. The status of potential candidates was confirmed for Albania, Bosnia & Herzegovina, Serbia, Montenegro and also for Kosovo within the context of UN Security Council Resolution no. 1244/99. The admission of Croatia and Albania into NATO in 2009 will also represent steps in the right direction. In the decades to come the process of EU and NATO enlargement, in spite of many difficulties and occasional setbacks is expected to transform the Western Balkans into a desired space of democracy, economic and cultural dynamism, prosperity and security. This process needs however to be consistent, well coordinated, sensibly tuned and finely adapted to each country.NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 What to do about the Western Balkans? Conclusion The above-presented review of the problems in and related to the Western 52 SELECTED BIBLIOGRAPHY: Batt, Judy (ed.), The Western Balkans: moving on (Chaillot Paper no. 70), Paris, EU Institute for Security Studies, 2004. What to do about the Western Balkans? Batt, Judy, The question of Serbia, (Chaillot Paper no. 81), Paris, EU Institute for Security Studies, 2005. Batt, Judy (ed.), Is there an Albanian question?, (Chaillot Paper no. 107), Paris, EU Institute for Security Studies, 2008. Blank, Stephen J. (ed.), Yugoslavia’s wars:The problem from hell, Carlisle, Pa, Strategic Studies Institute, U.S. Army War College, 1995. Clément, Sophia, Conflict prevention in the Balkans: case studies of Kosovo and the FYR of Macedonia (Chaillot Paper no. 30), Paris, EU Institute for Security Studies, 1997. Delevic, Milica, Regional cooperation in the Western Balkans (Chaillot Paper no. 104), Paris, EU Institute for Security Studies, 2007. Johnsen, William T., Deciphering the Balkan enigma: Using History to Inform Policy, Carlisle, Pa, Strategic Studies Institute, U.S: Army War College, 1995. Kola, Paulin, The Search for Greater Albania, London, Hurst & Company, 2003. 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N.º 14 Abril de 2009 pp. 40-52 Marcello Vaultier Mathias* O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República 53 Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia “The Balkans produce more history than they can consume” ■ Abstract: The Difference over the name of the Former Yugoslav Republic of Macedonia The Greek Perspective The issue over the official name of the Former Yugoslav Republic of Macedonia has lasted for more than 17 years and still holds back both Greece and FYROM from reaching an agreement. The controversy, which lays on an identity difference between the two States, has led to a diplomatic struggle over which entity has the right to use the name Macedonia. This article will attempt an analysis of the dispute mainly in the Greek perspective, from its origins to the present day, in order to underline the factors that have, over the years, influenced the Greek Policy. Therefore, it will focus on periods of particular significance and will examine how they have contributed to further developments. Finally it aims to contribute to a better understanding of today’s Greek Foreign Policy position on the issue. PARA MELHOR COMPREENDER a natureza e contornos do diferendo existente entre Atenas e Skopje, sobre a denominação da Antiga República Jugoslava da Macedónia (ARJM), importará pôr em perspectiva os antecedentes históricos da questão. Embora não se pretenda aqui relatar, a par e passo, todos os factos relacionados com a designação da Antiga República Jugoslava da Macedónia (ARJM) e com a disputa existente sobre o assunto, valerá a pena recordar alguns aspectos essenciais que estão na origem deste contencioso, bem como avaliar a sua evolução, na perspectiva da Grécia. Desde logo, convirá ter presente que, nesta matéria, quase todos os aspectos da questão são fonte * Diplomata, Secretário de Embaixada em Atenas. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia Winston Churchill 54 de discórdia, a começar pelo próprio termo “Macedónia”, que tem sido tema de disputa entre especialistas, no que toca à sua definição, geográfica, demográfica e linguística. O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia Enquadramento Histórico Segundo a mitologia grega antiga, a palavra “Macedónia” encontra as suas origens no termo “Makedon”, nome atribuído ao chefe da tribo que se estabeleceu na região norte da Grécia. A palavra é referida, pela primeira vez, nos escritos conhecidos do historiador grego Heródoto1, na sua obra “As Histórias de Heródoto”. A palavra surge sob a forma de adjectivo “makedonós”, que significava “alto”, “comprido” e “elevado”. De igual modo o descreve o poeta grego Homero. O termo “Macedónia” era, assim, usado na Antiguidade para denominar a área habitada por uma tribo de gente de alto porte, tendo sido precisamente a aparência física desses habitantes que acabou por dar origem ao nome da região. Em termos sucintos, importará assinalar três fases distintas: – a Macedónia como Antigo Reinado, situado a Norte da Grécia Antiga fazendo fronteira a Ocidente com o Reino de Epiro e a Oriente com a Região da Trácia; durante o reinado de Filipe II, a Macedónia alcançará uma posição hegemónica dentro da Grécia; o primeiro Estado Macedónio formar-se-á no século VIII ou inícios do século VII AC, no tempo de Alexandre o Grande; o império irá durar até à conquista romana em 146 AC. – a Macedónia como região Província do Império Romano de 146 AC. até 284/395 DC. – a Macedónia como Província do Império Bizantino desde 284-395 até 14532, quando se dá a conquista de Constantinopla pelos Otomanos, passando a fazer parte do Império Otomano em 1355; os Turcos Otomanos estiveram na Macedónia durante cinco séculos. Em 1864 dá-se a divisão da Macedónia, no seio do Império Otomano, em três províncias, Salónica, Monastir e Kosovo. Em 1877, o Tratado de San Stefano reorganiza o domínio do Império Otomano sobre os Balcãs, incorporando grande parte da área geográfica da Macedónia no território búlgaro, que se estende até ao Mar Egeu e Mar Negro. Pouco depois, em Julho de 1878, o Tratado de Berlim vem revogar as decisões 1 2 Nascido em 485 AC, em Halicarnasso, que corresponde hoje a Bodrum na Turquia. Embora de 972 a 1014 se encontre sob domínio búlgaro e de 1316 a 1341 sob domínio sérvio. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 3 A palavra “Jugoslávia” significa “terra dos eslavos do sul”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 55 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia tomadas em San Stefano e, assim, retirar o domínio búlgaro sobre parte da Macedónia, que dessa forma regressa na totalidade ao Império Otomano. O Tratado reconhece, ainda, a total independência da Roménia, Sérvia e Montenegro. A região da Macedónia é, já nessa altura, motivo de fricção entre a Grécia, Bulgária e Sérvia, num período em que todos estes começam a dar sinais de um nacionalismo agressivo. A região é então habitada por búlgaros, gregos, turcos, albaneses, sérvios, arménios e judeus. Em 1893 é fundada a Organização Revolucionária Interna Macedónia, cujo principal objectivo é o de promover uma Macedónia única, indivisível e autónoma, habitada por “macedónios”, independentemente das suas origens religiosas ou étnicas. Rapidamente os países dos Balcãs se apercebem da necessidade de se unirem para conseguir retirar ao Império Otomano o domínio sobre a região da Macedónia. Nasce, assim, em 1912, uma aliança entre Sérvia, Montenegro, Grécia e Bulgária, a que é dado o nome de Liga Balcânica (ou Liga dos Balcãs), que visa conquistar os territórios ainda sob controlo Otomano. Nos anos de 1912 e 1913 dão-se as duas Guerras dos Balcãs, primeiro entre a Liga Balcânica e o Império Otomano, pela divisão dos territórios, e posteriormente entre a Bulgária de um lado e os seus antigos aliados (Sérvia, Grécia e Montenegro), aos quais se juntam a Roménia e o Império Otomano, por estarem insatisfeitos com o redesenhar do mapa dos Balcãs, que dava vantagens territoriais à Bulgária, em detrimento da Sérvia. Resultou na divisão do território macedónio entre gregos (região costeira) e sérvios (região central e norte da Macedónia). O Tratado de Bucareste, assinado em Agosto de 1913, veio pôr fim à Segunda Guerra dos Balcãs, retirando à Bulgária praticamente toda a área geográfica da Macedónia que lhe pertencera. Depois da Primeira Guerra Mundial, em 1918, é criado o Reino da Jugoslávia3, composto pela Eslovénia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia e Montenegro, incluindo as partes sérvias do Kosovo, Vojvodina e Macedónia. O Tratado de Lausanne, de 1923, vem reconhecer internacionalmente a nova República da Turquia como sucessora do extinto Império Otomano. O Acordo estabelece, ainda, a protecção da minoria grega residente na Turquia e da minoria muçulmana turca na Grécia. Dão-se trocas populacionais entre ambos os países. Nos primeiros dez anos de existência, o Reino da Jugoslávia era designado “Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos”, mas o termo Jugoslávia era já então o mais corrente. Durante a Segunda Guerra Mundial, a O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 56 Macedónia é ocupada pela Bulgária e depois integra a Jugoslávia. A partir de Dezembro de 1945 é criada a República Federal Popular da Jugoslávia, composta por seis repúblicas (de que fazia parte a República Popular da Macedónia) até 1963, altura em que passa a denominar-se República Socialista Federal da Jugoslávia. O nome República Popular da Macedónia é então igualmente alterado para República Socialista da Macedónia, designação que se irá manter até 1991, quando se dá a sua independência. A evolução da questão na Grécia Em meados dos anos oitenta, à excepção de esporádicas referências na imprensa, não existia um verdadeiro debate na Grécia sobre o nome oficial da Macedónia. Apenas alguns políticos, académicos e jornalistas, da cidade de Salónica, a norte da Grécia, pareciam preocupar-se com a questão. E só a partir de 1990 é que foram progressivamente surgindo novas vozes que, a pouco e pouco, conseguiram criar um consenso em torno dos perigos provenientes dos Balcãs e dos desenvolvimentos que conheciam os países da região. Rapidamente se criaram movimentos de contestação que, a coberto do slogan “a Macedónia é grega” deram início a marchas e manifestações pelas ruas da cidade de Salónica. Na altura, tendo em conta o período conturbado e confuso vivido na região dos Balcãs, a crescente contestação grega terá mesmo sido vista, por alguns, como uma tentativa de aproveitamento por parte da Grécia da situação caótica, decorrente da desintegração da Jugoslávia. Na realidade o principal objectivo era o de, por um lado, restaurar a estreita ligação existente entre a República Helénica e a Antiga Macedónia e, por outro, deixar claro, desde logo, que não seriam toleradas eventuais ambições irredentistas de anexação da região greco-macedónia, nem desígnios de se criar uma Grande Macedónia. A mensagem consistia em acentuar a ideia de que nenhuma outra região dos Balcãs, para além da Macedónia grega, poderia associar-se ou ser identificada com o antigo reino da Macedónia, pelo que seria excessivo por parte de um país eslavo querer, sequer, aspirar a usar o termo “Macedónia” para a sua designação oficial como novo Estado independente4. Na década de 90, os países da região dos Balcãs começam a procurar soluções e prioridades para os problemas que enfrentam tanto interna como externamente. A Macedónia, encontrando-se no coração da Península Balcânica e sendo habitada por 4 Foi, aliás, por essa altura, em 1992, que os Serviços de Correio gregos resolveram emitir uma série de selos representando antigos bens e objectos bizantinos e macedónios com o texto “a Macedónia foi e será sempre grega”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 5 Robert Badinter era, nessa altura, Presidente do Conselho Constitucional francês e havia sido designado Presidente da referida Comissão Arbitrária. 6 Com efeito, na sua opinião n.º 6, a Comissão Badinter entendeu que o recurso ao termo “Macedónia” não implicava, nem representava, reivindicações territoriais sobre outro Estado. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 57 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia várias nacionalidades (eslava, búlgara, albanesa, grega e turca), reunia em si circunstâncias particularmente sensíveis e complicadas. Na era pós-Tito, tornou-se claro que os frágeis equilíbrios dos últimos quarenta anos chegavam ao fim. Com a queda do Muro de Berlim e os crescentes tumultos que se registavam na região, rapidamente se aceleraram as tendências centrífugas. Em Dezembro de 1990, um referendo dá início ao processo de independência da Eslovénia. Um ano depois, outro referendo na República Socialista da Macedónia recolhe uma larga maioria de votos a favor da independência, a qual vem a ser declarada a 17 de Setembro de 1991. A partir daí, a ARJM procura o reconhecimento internacional como “República da Macedónia”. Desde então, evidenciam-se quatro fases distintas no relacionamento bilateral entre Skopje e Atenas, que merecem particular destaque: de 1991 a 1995, de 1995 a 2005, de 2005 a 2008 e de 2008 em diante. A 27 de Agosto de 1991, havia sido criada, pelo Conselho de Ministros da CEE, a Comissão Arbitrária da Conferência para a Paz na Jugoslávia, igualmente conhecida por Comissão Badinter5. Tinha por objectivo prestar apoio jurídico, através de opiniões e recomendações, sobre questões legais decorrentes da fragmentação da Jugoslávia, nomeadamente no que se referia à independência das antigas repúblicas jugoslavas. As primeiras conclusões da Comissão Badinter foram apresentadas em Novembro desse ano e as finais em Janeiro de 1992. No que se refere à República Socialista da Macedónia, a Comissão considerou que o país havia reunido as condições necessárias para aceder à independência, não tomando, assim, em consideração os argumentos avançados pela Grécia6. Por essa altura, o Parlamento macedónio havia transmitido às autoridades gregas a sua disponibilidade para proceder a algumas emendas na sua Constituição, solicitadas por Atenas. Para além disso, o Executivo de Skopje manifestara o seu empenho em cessar qualquer tipo de propaganda contra a Grécia, pelo que a Comissão Badinter considerou existirem sinais positivos para que o país pudesse aceder à independência. Contudo, a Declaração sobre a FYROM, do Conselho de MNE’s, de Dezembro de 1991 e a posterior evolução desta questão durante a Presidência portuguesa de 1992, acabaram por enfraquecer a recomendação da Comissão Badinter. Senão vejamos. Em O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 58 Dezembro de 1991, o Conselho de Ministros Negócios Estrangeiros da Comunidade Europeia é chamado a pronunciar-se sobre o desmembramento das repúblicas jugoslavas. O então MNE grego, Antonis Samaras transmitiu a posição da Grécia sobre a matéria, reiterando as objecções de Atenas ao uso do termo “Macedónia”, acentuando os perigos de futuras ou eventuais reivindicações territoriais e condenando a propaganda hostil proveniente de Skopje. A Grécia consegue, nessa altura, a inclusão dos seus pontos de vista nas conclusões em que são pedidas garantias a Skopje de que não haverá reivindicações territoriais sobre o país vizinho, nem serão conduzidas acções hostis contra o referido Estado7. De igual modo, o Ministro Samaras interpela a Assembleia-geral da OSCE, em Moscovo, quanto aos perigos de eventuais reivindicações territoriais por parte de Skopje sobre a região Norte da Grécia. O então Presidente macedónio, Kiro Gligorof, terá enviado uma missiva às autoridades gregas dando garantias de não existirem quaisquer intenções por parte do seu país sobre essa matéria. No ano de 1992, a batalha diplomática travada tanto por Atenas como por Skopje, para fazer valer os seus argumentos, adquire novos contornos. Por um lado, registam-se manifestações intensas na cidade de Salónica, tanto em 1992 como em 1993, que receberam ampla cobertura dos meios de comunicação social e às quais não terá sido alheia a intervenção da igreja ortodoxa grega8. As referidas concentrações contribuíram para passar uma mensagem à Comunidade Internacional de que o povo grego se sentia profundamente injuriado pela forma como esta questão estava a ser orientada. Criaram-se, assim, movimentos de base, que posteriormente passaram a ser usados como instrumentos ao serviço da política externa grega, atribuindo às populações uma influência, indirecta mas efectiva, sobre matérias de política externa. O povo grego rapidamente adoptou a posição mais extrema que vinha sendo defendida pelo Executivo, segundo a qual a República da Macedónia em caso algum poderia vir a ser reconhecida com um nome que incluísse o termo “Macedónia” ou quaisquer palavras derivadas. A partir dessa altura, as autoridades gregas apercebem-se que a eventual intenção de alcançar um compromisso com o país vizinho teria sempre pela frente um juízo decisivo do eleitorado. 7 “The Community and its members also require the Yugoslav Republic to commit itself, prior to recognition, to adopt constitutional and political guarantees ensuring that it has no territorial claims towards a neighboring Community State and it will conduct no hostile propaganda activities versus a neighboring Community State, including the use of a denomination which implies territorial claims”. 8 A esse propósito, refira-se o papel desempenhado, ao longo destes anos, pela Igreja Ortodoxa grega na diáspora, nomeadamente junto das comunidades gregas dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, que muito contribuiu para consolidar a posição defendida pela Grécia. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 9 As propostas avançadas por João de Deus Pinheiro ficaram conhecidas, e são ainda hoje referidas, por “Plano Pinheiro” ou “Pacote Pinheiro”. 10 A questão da denominação do país vizinho havia, assim, conseguido gerar uma crise no seio do Governo grego, que um ano mais tarde levará à queda do Executivo e à realização de eleições em Setembro de 1993, de que saiu vencedor o Partido Socialista PASOK, na altura sob a direcção de Andreas Papandreou. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 59 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia O então Presidente Karamanlis e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros Samaras empenharam-se em contactos regulares com seus parceiros europeus e acentuam a urgência de se encontrar uma solução ao diferendo. Em Fevereiro de 1992, no Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da Comunidade Europeia, realizado em Lisboa, sob Presidência portuguesa, os Ministros dos Negócios Estrangeiros holandês e dinamarquês exerceram alguma pressão sob o seu homólogo grego para que Atenas aceitasse reconhecer a República da Macedónia. O MNE Samaras torna pública essa exigência e no dia seguinte começa, na Grécia, um boicote aos produtos holandeses e dinamarqueses. Atenas tornava-se, assim, parte do problema e não parte da solução. O então Ministro dos Negócios Estrangeiros português, João de Deus Pinheiro, explorou contudo as perspectivas de se alcançar um compromisso e apresentou duas propostas. A primeira correspondia a uma convenção sobre mútuo reconhecimento e inviolabilidade de fronteiras. A segunda consistia numa carta em que o Governo de Skopje, transmitiria às autoridades gregas: i) a renúncia a qualquer reivindicação territorial sobre a província grega da Macedónia, ii) o repúdio por quaisquer acções dessa natureza levadas a cabo pela anterior república jugoslava, iii) a promessa de não invocar, no futuro, direitos relacionados com minorias e iv) a garantia de que não fomentaria ideologias ou projectos sobre uma futura Macedónia unificada. As propostas9 de João de Deus Pinheiro sugeriam, ainda, a denominação “Nova Macedónia”, como designação oficial do país. O plano acabou por ser rejeitado, por conter o termo “Macedónia”. A 13 de Abril de 1992, o Presidente Karamanlis tinha convocado uma reunião extraordinária com o Primeiro-ministro e os líderes de todos os partidos políticos representados no Parlamento, que contou ainda com a presença Ministro dos Negócios Estrangeiros, para fazer um ponto de situação sobre a matéria. A reunião veio reforçar a posição grega de que não seria aceite a palavra “Macedónia” na denominação que viesse a ser escolhida para o país vizinho. Em Abril de 1992, o Primeiro-ministro grego, Constantinos Mitsotakis, demite o então Ministro dos Negócios Estrangeiros Antonios Samaras e assume cumulativamente a pasta dos Negócios Estrangeiros10. Alguns anos mais tarde, diversas publicações relativas a esse período da História da Grécia contemporânea trouxeram O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 60 alguns esclarecimentos sobre a forma como o partido no governo – Nova Democracia – havia assumido a gestão desta matéria. Na origem daquela demissão existia uma acentuada discordância entre o Primeiro-ministro e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, quanto à melhor forma de defender os interesses gregos. Enquanto o MNE Samaras defendia junto dos seus parceiros europeus uma solução maximalista do problema, o Primeiro-ministro Mitsotakis transmitia aos seus homólogos nas suas respectivas capitais a disponibilidade do Executivo grego para uma solução de compromisso sobre o nome. A visão antagónica de ambos acabou por levar à demissão do MNE Samaras. Contudo, depois dessa demissão, ao invés de optar pela posição mais conciliatória que vinha defendendo, Mitsotakis acabou por enveredar pelas teorias mais extremadas, defendidas anteriormente pelo ex-MNE, por estas entretanto também terem sido adoptadas por três dos quatros principais partidos na oposição e pelo próprio Presidente Karamanlis. Pouco depois, no Conselho informal de Guimarães, de 1 de Maio de 1992, os Ministros dos Negócios Estrangeiros manifestam sua disponibilidade em reconhecer a ARJM como Estado independente e soberano, sob um nome que pudesse ser aceite pelas partes interessadas11. O culminar dos esforços desenvolvidos pelas autoridades gregas é alcançado no Conselho Europeu de Junho desse ano. Com efeito, em Declaração anexa às Conclusões do Conselho12, é reiterada a posição assumida em Guimarães e assinalada a disponibilidade em reconhecer o novo Estado independente, desde que o seu nome não inclua o termo “Macedónia”. Considerada uma vitória, pela opinião pública grega, a decisão do Conselho Europeu é acolhida no país vizinho de forma drástica. A 3 de Julho de 1992, as autoridades de Skopje designam como bandeira oficial do país o Sol de Vergina ou Estrela de Vergina13 e, a partir de Setembro, os livros escolares apresentam várias referências à “Grande Macedónia” com reivindicações de ordem diversa sobre a herança cultural helénica. Em resposta, Atenas impõe um embargo petrolífero, impedindo a entrega de petróleo à vizinha Macedónia pelas fronteiras gregas14. 11 “(…) as a sovereign and independent state, within its existing borders and under a name that can be accepted by all parties concerned”. “Declaration on former Yugoslavia – (…) The European Council reiterates the position taken by the Community and its members States in Guimarães on the request of the former Yugoslav Republic of Macedonia to be recognized as an independent sate. It expresses its readiness to recognize that republic within its existing borders according to their Declaration on 16 December 1991 under a name which does not include the term Macedonia.” 13 Estrela composta por 16 raios; trata-se de um símbolo histórico da província grega da Macedónia, correspondente à Dinastia de Filipe II e de Alexandre o Grande, encontrado em 1977 durante as escavações arqueológicas em Vergina efectuadas pelo Prof. Manolis Andronikos. 14 Nessa altura, cerca de 80 toneladas de petróleo ficam retidas em Salónica, a pretexto do embargo. 12 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 Para além disso, as Nações Unidas18 decidem assumir a responsabilidade de tentar alcançar uma solução entre ambas as partes, através dos mediadores Lord Owen e Cyrus Vance, aos quais competia elaborar um projecto de Acordo, que tomasse em consideração todas as questões em aberto, incluindo a do nome. A primeira proposta apresentada, após intensas consultas com Atenas e Skopje, sugeria o nome “Nova Makedonija”, que, na realidade, retomava a sugestão do Ministro João de Deus Pinheiro, mas na sua versão eslava. A solução não só tinha em consideração as preocupações gregas, como assinalava as origens eslavas dos cidadãos da ARJM. Contudo, em Maio de 1993, a Grécia rejeita a proposta. Apesar de o novo MNE, Michalis Papaconstantinou, se mostrar receptivo, o então Primeiro-ministro Mitsotakis, pressionado pelo seu próprio partido e temendo perder a maioria parlamentar, decide rejeitar a solução. As eleições, poucos meses depois, em Outubro de 1993, dão então vitória a Andréas Papandreou e ao PASOK. Em Novembro desse ano, Papandreou decide cessar todas as negociações em curso com Skopje. Em finais de 1993, alguns parceiros europeus já tinham reconhecido a ARJM e em Fevereiro 15 Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas n.º 817, de 7 de Abril de 1993. "Admission of the former Yugoslav Republic of Macedonia to membership in the United Nations", United Nations General Assembly Resolution n.º 47/225, 8 April 1993. 17 Por extraordinário que possa parecer, foi aceite que a Antiga República da Macedónia passasse a constar da lista dos Estados-membros das Nações Unidas sob a letra “T”, que corresponde à primeira letra da denominação “the former Yugoslav Republic of Macedonia”. 18 Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas n.º 845, de 18 de Junho de 1993. 16 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 61 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia A Macedónia procura então obter reconhecimento junto das Nações Unidas e apresenta formalmente o seu pedido a 30 de Julho. Em Agosto de 1992, a Rússia decide reconhecer a República da Macedónia e, simultaneamente, a então Presidência britânica da UE dá a entender que a decisão tomada em Lisboa deveria ser reavaliada. A 7 de Abril de 1993, o Conselho de Segurança das Nações Unidas15 aceita a adesão do país16. Fá-lo, no entanto, sob duas condições, a saber: – o uso temporário da denominação “Antiga República Jugoslava da Macedónia”17, enquanto não se encontrar resolvida a disputa com a Grécia, justificando essa decisão com a necessidade de manter a paz e estabilidade na região, bem como promover boas relações de vizinhança; – a proibição da Macedónia usar a sua bandeira oficial com a Estrela de Vergina, reconhecendo assim à Grécia o direito de defender e proteger um símbolo que associa ao seu património cultural. O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 62 de 1994, os Estados Unidos reconhecem formalmente a Antiga República Jugoslava da Macedónia19. O Executivo grego decide então impor um embargo económico ao país vizinho. Em 1995, após várias rondas negociais, os mediadores Owen e Vance apresentam às partes um novo projecto de Acordo, que visa regular as relações entre a Grécia e a ARJM, tendo em vista a resolução do diferendo. O “Acordo Interino”20 é assinado em Setembro de 1995 e vem estipular as relações entre Atenas e Skopje, por um lado no que se refere à questão da denominação do país e, por outro, no que toca ao relacionamento bilateral propriamente dito. Não estatui sobre a questão da denominação em si, deixando a sua resolução para um momento posterior. Acima de tudo, constitui um código de conduta e marca o consentimento de ambas as partes em prosseguirem com as negociações sob os auspícios do Secretário-geral das Nações Unidas, tendo em vista a resolução do diferendo, à luz das supracitadas Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Acordo Interino é pois um marco nas relações entre os dois países e vem dar início a uma nova fase no relacionamento entre Skopje e Atenas, caracterizada por uma maior cooperação. Pela importância de que se reveste, importará destacar o essencial do seu conteúdo e alguns princípios nele enunciados: – é estabelecido um prazo de sete anos21 para que as duas partes cheguem a uma solução mutuamente aceitável sobre a designação da ARJM; durante esse período, a vizinha Macedónia fica obrigada a usar o nome “Antiga República Jugoslava da Macedónia”; – a Grécia põe fim ao embargo que havia imposto à ARJM e reconhece ao país vizinho o estatuto de Estado-nação; por outro lado, é vedado o uso do símbolo “Sol de Vergina” às autoridades de Skopje; ficam, ainda, impedidas de interferir em assuntos internos da Grécia; esta mantém o seu direito de objectar a adesão da ARJM em qualquer organização internacional, com outra designação que não “Antiga República Jugoslava da Macedónia”; Para além destes aspectos, o Acordo Interino prevê também que ambos os países respeitem as suas fronteiras, a sua integralidade territorial e soberania. Apela à 19 Mais tarde, em 2004, os Estados Unidos reconhecem a ARJM sob o seu nome constitucional “República da Macedónia”. “Greece and the former Yugoslav Republic of Macedonia Interim Accord”,Vol. 1891, I-32193, United Nations Treaty Series. 21 Se nenhuma das partes manifestar a sua intenção de se desvincular do Acordo, este ficará em vigor, ad infinitum, até que seja encontrada uma solução. 20 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 22 A ratificação destes Acordos pela Parlamento Helénico encontra-se ainda pendente devido ao diferendo sobre o nome. Existem cerca de 280 empresas de interesses gregos na FYROM. 24 Informação transmitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros grego. 23 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 63 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia cooperação entre as partes para que seja alcançada uma solução e estimula a promoção de relações comerciais e económicas. Solicita, igualmente, que ambos os países estabeleçam relações diplomáticas logo que possível. O Acordo prevê a possibilidade de se socorrerem dos bons ofícios da União Europeia e dos Estados Unidos para os assistir na execução de algumas medidas práticas referidas no convénio. Por último, estabelece o recurso ao Tribunal Internacional de Justiça, por qualquer uma das partes, no caso de se verificarem discrepâncias ou desentendimentos sobre a interpretação e implementação do Acordo. A assinatura do Acordo Interino permitiu a melhoria considerável das relações entre Skopje e Atenas. Ambos os países ter-se-ão apercebido que as inexistentes relações entre Atenas e Skopje, durante o período que medeia os anos 1991 a 1995, não terá servido os seus interesses, nem em nada terá contribuído para o relacionamento bilateral, que se viu afectado em termos financeiros, diplomáticos e políticos. A assinatura do Acordo Interino veio pois acentuar a urgência e importância de se privilegiar uma relação de cooperação, como alternativa a uma relação de conflito. É, desde logo, no âmbito comercial e económico que se registam progressos significativos. A título de exemplo, valerá a pena referir a celebração de 21 acordos bilaterais entre as partes, no seguimento do Acordo Interino22. Os resultados foram óbvios, não só no plano do relacionamento político, como também no que toca aos laços económicos e comerciais que se foram desenvolvendo desde então. Refira-se, a esse propósito, que as exportações da Grécia para o país vizinho alcançaram os 648,6 milhões de dólares em 2008, contra os 535,3 milhões em 2007. De igual modo, registou-se um aumento de 28,9% das importações gregas com a ARJM, que passaram dos 408,3 milhões de dólares em 2007 para 526,3 milhões de dólares em 2008. Por outro lado, os investimentos directos da Grécia são os mais elevados na ARJM e somam um total de 985 milhões de euros e criaram 20 mil empregos23. Trata-se de investimentos centrados no sector bancário (28%), energético (25%), nas telecomunicações (17%), na indústria transformadora (15%), no cimento, no tabaco, na extracção de mármore e nos produtos alimentares e bebidas24. A Grécia atribuiu, ainda, 74.840.000 euros à ARJM, para o financiamento de projectos de investimentos públicos e privados, no âmbito do Plano Helénico para a Reconstrução O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 64 Económica dos Balcãs25. Acrescente-se, também, o compromisso assumido por Atenas de financiar, durante os próximos quatro anos, em 100 milhões de euros, a implementação do corredor pan-europeu X, que atravessa a região dos Balcãs de Noroeste a Sudeste, ligando Salzburgo a Salónica, passando por Liubliana, Zagrebe, Belgrado, Nis, Skopje e Veles. No quadro da União Europeia, foram-se desenvolvendo programas de cooperação com a ARJM, tendo o Banco Europeu de Investimento vindo a apoiar projectos no país, desde Dezembro de 2005, com fundos no valor de 163 milhões de euros. Nos anos que se seguiram à assinatura do Acordo Interino, importará destacar as datas-chave do processo de aproximação da ARJM à União Europeia, que a seguir se assinalam sucintamente: – em 1996, a ARJM passa a poder beneficiar dos programas PHARE da União Europeia; – em 1997 é assinado o Acordo de Cooperação; – em Novembro de 2000, na Cimeira de Zagrebe, são iniciados os Processos de Estabilização e Associação com cinco países dos Balcãs, incluída a ARJM; – em Abril de 2001 é assinado o Acordo de Estabilização e Associação com o país; – em Março de 2004, a ARJM apresenta a sua candidatura para adesão à UE; – em Dezembro de 2005, o Conselho Europeu, sob Presidência Britânica, concede o estatuto de país candidato à ARJM26; – em Janeiro de 2006, o Conselho adopta a Parceria Europeia com o país; – em Janeiro de 2008, entra em vigor o Acordo de Facilitação de Vistos e de Readmissão entre a UE e a ARJM; – em Fevereiro de 2008, o Conselho adopta a Parceria para a Adesão; Durante todo este processo de aproximação da ARJM à União Europeia, a Grécia procurou apoiar as perspectivas europeias do país, não tendo apresentado obstáculos ou empecilhos às aspirações do país vizinho. Contudo, Atenas deixou sempre claro que jamais poderá concordar com a adesão da ARJM à OTAN ou UE, sob a designação 25 Hellenic Plan for the Economic Reconstruction of the Balkans – HiPERB; foi aprovado em 27 de Março de 2002 com o principal objectivo de impulsionar e promover a reconstrução económica, social e institucional dos países do Sudeste Europeu (Albânia, Bulgária, Montenegro, ARJM, Bósnia-Herzegovina, Roménia e Sérvia); o plano plurianual, inicialmente previsto para o período 2002-2006 foi, entretanto, prolongado até 2011, pelo facto de a sua implementação prática se ter iniciado apenas em meados do ano de 2004. 26 Conclusões do Conselho Europeu de Bruxelas de 15/16 de Dezembro de 2005. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 27 A título de exemplo refira-se a decisão tomada pelo Executivo de Skopje, em Janeiro de 2007, de alterar o nome do seu aeroporto de “Petrovec” para “Alexandre o Grande”, o que levou as autoridades gregas a condenar o acto e reiterar a necessidade de se respeitarem compromissos assumidos e se promoverem relações de boa vizinhança. 28 “We recognize the hard work and the commitment demonstrated by the former Yugoslav Republic of Macedonia to NATO values and Alliance operations.We commend them for their efforts to build a multi ethnic society.Within the framework of the UN, many actors have worked hard to resolve the name issue, but the Alliance has noted with regret that these talks have not produced a successful outcome. Therefore we agreed that an invitation to the former Yugoslav Republic of Macedonia will be extended as soon as a mutually acceptable solution to the name issue has been reached.We encourage the negotiations to be resumed without delay and expect them to be concluded as soon as possible”. 29 “Maintaining good neighborly relations, including a negotiated and mutually acceptable solution on the name issue, remains essential”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 65 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia “República da Macedónia” e fez sempre questão em acentuar a necessidade de se cumprirem as obrigações assumidas no Acordo Interino de 1995, nomeadamente no que se refere às relações de boa vizinhança27. Na mais recente evolução desta questão, importa, ainda, salientar o veto exercido pela Grécia na Cimeira da OTAN, em Bucareste, em Maio de 2008, quando as autoridades gregas decidiram opor-se ao convite para a adesão da ARJM à Aliança Atlântica. Atenas defendeu com determinação, junto dos seus aliados, que as boas relações de vizinhança e a resolução deste diferendo eram condições necessárias à participação da ARJM na organização. O argumento avançado pela Grécia de que dificilmente se poderia aceitar, como novo aliado na estrutura atlântica, um país com o qual Atenas tem um contencioso e difíceis relações de vizinhança – essenciais à estabilidade e segurança da região dos Balcãs – colheu a simpatia de alguns parceiros da NATO, em particular do Presidente francês, Nicholas Sarkozy, que manifestou de forma clara o seu apoio às teses defendidas pela Grécia. Nas conclusões da referida Cimeira, ficam expressas as recomendações da Aliança para que as negociações se possam desenrolar da melhor forma e assim prosseguir no sentido de se alcançar uma solução em torno da denominação oficial do país28. Para além do resultado positivo alcançado em Bucareste, Atenas conseguiu ainda incluir os seus argumentos nas Conclusões do Conselho Europeu de 19 de Junho de 200829, em que uma vez mais é recordado à ARJM a importância das relações de boa vizinhança e a necessidade de se alcançar uma solução mutuamente aceitável sobre a questão do nome. Posteriormente, em Dezembro de 2008, o Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas de Ministros dos Negócios Estrangeiros faz nova referência, nos mesmos termos, no ponto relativo à ARJM. Será agora um momento de viragem na evolução deste diferendo? Tudo indica que sim. Embora seja prematuro fazerem-se prognósticos, o relacionamento dos dois países parece ter entrado numa nova fase. Disso é aliás também prova a recente O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 66 decisão, tomada pelas autoridades de Skopje, de recorrer ao principal órgão judiciário das Nações Unidas, para aferir da legalidade do veto grego. Recorde-se que, em Novembro de 2008, a ARJM interpôs recurso junto do Tribunal Internacional de Justiça30, por alegado incumprimento por parte da Grécia do artigo 11.º 31 do Acordo Interino de 1995, quanto à adesão do país a organizações internacionais. Foram já estabelecidos os prazos processuais, isto é, a ARJM deverá expor os seus fundamentos até 20 de Julho de 2009, cabendo à Grécia apresentar a sua contestação até 20 de Janeiro de 2010. O processo agora iniciado, que se prevê possa vir a ser longo, deverá permitir às partes, uma vez mais, defender as suas posições e fazer valer os seus argumentos. Por último, outro aspecto essencial a sublinhar é o papel do actual Enviado Especial do Secretário-geral das Nações Unidas. Matthew Nimetz encontra-se ligado à questão desde 1994, como Representante Especial do Presidente Clinton e posteriormente como Adjunto do então Enviado Especial do Secretário-geral das Nações Unidas, Cyrus Vance. A partir de Dezembro de 1999 Nimetz substituiu Vance nas suas funções de mediador. Desde então, realizaram-se variadíssimas rondas de negociações com os representantes designados pelos Governos de Skopje e Atenas. Foram apresentadas diversas propostas de nomes32, não tendo até à data (Março 2009) sido encontrada uma solução definitiva. A mais recente proposta apresentada por Nimetz em Outubro de 2008 sugeria “Republic of North Macedonia”, tendo ambas as partes solicitado alterações quanto a diversos aspectos do conjunto de ideias apresentadas pelo Enviado Especial. Não sendo porventura a melhor opção, nem para Atenas, nem para Skopje, foi reconhecido pelo governo de Karamanlis que a proposta de Nimetz poderá constituir uma boa base de negociação ou ponto de partida para uma eventual solução. As conversações prosseguem e prevê-se que uma nova ronda de negociações possa ter lugar antes do Verão de 2009, depois das eleições Presidenciais e Municipais na ARJM, a 5 de Abril. 30 Vd. www.icj-cij.org (“the former Yugoslav Republic of Macedonia institutes proceedings against Greece for a violation of Article 11 of the Interim Accord of 13 September 1995”). 31 O Artigo 11.º do Acordo Interino refere expressamente que a Grécia não pode obstar à adesão da ARJM a qualquer Organização Internacional a que pertença, reservando-se apenas o direito de objectar à entrada do país com outra designação que não a actual “Antiga República Jugoslava da Macedónia”. 32 Entre outros refira-se:“Constitutional Republic of Macedonia”,“Democratic Republic of Macedonia”,“Independent Republic of Macedonia”, “New Republic of Macedonia”, “Republic of New Macedonia”, “Republic of Macedonia-Skopje”, “Republic of Upper Macedonia”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 contornos desta questão, considerem-se os factos que contribuíram para a elaboração da posição da Grécia33. Como constatámos, a intensificação e o exacerbar do diferendo entre Atenas e Skopje, constituíram por si só tema de desacordo entre ambas as partes. Apesar de se ter registado uma evolução significativa das relações existentes entre os dois países, depois da assinatura do Acordo Interino, a verdade é que a disputa sobre a designação da ARJM se mantém e a mediação do Enviado Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas não logrou, ainda, levar ambas as partes a um entendimento definitivo. Por outro lado, estima-se que cerca de 120 países já terão reconhecido a ARJM sob o seu nome constitucional, i.e, “República da Macedónia”, o que na perspectiva das autoridades de Skopje, constitui um claro sinal do apoio da Comunidade Internacional aos seus argumentos. No quadro da União Europeia, a única expressão utilizada continua a ser “Antiga República Jugoslava da Macedónia”, não só por uma questão de solidariedade com a Grécia mas por ser essa a denominação em vigor internacionalmente34. De igual modo, tanto a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) usam a designação “Antiga República Jugoslava da Macedónia”35. Dito isto, alguns Estados-membros destas organizações reconhecem a ARJM por “República da Macedónia” nas suas relações bilaterais com este país36, mas mantêm a designação ARJM no âmbito das organizações internacionais a que pertencem. No caso de Portugal, tem sido usada, até hoje, a denominação “Antiga República Jugoslava da Macedónia”. O facto da ARJM ter conseguido obter o reconhecimento do seu nome constitucional junto de tantos países, é aliás considerado por Atenas como revelador da falta de empenho das autoridades de Skopje em alcançar uma verdadeira solução mutuamente aceitável, sob os auspícios das Nações Unidas. Segundo as autoridades gregas, se houvesse uma real e efectiva intenção por parte do país vizinho em chegar a um entendimento e à resolução definitiva do diferendo, a ARJM não teria vindo 33 O essencial destas notas baseia-se na argumentação defendida por Demetrius Andreas Floudas em “Pardon? A Conflict for a Name? FYROM’s Dispute with Greece Revisited”. 34 “On proposal by the Presidency, the Council agreed to add to the minutes of the Council that until a mutually acceptable solution to the name issue has been reached with Greece, the EU will continue to use the temporary designation “the former Yugoslav Republic of Macedonia” in all EU documents and fora”, vd. Conclusões do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas da União Europeia de 12 de Dezembro de 2005. 35 “Decision nº 81 of the Permanent Council of the OSCE”, de 12 de Outubro de 1995, e “NATO document ES(2000)30 on the treatment of the name of the former Yugoslav Republic of Macedonia”, de 29 de Fevereiro de 2000. 36 Nomeadamente: Reino Unido, Alemanha, Suécia, Eslovénia, Dinamarca, República Checa, Polónia, Roménia e Bulgária. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 67 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia Factos determinantes na elaboração da posição da Grécia Apresentados os principais O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 68 a promover, ao longo destes anos, o reconhecimento internacional do seu nome constitucional. Do ponto de vista de Skopje compreende-se, porém que assim seja. Para quê voltar atrás quando, a pouco e pouco, se vai instalando o “costume internacional” de designar o país conforme querem as suas autoridades e a sua população? A definição da política externa grega no período de 1989 a 1995 viu-se influenciada por considerações de ordem diversa, algumas de natureza histórica, outras de índole académica e outras ainda de carácter prático. A posição de base grega – que perdurou durante mais de 45 anos – de que não existia sequer uma questão macedónica, permitiu que a Jugoslávia do Marechal Tito prosseguisse os seus desígnios; por outro lado, deixou a opinião pública internacional na perfeita ignorância sobre o eventual ponto de vista grego. Foi com um fervor tardio que Atenas resolveu debruçar-se sobre a matéria, quando deu início a uma campanha interna de macedonização dos seus próprios elementos e emblemas37. Nos anos 1991-1992, existia, ainda, um certo desdém por parte de alguma sociedade grega, convicta de que ninguém daria crédito aos estratagemas da ARJM e às suas tentativas de usurpar a herança cultural grega, a que se aliava a certeza do bem fundado das reivindicações gregas. Assim, quando o país pretende tornar-se independente, a comunidade internacional tem como primeira interrogação, não tanto a questão de avaliar se o país se deve chamar Macedónia ou não, mas sim quais as razões que levam os vizinhos gregos a não permitir tal denominação. A posição das autoridades gregas, que até então revelara uma certa inércia e indiferença, fez com que a ARJM conseguisse ganhar terreno, durante anos, através de conferências, publicações e monografias em Universidades e livrarias, pelo mundo fora. A posterior posição inflexível tomada por Atenas sobre esta matéria não deixa de ser curiosa. Por um lado, a vinda a público e divulgação do diferendo existente entre a ARJM e um país, política, económica e militarmente superior, originou reacções de ordem diversa e até mesmo alegações de que a Grécia estaria a desenvolver manobras de intimidação junto da ARJM. Por outro, as intensas manifestações que tiveram lugar na cidade de Salónica transmitiam a imagem de uma população determinada, com pontos de vista categóricos sobre o assunto. À medida que a disputa ia evoluindo, a intransigência de ambas as partes não permitia vislumbrar possíveis formas de 37 Refira-se a título de exemplo: a alteração, em 1988, de “Ministry for Nothern Greece” para “Ministry for Macedonia-Thrace; a criação, em 1991, da “Macedonian Press Agency” de Salónica; o cunhar de moedas com o Sol de Vergina; a consagração, em 1993, da Estrela de Vergina como símbolo nacional grego. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 38 Até praticamente 1991, o Consulado da Grécia endereçava comunicações e dirigia-se ao Governo de Skopje usando o termo República Socialista da Macedónia. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 69 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia solucionar o problema. E foi precisamente essa intransigência que acabou por reduzir as respectivas margens de manobra de Atenas e Skopje e gerou, perante alguma perplexidade internacional, a presente situação de (quase) impasse. As preocupações e prioridades da política externa grega, centrada nas suas relações com a Turquia, não lhe davam espaço para assegurar uma política coerente com vista à estabilidade dos Balcãs, nem de se preparar para a previsível ruptura da Federação Jugoslava, subsequente à morte do Marechal Tito. A política externa grega não estava, assim, preparada para fazer face aos novos desafios decorrentes da dissolução do Bloco de Leste e da redistribuição dos poderes regionais. A posição, anterior aos anos 90, de refutação da existência de qualquer questão macedónica, bem como a tranquilidade das relações com a Jugoslávia e a República Socialista da Macedónia, sua parte integrante, eram reveladores de que a Grécia não antevia que pudessem surgir eventuais alterações no status quo da Macedónia38. É clara e evidente a impossibilidade de se analisar esta matéria fora do seu contexto histórico, i.e do conflito jugoslavo e outras questões paralelas. Os interesses defendidos por Atenas, nessa altura, eram contrários aos interesses da maior parte das potências ocidentais. Refira-se nomeadamente, a ideia defendida pelas autoridades gregas de se preservar a Jugoslávia, o que contrariava os desígnios da Alemanha, Áustria e Itália e, até da Santa Sé, que, não só por razões históricas como devido a uma crescente necessidade de aumentar a sua influência na região, pretendiam o desmembramento da Jugoslávia. Saliente-se, ainda, o apoio da Grécia à Sérvia, seu único aliado histórico na região – o que não reforçou a reputação internacional de Atenas. A questão macedónica surgia cada vez mais como um agravamento absurdo de uma situação por si só já exacerbada. No caso concreto da ARJM, independentemente do bem fundado dos argumentos apresentados por Atenas, a Europa não iria permitir que a Grécia asfixiasse este novo país, na medida em que isso poderia resultar em mais um foco de conflito ou outra tentativa falhada de se assegurar a paz na região. A hostilidade grega contra a Antiga República Jugoslava era vista como uma eventual ameaça à sua existência e possível factor de expansão dos conflitos a sul. O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 70 Por seu turno, vários Estados-membros da UE tinham uma apreciação superficial e distante da essência do diferendo que opunha Atenas a Skopje, frequentemente considerada, por alguns, uma “histeria infantil” ou mais uma “peculiaridade balcânica impenetrável”. A Grécia surgia, assim, dividida entre a necessidade de adoptar critérios ocidentais de aceitação da liberdade alheia aplicáveis à política externa e a urgência em obter resultados no difícil panorama diplomático e correspondentes jogos de interesses que se desenvolviam em torno da região dos Balcãs. Consequentemente, a política externa grega oscilava entre o recurso a argumentos de natureza cultural ou a invocação de fundamentos pragmáticos para fazer valer a sua posição. Contudo, a opção por critérios racionais nem sempre conseguia vingar, dada a falta de serenidade e deficiente conhecimento dos seus interlocutores da história dos Balcãs. A decisão dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade Europeia, reunidos em Lisboa durante a Presidência portuguesa de 1992 – em que é reafirmada a vontade da Comunidade em reconhecer a Antiga República Jugoslava como Estado independente, desde que a nova apelação não contenha o termo “Macedónia” –, constituirá ao longo destes anos um dos pontos altos da solidariedade europeia e terá sido porventura uma oportunidade única, desperdiçada por Atenas, de alcançar o melhor resultado possível, tendo em conta os seus interesses nesta questão. Mas a rotação de Presidências do Conselho acabou por ser favorável a Skopje com a entrada em funções, no segundo semestre de 1992, da Presidência britânica, que procurou relativizar a importância da Declaração de Lisboa e até mesmo alterá-la. A ARJM ganhou alguma simpatia internacional, ao projectar a imagem de um país ameaçado e oprimido pelo seu vizinho poderoso, o que lhe terá permitido recolher apoios junto de alguns órgãos de comunicação social de países europeus, que não hesitaram em optar por posturas anti-helénicas sobre a matéria. Nos anos seguintes, a Grécia apercebeu-se da necessidade de promover um melhor e mais forte lobby a seu favor, dentro e fora da UE. Como se viu, as contra-medidas, tomadas por Atenas em 1994, são disso exemplo. Uma palavra ainda sobre o papel desempenhado pela Igreja Ortodoxa grega, que igualmente contribuiu para consolidar as posições defendidas por Atenas. Recorde-se não só o apoio às manifestações organizadas em Salónica, em 1992 e 1993, mas também a outras demonstrações e concentrações que tiveram lugar nos Estados Unidos, Canadá e Austrália, o que lhe permitiu unir e consolidar a diáspora, ao longo destes anos. Ainda acerca desta matéria, valerá a pena referir que, em 2001, o Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa grega, em consonância com o NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 Governo, havia tornado público os seus pontos de vista e acentuado a ideia de que o uso do termo “Macedónia” constituía uma usurpação da História e cultura grega e abria caminho a reivindicações territoriais39. 71 maximalistas do início da década de 90. Desde logo, importa assinalar o facto de hoje ser aceite pelas autoridades gregas a possibilidade de o futuro nome, que vier a designar oficialmente o país vizinho, possa ser um nome composto e possa incluir a palavra “Macedónia”40. Nesse sentido, poder-se-á dizer que, na perspectiva da Grécia, a sua posição evoluiu a caminho de um ‘meio-termo’ na questão do nome, pois ao aceitar-se um nome composto e a palavra “Macedónia”, na designação oficial do país, as autoridades gregas consideram estar a fazer uma concessão maior às reivindicações dos seus opositores. Chegados a este ponto, valerá a pena debruçarmo-nos um pouco sobre os principais pontos que caracterizam a posição defendida hoje por Atenas. O Executivo grego considera que, tanto a Grécia, como a ARJM, assumiram a responsabilidade de resolver a questão da disputa sobre o nome do país, pelo que, tanto um como o outro, devem actuar nessa conformidade. Assim, cabe a ambos cumprir o compromisso assumido de contribuir para as negociações, mediadas pelas Nações Unidas, tendo em vista uma solução mutuamente aceitável. Atenas considera estar a executar a sua quota-parte de responsabilidade nessa matéria. Não tem dúvidas de que ambos os países terão de fazer concessões, pelo que entende ser indispensável quebrar o actual círculo vicioso em que se encontra encerrada esta questão, para evitar que ambas as partes ficam reféns das suas posições. Por outro lado, Atenas tem defendido que não deve haver nem vencedores, nem vencidos, mas sim um acordo que satisfaça as partes interessadas e corresponda à realidade geográfica e histórica. A solução terá, assim, que ser mutuamente aceitável e ter por basear o processo negocial conduzido pelo Representante Especial das NU para a 39 “The Church of Greece believes that the use of the name ‘Macedonia’ by the neighboring state constitutes usurpation of a considerable portion of our history and culture, paves the way for territorial demands and the resurgence of non-existent minority issues, assails Greek dignity, and violates the historical truth. The Church cannot be unmindful of the cries of protest which are being raised by the organizations of [Greek] Macedonians abroad and are being heard the length and breadth of the globe. Nor can the Church overlook the profound dismay of its flock living in Northern Greece. For if we put our signature to the recognition of a state the name of which includes the term ‘Macedonia’, then it will not be long before the Northern Greeks are forbidden to call themselves ‘Macedonians’. 40 Em Março de 2005, em resposta a uma proposta avançada por Nimetz, a Grécia manifesta a sua disponibilidade em aceitar que o termo “Macedónia” faça parte do nome composto que vier a ser escolhido. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia A actual posição da Grécia A posição hoje defendida por Atenas já não corresponde às teses O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 72 questão da designação da ARJM. Deverá enquadrar-se nas Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e nos princípios europeus. Para a Grécia, é pois essencial e determinante que a resolução do diferendo contemple os seguintes três aspectos: – a adopção de uma denominação, que se poderá apresentar sob a forma de um nome composto e conter a palavra “Macedónia”, com um qualificativo geográfico que permita distinguir o país vizinho do resto da zona geograficamente conhecida como Macedónia, isto é, a Macedónia grega41; uma designação erga omnes, isto é, um nome internacionalmente reconhecido por todos, quer a nível bilateral, quer no plano multilateral42, para todos os fins e propósitos; – que a ARJM renuncie definitivamente a qualquer usurpação da herança histórica e cultural helénica e se afaste de conceitos irredentistas que pertencem ao passado; – a adopção e endosso pelas Nações Unidas da solução definitiva por forma a assegurar o respeito pela sua implementação. Conclusão Na perspectiva da Grécia, o diferendo sobre a designação do país vizinho constitui um elemento de particular relevância da sua política externa. As autoridades gregas não perdem nunca a oportunidade de reiterar a importância desta matéria, nem de acentuar o empenho com que procuram alcançar uma solução e a parte do caminho que já percorreram. Tal solução deverá permitir, simultaneamente, defender os interesses do país e da região grega da Macedónia, pelo que a questão, enquanto estiver por resolver, se manterá sempre na ordem do dia, independentemente do partido ou coligação que possa estar no poder. Por outro lado, a questão só ficará resolvida em sede constitucional, mediante ratificação parlamentar, a qual poderá 41 Melhor dizendo, os eventuais adjectivos que possam ser apostos à denominação “República da Macedónia” devem diferenciar o termo “Macedónia” e não o termo “República”. Para a Grécia, o que importa é distinguir a palavra que está na origem do diferendo, pelo que de nada servem eventuais soluções com os termos “Constitutional”, “Democratic” ou “Independent” apostos à palavra “Republic”, mas já poderá fazer diferença se essas mesmas sugestões ou outras forem inseridas junto à palavra “Macedonia”, como seriam os casos de “Republic of Upper Macedonia” ou “Republic of New Macedonia”. Só assim poderá haver, segundo as autoridades gregas, uma efectiva diferenciação do termo Macedónia em relação à região grega da Macedónia. 42 Atenas é contra uma solução dual, em que haveria uma designação apenas para uso das relações bilaterais entre a Grécia e a ARJM e outra a ser utilizada nas relações da ARJM com os restantes países da Comunidade Internacional ou no âmbito das Organizações Internacionais. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 73 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia ser complexa dada a agressividade da luta política inter-partidária grega. Nesse sentido, Atenas deverá prosseguir em diante com seus argumentos, deixando todas as opções em aberto, para melhor apresentar a sua posição e proteger seus interesses, tendo em conta que o limite dos negociadores terá de coincidir com os limites do entendimento entre os partidos. Toda a problemática se prende com o facto de que a questão de denominação da ARJM não se circunscreve apenas ao nome a escolher. Tudo aquilo que é apresentado pelas autoridades gregas como sinais reveladores do seu empenho em alcançar uma solução é naturalmente contestado pela ARJM e vice-versa. O que opõe ambas as partes é a própria essência do diferendo. Para a Grécia, se em tempos se tratou de uma questão de segurança nacional, hoje é sobretudo em termos de identidade e de preservação de uma herança cultural que o problema se coloca. Já no que se refere à ARJM, a questão põe em causa não só a identidade do país, como a sua própria existência, na medida em que o termo “Macedónia” é considerado o nome de raiz do Estado e do seu povo. Na perspectiva de Skopje, a componente Macedónica é determinante na caracterização da sua identidade e etnicidade – e do seu estatuto como país do sudeste Europeu –, não só em termos de nacionalidade como de língua, pelo que as objecções da Grécia ao uso do nome são vistas no país vizinho como uma negação da existência da nação Macedónica enquanto tal. Essa é aliás, no entender das autoridades de Skopje, a razão pela qual Atenas contesta qualquer discussão em torno de questões étnicas e se opõe ao uso do adjectivo “macedónio” no que toca à nacionalidade e língua da ARJM. Mas vários outros aspectos relacionados com a matéria devem ser tidos em conta e terão que ficar devidamente regulados na solução que vier a ser encontrada, nomeadamente no que toca à necessidade de se estabelecerem critérios para a comercialização de produtos oriundos, tanto da ARJM como da região Norte da Grécia. Outro ponto essencial a ter em conta será a forma de implementar o acordo entre as partes. Para a Grécia, não bastará haver uma Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, tornando-se indispensável que exista, por um lado, uma ratificação constitucional e, por outro, um mecanismo de follow-up, que permita acompanhar a correcta implementação da solução que vier a ser aceite. No futuro mais próximo a Grécia procurará fazer valer os seus argumentos no âmbito do processo agora instaurado no Tribunal Internacional de Justiça, em que deverá dar conta daquilo que considera terem sido, ao longo destes anos, claras e contínuas violações do Acordo Interino por parte das autoridades de Skopje. O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia 74 Dito isto, ao olharmos mais atentamente para a evolução desta questão nos últimos 15 anos, torna-se claro que o processo de aproximação à União Europeia constituiu o caminho certo e uma oportunidade para a consolidação das relações entre Atenas e Skopje. Um futuro europeu comum poderá ser a melhor forma de ultrapassar as diferenças de identidade e levar à resolução do diferendo sobre a denominação do país.NE BIBLIOGRAFIA Bakoyannis, Dora, “All in a Name” in “The Wall Street Journal”, 1st of April 2008; Floudas, Demetrius Andreas, “Pardon? A Conflict for a Name? 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United Nations Security Council Resolution 817, 7 April 1993. 2. United Nations Security Council Resolution 845, 18 June 1993. 3. Admission of the former Yugoslav Republic of Macedonia to membership in the United Nations, United Nations General Assembly Resolution 225, 8 April 1993. 4. United Nations, Interim Accord between the Hellenic republic and the FYROM, New-York, 13 October 1995, Vol. 1891. The Council of the European Union, Archives 1. General Affairs Council Conclusions, 16/17 December 1991. 2. European Council Declaration on Former Yugoslavia, 26/27 June 1992. 3. European Council Conclusions, 15/16 December 2005. 4. European Council Conclusions, 19/20 June 2008. 5. General Affairs and External Relations Conclusions, 8/9 December 2008. NATO, Bucharest Summit Declaration, 3 April 2008. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75 O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia Pellet, Alain, “The Opinions of the Badinter Arbritation Committee – A Second Breath for the Self-Determination of Peoples”, European Journal of International Law, Issue Vol. 3, nº 1, 1992; Francisco Proença Garcia* A nova polemologia 76 A nova polemologia ■ Abstract: This article is about the new wars and new threats to international security, which constitute a new approach to Polemology. It also analyses the 6 fundamental characteristics of the so-called war made by the forces of transformation. SÃO questões que têm captado a atenção de várias gerações de estudiosos das Relações Internacionais e da Estratégia, como por exemplo: • O que é e por que razão surge a Guerra? • Como se pode caracterizar a Guerra na actualidade? • Qual o posicionamento da entidade Estado como estrutura política no novo contexto internacional? • O uso da Força nas Relações Internacionais ainda é útil? • Porquê, e por quem é a Segurança dos Estados e das pessoas ameaçada? INÚMERAS AS Procurando encontrar respostas a estão questões, articulámos este artigo em oito capítulos distintos mas interrelacionados. Ao longo do texto traçaremos uma perspectiva das transformações ocorridas nos conflitos armados e caracterizaremos as principais ameaças à Segurança, procurando mostrar a ligação entre estas e a Guerra no nosso século. Caracterizaremos ainda as guerras de alta tecnologia, findando com uma abordagem da civilinização da actividade militar e o importante papel desempenhado pelas empresas militares privadas. Esta análise permite-nos, desde logo, verificar a profunda evolução do fenómeno da Guerra. De facto, evoluiu-se de um modelo essencialmente clausewitziano para um modelo de guerra irregular, global, assimétrica e permanente, sem uma origem clara e que pode surgir em qualquer lugar. * Tenente-Coronel. Conselheiro Militar na PODELNATO. O presente artigo corresponde ao texto integral da lição de encerramento apresentada pelo autor nas provas de Agregação em Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, no dia 17 e 18 de Setembro de 2008. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 rivalidade do mundo em equilíbrio bipolar. Estas tensões entre os grandes poderes no campo económico, ideológico e político, traduziu-se na utilização preferencial da força militar como instrumento de dissuasão. O período é caracterizado pelos inúmeros conflitos nas zonas de confluência dos interesses das grandes potências, que se enfrentavam por locução interposta. A conjuntura internacional sofreu profundas alterações após a queda do muro de Berlim. No actual Sistema Internacional caracterizado pela sua complexidade, não linearidade, imprevisibilidade, heterogenidade, mutabilidade e dinamismo, a ameaça, que mantinha coordenadas de espaço e de tempo bem definidas, desapareceu, dando lugar a um período de anormal instabilidade, com uma ampla série de riscos e perigos, uns novos, outros antigos, que apenas subiram na hierarquia das preocupações dos Estados. A comunidade internacional, habituada a um equilíbrio pelo terror do holocausto nuclear, foi assim forçada a reconhecer que para além do Estado existiam outros actores que empregavam a força como instrumento nas Relações Internacionais, situação que apesar de não ser nova influenciaria decisivamente o fenómeno da Guerra a partir da última década do século XX. Mas as incertezas no dealbar deste terceiro milénio são inúmeras. Num mundo hoje marcado pela volatilidade identitária (Badie, 2001; p. 71), as zonas de interesse estratégico fundamentais alteraram-se, e passaram a ser aquelas que são capazes de exportar a sua própria instabilidade (Ramonet, 2001; p. 56). As Guerras já não obedecem apenas à concepção clausewitziana (Estado, Forças Armadas, População), típica do anterior Sistema Internacional. Hoje a violência global é assimétrica e permanente, não tem uma origem clara e pode surgir em qualquer lugar. Para muitos, trata-se de uma situação típica do mundo tendencialmente unipolar do ponto de vista do esforço militar. A actual conjuntura internacional, onde o papel do Estado soberano está em crise, também se caracteriza pela flexibilização do conceito de fronteira e pela aceitação de situações de cidadanias múltiplas e de governança partilhada. No imaginário ocidental, quando se pensa ou fala em Guerra, normalmente a imagem associada é a da confrontação entre as Forças Armadas organizadas de dois ou mais Estados. Porém, os Estados, como forma de organização política ocidental, são criações artificiais recentes que surgem após Vestfalia, pelo que a Guerra, como instrumento da política do Estado que opunha um Estado a outro e umas Forças NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 77 A nova polemologia I. As guerras no nosso século – uma perspectiva O fim da II Guerra Mundial foi marcado pela A nova polemologia 78 Armadas a outras Forças Armadas, constitui um fenómeno relativamente recente e que poderá ter tendência a desaparecer (Creveld, 1991; p. 75). As guerras contemporâneas, acentuadamente depois de 1945, tornaram-se cada vez menos entre Estados e passaram a contemplar outros actores, infra-estatais, que perseguem múltiplos e diversos objectivos, que obedecem a lógicas e a racionais também diferentes, verificando-se uma extrema plasticidade dos seus actuantes, assemelhando-se muitas vezes a uma luta pela sobrevivência, sem regras, sem objectivos claramente definidos, podemos mesmo dizer, totalmente irracional, caótica, poluída, penetrada pelo crime organizado, pelo terrorismo e pelo tribalismo (Bauer e Raufer, 2003; p. 165). Igualmente relevante é o aparecimento de entidades supra-estatais institucionalizadas capazes de executar acções militares conjuntas, um fenómeno que exige acompanhamento. No caso de regiões menos desenvolvidos, onde são inúmeros os Estados que jamais foram capazes de se afirmarem face a outras entidades sociais (nomeadamente em relação à tribo e aos grupos etnolinguísticos), tem-se observado que, no decorrer de confrontações violentas, a distinção entre Estado, Forças Armadas e população começou a esbater-se antes mesmo de ter sido correctamente estabelecida (Olsen, 2003). Na história existiram as estruturas tribais, as estruturas feudais, as associações religiosas, os bandos de mercenários ao serviço de senhores da guerra, e mesmo organizações comerciais. Muitas destas entidades não eram sequer políticas nem detentoras de soberania. Não possuíam governo, Forças Armadas nem população (no sentido actual do termo), mas defrontavam-se em guerras e campanhas bem organizadas. É neste sentido que alguns autores consideram que o mundo está a enfrentar uma situação de neo-medievalismo (Berzins e Cullen, 2003), ou mesmo um eventual regresso ao primitivo, favorecendo o falhanço do Estado e o crescimento da violência internacional não-estatal, em casos extremos, privatizada (Kaldor, 2001; p. 91-96), perdendo o Estado o uso exclusivo da Força. Para Herfried Munkler (2003, p. 18), passou a haver uma desmilitarização da guerra, no sentido em que os objectivos civis não se distinguem dos militares e a violência extrema é exercida contra não-combatentes e sobre todos os domínios da vida social. Nestas novas guerras usam-se profusamente crianças-soldado (Singer, 2005; p. 7). As formas de barbárie que não aparecem desprovidas de funcionalidade, permitem assegurar a fidelidade dos participantes e criam uma cumplicidade do NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 a. A urbanização da luta As populações rurais, motivadas pela fome, pobreza e pelas guerras, refugiam-se ou imigram para os grandes centros urbanos, que crescem desreguladamente. Essas comunidades migrantes vão instalar-se nas favelas, bairros da lata, vilas miséria, callampas ou shantytowns, das cinturas suburbanas em condições sub-humanas. Neste ambiente encontram terreno para emergir as mais diversas formas de subversão, como os gangs de rua (Manwaring, 2005), que ajustam as suas tácticas e estratégias, no bom reconhecimento de que o centro de poder político-económico-militar está na conurbação, que o poder pode e deve ser atacado na sua sede e não na periferia (Laqueur, 1984; p. 344). Tal como na guerrilha rural, nas selvas de zinco e adobe, os combatentes que se misturam com a população com mais facilidade conseguem a cobertura dos media, mostrando a incapacidade do poder para a proteger (Taw e Hoffman, 2005; p. 15). Neste pano de fundo, a subversão acaba por controlar uma determinada área e estabelecer formas alternativas de poder, beneficiando os seus seguidores com a prestação de alguns apoios (incluindo a distribuição de alimentos). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 79 A nova polemologia crime, de afirmação de uma identidade colectiva face ao Inimigo, de exercer sobre ele um terror cruel, dificultando a sua resistência pela imprevisibilidade e arbitrariedade das represálias e da sua crueldade (Sémelin, 2000; p. 124). No fundo, a violência ascendeu aos extremos a que Clausweitz (1976; p. 75) se referia, e o que separa a guerra da barbárie é a existência do conceito da honra do guerreiro (Ignatieff, 1998; p. 157). Tendo em consideração que os actores deste tipo de conflito são outros, também o seu carácter teve que evoluir: são guerras irregulares, estrutural ou temporariamente assimétricas, sem frentes, sem campanhas, sem bases, sem uniformes, sem respeito pelos limites territoriais, de objectivos fluidos, de combate próximo, estando os combatentes misturados com a população que utilizam como escudo e, se necessário, como moeda de troca. Os seus pontos fortes estão na inovação, na surpresa e na imprevisibilidade, onde os fins justificam os meios, empregando por vezes o terror; onde o estatuto de neutralidade e a distinção civil/militar desaparecem. Estas guerras de hoje não são apenas mais comuns do que no passado, mas são também estrategicamente mais importantes e desenvolvem-se em Teatros de Operações urbanos; são travadas, essencialmente, em ambiente operacional de cariz subversivo. A nova polemologia 80 São bons exemplos de subversão urbana as actuações do Primeiro Comando da Capital no Brasil a partir de 2001; os motins urbanos que ocorreram em Los Angeles em 1992; os movimentos urbanos, como as manifestações e formas de “acção directa anti-hegemónica” da “Esquerda festiva”, em 1999, em Seattle e, mais recentemente, em Paris em Novembro de 2005; ou ainda os levantamentos populares pró-Democracia ocidental e liberal na Europa Central e de Leste (Guedes, 2005). Todas estas actuações aproveitaram muito o sensacionalismo dos media. A luta urbana não é uma técnica nova. Assim foi na América Latina, onde no final da década de sessenta do século XX, o centro de gravidade da luta subversiva passou do campo para a cidade, o que rapidamente originou uma nova doutrina da guerrilha urbana. No Brasil destacaram-se guerrilheiros urbanos como Carlos Lamarca e Carlos Marighella (1969). Na selva de cimento do Uruguai, os Tupamaros, na Argentina os Montoneros e no Perú o Sendero Luminoso. As acções subversivas em ambiente urbano surgiram ainda, entre outros países, na Itália (Brigate Rosse), na Alemanha (Baader-Meinhof), em França (Action Directe), e no Japão (Nihon Sekigun). Todas desafiaram a integridade política e socioeconómica dos seus países, criando um clima de instabilidade e de insegurança individual e colectiva (Manwaring, 2004; p. 29), seguindo um processo doutrinário comum de três fases típicas da subversão urbana: organização, desordem civil e terrorismo (Laqueur, 1984; p. 377), procurando sempre a repressão violenta do poder. No fundo, o aparelho do Estado devia ser desmoralizado, parcialmente paralisado, destruindo-se assim o mito da sua invulnerabilidade e ubiquidade. b. Tendências de futuro A tendência actual aponta para que no futuro as guerras persistam entre Estados pequenos e fracos, ou em países menos desenvolvidos, e não envolvendo as grandes potências, eventualmente com base em considerações étnicas e de identidade, considerando-se difícil que Estados cujo regime político-constitucional seja a democracia, entrem em conflito entre si (Holsti, 1996; p. 23). Embora pareça razoável defender esta interpretação, é muito claro que esta visão da guerra do futuro não colhe a aceitação generalizada dos estudiosos da Estratégia. Como visão divergente, é útil realçar a posição de Colin Gray (2005). Este autor, dentro da lógica do neorealismo clássico a que diz pertencer, defende que a trindade clausewitziana veio para ficar. Para Gray, seria errado admitir um desaparecimento, no futuro próximo, das guerras regulares centradas nos Estados e que foram típicas NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 81 A nova polemologia do período vestefaliano, embora admita que, presentemente, se constata uma tendência importante no sentido da utilização de forças irregulares. O normativismo internacional sobre a guerra, inspirado nos pensamentos de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, ainda existe, mas ninguém lhe confere muita importância. Com esta alteração, os Estados, outras entidades e mesmo os indivíduos já não sentem a necessidade de assumir posições claras perante os conflitos, nem a necessidade de adoptar o amplo normativismo internacional criado para conter ou limitar a guerra e os seus efeitos. Nos conflitos da última década não houve qualquer declaração formal de guerra ou de neutralidade feita por um único Estado, assim como também não houve qualquer tratado de paz formal. A maior parte dos Estados ou entidades limitou-se a definir uma política geral perante o recurso à força militar, que variava ao longo do tempo (Telo, 2002; p. 225). O caso mais emblemático é o do Kosovo, onde a opção da OTAN se manifestou na legitimidade pelo exercício, ou seja, bombardeou-se primeiro e só depois se alterou o Conceito Estratégico. Identificadas as transformações fundamentais das características, mas principalmente dos actores envolvidos nas guerras da actualidade, são inúmeras as tendências para o futuro, que pensamos já se terem iniciado. De uma maneira muito genérica, como vimos, é comum classificar as guerras como regulares e irregulares. Se nas primeiras o modelo clausewitziano tradicional está presente, nas últimas os Estados podem entrar em guerra contra uma rede terrorista, uma milícia, um movimento independentista, um exército rebelde ou ainda contra o crime organizado. As guerras irregulares podem também ser travadas entre dois ou mais grupos organizados, não envolvendo nenhum Estado. Em ambas as tipologias, a superioridade no acesso e tratamento da informação é determinante. Consideramos nesta nossa Lição de Encerramento duas aproximações fundamentais para caracterizar as guerras no nosso século, sejam elas regulares ou irregulares. A primeira procura o entendimento de fenómenos como as “novas guerras” e as “novas ameaças”, a segunda visão dedica-se ao estudo das implicações das guerras espectáculo, possibilitadas pelas forças da Revolução Militar em Curso (RMC), que têm por base os enormes avanços da tecnologia. Seja qual for a abordagem, existe consenso quanto ao facto de neste século as guerras se desenvolverem num mundo assimétrico, com fortes desequilíbrios quantitativos e qualitativos e onde surge um novo e discreto instrumento de intervenção, as empresas militares privadas (EMP). A nova polemologia 82 II. As novas ameaças à segurança e a guerra A Guerra hoje em dia aparece-nos muito associada às novas ameaças transnacionais. Assim devemos antes de mais esclarecer o que hoje se entende por novas ameaças, sabendo-se que reflectem numerosas alterações políticas, económicas e sociais ocorridas no mundo desde a queda do muro de Berlim e sobretudo no pós-11 de Setembro de 2001. Tradicionalmente ameaça é definida como sendo qualquer acontecimento ou acção (em curso ou previsível), de variada natureza e proveniente de uma vontade consciente que contraria a consecução de um objectivo que, por norma, é causador de danos, materiais ou morais; no fundo, o produto de uma possibilidade por uma intenção (Couto, 1998; p. 329). Porém, este conceito, por não ser suficientemente abrangente, apresenta hoje difíceis problemas quando procuramos precisar o que compreende; além do mais não permite a inclusão das consideradas ameaças não-tradicionais à segurança como é o caso da SIDA. É fácil observar que esta pandemia não é uma ameaça na concepção clássica, estruturalmente identificável num produto de uma capacidade por uma intenção. Por outro lado, também não parece possível entendê-la como um risco, que durante longas décadas se opôs ao conceito de ameaça, entendido como acção não directamente intencional e eventualmente sem carácter intrinsecamente hostil (Nogueira, 2005; p. 73). Face à multiplicidade de conceitos sobre o assunto, neste estudo optámos por adoptar a definição de ameaça transnacional do relatório das Nações Unidas, A More Secure World: Our Shared Responsability, que admite uma concepção bastante ampla de ameaça, encarada como: “(…) Any event or process that leads to large-scale death or lessening of life chances and undermines States as the basic unit of the international system is a threat to international security (…)” (2004, p. 12). Nesta ordem de ideias, consideramos como principais ameaças relacionadas com a nova conflitualidade: o fracasso dos Estados, o crime organizado transnacional, o terrorismo transnacional e a pandemia da SIDA. III. O fracasso do Estado e a subversão A primeira destas ameaças podemos considerar ter emergido com a alteração do Sistema Internacional após o fim da Guerra-fria. De acordo com dados da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID, 2005), pelo menos um terço da população mundial vive agora em áreas consideradas instáveis ou frágeis. São inúmeros os exemplos de Estados NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 Por “Estado fraco” entendemos aquele cujos órgãos de soberania e as suas instituições não conseguem exercer a sua actividade plena em toda a extensão do território, são incapazes de garantir os serviços básicos à população e, perante esta são tidos como ilegítimos. Muitos dos que ocupam ou ocuparam posições de relevo na sua administração, ou seja, a sua Elite política, tem uma visão patrimonial do Estado, transformando-se, no fundo, em gestores de um “(...) complexo sistema de relações sociais, que premeia o indivíduo em função da lealdade, punindo os tidos por desleais ou por competidores (...)” (Nóbrega, 2003; p. 181). Já o “Estado falhado”, e numa escala de insucesso superior, é aquele que na ordem interna não tem o monopólio da legítima violência que Weber (1946) nos falava, ou seja, surgem outras entidades como milícias, exércitos privados ou uma qualquer organização subversiva, nas suas variadas tipologias, que competem com o poder formal, por vezes controlando partes significativas do território e da sua população, não tendo necessariamente responsabilidade social sobre esta última. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 83 A nova polemologia fracassados pelo Continente Africano e no Sudeste Asiático; os mais prementes são a Somália e o Iraque. São vários os elementos constitutivos do Estado, como o território, o povo e o poder político soberano, competindo-lhe tradicionalmente garantir a prossecução dos seus fins de segurança, justiça e bem-estar social (Caetano, 1991; p. 144-149). Na definição tradicional de Jean Bodin, o Estado é supremo na ordem interna e independente na ordem externa, ou seja, decide por si mesmo como irá enfrentar os seus problemas internos e externos, incluindo se quer ou não procurar a assistência de outros e, ao fazê-lo, limitar a sua liberdade chegando a compromissos com eles (Waltz, 2002; p. 135-136). Os conceitos que nos aparecem associados à definição de Estados Fracassados são inúmeros, bem como diversos são os seus critérios de classificação, sejam eles indicados por académicos de renome como Fukuyama (2006), Rotberg Robert (2004) ou William Zartman (2001), ou ainda institucionais como a USAID e, no caso nacional o documento “Nova Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa” (2005). Porém, entendemos operacionalizar um conceito como instrumento útil. Assim, dentro do conceito de Estado Fracassado, latu censu, inserem-se três categorias que nos aparecem de uma forma gradativa: • Estados fracos; • Estados falhados; • Estados colapsados. A nova polemologia 84 O “Estado colapsado” aparece-nos no fim desta escala crescente de inviabilidade do Estado, o poder formal simplesmente não existe, os órgãos de soberania e as instituições num determinado território, que no passado já possuiu os atributos tradicionais de um Estado, colapsaram; ou seja, no caos jurídico, legislativo e administrativo prevalece a lei do mais forte, surgindo ou subsistindo diversas formas de organização social e comunitária, lumpen, etno-linguísticas ou popular, que possuem capacidade de exercer a força e conduzir operações armadas, que competem entre si pelo controlo de território e pelo acesso a recursos, e que controlam e exercem alguma forma de responsabilidade social sobre as populações residentes. Analisemos um pouco mais detalhadamente estas formas de organização social e comunitária de cariz subversivo. a. Tipologia subversiva lumpen Os movimentos lumpen são bandos armados ligeiramente organizados, de estrutura informal e horizontal, que podem emergir e obter sucesso contra um Estado fraco. A sua energia irradia da rua e não pelo desenvolvimento intelectual de uma ideologia, a actuação militar precede a conceptualização dos motivos, em vez de emergir deles, e é realizada sobretudo em áreas rurais. A disciplina assenta na brutalidade extrema, com utilização profusa de estupefacientes e de bebidas alcoólicas, onde o apoio da população surge pela mera questão de sobrevivência, uma vez que os elementos das unidades lumpen sistematicamente agridem e exploram as populações; a pertença ao grupo, para além da sobrevivência, é uma questão de identidade, sendo o recrutamento forçado (Mackinlay, 2002; p. 44-54). A Frente Unida Revolucionária da Serra Leoa é um bom exemplo. b. Tipologia subversiva etno-linguística A base etno-linguística para a organização social surge em locais como a Somália e o Afeganistão. A organização é definida pelos laços familiares das estruturas que podem ser mobilizadas para o conflito em unidades militares primitivas e que são capazes de efectuar pequenas acções, contudo, não um combate sustentado; são muito idênticas na actuação às forças lumpen, lutando sobretudo por recursos e, cada vez mais, numa perspectiva de enriquecimento. No entanto, as lealdades assentam na genealogia e a pertença não é uma opção; uma unidade de combate de um grupo etno-linguístico é organizada numa estrutura tradicional, onde as decisões são deliberações dos mais velhos que desempenham um papel de relevo. A sua perenidade deve-se à necessidade individual de sobrevivência. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 As suas Forças são a manifestação da sua cultura e apresentam poucos vestígios de doutrina de insurreição ou de organização em estado-maior, e a liderança é indicada pelos membros, de onde lhe advém o ascendente pelos pares e a boa aceitação pelos mais velhos, de quem dependem na angariação de fundos e recrutamento (Mackinlay, 2002; p. 54-66). 85 c. Tipologia subversiva Popular As Forças Populares distinguem-se das lumpen e das etno-linguísticas pela sua ideologia mais elaborada e pela proximidade das populações que apoiam essa ideologia, tendendo para uma organização militar mais consolidada. Na forma tradicional, podemos dizer que tem um período pré-insurreccional e um insurreccional. Surgem de uma organização em segredo que pode evoluir e conduzir operações prolongadas no tempo. A sua estrutura é celular e tendem para adquirir uma componente política autónoma em relação à militar. Um bom exemplo é o dos movimentos independentistas, como aqueles que o poder português enfrentou em África. Os seus métodos variam dependendo da fase da campanha. Por vezes é difícil distinguir quando se está na presença de uma campanha revolucionária ou perante uma campanha apenas de senhor da guerra. Actualmente, um movimento subversivo cai com facilidade na criminalização da actividade, sem procurar qualquer outra forma de responsabilidade social e política que beneficie a população (Mackinlay, 2002; p. 94). O fracasso do Estado pode e deve ser relacionado com as outras ameaças aqui referidas, pois, não possuindo poder, ficam permeáveis a que dentro de si germinem e se desenvolvam as mais diversas formas de terrorismo e de criminalidade organizada. Esta combinação pode comprometer ainda mais a já de si frágil existência destes países como realidade política. A nova polemologia IV. O terrorismo transnacional Nos Estados Unidos da América (EUA) o entendimento do fenómeno do terrorismo após o 11 de Setembro de 2001 foi sujeito a revisão na sequência do aparecimento de estratégias de desestabilização globais e mais radicais. O seu potencial foi acrescido, quer pelo grau de violência, quer pela capacidade organizativa. Surgiram novas estratégias de recrutamento (Romana, 2004, p. 258), e deu-se a privatização da sua actividade (Singer, 2003, p. 52). O fenómeno sofreu também uma alteração qualitativa e passámos a falar do ciberterrorismo, do bioterrorismo, do ecoterrorismo, do terrorismo químico e mesmo do nuclear. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 A nova polemologia 86 O terrorismo transnacional procura atingir os pontos mais críticos de convergência entre a sociedade e o aparelho do Estado e está mais vocacionado para desgastar o poder que desafia, ou para promover a sua rejeição, do que para o derrubar, procurando forçar um comportamento repressivo, logo comprometedor, e demonstrar a constrangedora ineficácia da prevenção (Monteiro, 2002; p. 3). Para além da espectacularidade dos efeitos das suas actuações (concepção e execução dos actos materiais em si mesmos), procura a ressonância publicitária junto da opinião pública, bem como os efeitos psicológicos causados nos alvos. Hoje a face visível do terrorismo transnacional é Bin Laden e a al-Qaeda, organização armada de estrutura adaptativa complexa, que possui intenções, objectivos, financiamento e recrutamento globais e é apoiada por vastas camadas populacionais que partilham a mesma ideologia ou religião. A al-Qaeda tem como móbil uma amálgama de considerações político-religiosas. Basicamente, o principal móbil da subversão global assenta num conceito geopolítico de pan-integrismo islâmico (Lousada, 2007; p. 32), tendo por base a modificação da actual ordem internacional e o estabelecimento de um Califado no coração do mundo islâmico, o Iraque1, regido por uma Sharia (Corão e Sunna) concebida a partir de uma interpretação integrista do Corão, procurando assim a transformação da sociedade muçulmana, limpando-a de inovação doutrinária (Zuhur, 2005; p. 6). Como objectivos intermédios procura não apenas aterrorizar, mas também a retirada das forças Ocidentais e interesses do Iraque, da Palestina e da Arábia Saudita, e ainda estender a Jihad aos países seculares da região e a sequente substituição das suas lideranças. No fundo, dominar os Estados (Garcia, 2007 a; p. 132). Para alcançar os seus objectivos, e tal como consta no manual de treinos da al Qaeda, é permitido o recurso a mecanismos não apenas políticos mas também violentos2. O terrorismo transnacional pode ser analisado segundo dois ângulos que consideramos interdependentes: uma análise racional em função dos objectivos, ou por outro lado, uma análise segundo as motivações de quem no terreno efectua as 1 Para uma análise mais pormenorizada podemos confrontar as diversas declarações de Bin Laden disponíveis em www.state.gov./s/ct/rls/pgtrpt/2003/31711.htm, e mais recentemente em http://www.dni.gov/ releases.html. O Governo norte-americano considera as intenções do Terrorismo transnacional de uma forma ainda mais ambiciosa, referindo no seu Conceito Estratégico de Segurança de Março de 2006 as intenções do Terrorismo: “The transnational terrorists confronting us today exploit the proud religion of Islam to serve a violent political vision: the establishment, by terrorism and subversion, of a totalitarian empire that denies all political and religious freedom”. 2 Este manual está disponível on line em http://www.usdoj.gov/ag/manualpart1_1.pdf. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 a. Estrutura do terrorismo A al Qaeda, ou aquilo que ela representa no nosso imaginário, apresenta uma maleabilidade, uma plasticidade e um oportunismo nas suas ligações, efectuando sempre alianças coerentes mas sobretudo convenientes, juntando grupos que pretendem a derrota do inimigo longínquo, o Ocidente e Israel, com grupos que apenas pretendem a autonomia local (Zuhur, 2005; p. 10). Consideramos três grandes perspectivas para abordar a estrutura do terrorismo. A visão tradicional considera que apesar da organização em rede há uma unidade na “organização”, e que esta reside na identidade centrípeta religiosa (Lousada, 2007; p. 32), referindo James Phillips que a “organização” possui um núcleo disciplinado e profissional, que provavelmente conta com cerca de 500 elementos. De acordo com este autor, tradicionalmente a al Qaeda opera através de uma estrutura horizontal 3 Sobre este tema devemos consultar a obra coordenada pelo Brigadeiro-General Russel Howard e pelo Professor James Forest, Weapons of Mass Destruction and Terrorism editado em 2006. A obra analisa detalhadamente os conceitos, a ameaça e as suas variantes, a resposta a dar e ainda as lições aprendidas e as ameaças futuras. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 87 A nova polemologia tácticas subversivas, onde os combatentes agem sem racionalidade e de forma emocional. É aqui que as análises ocidentais pecam sobretudo nas percepções, dado que por norma, segundo Zuhur (2005; p. 10-11) interpretamos as suas mentalidades como diferentes das nossas. No entanto do que na realidade se trata é de uma diferença de valores e de técnicas associativas, no fundo, os novos combatentes da Jhiad estão auto-convencidos que os seus actos de violência são morais, mas de modo nenhum desafiam a lógica moderna de padrões da sua mentalidade. O curioso desta atitude – em que os Ocidentais são o inimigo e que “(...) para a violência estrutural do Ocidente apenas o terrorismo global é a resposta eficaz (...)” (Moreira, 2004; p. 10) – é que ela é aceite por camadas significativas da população, contrastando com o entendimento do poder, como se verifica com o Paquistão, Arábia Saudita, Egipto, Argélia, Jordânia, ou ainda em países que estão a braços com movimentos secessionistas de raiz islâmica, como acontece na Rússia, na China, na Indonésia ou no Bangladesh (Lousada, 2007; p. 32). Hoje, a maior ameaça representada pelo terrorismo transnacional está na possibilidade de associação do fenómeno à utilização de Armas de Destruição Massiva (ADM), dado que é com alguma facilidade que uma organização terrorista pode ter acesso ou mesmo montar ADM, dado que muitos dos ingredientes necessários para a sua fabricação não estão devidamente protegidos3. A nova polemologia 88 informal, talvez combinada com uma estrutura mais formal, vertical, onde surge a figura de Bin Laden, que será mais importante como porta voz da “organização” do que como Comandante (Phillips, 2006; p. 2), e o egípcio Ayman al-Zawahiri como Comandante Operacional. Este núcleo será assessorado por um conselho consultivo (a majlis al shura) que coordena quatro comités (militar, financeiro, religioso e propaganda), cabendo ao comité responsável pela área militar a nomeação dos responsáveis das células espalhadas pelo mundo (Smith, 2002; p. 35), desempenhando cada célula uma função específica (suporte e operacional). Em torno da al Qaeda há também colaboradores, militantes e simpatizantes (Smith, 2002). A segunda perspectiva enquadramo-la no modelo em rede abordado por autores como Raab e Milward (2003) e Sageman (2004), para quem os elementos centrais da organização fornecem o contexto ideológico, a estratégia, o planeamento, os recursos, algum apoio administrativo, e são fundamentais para estabelecer a ligação entre células que se encontram descentralizados e dispersas geograficamente. Sageman, ao descrever a estrutura da al Qaeda, adianta um modelo estruturado a partir de hubs e nodes4, sendo os primeiros fundamentais para as ligações de uma direcção e comunicação centralizada entre os segundos, que se encontram, estes sim, descentralizados e independentes entre eles (Sageman, 2004; p. 164). Há no entanto uma versão significativamente diferente sobre a estrutura e organização da al Qaeda. Albert Barábasi (2003; p. 221) considera que no centro desta “teia sem aranha” não existe qualquer líder central, ou uma cadeia de comando formal, caracterizadora de uma estrutura militarizada ou das corporações do século XXI, que controle todos os detalhes. Douglas Macdonald (2007) perfilha desta ideia e vai mais longe, comparando a visão política extremista islâmica a totalitarismos como o Nazi. No regime do Füher, os little Hitlers gastavam a sua energia a trabalharem para Hitler, antecipando os seus desejos a partir dos seus discursos, ideologia e acção, mas tendo a iniciativa localmente. Assim, para Macdonald, a rede global é melhor entendida quando comparada a little Bin Ladens, financiados, treinados e guiados pela “base” mas a planearem os ataques de acordo com as condições e capacidades locais (Macdonald, 2007; p. 10). 4 Para Sageman os hubs são essenciais para a direcção das operações da al Qaeda, ao passo que os nodes, que são pequenos grupos de indivíduos isolados da comunidade envolvente e o produto de uma livre associação local, com laços de união interna extremamente fortes e resistentes à erosão, são aqueles que possibilitam as capacidades locais e sobretudo a presença operacional em áreas de interesse da organização como um todo. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 b. Apoios ao terrorismo A fim de sustentar o terrorismo e os seus objectivos, a al Qaeda conseguiu construir uma complexa teia de apoios e instrumentos políticos, religiosos económicos e financeiros (Brissard, 2002; p. 7). Apesar de a mistura entre religião, ideologia, crime e fontes de investimento tornar difícil determinar a origem clara de qualquer fundo terrorista específico, podemos considerar apoios de diversas fontes e formas. As principais fontes de apoio são os Estados, diásporas, guerrilhas exteriores, refugiados, organizações religiosas e de caridade5, instituições bancárias, Organizações 5 A al Qaeda infiltrou-se e estabeleceu-se numa série de Organizações Muçulmanas de Caridade, as quais podiam ser facilmente utilizadas para colher donativos, mascarar os fundos de que ela necessitava para financiar as suas actividades, montar autênticos centros de apoio à causa e distribuir os necessários às suas células espalhadas pelo mundo inteiro, ao mesmo tempo que serviam para apoio e ajuda humanitária legítima. Mais de 50 instituições de caridade locais e internacionais foram investigadas e conseguiu-se relacionar algumas com a al Qaeda, sendo as mais importantes as seguintes: a International Islamic Relief Organization (IIRO), a Benevolence International Foundation, a Al Haramain Islamic Foundation e a Rabita Trust. Todas elas têm escritórios espalhados pelo mundo e as suas actividades são, ou eram, relacionadas com programas religiosos, educacionais, sociais e humanitários (Brissard, 2002; p. 27). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 89 A nova polemologia Ao certo, o que podemos considerar é que actualmente aquela “organização” funciona cada vez mais como uma confederação (Brissard, 2002; p. 7) que congrega um conjunto de redes, com uma dimensão e estrutura variáveis, complexas e flexíveis, que gere e utiliza diversos centros de apoio espalhados por aproximadamente 60 países (Phillips, 2006; p. 1), apoiando-se os grupos radicais mutuamente, constatando-se ainda a existência de uma rede de solidariedade activa que se estende da Chechénia ao Sudão, passando pelas Filipinas, pela Somália, pela Malásia e pela Indonésia, passando igualmente pela Europa, onde possui uma muito elevada interoperacionalidade em domínios como a recolha de fundos, o recrutamento e a aquisição de material não letal (Romana, 2004; p. 260). Esta estrutura descentralizada cuja trajectória político-operacional é, do médio prazo para diante, uma incógnita (Boniface, 2002; p. 20) parece assim estar a evoluir para uma maior descentralização, num conjunto de redes de base regional (Singer, 2004; p. 145), formando uma “rede de redes”, demonstrando uma capacidade de actuação global, atacando inclusivamente o coração de grandes poderes, como fez em Nova Iorque, Madrid e Londres, conseguindo sobreviver a intensas contra-medidas (Mackinlay, 2002; p. 79). A sua capacidade de sobrevivência advém-lhe da desterritorialização, mas em nosso entender vêm-lhe sobretudo da sua capacidade de aprendizagem organizacional. A nova polemologia 90 Não-Governamentais, personalidades com fortuna pessoal, o Zakat (esmola legal), o Sadaqah6, e inclusive de grupos activistas de direitos humanos. Para angariar fundos, a “organização” mantém-se também associada a toda a espécie de actividades ligadas ao crime organizado7. Os motivos de apoio são variados. Os Estados são mais motivados por questões geopolíticas do que por afinidades étnicas, ideológicas, ou religiosas. Em contraste, as diásporas apoiam sobretudo por motivos étnicos e os refugiados são normalmente motivados pelo desejo de regressar a casa e restaurar as suas vidas e da sua nação em determinado território (Byman, 2001; p. 55). As formas de apoio vão do político nos fora internacionais e junto das grandes potências, ao simples encorajamento para a subversão do poder, passando pelo tradicional apoio financeiro, material, de intelligence, acabando no santuário, no treino ou mesmo em apoio militar directo. c. O recrutamento Tendencialmente, na opinião pública perpassa a ideia de que o terrorismo está apenas associado à pobreza, à miséria humana; são as próprias Nações Unidas a reconhecer que existe uma relação muito próxima entre terrorismo e pobreza, sendo as regiões mais pobres do mundo as mais propensas à ocorrência de violência. Contudo, nos atentados de Setembro de 2001 em Nova Iorque e de Julho de 2007 em Glasgow, pela análise das biografias dos suicidas, verificou-se que as fileiras do terrorismo também são preenchidas por indivíduos de nível social, económico e educacional, relativamente elevado. As fontes de recrutamento e os motivos para adesão são diversos e estão sobretudo associadas à revolta com situações sociais degradantes, a factores culturais considerados humilhantes, a injustiça, a desigualdades e a xenofobia, mas também, segundo Zuhur (2005; p. 7), os extremistas recrutam por uma crença recente na missão islâmica, a da´wa, e na glorificação da Jihad e do martírio, juntamente com o desejo de poderem contribuir para a mudança do meio que os rodeia e do mundo em geral. O apelo à Jihad tem funcionado e seduzido ainda como um ritual de 6 7 Participação em actos de caridade e trabalho voluntário. A Drug Eenforcement Agency (DEA) norte-americana, estima que, por exemplo, só no Afeganistão a al Qaeda lucra mais de 40 milhões de dólares ano com o tráfico do ópio (Carpenter, 2004; p.3). A Célula de Madrid foi talvez a mais importante a ser desmantelada desde o 11 de Setembro, tendo-se verificado inclusive que a mesma financiava outras células, como a de Hamburgo, e que obteve os fundos para comprar os explosivos usados no 11 de Março, através da venda de haxixe. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 1) Recrutamento directo Nesta forma de recrutamento o contacto com o elementos a recrutar é feito directamente e incide sobretudo em jovens previamente sondados e persuadidos, facilmente manipuláveis, sendo por isso a forma de recrutamento mais eficaz (Zuhur, 2005; p. 23). O contacto com os futuros recrutas efectua-se sobretudo em mesquitas, ou nas escolas corânicas (madrassas). Neste momento o Iraque é considerado como o epicentro para atrair, organizar e treinar a nova geração de terroristas (Phillips, 2006; p.2). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 91 A nova polemologia transição para a idade adulta e ainda como o demonstrativo da devoção ao Islão, transformando os recrutados em mujahedin. No seu processo de recrutamento os aliciadores utilizam múltiplos meios de persuasão como, por exemplo, imagens de muçulmanos perseguidos e de mulheres e crianças em sofrimento nos campos de refugiados palestinianos. A estas motivações podemos acrescentar outras tais como o encarar da Jihad como um “emprego alternativo”; para os mais puristas, na Jihad encontram a grande oportunidade de junção do domínio espiritual com o material. Houve recrutadores que utilizaram ainda o artifício da peregrinação para enganar alguns dos jovens aliciados (Curcio, 2005; p. 18-19). Um dos mais poderosos argumentos para o recrutamento desta Jihad tem na sua génese a ocupação e a presença militar estrangeira em terreno muçulmano. Por outro lado, os movimentos terroristas também sabem que os ataques suicidas são multiplicadores de força; atraem os media; são relativamente “económicos” e adaptados à natureza irregular da organização e aumentam o recrutamento, sendo curioso verificar o aumento crescente de mulheres suicidas (Zuhur, 2005; p. 54). A tudo isto acresce, o exponencial crescimento demográfico e o factor migratório, com o fluxo orientado predominantemente para os países do Ocidente, onde as novas comunidades que se instalam dificilmente são integradas nas sociedades locais, potenciando o acréscimo de desencantados e de potenciais filiados e combatentes pela alternativa apresentada pelo terrorismo. Como uma organização que se modifica e adapta constantemente, procurando novas formas de evitar a detecção ou dos seus membros serem capturados, a al Qaeda tem procurado a surpresa e a exposição mínima, recrutando operacionais oriundos não só de países muçulmanos mas também em países como a Grã-Bretanha, França, Austrália e os próprios EUA (Jacquard, 2001). O recrutamento é efectuado essencialmente de duas formas que podemos designar por recrutamento directo e recrutamento indirecto. A nova polemologia 92 2) Recrutamento indirecto Esta forma de recrutamento engloba todos os processos utilizados para integrar novos membros, sem que exista uma abordagem inicial, nem contacto ou interacção directa entre a entidade recrutadora e o elemento a recrutar. Aqui a actuação cinge-se ao campo das emoções, sendo utilizados os conhecimentos das leis da psicologia, da psicossociologia a da psicotecnologia para influenciar crenças e sentimentos. Destes processos os mais conhecidos são a divulgação de cassetes de vídeo, produzidas por apoiantes de Bin Laden, e onde surgem imagens do próprio, além de propaganda sobre o estado do mundo muçulmano, das causas desse estado e a solução para o mesmo, que não é senão a “guerra sagrada” contra os infiéis. Também a internet se tornou um novo meio de recrutamento e treino dos novos elementos, de captação de fundos e recursos, de divulgação e reivindicação das suas acções e de comunicação, tudo isto com facilidade de acesso e a possibilidade de anonimato quase garantida, mesmo com a intensa vigilância a que esta rede está agora sujeita. Nesta forma de recrutamento os jovens entram num processo de auto-aprendizagem com recurso a manuais de acções terrorista e gravações em vídeo ou CD. Quando e sempre que possível completam o seu treino a nível operacional com curtas passagens por grupos paramilitares no estrangeiro (Curcio, 2005; p. 23). Uma vez que o terrorismo transnacional, tem intenções, objectivos, recrutamento e organização globais, consideramos o fenómeno como uma acção subversiva global (Mackinlay, 2002, Garcia, 2007 b). V. O crime organizado transnacional As Organizações Criminosas Transnacionais (OCT) possuem objectivos lucrativos muito bem definidos, uma capacidade de planeamento ao nível estratégico e de condução de conflitos armados, envolvendo um inimigo ou uma rede de inimigos, socorrendo-se muitas vezes das mais modernas tecnologias (Metz, 2000, p. 56-57 e Carriço, 2002, p. 622), desenvolvendo a sua actividade criando um ambiente subversivo, não visando, no entanto, a tomada técnica do poder. Hoje, das diversas actividades a que o crime organizado transnacional se dedica, o tráfico de estupefacientes é das mais rentáveis. Com as verbas geradass as OCT adquirem um nível de poder que compete com o dos Estados. Exprimem-no pela capacidade de criar diversas formas de instabilidade nos países onde operam, instabilidade de amplo espectro, da social à económica, da política à psicológica. Ao mesmo tempo tentam conquistar indirectamente o poder político pela corrupção dos NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 VI. A SIDA A infecção por HIV/SIDA representa uma pandemia global, da qual se conhecem casos em todos os continentes. Inicialmente não se conheciam as reais dimensões do fenómeno, mas o facto é que desde 1981 já provocou a morte de aproximadamente 22 milhões de pessoas, deixando 13 milhões de crianças órfãs8. É hoje certo que a 8 O vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV) foi identificado pela comunidade científica há aproximadamente 20 anos. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 93 A nova polemologia seus órgãos de soberania e dos funcionários. Por outro lado, com a finalidade de intimidar o poder instituído de forma a garantirem completa liberdade de acção nas suas actividades criminosas, grupos como o Mara Salvatrucha, estão dispostos a usar elevados níveis de violência armada (Santos, 2004, p. 91-92) e, tal como já acontece na Bolívia e na Colômbia, chegam a administrar partes significativas de um determinado território, assumindo para si os fins de segurança, bem-estar social e por vezes até de administrar a justiça, substituindo-se plenamente ao Estado, colocando ao mesmo tempo os conceitos tradicionais de soberania e integridade territorial em causa. As novas formas de subversão, associadas aos conflitos armados que surgem no contexto da globalização, também têm uma dimensão económica, quer na origem, quer nas consequências (Williams, 2000; p. 89). São ainda indivisíveis do que é criminal, que passa para além das fronteiras e envolve regiões inteiras, misturando numa rede económica informal o saque e a pilhagem, o tráfico de seres humanos, de armas e narcóticos, as contribuições de imigrantes (Angoustures e Pascal, 1996), os “impostos” sobre assistência humanitária, tudo a viver da insegurança, da guerra, carecendo da continuação do conflito. Foram diversas as organizações revolucionárias que se envolveram na comercialização de estupefacientes, criminalizando as suas actividades, pondo assim um pouco à parte a vertente ideológica do conflito e transformando-se em narco-guerrilhas (Labrousse, 1996). Porém este envolvimento, que inicialmente seria apenas para o financiamento, pode ser depois o próprio motor da guerra. A criminalização pode também afectar as Forças Armadas que ou se deixam corromper entrando numa lógica de enriquecimento pessoal (narco-corrupção), ou então utilizam os fundos para financiar as suas actividades. Esta situação acaba por prolongar os conflitos, uma vez que a eliminação das narco-guerrilhas provocaria também o desaparecimento de uma boa fonte de rendimentos (Labrousse, 1996). A nova polemologia 94 SIDA provocou mais baixas do que qualquer conflito armado ocorrido no século XX, incluindo qualquer uma das Grandes Guerras, e a tendência é para o agravar da situação. Actualmente há cerca de 40 milhões de portadores do vírus, ou seja HIV positivos. Podemos comparar a sua progressão à das Divisões Panzer do General Guderian, com a Blietzkrieg. Simplesmente agora esta progressão é profundamente marcada por um carácter distintivo e único, na história da humanidade, quer pela extensão da sua propagação quer na morte que consigo transporta. A progressão é contínua, global, sem escolher raça nem credo, latitude nem longitude, nem condição social. O seu poder de destruição estende-se a toda a comunidade. No epicentro do fenómeno encontramos o continente africano. De facto, 24 dos 25 países mais atingidos por este flagelo são africanos. Pensa-se que a SIDA é responsável por 1 morte em cada 4 mortes de adultos em África (Singer, 2002; p. 147). É inegável que tem expressão global, embora se manifeste mais ao nível urbano do que rural, progredindo rapidamente na Ásia, nas Caraíbas e nas Américas do Sul e Central, bem como nos territórios da antiga URSS. Com a transição do milénio, a pandemia da SIDA recebe atenção especial ao nível internacional. As Nações Unidas têm sido uma notável frente de combate ao problema. A partir do ano 2000 o tema deu o mote a sessões especiais quer ao nível da Assembleia Geral quer do Conselho de Segurança. Sucederam-se, igualmente, diversas manifestações a nível regional, bem como iniciativas mais localizadas em diversos países. Do ponto de vista político, a SIDA como ameaça não-tradicional à segurança deve muito ao empenho da Administração Clinton. O então vice-presidente Al Gore apresenta ao Conselho de Segurança, a 10 de Janeiro de 20009, os fundamentos do posicionamento norte-americano (Prins, 2004): 1) O Coração da Segurança é a protecção de vidas; 2) Quando uma simples doença ameaça tudo, desde a economia às operações de manutenção de paz, enfrentamos claramente uma ameaça à segurança a um nível global; 3) É uma crise de segurança porque ameaça não só e apenas o indivíduo, mas as instituições definidoras da sociedade. 9 Neste dia, o Conselho de Segurança debateu a SIDA em África, tendo sido a primeira vez que este órgão discutiu um assunto relacionado com a saúde como ameaça à paz e segurança. O encontro demorou mais de 7 horas e teve cerca de 40 intervenções. Não foi aprovada qualquer resolução. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 a. A SIDA e o Estado A SIDA afecta o Estado como um todo, corroendo, à medida que alastra, as bases da sociedade, o indivíduo, a família e a própria comunidade. De acordo com o Director da UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS), a doença está a devastar os postos de trabalho ocupados pelos membros mais produtivos da sociedade com uma eficácia que, na história da humanidade, apenas tínhamos conhecido em resultado de grandes conflitos armados (Internacional Crisis Group, 2001; p. 1). A sua progressão faz-se sentir nas áreas governamental, económica e de desenvolvimento social, com a agravante que estes elementos mais produtivos, das classes média e alta, dificilmente são substituídos. O fenómeno também incrementa as necessidades orçamentais e as taxas de apoio social, desencorajando o investimento estrangeiro. A força de trabalho fica assim reduzida, o que provoca a queda em flecha dos ganhos sobretudo nos países mais debilitados ou em desenvolvimento10. Para o Banco Mundial esta doença é a maior ameaça para a economia africana, onde se espera que a redução do PIB atinja os 20% apenas numa década (Central Intelligence Agency, 1999). Todavia esta ameaça transnacional também atinge os Estados consolidados, não apenas pelos reflexos directos, mas indirectamente devido à globalização das economias. No fundo, o impacto é global e funciona como destabilizador social, securitário e económico. 10 Esta situação tem um reflexo enorme nas famílias afectadas com o vírus: menor rendimento nas actividades laborais, diminuição do rendimento familiar, crescimento dos gastos com medicamentos, má nutrição. As estimativas disponíveis apontam para uma quebra entre os 40 e os 60% nos rendimentos (Internacional Crisis Group, 2001). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 95 A nova polemologia O Conselho de Segurança também aprovou em 17 Julho de 2000 a Resolução 1308, que estabelece a SIDA como um problema de segurança, reconhecendo que esta pandemia é exacerbada por condições de violência e de instabilidade e que se não for acautelada pode colocar em risco a estabilidade e a segurança internacional. O International Crisis Group (2001, p. 2) aprofundou as múltiplas dimensões geopolíticas deste problema, considerando a SIDA como um problema transversal às diversas formas de segurança, da pessoal à económica, passando pela comunitária, nacional e findando na SIDA como um problema para a segurança internacional. A nova polemologia 96 b. A SIDA e as operações militares Dos países africanos com maior incidência de SIDA mais de metade está envolvido em conflitos armados. As estatísticas também são claras no que diz respeito aos militares contaminados com o HIV. São aproximadamente 5 vezes superiores aos civis e em períodos de guerra este valor cresce para 50 vezes mais. A situação é de tal maneira grave que muitas vezes as FA são mesmo o principal grupo de contaminados. Trata-se, sem dúvida, de uma situação que leva a que, nalguns casos, seja esta a principal causa de baixas. Além do mais, como a SIDA não escolhe postos, há consequências importantes nas cadeias de comando, na capacidade das Forças e mesmo na sua coesão. Os motivos para esta elevada incidência são diversos: desde razões que se prendem com a idade biológica, ao distanciamento das companheiras(os) sexuais e finalmente uma cultura do risco instalada em muitas FA pelo mundo fora. Temos que notar que os comandos em países onde a taxa de infecção é significativa já estão preocupados com a capacidade de projecção de força. Esta constelação de problemas agrava-se com a circunstância de a SIDA, como notou Singer, por via do enfraquecimento da instituição militar, propiciar mecanismos de desestabilização interna e de debilidade que aumentam a probabilidade de vir a ocorrer um ataque externo (Singer, 2002; p. 149). Se tivermos em conta que em alguns países, como a Namíbia, os dados estatísticos de militares infectados é uma informação classificada, teremos de admitir que o fenómeno tomou proporções alarmantes. Verifica-se que a multiplicação de contingentes de militares infectados com HIV inviabiliza a participação de muitos países em operações de paz. Pode ainda dizer-se que, devido às características e comportamentos dos seus elementos, a própria força tende a ser uma fonte de infecção no local da missão bem como, no regresso, um foco infeccioso junto das comunidades de origem, pois há sempre o risco/probabilidade de contrair a doença durante as missões (Internacional Crisis Group, 2001; p. 22-23). Assiste-se, estamos certos, a uma crise nos mecanismos de resolução de conflitos provocada pela diminuição da capacidade internacional de acudir, com o potencial humano adequado, a crises e conflitos. Deve observar-se, por outro lado, que a SIDA é crescentemente utilizada como uma poderosa arma de guerra. Os raptos e os genocídios combinam-se desde sempre em muitos conflitos. Todavia, o facto relevante é a sua associação, recente, ao contágio do vírus da SIDA: é possível que a transmissão de SIDA possa corresponder a uma prática de genocídio, na medida em que parece estar presente o elemento de NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 VII. A guerra das forças da Revolução Militar em Curso A guerra deste início de século foi de algum modo antecipada no livro de Alvin e Heidi Toffler, Guerra e Anti-guerra, de 1994. Nesta obra os Toffler anunciaram a divisão tripartida do mundo e das guerras em vagas: A vaga das “guerras agrárias”, típica do período das revoluções agrárias; a vaga das “guerras industriais”, produto da revolução industrial; e, por fim, a vaga da “guerra da informação”, resultante da revolução da informação e do conhecimento. As guerras típicas das sociedades de terceira vaga têm por base as forças da Revolução Militar em Curso (RMC) e estão ligadas sobretudo aos grandes poderes. Porém, as forças RMC na sua formulação mais profunda estão associadas exclusivamente – actualmente e nos tempos mais próximos – às capacidades do poder militar dos EUA. 11 A este propósito devemos recordar a título de exemplo o recrutamento feito pela RENAMO em Moçambique durante a guerra civil, ou pela RUF na Serra Leoa. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 97 A nova polemologia intencionalidade na passagem do vírus para a população. Terá sido isto que se passou no Ruanda e presentemente no Congo, onde mais de 500 mil mulheres foram desta forma infectadas com SIDA. Esta é uma doença que afecta sobretudo as faixas etárias mais jovens e, sabendo que a probabilidade de eclosão de violência entre os jovens do sexo masculino é cerca de 40% superior quando comparamos os valores obtidos nas faixas etárias mais avançadas (Singer, 2002; p. 151), permite-nos aviltar sobre a facilidade com que este jovens se constituem em alvo fácil do recrutamento por “senhores da guerra” que costumam incluir no seu quotidiano ritos iniciáticos de extrema violência11. Como se isto não bastasse, estas crianças e jovens, por norma mal nutridos e com pouca escolaridade, são no fundo um meio barato de manter e alimentar estas novas guerras. Os conflitos armados provocam ainda um mar de refugiados que habitam em campos onde, normalmente, a miséria é grande e os cuidados profiláticos decrescem. Apesar de estudos recentes não encontrarem evidências de que as situações de conflito incrementam os níveis de transmissão do vírus (Nações Unidas, 2006), pensamos que a situação aqui descrita nos indica que o fenómeno da SIDA se propaga sempre, independentemente de a situação ser de conflito ou de paz. Acreditamos, pois, que se trata de um processo infeccioso de difícil interrupção ao longo da poderosa cadeia de transmissão. A nova polemologia 98 Há uma tendência, que erradamente se generalizou que caracteriza as guerras feitas por forças RMC apenas pela alta tecnologia, nomeadamente a tecnologia ligada à informação. Na verdade, se apenas estiverem ligadas à tecnologia, podemos considerar que são guerras de forças pós-modernas, mas não são RMC. As forças RMC actuais apresentam as seguintes características (Garcia; 2005 b; Telo, 2002). • Uso de tecnologia da sociedade da informação, • utilização do espaço, • novas tácticas e composição orgânica das unidades, • necessidade essencial de conter a violência dentro de limites políticos, éticos e estratégicos aceitáveis pela comunidade internacional, • papel dos media e da opinião pública, • civilinização • e sobretudo pelo modelo de organização das tecnologias existentes e já disponíveis mesmo no mercado civil, e a partir das quais é possível criar novas e diferentes capacidades num sistema de sistemas. A ordem de batalha nas guerras centradas e em rede, de alta tecnologia, desenvolve-se em volta do conceito de Domínio Rápido, de operações RISTA (Reconnaissance, Intelligence, Surveillance and Target Aquisition) e dos 4S (Scan, Swarm, Strike, Scatter), com profusa utilização de armas inteligentes, de elevada precisão; selectivas. O novo campo de batalha está dominado por um sistema de sistemas, com base no C2W (Command and Control, Warfare), constituindo uma 5.ª dimensão12 da guerra (Pereira, 2003; p. 160), onde a manobra informacional se sobrepõe, e por vezes substitui a manobra do terreno. Face à esmagadora superioridade tecnológica e a operações baseadas nos efeitos, as baixas tendem a ser zero, ou a aproximar-se do zero, pelo menos de um dos lados. O objectivo já não é aniquilar, mas imobilizar, controlar, alterar e moldar o seu comportamento de forma a criar um novo ambiente político com perdas controladas, mesmo para o inimigo, evitando reacções negativas da opinião pública. É por esta razão que Edward Luttwak (1995) definiu este fenómeno como guerra pós-heróica; a força pode ser empregue sem o risco de perdas de vida. As novas tecnologias e a digitalização das unidades ditam novas doutrinas estratégicas, tácticas e organizacionais. A tendência é para a robotização do campo de batalha de uma forma progressiva. 12 As outras dimensões são a terra, o mar, o ar e o espaço extra-atmosférico. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 99 A nova polemologia As forças RMC empregam muito a guerra de informação, o vector moderno da guerra psicológica e da subversão tradicionais (Valle, 2001; p. 208). No actual ambiente operacional (e no futuro), o mais importante é (e continuará previsivelmente a ser) o domínio da informação, mais precisamente, o acesso, o controlo e o respectivo processamento com o objectivo de obter a sua transformação em conhecimento e depois partilhá-lo em tempo útil. Em breve, a psicotecnologia disponibilizará novos instrumentos capazes de influenciar os “corações e as mentes”, o que incrementará ainda mais o papel da guerra psicológica e dos guerreiros da informação que nas suas operações psicológicas e de informação aprendem a implantar falsas realidades e a induzir movimentos psico-culturais e políticos, em prol de determinados interesses nacionais, criando uma realidade virtual quando a realidade efectiva contradiz os imperativos estratégicos de momento. No fundo, uma verdadeira guerra de representações, na expressão de Alexandre del Valle (Valle, 2001). Nesta ordem de ideias, um outro elemento a ter em consideração nas guerras da actualidade é a presença e a actuação dos media. Estes hoje ajudam os guerreiros da informação a gerir as diversas percepções que as populações têm da situação. Há uma realidade percebida/construída, diferente da realidade efectiva. Ao nível estratégico a guerra de informação implica um domínio do ciberespaço, uma vez que os ciberataques não podem ser descurados, com as suas bombas lógicas, vírus e cavalos de Tróia. Esta diferente forma de guerra implica uma política de segurança e defesa para o ciberespaço, pois este impôs uma nova dimensão geopolítica, a do próprio ciberespaço (Adams, 1993). Nas guerras das forças RMC a supremacia dos meios e sistemas de comunicações é um factor imperioso. Na maior parte dos casos o espaço tende a ser entendido como a quarta dimensão da guerra. Quem tiver capacidade para dominar o espaço dominará o mundo. Com a colocação de sistemas de armas de intervenção global o espaço será militarizado (Boniface, 2002; p. 122), criando uma nova forma de dissuasão. Estes conceitos implicam um outro, um conceito geopolítico para o espaço. Com a civilinização, a distinção entre civil e militar ficará esbatida, uma vez que já não são apenas as Forças Armadas que entram em combate, mas as comunidades políticas que elas servem. Assim, este fenómeno de interpenetração é indicador de um novo tipo de Forças Armadas. Estas tendem a ser profissionais, com efectivos substancialmente mais reduzidos, com uma maior ligação aos meios universitários e centros de investigação, a integrarem mais mulheres e minorias e, em certa medida, tende-se para uma privatização da actividade militar (Moskos, Williams e Segal, 2000). A nova polemologia 100 As guerras com forças RMC são também guerras distantes. O poder que está na defensiva é castigado e muito limitado na sua resposta. Muitas vezes sente-se mesmo impotente (Telo, 2002; p. 222). Também distante no comando e controlo, onde os media e a informação sobre a guerra desempenham um papel primordial. Podemos dizer que é, em certo sentido, uma guerra subversiva feita pelos grandes poderes na Era da Informação13. Nas guerras RMC a duração em termos de uma acção militar intensa é muito curta, e é importante que assim seja, sobretudo por razões de opinião pública e de interesse político (Telo, 2002; p. 227), o que não quer dizer que no período posterior à acção militar decisiva, tipicamente de estabilização, a presença militar não se arraste por vários anos, já que actua em ambiente subversivo. Parece gerar consenso a convicção de que as guerras de hoje, apesar de manterem a mesma natureza, apresentam novos actores e já não correspondem na íntegra à classificação clássica do prussiano Clausewitz. Para ele, lembramos, a Guerra era a realização das relações políticas por outros meios (Clausewitz, 1976; p. 737). Hoje aquela máxima parece ter tendência para se inverter, passando a Política, sim, a ser a continuação/diversificação do estado de guerra. Em nosso entender a guerra deve-se sim ao falhanço da política, mantendo-se assim associada a ela. No fundo a guerra é uma forma de política. Após revisitarmos Clausewitz, consideramos que a sua trindade permanece em parte válida e actualizada, no sentido em que apesar de os actores envolvidos na guerra poderem ser outros, a violência original, a lei das probabilidades e do acaso, bem como a ligação ao fenómeno político, persistem. Uma das mais importantes implicações desta mudança qualitativa de conceito de guerra é a alteração dos laços funcionais entre o poder político e o aparelho militar. A envolvente política perpassa agora verticalmente todos os níveis de actuação militar: a estrutura de comando militar nos diversos níveis de responsabilidade preocupa-se principalmente com a actuação política14. Mesmo ao nível táctico, um comandante de uma pequena força desempenha esse papel no seu contacto com a população e com as autoridades locais. 13 António Telo (2002; p. 222) entende que há a guerra de guerrilha dos tempos modernos; também Mary Kaldor (2001; p. 7) entende que as novas Guerras baseiam a sua actuação nos ensinamentos da guerrilha e da contra-insurreição. Nós optamos pela comparação com a guerra subversiva, pois esta é mais lata e na vertente armada pode sim assumir a forma de guerrilha. Pode ainda ser aplicado a outras tipologias de guerra irregular, isto apesar de a principal táctica ser a guerrilha. 14 A este propósito devemos ver as obras dos Generais Wesley Clark (2004) e Ruperth Smith (2006). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 VIII. A Civilinização e as Empresas Militares Privadas Nesta nova conflitualidade devemos ter em consideração o novo paradigma que surge com a alteração significativa na estrutura das Forças Armadas e no emergir da civilinização, onde assumem grande relevância as modernas Empresas Militares Privadas (EMP), que prestam serviços e tarefas de natureza militar. A privatização do conflito e o uso de mercenários não são um fenómeno novo. Porém, hoje o contexto é substancialmente diferente e as Corporate Warriors na expressão de Singer (2003) têm um enquadramento jurídico distinto dos mercenários tradicionais. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 101 A nova polemologia As guerras que envolvam a grande potência sozinha ou em coligação, sejam elas regulares ou irregulares, serão sempre efectuadas por forças RMC. Na actual Guerra no Iraque, a intervenção da coligação internacional pautou-se pela superioridade tecnológica, pela supremacia aérea, com domínio do espaço, pelo uso de armas inteligentes e também por uma intensa guerra de informação, num cenário típico de guerra regular. A força RMC da coligação, com combates sucessivos e assimétricos, vergou a vontade de combater iraquiana e a operação militar foi uma nova Blitzkrieg. Porém, após a ocupação militar, houve uma transformação da natureza do conflito armado, deixando de obedecer ao modelo clausewitziano; além dos Estados, passou a envolver outros actores. Conforme a circunstância, qualificamos os seus elementos como bandidos, terroristas, guerrilheiros, mercenários ou milícias. Estes não representam um Estado e não obedecem a um governo. As operações militares de estabilização, apesar de feitas por forças RMC, fazem-se agora num ambiente de cariz subversivo, de combate próximo, onde não existe uma estratégia e uma táctica bem definida, sendo os objectivos fluidos, onde a inovação impera e a surpresa/imprevisibilidade são as suas principais características. O emprego do terror é frequente, desaparecendo a distinção civil/militar, estando os combatentes misturados com a população que desempenha aqui um papel fundamental de apoio de retaguarda logístico, em informações e ao mesmo tempo fonte de recrutamento. Por outro lado, também é o alvo principal e a maior vítima. Em ambientes operacionais destes é normal a generalização da violação do direito aplicável aos conflitos armados (internacionais e não internacionais), bem como do regime de protecção dos direitos humanos. No Iraque devemos ter presente a velha premissa de que as guerras de cariz subversivo não se ganham com acção militar, mas perdem-se pela inacção militar. A nova polemologia 102 Podemos considerar como elementos de diferencialidade das EMP em relação aos mercenários15; a sua estrutura organizacional com directores e accionistas, serem legalmente registadas, prestarem contas ao fisco e à segurança social, visarem o lucro a longo prazo, operarem em vários Teatros e para vários clientes ao mesmo tempo, ou seja, são organizações privadas de natureza comercial, cujo objecto é o fornecimento de um largo espectro de serviços de natureza militar e de segurança a entidades nacionais e não-nacionais, apresentando-se assim como alternativa aos serviços tradicionalmente consagrados às FA dos Estados. As modernas EMP emergem a partir de 1967, ano em que foi criada a Watch Guard International, uma companhia que empregava antigo pessoal do Special Air Service britânico para treinar militares no exterior. Depois, a partir dos anos 70 do século XX, destaca-se em África a Executive Outcomes, com grande envolvimento nas guerras civis de Angola e da Serra Leoa. Com o esboroar do antigo Império soviético e a sequente redefinição dos dispositivos militares, ficaram disponíveis inúmeros homens e material, que com iniciativa se organizaram e criaram diversas empresas que passaram a estar activas e a desempenhar um papel diferenciador em zonas de conflito ou de transição, um pouco por todo o planeta. A partir dos anos 90 do mesmo século o termo EMP começa a ser vulgarizado no léxico militar. Com a Guerra nos Balcãs a actividade sofre um grande incremento mas o grande boom vem com o actual conflito no Iraque. A actuação destas empresas é hoje global, estando contabilizadas mais de 150 companhias que funcionam em mais de 50 países nos diversos Continentes, sendo no entanto os seus principais Teatros de intervenção o Afeganistão e o Iraque. Neste território, onde são o segundo maior contingente da Coligação, estimam-se mais de 45 mil funcionários (MilTech, 2007; p. 41). As EMP vendem os seus serviços a multinacionais, ONG´s, Organizações Internacionais como as Nações Unidas, contando como principais clientes os Estados. Em termos financeiros, e só para ficarmos com uma pequena ideia dos montantes envolvidos, estima-se que o rendimento desta indústria atinja o valor anual de 202 biliões de dólares no ano de 2010 (MilTech, 2007; p. 43). 15 De acordo com o primeiro Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949, e segundo o seu artigo 47.º um mercenário apresenta as seguintes características: (a) “é especialmente recrutado localmente ou fora do local de conflito para lutar nesse mesmo conflito”, (b) toma de forma directa parte nas hostilidades”, (c) “é motivado pelo desejo de ganhos privados”, (d) “não é um nacional da parte em conflito nem um residente do território controlado por um parte do conflito”, (e) “não é um membro das forças armadas de uma parte no conflito”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 16 O problema com artigo 47 do Protocolo Adicional I prende-se sobretudo com as alíneas a) é que tem que ser provado que um recrutamento especial para um determinado conflito ocorreu. Como o pessoal contratado pelas PMCs é, muitas vezes, contratado a longo prazo ou até numa base permanente, não pode, desta forma, ser considerado mercenário. Com a alínea b) o problema coloca-se relativamente à exclusão de conselheiros e formadores, entre outros. E como quase todas as PMCs não entram em combate (na definição da NATO de combate), não podem ser consideradas mercenárias. A alínea c) acrescenta um elemento perigoso: a motivação. É difícil julgar alguém como mercenário argumentando que está envolvido só por desejo de lucro. Não só há mais motivações, como a ideológica ou a política, como também seria fácil de mentir neste ponto. Com as alíneas e) e f) a questão seria facilmente resolvida com o Estado cliente dando nacionalidade ou residência ou integrando simplesmente o indivíduo nas Forças Armadas.) Um exemplo deste tipo de prática é a integração dos Gurkhas dentro das Forças Armadas Britânicas. Outro problema com este artigo é o facto de apenas contemplar conflitos armados internacionais e não guerras civis. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 103 A nova polemologia São inúmeras as justificações que levam os Estados a contratar estas empresas. Nos Estados considerados Fracos, o recurso a este tipo de empresas prende-se sobretudo com a incapacidade de dar resposta às necessidades básicas de segurança das populações, ao passo que no mundo pós-moderno esse recurso apresenta-se mais como uma consequência de considerandos economicistas, sociais e políticos (O´Brien, 2002 e Vaz, 2005). O crescimento destas empresas e a diversificação dos serviços por si prestados não foi no entanto acompanhado pela regulamentação internacional específica. Apesar desta não existir, não podemos considerar que haja um vazio legal, pois há um conjunto de legislação nacional e internacional que directa ou indirectamente cobre esta actividade. Normalmente as EMP devem operar de acordo com o enquadramento legal do país objecto do contrato e a nível internacional lembramos entre outras o Direito Internacional Humanitário e diversas legislação sobre mercenários. Porém equacionam-se vários problemas, como a aplicação directa da legislação sobre mercenários16, e muitas vezes os Estados que contratam esta prestação de serviços têm um sistema judicial debilitado para que possa efectuar o controlo destas empresas. No Iraque, por exemplo, estão protegidas contra a responsabilidade criminal, como foi no caso dramático da prisão de Abu Ghraib, onde os abusos foram cometidos quer por profissionais das EMP quer por militares, mas apenas os militares foram responsabilizados pelos seus actos (MilTech, 2007; p. 44). Os Estados Unidos da América em Março de 2007, deram um passo significativo para contrariar esta situação, tendo sido aprovada legislação que coloca as EMP sob a alçada da Lei e dos Tribunais Militares. Anteriormente, esta modalidade aplicava-se apenas em situações em que o Congresso tivesse declarado formalmente Guerra; com a alteração agora introduzida, a Lei passa a contemplar Operações de Contingência, onde se incluem as realizadas no Iraque e Afeganistão (MilTech, 2007; p. 43). A nova polemologia 104 Estas iniciativas são o indicador de esperança na regulamentação, no entanto ficam ainda a faltar os mecanismos de controlo e inspecção a nível internacional, uma vez que enquanto a regulamentação e fiscalização não forem eficientes, receamos que este tipo de empresas não possam ou não queiram entender, na mira do lucro, a “natureza complexa dos interesses nacionais e aceitem participar num jogo em que a sua posição, sem ser claramente oposta aos interesses do seus país, também não possa considerar-se favorável” (Vaz, 2005), subsistindo assim o perigo real de existir um poder militar armado não-residente na legitimidade do Estado. Esta nova realidade complexa e ainda mal estudada carece de regulamentação e fiscalização e merece o nosso acompanhamento, tanto académico como de cidadãos interessados no assunto. Uma conclusão Apesar das incertezas típicas que o futuro nos reserva, a guerra continuará a ser uma questão de poder e, no actual século, cremos que continuaremos a assistir a guerras provocadas pela alteração de relação de forças entre actores não-estatais e os Estados, guerras irregulares e em ambiente subversivo, sem regras, sem princípios, sem frente ou retaguarda, onde os objectivos são fluidos, na boa compreensão que a única legitimidade é a do seu exercício. Guerras que no fundo não são tão novas assim. Por outro lado, assistiremos às guerras espectáculo, típicas das sociedades de terceira vaga e que tem por base as forças RMC, com um novo tipo de Forças Armadas, de alta tecnologia, com profusa utilização do espaço como a 4.ª dimensão da guerra. Nestas novas guerras (regulares ou irregulares) emergem ainda as empresas militares privadas, que acabam por vir enfatizar a utilização do termo civilinização. A única certeza que temos quanto às guerras deste século que agora se inicia é que o factor diferença/surpresa é permanente, como permanentes são o fluir da História e a diversidade dos cenários e dos homens, pelo que a Guerra é uma constante histórica que persistirá.NE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAMS, James (1993) – The next World War: the warriors and weapons of the ney battlefields in cyberspace. Hutchinson, London. BARÁBASI, Albert-Lászlo (2003) – Linked. How everything is connected to everything else and what it means for Business, Science, and Everyday Life. Massachusetts: Plume. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 BAUER, Alain; RAUFER, Xavier (2003) – A Globalização do terrorismo. Lisboa: Prefácio. 105 BONIFACE, Pascal (2003) – Guerras do Amanhã. Lisboa: Editorial Inquérito. CAETANO, Marcelo (1991) – Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. Tomo I. Coimbra: Almedina. CLARK, Wesley (2004) – Vencer as guerras modernas. 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N.º 14 Abril de 2009 pp. 76-111 Nuno Gonçalo Caseiro Miguel* 112 Globalização, crime organizado e terrorismo: Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? que relação? ■ Abstract: The globalisation era, usually regarded as an era of growing interdependence and unification between people all over the world, is also seen as an era with new challenges for peace and international security. In this context, old threats as the organised crime and terrorism are reaching unimagined dimensions. Therefore, the aim of this essay is to help understanding the link between organised crime, terrorism, and the globalisation process. According to the author globalisation has motivated and facilitated the rise of these two threats to higher levels, making them one of the first priorities of political leaders in western democracies, and also that the answer to this problem lies on the restructuring of several practices in place nowadays. I. Introdução O MUNDO DESTE início de século XXI está refém das transformações causadas pelo programa político de liberalização, de capitalismo e de promoção da democracia e do desenvolvimento, vulgarmente designado por globalização. Numa época em que as ameaças à paz e segurança internacional, nomeadamente o crime organizado e o terrorismo, parecem assumir contornos cada vez mais preocupantes, é imperioso reflectir sobre a seguinte questão: qual a relação existente entre a globalização e o crescimento do crime organizado e do terrorismo? Ao contrário do que muitos esperavam, o fim do mundo bipolar não trouxe a paz prometida, nem tão pouco conduziu ao atenuar das guerras e ao fim da história. Do vácuo criado pela destruição da ordem e da estabilidade geopolítica global, características da Guerra Fria, emergiu uma nova era, a da globalização, assente numa ordem de contornos ainda indefinidos onde impera a instabilidade. “A «ameaça comunista» desvaneceu-se, deixando espaço livre para os perigos de * Capitão piloto aviador. Mestrando da Universidade Católica Portuguesa. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 II. A Globalização A queda do muro de Berlim a 9 de Novembro de 19892, que está na génese do fim da Guerra Fria, vem pôr termo ao período da “longa paz” do sistema bipolar vivido durante a segunda metade do século XX. A realidade conceptual que melhor define o contexto histórico e geopolítico que daí resultou, na última década do século XX, e no conturbado início de século XXI3, tem o nome de globalização. Órfã do final da Guerra Fria, a globalização nasce do novo sistema de distribuição de poder mundial, onde vinga o sistema unipolar em que os EUA, vencedores dessa guerra, se afirmam como a principal potência mundial. A tendência natural, seguida em várias partes do mundo, foi uma aproximação mais ou menos caótica aos ideais defendidos pelas democracias liberais ocidentais, que estimulou um redesenhar do espaço geopolítico mundial. O processo gerado representa uma transformação na organização espacial das relações sociais por via da extensão, intensidade, velocidade e impacto das transacções entre os cidadãos do globo. O motor desse processo baseia-se na confluência de vários factores, respectivamente: de ordem política4; de cariz económico5; de natureza tecnológica6; e de carácter cultural7. No final do processo, encontra-se o aumento qualitativo e quantitativo dos fluxos e das redes transnacionais e inter-regionais de actividades, de interacções e do exercício do poder. 1 2 3 4 5 6 7 Paul Magnette, “A União Europeia aparece como uma tentativa única de construção multinacional organizada por Estados” in AAVV, Le nouvel état du monde, Paris, Éditions La Découverte & Syros, 1999, sob a direcção de Serge Cordellier. Tradução portuguesa de Eduarda Castro, Joana Caspurro e Raquel Mouta, O novo estado do mundo, Porto, Campo das Letras, 2000, p. 68. Seguida da reunificação das duas Alemanhas a 3 de Outubro de 1990; da dissolução do Pacto de Varsóvia a 25 de Fevereiro de 1991; e da dissolução da União Soviética em Dezembro desse ano. Que ficou marcado pelos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001. Onde se destaca o fim da Guerra Fria. Por via do triunfo do capitalismo enquanto modelo das democracias liberais ocidentais. Onde a revolução no domínio da informática e das comunicações encetou novas possibilidades. Fruto da conjugação dos outros factores e da percepção da inevitabilidade da interdependência. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 113 Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? um caos internacional”1. É neste contexto da segurança que a questão colocada assume particular relevância. Como se verá ao longo deste ensaio, e como o 11 de Setembro veio a comprovar de forma cruel, a globalização não só fomentou o crescimento de actividades ligadas ao crime organizado e ao terrorismo, como também ajudou a elevar o grau de risco dessas ameaças a patamares nunca antes imaginados. Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? 114 A globalização é um fenómeno que está associado à crescente sensação de interdependência e de aproximação entre povos, assim como ao esbater das divisões e fronteiras, mas que, paradoxalmente, se articula com uma forte sensação de vulnerabilidade e de insegurança face à disseminação e escala das mudanças globais. Assim sendo, a globalização é uma realidade que une ao mesmo tempo que divide, e está a criar um mundo sem regras e mais desigual. Apesar de a globalização ter duas componentes fundamentais, respectivamente a política e a económica, a verdade é que “são os aspectos estritamente económicos da globalização que geram controvérsia, e as instituições internacionais que ditam as regras, que impõem ou fomentam, por exemplo, a liberalização dos mercados de capitais”8. Para que a globalização possa acompanhar convenientemente a transformação em curso, minimizando a desigualdade e a controvérsia, ela deverá ser gerida. Uma das estratégias para o fazer é através da reforma das instituições internacionais que incorporam as regras do sistema global. Essa regulação deverá contemplar a participação dos países em desenvolvimento, tornando essas regras mais justas e democráticas. É fundamental que haja “mais transparência, no aperfeiçoamento da informação de que os cidadãos dispõem acerca da sua actividade, para que sejam mais intervenientes na formulação das políticas que os afectam”9 e que as regras sejam, e pareçam, equitativas e justas, contemplando tanto os poderosos como os pobres, reflectindo um sentido fundamental de honestidade e de justiça social. Nessa reestruturação é imperioso integrar diferentes realidades e consolidar a componente política do processo, fazendo com que a componente económica lhe esteja subordinada, ao contrário do que parece hoje acontecer. III. Ameaças à Segurança O período de transição em que vivemos é caracterizado por um conjunto de ameaças e riscos imprevisíveis, de carácter multifacetado e transnacional, em que se destacam, para além do crime organizado e do terrorismo, o agravamento das assimetrias Norte-Sul, os movimentos migratórios descontrolados, os atentados ecológicos, e a proliferação de armas de destruição maciça. As duas primeiras 8 Joseph Stiglitz, Globalization and its Discontents, Nova Iorque, W. W. Norton & Company Inc., 2002. Tradução portuguesa de Maria Filomena Duarte, Globalização: a grande desilusão, Lisboa, 2002 (3.ª edição revista, 2004), p. 47. 9 Joseph Stiglitz, Globalization…, p. 27. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 1. O crime organizado Uma organização criminosa persegue os mesmos objectivos traçados no mundo empresarial, mas por outros meios: tal como acontece com todas as outras empresas, o seu objectivo é o lucro. Contudo, os negócios propriamente ditos e as formas de atingir o lucro desejado, ou seja, as regras do jogo utilizadas, diferem bastante. Por um lado, negoceiam no mercado ilícito do tráfico de drogas, de armas, e de seres humanos, entre outros; por outro, e porque a competitividade sectorial é muito acentuada e agressiva, não olham a meios para atingir os seus fins. O recurso à violência é uma das armas utilizadas por estas organizações. Esse expediente deve-se por motivos de autoprotecção, mas também para atingir os seus objectivos financeiros e económicos. Apesar disso, estas organizações só recorrem a esta prática “quando as tácticas de intimidação falham. Assim sendo, e na maior parte dos casos, a violência é selectiva, diferentemente da violência indiscriminada, tratando-se normalmente de uma questão de ‘negócios’”11. Outro dos meios mais utilizados é o recurso à corrupção. São dois os objectivos visados com a utilização deste expediente: um de carácter instrumental; outro de ordem sistémica. O primeiro está relacionado com as dificuldades inerentes à passagem de fronteiras12; o segundo, de natureza bem mais inquietante, refere-se à corrupção dos mais altos responsáveis políticos e judiciais de um Estado. 2. O terrorismo As organizações terroristas visam atingir objectivos políticos, através do uso indiscriminado da violência. Para eles, a violência não é mais do que a continuação 10 Phil Williams, “Strategy for a New World: Combating Terrorism and Transnational Organized Crime” in AAVV, Strategy in the contemporary world, Nova Iorque, Oxford University Press, 2002 (2.ª edição, 2007), sob a direcção de John Baylis et al., p. 194: “(…) in the decade after the end of the cold war and fuelled in large part by globalization, both terrorism and organized crime morphed into far more formidable threats than ever before.” 11 Phil Williams, “Strategy for…”, p. 197: “(…) after intimidation tactics have failed. For the most part, therefore, the violence is selective rather than random and usually is a matter of ‘business’.” 12 Pelo que visa corromper o pessoal que trabalha na imigração e controlo de alfândegas. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 115 Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? ameaças destacam-se, pois “na década que se seguiu ao fim da Guerra Fria e parcialmente sustentados pela globalização, tanto o terrorismo como o crime organizado evoluíram para patamares de ameaça nunca antes imaginados”10. Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? 116 da política por outros meios. “Os actos de terror, para o terrorista, equivalem em termos utilitaristas aos actos de guerra, para o Estado”13. Outra característica destas organizações é que, independentemente das inspirações de ordem doutrinária ou religiosa, as suas acções visam a subversão. Como regra, os seus ataques pretendem causar o máximo de impacto psicológico nas populações. Para tal, contam com o apoio dos meios de comunicação social que, “ao dar importância aos atentados, aumentam os medos que eles suscitam e vão reforçar a sua eficácia”14. As actividades secundárias de suporte a esses ataques incluem a procura de formas de financiamento, o recrutamento, o treino de operacionais, o desenvolvimento e aperfeiçoamento de competências especializadas, e a preparação dos atentados. A natureza dos futuros ataques terroristas representa uma das principais preocupações actuais. A probabilidade de poderem vir a ser utilizadas armas de destruição maciça nessas acções é muito elevada15. Determinados cenários indiciam que essa probabilidade aumenta no que toca à utilização de bombas radiológicas, ou mesmo de pequenas bombas nucleares. Perante a natureza imprevisível desta ameaça, e sobretudo face à escala e dimensão das suas consequências, o combate ao terrorismo exige uma atenção mais cuidada, e uma disponibilização de recursos superior à que é reservada ao crime organizado. 3. A segurança num mundo globalizado De acordo com Joseph Nye Jr., “À medida que as ameaças transnacionais aumentam, os estados irão não apenas questionar as normas da Vestefália, que traçam distinções claras entre o que é nacional e o que é internacional, mas também a alargar os seus conceitos de segurança e defesa. Muitas das novas ameaças não serão susceptíveis de solução por parte de exércitos disparando explosivos potentes”16. Assim sendo, o combate a estas ameaças requer o envolvimento de todos. É neste contexto que toma forma o conceito de segurança cooperativa alargada. 13 Phil Williams, “Strategy for…”, p. 195: “(…) acts of terror for the terrorist are the equivalent in utilitarian terms of acts of war for the state.” 14 Pascal Boniface, Les Guerres de Demain, s.l., Editions du Seuil, 2002. Tradução portuguesa de António Manuel Lopes Rodrigues, Guerras do amanhã, Mem Martins, Editorial Inquérito, 2003, p. 17. 15 Há já alguns exemplos desta prática, nomeadamente: no Japão, em 1995, onde a organização terrorista Aum Shinrikyo libertou gás sarin no metro de Tóquio, expondo cerca de 5000 pessoas aos seus efeitos; e na Jordânia, em 2004, onde foi frustrado um ataque terrorista que envolvia o uso de armas químicas, que mataria presumivelmente cerca de 20.000 a 80.000 pessoas. 16 Joseph Nye Jr., Understanding International Conflicts, s.l., Joseph Nye Jr., 2000. Tradução portuguesa de Tiago Araújo, Compreender os Conflitos Internacionais, Lisboa, Gradiva, 2002, p. 273. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 IV. Globalização, Crime Organizado e Terrorismo Apesar de o crime organizado e do terrorismo constituírem práticas já antigas, com a globalização, a natureza dessas ameaças sofreu uma transformação radical: elas tornaram-se transnacionais, provocando um aumento nos índices de insegurança. Essa realidade é mais evidente na área do terrorismo: “Os prejuízos materiais e humanos provocados pelo terrorismo eram considerados até 11 de Setembro de 2001 como relativamente limitados na sua extensão, mas os atentados nos Estados Unidos mostraram que podiam adquirir uma amplitude considerável: matar milhares de pessoas e atingir alvos julgados ao abrigo de qualquer ameaça. Conforme ficou provado, o impacto do terrorismo é enorme. Ataca às cegas as populações civis na sua vida quotidiana exactamente onde elas acreditavam estar perfeitamente protegidas…”19. 17 Como as áreas da política interna, da política externa, da economia e da psicologia. Jean Ziegler, Les Nouveaux Maîtres du Monde, Paris, Éditions Fayard, 2002. Tradução portuguesa de Magda Bigotte de Figueiredo, Os Novos Senhores do Mundo, Lisboa, Terramar, 2003, p. 33. 19 Pascal Boniface, Les Guerres…, p. 15. 18 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 117 Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? Torna-se fundamental imprimir à segurança um carácter multidisciplinar, assente não só nos pressupostos da defesa militar, mas também nos conteúdos de outras áreas estratégicas17. Esta prospectiva estratégica global, aliada à coordenação de esforços entre Estados e a uma gestão conveniente da globalização, permitirá encontrar respostas conjuntas mais eficazes face aos desafios colocados. A chave para o sucesso da globalização passa por garantir que o conceito da segurança é verdadeiramente aquilatado, em todas as suas dimensões. É esta a mensagem que Jean Ziegler pretende transmitir quando adverte que “em nome da organização multilateral da segurança colectiva, os senhores do capital apostaram na capacidade militar da superpotência americana. (…) E longe de confiar a produção e a distribuição dos bens do Planeta a uma economia normativa que tivesse em conta as necessidades elementares dos habitantes, esses senhores entregaram-se à «mão invisível» do mercado mundial integrado, que controlam perfeitamente. Em poucos meses, arruinaram assim as esperanças enraizadas na base da consciência colectiva desde a paz da Vestefália em 1648: a esperança de um contrato social universal entre Estados e povos de dimensões diferentes, mas iguais em direitos; a esperança da regra de direito que substitui a violência do mais forte; a esperança, enfim, de arbitragem internacional e da segurança colectiva para conjurar a guerra”18. Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? 118 A globalização representa um factor de motivação e de facilitação para o crime organizado e para o terrorismo. Por um lado, implicou a alteração nos padrões de emprego, de cultura, de segurança, de capacidade de resposta por parte dos Estados, e, numa palavra, de estabilidade. Os efeitos secundários indesejados não demoraram muito a aparecer, criando um forte sentimento de desigualdade e de injustiça em largas franjas da população mundial. Dessa forma, a globalização motivou a implementação e disseminação de uma nova série de ameaças. Por outro lado, algumas das vantagens da globalização, que se traduzem em enormes avanços tecnológicos, estão disponíveis para todos. De facto, a densidade de informações e de ligações que se estabelecem hoje em dia entre as áreas mais remotas do globo, face à facilidade e acessibilidade das vias de comunicação, impossibilita o controlo da disseminação do crime e da violência. Assim sendo, a globalização facilitou o crescimento exponencial do crime organizado e do terrorismo. 1. O recurso às alianças Tal como acontece em grande parte das actividades legais, que compõem os diversos sectores da economia, também as organizações criminosas e terroristas recorrem à simbiose para sobreviverem num mundo globalizado. No caso das organizações criminosas, as alianças podem ser circunstanciais, de carácter táctico, ou mesmo de cariz estratégico. O facto de estas organizações poderem operar em rede facilita a dinâmica de cooperação entre as diversas partes. Essas redes podem-se ramificar indefinidamente, atingindo dimensões verdadeiramente inimagináveis. Considere-se como exemplo o grupo criminoso italiano da Máfia. Esta organização representa o maior segmento da economia do país. No último ano, a Máfia desenvolveu actividades que resultaram num lucro de noventa mil milhões de euros, ou seja, o correspondente a sete por cento do produto interno bruto italiano. Tal como acontece com as organizações criminosas, também os grupos terroristas se aliam em determinadas circunstâncias. Apesar disso, essas uniões, diferentemente do que acontece no primeiro caso, baseiam-se na comunhão de valores e de objectivos. 2. A descentralização das actividades Uma característica da globalização é que existem poucas regras, ou controlos formais, ao funcionamento do mercado. Em contrapartida, se os limites existentes forem NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 3. Outras variáveis As seguintes linhas, que não esgotam o tema analisado, têm como principal objectivo alertar para outros assuntos que poderão influenciar o frágil equilíbrio que existe entre a globalização, o crime organizado e o terrorismo. 3.a O papel do Estado A teoria das relações internacionais, que vê o Estado enquanto único actor relevante no mundo da política e da segurança internacional, está cada vez mais desacreditada. A globalização está na base da alteração deste paradigma, uma vez que o último símbolo da soberania, que é o controlo interno e externo do uso da força, deixou de fazer sentido. Hoje em dia, a segurança internacional está condicionada tanto pelos Estados, como por outros actores. A ideia de que a globalização e o capitalismo reduzem a violência não corresponde à realidade. 20 Roland Jacquard, Au Nom D’Oussama Ben Laden, s.l., Jean Piccolec éditeur, 2001. Tradução portuguesa de Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Osama Bin Laden: A Estratégia do Terror, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2001, p. 36. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 119 Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? contrários aos interesses de uma determinada empresa, ela pode simplesmente deslocar-se para outro local mais conveniente. Agindo desta forma, ou seja, tirando partido da dispersão de meios e de actividades, os actores não estatais livram-se facilmente dos inconvenientes da centralização. Como é natural, tanto os grupos criminosos como as organizações terroristas também utilizam este expediente como trunfo. Um exemplo paradigmático desta realidade é o caso do grupo Bin Laden, com fortes ligações à organização terrorista da Al-Qaeda: “Os projectos atribuídos ao grupo Bin Laden já não se limitam ao reino; passam também pelo Líbano, onde Yehia bin Laden participa na reconstrução do centro de Beirute, devastado pela guerra civil; por Londres, onde o grupo tem um escritório que o representa, a Binexport; por Genebra, onde a Sico, Saudi Investment Company, se ocupa de numerosos negócios internacionais. (…) A Sico, sede principal do grupo no estrangeiro, possui também escritórios em Londres e na ilha Coraçau, nas Antilhas holandesas. (…) Muito particularmente em França, os Bin Laden ocupam o conselho de administração de um banco, o al-Saudi, que será parcialmente adquirido pelo banco Indo-Suez, tornando-se deste modo o Banco Francês para o Oriente antes de se fundir com o grupo Mediterrâneo de Rafik Hariri, primeiro ministro libanês…”20. Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? 120 Se o crime organizado e o terrorismo empregam processos altamente dinâmicos, o Estado encontra-se no outro extremo. Não se defende que o Estado utilize essas mesmas armas. No entanto, é urgente que o Estado adeqúe as suas instituições à nova realidade, de forma a agilizar processos, desburocratizando tomadas de decisão, e garantindo outros níveis de eficácia no combate a estas ameaças. 3.b A quantificação do armamento Se por um lado a globalização gera novos actores não-estatais com influência transnacional, por outro, essa constatação implica que será cada vez mais difícil aferir o poderio militar global. A corrida ao armamento no mercado aberto torna praticamente impossível o controlo do armamento mundial, e, naturalmente, o respeito pelos acordos de manutenção e monitorização de armas. Como é natural, estas acções beneficiarão as organizações criminosas e terroristas, ao mesmo tempo que fomentarão um aumento da sensação de instabilidade e de insegurança. 3.c A segurança como bem público Uma outra questão sobre a qual se deve reflectir diz respeito à segurança: será este um bem público ou privado? Segundo Peter Singer, na sua obra Corporate Warriors, a segurança é um bem público. Recorrendo ao exemplo do seu país, este analista constata que a Constituição Norte Americana consagra a segurança enquanto bem público, supervisionado por entidades públicas. Acontece que, nos nossos dias, a segurança deixou de ser um bem público, passando a ser objecto de negócio por parte de privados. Assim sendo, a legitimidade do Estado fica enfraquecida e o contrato social fica em causa: para quê ser leal ao Estado? A política passa a estar directa e abertamente ligada ao poder económico. Nos países mais desfavorecidos isso significa que só quem tem dinheiro é que tem acesso à segurança. A privatização da segurança implica um extremar das clivagens sociais. Se forem quebrados certos padrões de coesão social na era da globalização, estão criadas as condições ideais para o triunfo do crime organizado e do terrorismo. V. Conclusão Na globalização, e “numa situação de interdependência, a política parece diferente se levantarmos o véu do interesse nacional e o da segurança nacional”21. 21 Joseph Nye Jr., Understanding…, p. 246. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 BIBLIOGRAFIA ENSAIOS MAGNETTE, Paul, “A União Europeia aparece como uma tentativa única de construção multinacional organizada por Estados” in AAVV, Le nouvel état du monde, Paris, Éditions La Découverte & Syros, 1999, sob a direcção de Serge Cordellier. Tradução portuguesa de Eduarda Castro, Joana Caspurro e Raquel Mouta, O novo estado do mundo, Porto, Campo das Letras, 2000, pp. 68-70. McGREW, Anthony, “Sustainable Globalization? The global politics of development and exclusion in the new world order” in AAVV, Poverty and Development Into the 21st Century, Nova Iorque, Oxford University Press, 2000, sob a direcção de Tim Allen e Alan Thomas, pp. 345-364. 22 Pascal Boniface, Les Guerres …, p. 13. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 121 Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? A globalização é sinónimo de altas taxas de crescimento económico, e de um mundo cada vez mais interdependente. Contudo ela acarreta também, e em proporção directa, um aumento do grau de ameaça do crime organizado e do terrorismo. Não é possível ter “o melhor de dois mundos”. Se os decisores políticos continuarem a apostar exclusivamente na componente económica como via de desenvolvimento, estarão a colocar em causa o futuro da humanidade. Assim sendo, torna-se absurdo dissociar o interesse nacional – que hoje em dia se confunde com o interesse económico – do conceito de segurança nacional. Por outro lado, os factores que estimulam determinados grupos da sociedade global a recorrerem à prática de actividades ilícitas não diminuem face à retórica apaziguadora de certos líderes mundiais. Pelo contrário, palavras contrárias às acções têm um efeito perverso, uma vez que conduzem a um acicatar dos ânimos e a um extremar de posições. Pelo que ficou exposto verifica-se que é necessário intervir no processo da globalização, nomeadamente através da: articulação de esforços; adaptação das instituições à realidade do século XXI; agilização de processos; maior dedicação e afectação de recursos à problemática da segurança. Por último, não é possível escamotear a base do problema, isto é, o combate às assimetrias. “Não há, pois, outra solução senão a de atacar as verdadeiras raízes do mal: injustiça, ausência de democracia, desigualdades, etc.”22.NE 122 WILLIAMS, Phil, “Strategy for a New World: Combating Terrorism and Transnational Organized Crime” in AAVV, Strategy in the contemporary world, Nova Iorque, Oxford University Press, 2002 (2.ª edição, 2007), sob a direcção de John Baylis et al., pp. 192-208. Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? JORNAIS Público, 24-10-2007. LIVROS BONIFACE, Pascal, Les Guerres de Demain, s.l., Editions du Seuil, 2002. Tradução portuguesa de António Manuel Lopes Rodrigues, Guerras do amanhã, Mem Martins, Editorial Inquérito, 2003. JACQUARD, Roland, Au Nom D’Oussama Ben Laden, s.l., Jean Piccolec éditeur, 2001. Tradução portuguesa de Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Osama Bin Laden: A Estratégia do Terror, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2001. NYE JR., Joseph, Understanding International Conflicts, s.l., Joseph Nye Jr., 2000. Tradução portuguesa de Tiago Araújo, Compreender os Conflitos Internacionais, Lisboa, Gradiva, 2002. PEREIRA, Carlos Santos, Os Novos Muros da Europa, Lisboa, Edições Cotovia, 2001. SINGER, Peter Warren, Corporate Warriors: The Rise of the Privatized Military Industry, Nova Iorque, Cornell University, 2003. STIGLITZ, Joseph E., Globalization and its Discontents, Nova Iorque, W. W. Norton & Company Inc., 2002. Tradução portuguesa de Maria Filomena Duarte, Globalização: a grande desilusão, Lisboa, Terramar, 2002 (3.ª edição revista, 2004). ZIEGLER, Jean, Les Nouveaux Maîtres du Monde, Paris, Éditions Fayard, 2002. Tradução portuguesa de Magda Bigotte de Figueiredo, Os Novos Senhores do Mundo, Lisboa, Terramar, 2003. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 112-122 Fernando Augusto de Figueiredo* A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): 123 aspectos e implicações do relacionamento com a ■ É com o intuito de contribuir para um melhor conhecimento deste período que ora se publica este artigo, após uma investigação de âmbito mais vasto sobre a presença portuguesa em Timor-Leste após 1945, baseada, principalmente, em documentação de arquivos nacionais, dos NAA (National Archives of Australia) e dos NA (National Archives) de Londres. Servir-lhe-ão de apoio estudos nacionais e estrangeiros, uma vez que pareceu essencial fazer uma inserção no contexto regional e geral do evoluir local, ao longo de três décadas. A AUSTRÁLIA, UM País relativamente novo, havia emergido na região pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, tentou apoderar-se do Timor português, de modo a proteger-se à distância. De facto, a proposta de Spender, deputado do Partido Trabalhista, para que se comprasse o território, baseava-se no facto deste ser considerado vital para a defesa do seu País1. Por seu lado, Salazar receava que o vazio deixado pela administração portuguesa servisse de pretexto para que a Austrália o viesse a ocupar. Em larga medida, isso explica a intransigência manifestada sobretudo para com a atitude dos funcionários públicos, civis e militares, e agentes comerciais que, durante a ocupação japonesa, se dispunham a abandonar a colónia e se refugiavam, precisamente, na Austrália. O equilíbrio das alianças estabelecidas na região, a cedência de facilidades aos Aliados nos Açores, a determinação do Governo português de querer participar na última fase do conflito, a manutenção de uma presença, embora mais simbólica do que efectiva, durante a ocupação nipónica, e uma rápida reocupação, contribuíram para que a pretensão australiana não se concretizasse. * 1 Doutor em História e investigador do Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa. Durante a I Guerra Mundial, tinha sido o primeiro-ministro Andrew Fisher a dar a sugestão de que se ocupasse Timor. Cf. Wendy Way (Editor), Australia and the Indonesian Incorporation of Portuguese Timor, 1974-1976, Melbourne, Melbourne University Press, 2000, p. 17. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Austrália A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 124 De facto, durante a guerra, o continente australiano sofreu pela primeira vez bombardeamentos aéreos e um bloqueio naval, enquanto cerca de 600 australianos morreram em defesa da Papua Nova Guiné Oriental e ilhas adjacentes. Ao mesmo tempo, a Austrália foi um País acolhedor para refugiados do Sudeste Asiático, substanciais forças holandesas e muitas centenas de milhares de militares americanos2. Também em termos de defesa, havia agora muita coisa a equacionar. A partir da década de 1960, alguns factores irão contribuir para um posicionamento diferente da Austrália relativamente à presença portuguesa em Timor. Os mais importantes parecem-nos ser: as mudanças operadas no processo de descolonização dos povos e o envolvimento da Austrália enquanto membro activo nesse movimento; a pressão dos governos democráticos do Ocidente para que desempenhasse um papel mais directo na questão de Timor, dada a sua incomodidade em fazê-lo, em virtude das obrigações que tinham para com Portugal; a consolidação da sua defesa próxima e regional; e uma opinião pública interna mais crítica em relação à colonização em geral. Após um período de indefinição e de não-confrontação directa durante o governo de Sukarno, também uma maior aproximação à Indonésia de Suharto, baseada em interesses mútuos, designadamente em relação à exploração de petróleo no Mar de Timor, ajudará a compreender a atitude australiana face à ocupação indonésia e posterior reconhecimento da anexação do território. Do pós-guerra ao início da década de 1960 No imediato pós-guerra, a política de defesa da Austrália apontava em três direcções: eliminar a capacidade militar do Japão e prevenir o seu ressurgimento; apoiar os esforços de paz da ONU; e contribuir para acordos de segurança regional, que deveriam incluir a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Estes objectivos não foram conseguidos a curto prazo, mas também não havia então perigo para a segurança do País, a não ser muito remota e indirectamente, sobretudo se fosse tida em linha de conta a situação que atravessava a Europa, em cujo continente se sentia mais o confronto Leste/Oeste3. Em 1950, quanto à componente que envolvia Timor, o deputado Spender, já ministro dos Negócios Estrangeiros australiano e fora do contexto de guerra, colocou 2 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), Australia in Word Affairs 1961-1965, Melbourne-Canberra-Sydney, Australian Institute of International Affairs, s/d., p. 251. 3 Idem, ibid., p. 252. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 No mesmo ano, um periódico de Sidney expandia a ideia de que Timor e outras possessões vizinhas da Austrália deviam ser controladas pelo seu País ou por uma “Potência muito amiga”. Era, principalmente, por este tipo de posições que, da parte do cônsul, existia a convicção de que o relacionamento de Portugal com a Austrália devia ser idêntico ao que havia com a Inglaterra e os Estados Unidos da América5. Ou seja: Portugal devia entrar num acordo regional que incluísse, obviamente, a Austrália, e que envolvesse também aqueles dois Países, com os quais Portugal estava na NATO. 4 Citado in AHDMNE (Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros), Timor, 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, telegrama n.º 7, Sidney, 28 de Março de 1950. 5 Cf. AHDMNE, ibid., 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, Anexo ao ofício n.º 21, do Consulado em Sidney, de 28 de Janeiro de 1950. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 125 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália a questão no Parlamento noutros termos, que o cônsul de Portugal em Sidney comunicou por telegrama ao Governo central: “[...].Todos os Governos vitalmente interessados [na] estabilidade [da]Ásia, [e do] Sul [do] Pacífico e capazes [de] assumir compromissos militares deveriam estudar [a] possibilidade [de um] pacto regional. [Esta] Comunidade formaria [um] núcleo ao qual se associariam outros Países principalmente [os] Estados Unidos. Fins [do] pacto - defesa militar, elevação [do] nível [de] vida, promoção [das] instituições democráticas [e] laços comerciais. Independentemente [do] pacto deve [a] Austrália assegurar-se por todos os meios ao seu alcance [de que] nas ilhas imediatamente adjacentes nada aconteça [que] possa ameaçar [a] sua segurança. [A] Experiência mostrou [que] estas ilhas são [o] último anel [de] defesa [da] Austrália [pelo que] temos interesse vital [em] quaisquer modificações [que] nelas ocorram. Ninguém deve supor [que a] Austrália tomaria papel passivo perante eventuais mudanças fundamentais nestas áreas. Tenho [em] mente principalmente mas não apenas [a] Nova Guiné do mesmo modo [que] não podemos ser passivos observadores [de] quaisquer desequilíbrios [em] Timor, Novas Hébridas, [e] Caledónia [que] possam ter indesejáveis consequências [na] Austrália. Mas isto é negativo. Estamos positivamente dispostos [a] negociar com governos destes Países [no] arranjo [de] mútuo benefício económico e segurança. Não é interferência [nos] negócios alheios mas simplesmente [uma] questão com carácter [de] prudência e cooperação mútua”.4 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 126 A Austrália saía da “iron age of austerity” dos anos quarenta para os “silver years of growing confidence and conformity” dos anos cinquenta, prelúdio do que viria a ser a “golden age” dos anos sessenta até meados da década seguinte, beneficiando então de um “long boom”, como fenómeno global que atingiu as economias mais avançadas durante este período, em virtude de grandes investimentos, do acesso a novas tecnologias, e a modernas formas de gestão e administração6. Por outro lado, era um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, estatuto que lhe dava peso negocial, que podia acrescentar à sua importância estratégica. A transição da “idade do bronze” para a “idade da prata” ocorreu em plena Guerra-Fria. No confronto bipolar entre capitalismo e comunismo, a Austrália alinhou, claramente, ao lado da “Western Alliance”, o que iria condicionar a orientação da sua política de defesa. Assim, em 1948, com a Nova Zelândia, integrou uma plataforma anticomunista, conhecida como “ANZAM Treaty”, destinada a coordenar a defesa aérea e as comunicações marítimas na região, tendo sido estendida à Confederação Malaia em 1954. Começou com uma assistência militar à Grã-Bretanha para ajudar a derrotar a insurreição comunista ocorrida naquele território. Em 1957, depois da independência da Confederação, foi incorporado na Anglo-Malayan Defence Agreement. Em 1950, já com Robert Menzies, como primeiro-ministro, à frente de uma aliança entre o Liberal Party e os Country Parties, enviou tropas para a Coreia a fim de combaterem ao lado das forças americanas que se opunham ao avanço para Sul das forças comunistas. Mais do que o receio do rearmamento do Japão, interessava agora desfazer a onda comunista que avançava no Oriente a na própria Europa. Por sua vez, os partidos que formavam a coligação conservadora nunca tiveram a simpatia dos nacionalistas indonésios, como havia acontecido com o Labor Party e especialmente com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Herbert Vere Evatt. Acrescia que, se a instável e ambígua Indonésia obtivesse sucesso na sua reivindicação da Nova Guiné Ocidental, haveriam de surgir problemas na comum, indefinida e insegura fronteira daquele território7. E isso era uma questão que tocaria directamente à Austrália, que administrava a Nova Guiné Oriental. A participação na Guerra da Coreia, a coberto do apelo da ONU para a defesa da paz mundial, mas também como “British and democratic nation” e em apoio de uma nação amiga, teve efeitos de vários tipos na Austrália: fez aumentar a inflação; firmou 6 7 Cf. Stuart Macintyre, A Concise History of Australia, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, pp. 196-197. Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., p. 261. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Este tratado constituía, essencialmente, uma garantia dos Estados Unidos no que respeitava à defesa da Austrália e da Nova Zelândia, dos territórios sob a sua jurisdição, assistência às suas forças armadas, e aos barcos e navios públicos na “Pacific Area”. Excluía, no entanto, o Oceano Índico, o que deveria ser, assim se presumia, da principal responsabilidade do Reino Unido. Na sua aplicação, o tratado deixava indefinido também o que se referia a partes da Indonésia, a área do Bornéu e o Antárctico. Quanto à Grã-Bretanha, por insistência americana, tinha sido excluída do tratado, o que foi desvalorizado pelos governantes australianos, que o apresentavam como um complemento dos acordos com o Reino Unido na ANZAM10. Em 1954, a Austrália integrou a SEATO (South East Asia Treaty Organization), que incluía também os EUA, o Reino Unido, a França e a Nova Zelândia – a “more comprehensive system of regional security in the Pacific Area” –, dinamizado pelos Estados Unidos após a derrota francesa no Vietname perante as forças comunistas. Cada um dos Países aderentes tinha os seus interesses e objectivos. Para o Governo australiano, a SEATO substituía o poder colonial francês, contendo “the agressive policies of international communism” no Sudeste Asiático. Este tratado vinha complementar o ANZUS: enquanto este apenas implicava encontros periódicos 8 Idem, ibid., p. 264. Stuart Macintyre, ob. cit., p. 206. 10 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., pp. 264-265. 9 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 127 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália alguns planos para limitar a reconstrução económica japonesa e o seu rearmamento; encorajou os Estados Unidos a conceder à Austrália um empréstimo para o seu desenvolvimento; e ajudou sobretudo a tornar possível um pacto que os líderes australianos procuravam há muito tempo8. Com o fundamento de que, como um vasto território e uma reduzida população, o País só poderia resistir a uma onda comunista vinda de Norte, ou a outro qualquer grande inimigo externo, com a ajuda de potências amigas, designadamente a maior de todas – os Estados Unidos da América –, em 1 de Setembro de 1951, os dirigentes australianos formalizaram com este País e com a vizinha Nova Zelândia um tratado de defesa (ANZUS – The Australia, New Zealand, United States Security Treaty): “[...]. ANZUS was essentialy a corollary to its system of alliances in the Asia-Pacific region, which served to reconcile Australia to America’s far more important relationship with the former enemy, Japan.”9 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 128 de um conselho ministerial e ocasionais de representantes militares e pessoal de planeamento, a SEATO assentava numa organização com contínua ligação entre pessoal de informação e planeamento, e representantes diplomáticos. Este tratado permitia à Austrália uma série de contactos com os Estados Unidos, que seriam importantes no desenvolvimento de uma mútua confiança e acessibilidade11. Desde o início de 1954, neste enquadramento, a Grã-Bretanha, a Austrália e a Nova Zelândia começaram as conversações do pessoal militar sobre os problemas relativos à defesa da Malásia, dos territórios-ilhas na região, e das próprias Austrália e Nova Zelândia, como referimos. O tratado cobria também a Commonwealth Stategic Reserve, com forças australianas12. Qual a importância da Confederação Malaia, para um tão forte empenhamento, sobretudo destes dois últimos Países da Commonwealth? “Economic considerations lay close to the heart of British strategic planning for South-East Asia as is revealed in a paper grandiosely entitled ‘Review of Defence Policy and Global Strategy’. In this the Chiefs of Staff declared: ‘Malaya is of the greatest economic value to the United Kingdom and its strategic importance in a war lies largely in its position as an outer defence of Australasia.’ Indeed, British Malaya provided a bridge between the Western Powers in Asia, between Anglo-American special relationship and the Commonwealth alliance, and between the Commonwealth and the non-aligned states.”13 Se era importante para a estratégia global do Ocidente, a participação australiana na sua defesa decorria desta visão abrangente, da qual não podia alhear-se: “By participating in the defence of Malaya, Australia showed its interest in the security not only of South-East Asia but also of the Indian Ocean.”14 J. B. Howse, subsecretário de Estado para os Territórios, defendia que a Austrália devia ter “um sistema de defesa móvel e empregar as suas reservas antes como ‘task-force’ do que espalhá-las por todo o País”, aprendendo as lições do passado, em várias regiões do mundo. Segundo ele, devia ser aproveitado o “alto conceito internacional” em que eram tidos o primeiro-ministro Menzies e o ministro dos 11 Idem, ibid., pp. 269-270. Idem, ibid., pp. 271-273. 13 D.K. Basset and V. T. King (Edited), Britain and South-East Asia, Occassional Paper, n.º 13, The University of Hull, Centre for South-East Asian Studies, 1986, p. 82. 14 Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., p. 275. 12 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Assim, propunha que se fizesse um pacto com a Holanda e Portugal para garantir a defesa conjunta destas áreas importantes. Para ele contribuiria economicamente sobretudo a Austrália, que deveria alargar o seu serviço militar obrigatório e efectuar também um “acordo qualquer” com a Grã-Bretanha, mostrando, deste modo aos seus aliados que estava a fazer o devido esforço em organização defensiva18. Faltava ainda fazer algo para consolidar este anel de protecção, já que a defesa mais afastada e a do próprio País estavam asseguradas. E isso implicava a Indonésia, a Holanda e Portugal. A partir de 1957, a Indonésia, onde os seus dirigentes até então se haviam mantido bastante ocupados na resolução de problemas internos e com a consolidação do Estado, fez subir de tom as suas reclamações sobre a Nova Guiné Ocidental, 15 Plano económico de reconstrução da “Ásia pacífica”, dinamizado pelos EUA em 1951. Cf. IANTT (Instituto de Arquivos Nacionais Torre do Tombo), AOS (Arquivo de Oliveira Salazar) /CO/UL-27, pt. 1 “Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões Parlamentares, n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, pp. 1-3. 17 IANTT, ibid., pt. 1 “Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões Parlamentares, n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, p. 4. 18 Cf. Idem, ibid., pt. 1 “Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões Parlamentares, n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, pp. 4-8. 16 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 129 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Negócios Estrangeiros, Casey, que haviam permitido ao Governo contribuir para a realização do Plano Colombo15, do Pacto ANZUS e da SEATO. O primeiro, pela ajuda em géneros alimentícios e equipamento técnico que permitia aos Países asiáticos amigos, tinha criado uma enorme onda de simpatia para com o seu País; o Pacto ANZUS garantia um auxílio valioso dos Estados Unidos da América e da Nova Zelândia em caso de ataque; e na SEATO, o Governo ia participar activamente para fortalecer a segurança da Austrália16. Por sua vez, o seu conceito de defesa próxima incluía a cadeia de ilhas ao Norte do País: Timor, as ilhas Aru, Nova Guiné, Nova Irlanda, Nova Bretanha, Salomão australianas e Salomão britânicas. Por isso, havia que fechar esta porta de entrada na Austrália: “[...]. Não temos pretensões sobre o Timor holandês (sic) ou português, nem sobre as ilhas neerlandesas de Aru nem sobre a Nova Guiné neerlandesa ou Ocidental, mas estamos interessados de forma vital na sua defesa. [...]. A atitude da Austrália tem sido sempre bem nítida. Estas ilhas devem ficar nas mãos daqueles que querem e podem defendê-las.”17 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 130 admitindo o uso da força para o conseguir. Reclamou também como suas águas territoriais uma área à volta, entre e junto das várias ilhas que a compunham, de 12 milhas de largura a partir da costa. A Austrália resistiu a uma e outra reivindicação, apesar de preferir os holandeses como vizinhos na Nova Guiné Ocidental. As diligências da diplomacia foram no sentido de evitar o uso da força. Assim, até 1962, para os governantes australianos, a principal preocupação na região era sem dúvida a Indonésia19. Na Malaia, apesar de, formalmente, o estado de emergência ter terminado em 1960, as forças australianas continuaram empenhadas em acções operacionais contra grupos terroristas, numa “border security area” integradas na Commonwealth Strategic Reserve. Qual o sentido da continuada participação da Austrália na defesa da Federação da Malaia, após 1957, agora contra a vizinha Indonésia? “The Australian viewpoint was that Malaysia was the best solution to the problem of descolonisation in the area, the best possible arrangement for the future of the Borneo territories, and would contribute to the stability of the region. Australia had no formal, public commitment to defend Malaya after 1957, even though its forces continued until 1960 to combat Communist insurgents there. [...], in September 1963, the treaty was extended to include all the territories of Malaysia.”20 De facto, o combate ao comunismo e as obrigações decorrentes para com o Reino Unido justificavam esse prolongado apoio ao longo da primeira metade dos anos sessenta, enquanto a Indonésia não entrou na era de Suharto, já que, a partir daí, foi a própria Indonésia a inverter a sua política externa. Acerca da Nova Guiné Ocidental, o Governo australiano defendia o ponto de vista de que o Governo holandês detinha ali a soberania e que o povo do território evidenciava afinidades étnicas com os da Nova Guiné Oriental e não com os Indonésios. Mas aceitava que esse mesmo território viesse a fazer parte da Indonésia se o Supremo Tribunal de Justiça assim o decidisse, se os Governos dos Países Baixos e da Indonésia o acordassem, ou se o povo que o habitava assim o votasse na altura 19 20 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ob. cit., pp. 279-280. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ibid., pp. 287. Veja-se também: AHU (Arquivo Histórico Ultramarino), MU(Ministério do Ultramar)/GM(Gabinete do Ministro/GNP(Gabinete dos Negócios Políticos)/034 Timor, “Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, pt. 1 (1962-1964), relatório respeitante ao mês de Setembro de 1963, enviado com o ofício n.º 98, secreto, do governador de Timor para o Ministério do Ultramar, Díli, 8 de Outubro de 1963, Anexo A: “Defence of Malasia – Statement by Australian Prime Minister”, pp. 1-2. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 21 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ob. cit., pp. 280-286. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 131 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália da independência ou subsequentemente. Fora destas condições, opunha-se, sobretudo se fosse utilizada a força para o anexar. A questão foi posteriormente ultrapassada quando, em 8 de Novembro, na Assembleia Geral da ONU, a Holanda aceitou transferir a soberania para o povo da Nova Guiné Ocidental, logo que a própria ONU pudesse assumir ali o controle administrativo, já que a população não estava pronta para o fazer. Seguiu-se um período de pressão do Governo de Sukarno, nomeadamente com a formação do Conselho Nacional de Segurança, Mas, em 15 de Agosto de 1962, os dois Países concordaram em transferir a Nova Guiné Ocidental para a administração indonésia, a partir de 1 de Maio de 196321. Entretanto, desenvolvia-se a guerra do Vietname, na qual a Austrália, em defesa dos mesmos interesses, também participava. Quanto ao seu envolvimento pela Federação da Malásia, após a sua formação (1963), ao lado da Grã-Bretanha, na confrontação que a Indonésia lhe moveu, a Austrália, em várias ocasiões, informou este País acerca da sua atitude face à confrontação e às razões do seu apoio. Mas, aparentemente, com poucos resultados. Por sua vez, a Indonésia quase sempre omitia referências hostis à presença australiana, evitando, assim, uma deterioração nas relações bilaterais, para não abrir mais frentes e para continuar a beneficiar da vasta e diversificada ajuda do “Plano Colombo”. Havia, portanto, interesse de ambas as partes em não se hostilizarem abertamente. Enquanto se envolvia directamente em questões como a da Malásia, a Austrália ia afirmando os seus interesses na Ásia: precisamente através do “Plano Colombo”, estabeleceu um esquema de cooperação com os Países do Sul e do Sudeste Asiático, que levou 10.000 jovens asiáticos a estudar na Austrália, justificado como “a profhylatic against communist infection”. Possibilitou também aos beneficiários uma experiência directa de vida na tranquila “Austrália branca”. Os australianos estiveram presentes na Ásia como conselheiros, técnicos, professores, diplomatas e jornalistas, mas, acima de tudo, como militares. Envolveram-se com os seus vizinhos em viagens, estudos, arte e literatura, apresentando a Ásia ainda como uma zona de contestação e perigo que requeria a presença dos seus poderosos amigos. Durante as décadas de 1950 e 1960, esta necessidade envolvente levou o Governo australiano a desafiar o perigo comunista, na dinâmica introduzida pela Guerra-Fria, que consistia em marcar o lado de que se estava. Isso também significou que a Austrália seguiu os Estados Unidos sempre que este País esteve à frente de qualquer movimentação ou A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 132 barreira, e exerceu toda a sua influência para colocar as forças americanas entre a China e os Países do Sudeste Asiático22. Por sua vez, para muitos australianos, a influência americana no País era uma “penalty for a privileged position.” Para o Governo australiano “it was seen as the price of security, if not of survival.”23 Em todo o sistema de segurança e de defesa australianos, os seus serviços secretos tiveram um importante papel: “The Joint Intelligence Bureau was created in 1947. Its basic responsabilities were not altered substantially during the 20 years of its existence. The JIB was responsible for collating (but not collecing), evaluating and distributing intelligence mostly of a strategic, scientific and military nature. The activities of the JIB were reflected in its organisation structure which, in addition to administrative and servicing branches, contained six functional branches dealing with such matters as military geography, economics, transport and communications and scientific intelligence. In addition to the JIB, which was within the Department of Defence, four other departments were also involved in the collation and evaluation of intelligence. Political intelligence was very largely the domain of the Department of External Affairs.”24 Após este alargado ainda que sucinto enquadramento, até ao início dos anos sessenta, interessa agora focar a análise em Timor português, onde, durante estas duas décadas, haverá a fazer algumas referências que consideramos essenciais. Ultrapassada a questão da rendição japonesa, houve que proceder à evacuação dos portugueses refugiados na Austrália. Para tal, foram desenvolvidas diligências, terminando com o envio de um barco português que, em 27 de Novembro de 1945, trouxe a maior parte deles de regresso à Metrópole. O cônsul de Portugal em Sidney, Álvaro Brilhante Laborinho, em nome do Governo do seu País agradeceu a “generosa hospitalidade”, a “valiosa assistência” e a “pronta colaboração” recebidas das autoridades australianas25. Refira-se que os 22 Cf. Stuart Macintyre, ob. cit., pp. 207-209. Gordon Greenwood and Norman Harper), ob. cit., pp. 287-301. 24 F. A. Mediansky, “Defence Reorganisation 1957-75”, in Australia in Word Affairs 1971-1975, Sydney-London-Boston, George Allen & Unwin et Australian Institute of International Affairs, 1980, p. 47. 25 Cf. NAA (National Archives of Austrália), Portuguese Timor, “Evacuees from Portuguese Timor”, A1838, C550098, SC377/3/3/4, 1945-1947, ofício n.º 1051, do consulado de Portugal em Sidney para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Sidney, 5 de Dezembro de 1945. 23 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Em 1945-1946, a partir da Austrália, as importações da colónia portuguesa não foram além de 7296 libras australianas, sendo as principais: Manufacturas de madeira ......................... 1469 Gado para criação .................................... 726 Batatas ...................................................... 420 Carrinhos para transporte de motores ...... 350 Cimento ................................................... 300 Total ......................................................... 3275 26 Cf. Carta de 10 de Maio de 1945, in José Freire Antunes, Salazar e Caetano: Cartas Secretas 1932-1968, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 159. 27 Idem, ibid., “Australian Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C140065, SC377/3/1 part 1, 1945-1950, apêndice de Apontamento sobre as Relações australianas com Timor Português – 1945-1946. 28 Idem, ibid., “Establishement of Consulate”, A1838, C248146, SC377/1/1 part 3, 1946, documento do Foreign Affairs para o Acting Treasure, Camberra, 11 de Abril de 1946. 29 IANTT, AMC (Arquivo Marcello Caetano), “4.º Secção – Ministro das Colónias (1944-1947), Correspondência com o governador de Timor...”, cx. 9, doc. n.º 26, cópia da carta do governador de Timor para o ministro das Colónias, Díli, 27 de Agosto de 1946. p. 8. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 133 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália termos constantes deste agradecimento estavam em contradição com o tratamento de “indigentes” a que, ao abrigo do Regulamento Consular, os mesmos consideravam terem estado sujeitos, o que mereceu um apelo directo do ministro das Colónias, Marcello Caetano, a Salazar26. Por outro lado, os governantes australianos empenhavam-se em adquirir uma posição dominante nos negócios da colónia portuguesa, substituindo a influência holandesa anterior à guerra e que, tendia de novo a impor-se, principalmente devido à navegação marítima que retomaram27. Em princípios de 1946, a abertura do consulado em Díli visava sobretudo estreitar as relações nos domínios da defesa, do comércio e das comunicações28. Por sua vez, no mesmo ano, o governador Óscar Freire Vasconcelos Ruas (1945-1950), depois de ter recebido o residente holandês de Cupang, referia ao ministro das Colónias: “É nítido nos holandeses o sentimento do ciúme para com os australianos a nosso respeito. Somos neste momento a mulher bonita, cortejada por mais de um homem. Bom sintoma é para a nossa posição internacional”29. 134 Nessa altura, Timor aparecia aos agentes australianos como um forte potencial em: borracha, café, sisal, copra, algodão, kapok, etc., mas sobretudo de petróleo30. Nos finais de 1947, as importações eram já em maior número e mais diversificadas (Quadro 1): A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Quadro 1 Importações da Austrália 1947 Produtos Açúcar Bacon Betume (asfalto) Cimento Coberturas p/ telhados Corned beef Manteiga Meias, peúgas e agasalhos de lã Presunto Queijo Refeições enlatadas várias Vestuário Quantidade 100 caixas 300 libras. 100 tambores 300 toneladas 500 rolos 10 caixas 2000 libras 500 libras 500 libras 1000 libras 20 caixas 500 peças Fonte: NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838, C550114, SC377/3/5 part 2, 1946-1949, memorando n.º 147, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 15 de Novembro de 1947. No que respeita à aproximação entretanto verificada entre Portugal e Austrália, merece referência a visita que, em Junho de 1947, o mesmo governador fez àquele País, como hóspede do Governo. Para as discussões informais que haveriam de acontecer com o governador português, e só a esse nível, o Comité de Defesa da Austrália havia elaborado uma série de tópicos, donde sobressaem os seguintes: – Timor português era da maior importância para a Austrália, tendo em vista a possibilidade de se vir ali a estabelecer um potencial agressor, dada a situação ainda existente no Pacífico, que ameaçaria directamente a defesa do País, sobretudo se ali fossem construídas bases navais e aéreas; 30 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838, C550114, SC377/3/5 part 2, 1946-1949. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Por seu turno, quando foi ocupar o seu posto, o governador Óscar Ruas levara instruções para intensificar as relações entre Timor e o poderoso vizinho do Sul, em detrimento do intercâmbio que até à guerra existira, a Norte, com as possessões holandesas. No que respeita às pesquisas petrolíferas, por exemplo, dava-se preferência ao grupo australiano, pondo de parte as companhias neerlandesas. Mas a falta de carreiras de navegação e de correntes comerciais levaram a que tudo continuasse quase como dantes. Para esta visita, as instruções, dadas ao governador por telegrama, deviam orientar-se no seguinte sentido: “Não convém dar-lhes facilidades [de] qualquer ordem tendentes a criar interesses permanentes nessa Colónia, devido [às] pretensões políticas apresentadas por eles. Portanto concessões agrícolas mineiras e outras [d] este género, e ainda colaboração política e militar deverão ser dificultadas, embora sem que isso tenha ar de política premeditada. Deve pois dizer-lhes que [os] assuntos de tal natureza são tratados aqui. Em compensação pode prometer-lhes toda a espécie [de] facilidades [em] negócios ocasionais, [por] exemplo [de] importações e exportações, e tudo que lhe interesse de momento, como fornecimentos para [a] obra [de] reconstrução. [...]. Recomendo [o] maior cuidado em não tomar 31 Idem, ibid., “Australian Defence Interests”, A1838, C271581, SC377/3/31, 1947-1951, documento produzido pelo Comité de Defesa Australiano – Discussões Informais com o Governador de Timor Português; e idem, ibid., “Visits to Australia by Governor”, C 550105, SC 377/4/1 part 1, 1946-1956, documento, secreto, do Department of Defence, Department of Air, Department of Civil Aviation e Post Master General’s Department para o Department of External Affairs, Melbourne, 21 de Maio de 1947. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 135 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália – havia que conseguir facilidades nesses domínios para a Austrália; – o desenvolvimento de eficientes serviços de transportes civis, marítimos e aéreos, para fins comerciais, podia ser uma vantagem do ponto de vista da defesa; – a exploração de petróleo por australianos poderia representar uma importante fonte de recursos energéticos próxima, com vantagem sobre os distantes abastecimentos longínquos de que o País necessitava; – era aconselhável promover visitas ocasionais de boa vontade a Timor português para conseguir tais intentos; – devia ficar de fora de discussão a matéria respeitante a “intelligence”, embora Timor português estivesse dentro da área operacional da Estação Naval Australiana e da área coberta pelo Joint Intelligence Committee australiano31. compromissos, mas não deixando sequer transparecer que tem instruções [para] criar dificuldades [do] género [das] atrás apontadas. Aparentemente deve dar-lhes impressão de [existir a] melhor boa vontade sua e nossa.”32 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 136 Porém, com esta iniciativa, o governador teve oportunidade de trocar pontos de vista com as principais autoridades australianas sobre intercâmbio comercial, postal, aéreo, navegação, etc. A visita foi depois retribuída por uma delegação composta de um ministro do Governo, acompanhado pelo governador dos Territórios do Norte, um senador e alguns altos funcionários33. Enquanto não se tornava possível concretizar algo mais, o governador tentava obter divisas para comprar gasolina e outros produtos na Austrália, procurando efectuar exportações (copra, coco, etc.) para a área do dólar, tendo sido abertos créditos para ela a favor do consulado português em Nova York34. Por sua vez, a Gazette de Lausanne et Journal Suisse (n.º 124-Jeudi 27 Mai 1948, p. 1), num artigo sob o título “Timor portugais, îlot latin au coeur de l’Indonésie”, assinado pelo seu enviado especial à Indonésia, Alain de Prelle, fazia uma apreciação bem diferente desta visita e, sobretudo, do seu alcance político: “[...]. Fort au courant des convoitises grandissantes de l’Australie sur ce territoire startégique, le gouvernment de Lisbonne eut l’habileté de faire solennelment reconaitre par Américans et Britanniques ses droits sur Timor, au moment où avaient lieu aux Açores de bases navales et aériennes alliées. [...]. Bien au contraire, l’Australie, qui se montrait si violemment hostile aux Hollandais en Indonésie, manifestait brusquement les plus grandes sympathies pour la petite colonie du Portugal. [...].Les Hollandais parlérent d’un pacte secret inféodant la colonie portugaise au grand continent voisin. A l’appui de cette affirmation, ils pointérent vers le fait que Timor, qui ne possédait qu’un aérodrome avant la guerre, n’en compte pas moins de six aujourd’hui, dont un sera bientôt capable de recevoir les avions transocéaniques ‘Constellation’. Le voyage vraiment triomphal que vient d’accomplir en Australie le governeur portugais de Timor est lui aussi sujet à de nombreuses spéculations”35 . 32 IANTT, AOS/CO/UL-10A, pt. 20 “Visita do Governador de Timor à Austrália”, doc. n.º 2, telegrama do ministro das Colónias para o governador de Timor, Lisboa, 7 de Maio de 1947. 33 Cf. AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. II, prat. 7, maço n.º 180, “Relatório do Governo da Colónia de Timor – 1946/1947”, governador Óscar Freire de Vasconcelos Ruas, pp. 185-186. 34 Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, “Relações entre Timor e a Austrália”, Informação da Repartição das Questões Económicas, Lisboa, 29 de Março de 1950. 35 IANTT, AOS/CO/UL-10A, pt. 21 “Notícias sobre Timor”, Anexo ao ofício da ANI – Agência de Notícias e de Informação, Lisboa, 31 de Maio de 1948. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Quadro 2 Importações da Austrália 1948 Produtos Açúcar branco Farinha de 1.º grau Leite condensado Leite em pó Manteiga Presunto Queijo Quantidade 10 toneladas 25 toneladas 3000 libras 1000 libras 1000 libras 500 libras 600 libras Fonte: Idem, ibid., memorando n.º 170, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 8 de Dezembro de 1948. Nessa altura, o Governo australiano procedia a uma primeira avaliação do que tinha custado a sua política em relação a Timor, na implantação do consulado, e em apoios vários para captar a amizade e a simpatia dos principais responsáveis portugueses em Timor: cerca de 150.000 libras. Como o interesse estratégico se mantinha, embora a tentativa de um serviço de navegação regular, e a exportação de 36 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838, C550114, SC377/3/5 part 2, 1946-1949, memorando do Department of External Affairs para o Department of Trade & Customs, Camberra, 30 de Dezembro de 1947. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 137 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Após a visita do governador português de Timor, ficou acordado que o Director de Navegação tentaria conseguir um serviço marítimo trimestral entre Darwin e Díli, e que o Departamento de Comércio e Agricultura, e Abastecimento e Navegação iria apoiar o governador, com a exportação de materiais essenciais para a reabilitação de Timor. Como a balança comercial era favorável à Austrália, pretendia-se estabelecer um certo equilíbrio com a importação de café da colónia portuguesa36. Mas tornou-se impossível manter um serviço que não tinha retorno suficiente para ser rentável. De facto, nos finais de 1948, as importações da Austrália eram as que haviam sido estabelecidas em 1946, por quotas mensais entre a SAPT (Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho), a maior empresa de Timor, e a Dodson Trading C.o, australiana, com interesses no território, para as quais era preciso obter as necessárias licenças (Quadro 2): A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 138 produtos timorenses e a exploração de petróleo não estivessem a resultar, era recomendado ao primeiro-ministro que fossem feitos esforços para conceder os apoios e os benefícios, de forma equilibrada; manter a carreira de navegação trimestral e um serviço aéreo quinzenal com Timor; e iniciar conversações com Lisboa para um acordo, englobando a navegação, as comunicações, a defesa e um limitado leque comercial37. Efectivamente, em 1950, o cônsul de Portugal em Sidney dava conhecimento ao Governo central do desapontamento do executivo australiano, que tinha instalado um consulado em Díli com o intuito de desenvolver relações comerciais mais intensas com Timor, investindo capitais e participando na reconstrução; bem como promover a discussão da segurança do território, estrategicamente muito importante para a Austrália, a tal ponto que não permitiria que a Indonésia ocupasse Timor Oriental. A não haver modificações notórias, aquele País ponderava retirar o consulado, por não estar a cumprir a finalidade para que fora criado38. Mas, na verdade, o consulado servia essencialmente para enviar informações detalhadas e permanentes acerca de Timor para o seu Governo e seria mantido enquanto fosse politicamente sustentável ali permanecer. Entretanto, uma pretensão australiana de celebrar um tratado, por dez anos, com vista à aquisição do café, e de organizar plantações do mesmo produto, em Timor, não foi atendida, por se considerar que, no primeiro caso, era um período demasiado longo; e, no segundo, porque já não havia terras disponíveis apropriadas para tal. Deste modo, evitava-se a influência local de um vizinho forte, que se poderia tornar incómodo39. No ano seguinte, o então governador da província, César Maria de Serpa Rosa (1950-1958), foi convidado a visitar a Austrália. O interesse das autoridades daquele País centrava-se em efectuar “discussões informais de mútuo interesse dos dois 37 Idem, ibid., “Austalian Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C140065, SC377/3/1 part 1, 1945-1950, documento do Department of External Affairs para o MNE, s/d. 38 Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, “Relações entre Timor e a Austrália”, Entrega [de] Aide-Memoire sobre Proposta [de] Cooperação Australiana, telegrama n.º 2, do Consulado de Portugal em Sidney, de 11 de Março de 1950; e NAA, Portuguese Timor, “Australian Representation – General”, A1838, C453504, SC377/1/2 part 1, 1945-1950, documento do Foreign Affairs – Pacific Division para o ministro, Camberra, 4 de Agosto de 1950. 39 Idem, ibid., 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34,27, “Relações entre Timor e a Austrália”, Parecer da Repartição das Questões Económicas, Lisboa, 7 de Fevereiro de 1950. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 40 AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. I, prat. 1, maço n.º 15, telegrama n.º 24, cifrado, do ministro das Colónias para o governador de Timor, Lisboa, 2 de Abril de 1951. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 139 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Países, com troca de visitas sobre matérias de interesse comum”. Mas, da parte portuguesa, pretendia-se apenas que a visita tivesse “fundamentalmente natureza de cortezia e boa vizinhança mas sem excluir o aspecto de informação recíproca sobre problemas de interesse comum sem negociações nem compromissos.”40 Na verdade, a estratégia do Governo central português consistia em deixar pendentes as grandes questões entre os dois Países para futuras negociações ao mais alto nível. Por isso, a visita do governador apenas permitiu um reforço da amizade e um melhor conhecimento das partes. Nesta altura, o Governo português não atribuía significado político importante ao consulado da Austrália em Díli, não considerava de grande relevância as relações comerciais existentes e os investimentos que particulares australianos desejavam fazer em Timor, e não queria alterar os compromissos de defesa, assumidos na nota britânica de 4 de Setembro de 1943 e no memorando português de 12 de Setembro de 1945. Receava-se um aumento da influência australiana em Timor e, por isso, preferia-se a manutenção do statu quo, puro e simples, na expectativa do que se passava na Indonésia e à sua volta. Em contrapartida, o executivo australiano parecia ter pressa em definir melhor os contornos de interesses e de vizinhança. De novo, a correspondência do consulado português em Sidney permite que acompanhemos o modo como o Governo central ia sendo informado e alertado para que se dessem passos em determinadas direcções de modo a assegurar o essencial. Com efeito, no seu relatório respeitante ao ano de 1951, este diplomata lembrava que, atendendo ao valor político e estratégico de Timor e à cobiça de que era objecto, a posição portuguesa em Timor poderia reforçar-se, se Portugal, apesar do País não fazer parte de nenhum dos Pactos então existentes na região, entrasse “num elo da cadeia de alianças do Pacífico”, de preferência numa organização técnica, como era, por exemplo, a South Pacific Comission. Tal participação não teria inconvenientes políticos e inseria-se plenamente nas orientações coloniais predominantes: desenvolvimento dos povos, e melhoria do seu bem-estar e explorações dos recursos existentes. Por outro lado, o relacionamento com a Austrália dependeria da política que Portugal desenvolvesse com aquele País, e da posição que conseguisse manter perante os Estados Unidos e a Inglaterra. No fundo, era A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 140 compreensível que, no mínimo, o Governo australiano tentasse obter ligações que lhe possibilitassem uma mais eficaz defesa e protecção das zonas costeiras, usufruindo de bons aeródromos e de um porto acostável, bem como de uma maior presença comercial. De resto, estar ali a coberto da soberania portuguesa evitaria também reivindicações e protestos indonésios. No imediato, impunha-se desenvolver as relações diplomáticas com a Indonésia e estabelecê-las com a Austrália, colocando, nomeadamente, um ministro em Jacarta e abrindo uma legação portuguesa em Sidney, de modo a lançar os alicerces funcionais de uma tal política41. O relatório do cônsul não se detinha por aqui. Continha ainda uma profunda reflexão acerca dos principais desafios que, do ponto de vista internacional e regional, se colocavam então à presença portuguesa em Timor. Por um lado, o território situava-se numa zona mal definida da influência das duas superpotências – URSS e EUA; por outro lado, a comparação do seu grau de desenvolvimento com o da Indonésia e da Austrália, embora saídas de colonialismos diferentes, tornava-se inevitável, sendo desfavorável, em qualquer caso, a Portugal. Deste modo, a capacidade do País estava de novo à prova, tanto mais que se tratava de uma colonização marcadamente administrativa, carecendo, por isso, de investir muito na vertente civilizadora. Impunham-se então o ensino profissional e algumas realizações materiais, de modo a elevar o nível e a preparação do indígena, aumentando-lhe o bem-estar42. Na verdade, a posição melindrosa da presença colonial portuguesa em metade de uma pequena ilha tão distante da Metrópole, com reduzida força militar e que só a grande distância e com limitados meios podia ser socorrida desde Macau, quando à sua volta fervilhava o nacionalismo e se acentuava uma disputa estratégica, tornada mais clara com os pactos e os acordos entretanto celebrados, causava natural apreensão, que levava alguns responsáveis mais atentos a apresentar propostas. Em Abril de 1952, na continuação das que haviam sido feitas nos três anos imediatamente anteriores, o Governo australiano procedia a uma reapreciação política, relativamente a Timor português. Nela se concluía que, até 1953, a situação permaneceria inalterável; mas que, em 1957, era provável que o território pudesse já estar incorporado na República da Indonésia. Na pior hipótese, isso podia significar que toda a ilha de 41 Cf. AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. I, prat. 1, maço n.º 15, do consulado de Portugal em Sidney, pp. 19-30. 42 Idem, ibid., est. I, prat. 1, maço n.º 15, do Consulado de Portugal em Sidney, pp. 31-43. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 43 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Top Secret Documents”, A1838, C841420, SCTS 383/7/1, 1957-1962, Political Appreciation, J. I. C. Appreciation n.º 6/1949, revised october 1950, revised August 1951, revised April 1952, top secret, Anexo “J” ao Apêndice “A”. 44 Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954-1966, memorando n.º 47/1/8, do Department of External Affairs para o Department of Defence, Camberra, 11 de Janeiro de 1954. 45 Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954-1966, relatório n. º 24, secreto, do Joint Planning Committee, Melbourne, 27 de Abril de 1954. 46 Idem, ibid., “Economic Relations with Australia”, A1838, C564693, SC756/1 part 2, 1954, memorando n.º 151/54, restrito, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 24 de Maio de 1954. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 141 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Timor estivesse sob influência comunista43. Entre 1953 e 1954, o lugar de cônsul em Díli esteve vago, o que parecia reflectir um tempo de reapreciação do interesse por Timor após os tratados entretanto celebrados, a que acima nos referimos. Em 1954, o executivo australiano fazia uma apreciação actualizada do significado estratégico de Timor português, no seguinte contexto: evolução política na Indonésia, tendo em consideração principalmente a fronteira comum na ilha de Timor; e as possíveis consequências políticas e estratégicas da descoberta e exploração de petróleo no Noroeste da Austrália, e de urânio e de outros minerais naquela região e também no Norte do País. Interessava ainda rever as conclusões tomadas pelo Comité de Defesa à luz dos desenvolvimentos gerais internacionais nos últimos seis anos44. Por sua vez, o Joint Planning Committee concluía que: enquanto a Malaia estivesse com os Aliados, Timor português era de pequena importância estratégica, quer para estes quer para os comunistas, embora pudesse revestir-se de valor para a RAAF (Royal Australian Air Force - Força Aérea Australiana), como um ponto de escala na linha para Singapura; se a Malaia caísse em mãos comunistas, Timor podia ser de uma grande importância estratégica para prevenir a defesa à distância do Norte da Austrália, até porque a sua utilização podia ser impedida por essas forças; havia, por isso, que manter com Timor português relações favoráveis, desenvolvendo as facilidades existentes, de modo a poder tirar vantagens disso45. Terá acuidade fazer aqui referência a uma alusão do consulado australiano em Timor, ao facto de o embaixador americano em Jacarta, E. R. Johnson, ter ficado surpreendido com o facto de, em 1954, não haver uma ligação civil, marítima ou aérea, entre a Austrália e Timor português, por pensar que os interesses da Austrália passavam por ter um barco a escalar Díli, mesmo que não compensasse comercialmente46. Parece perceber-se a preocupação com o que se passava a Norte, na Indochina, e com eventuais repercussões no Pacífico Sul. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 142 Em 1956, da parte portuguesa, sob proposta da Missão Geográfica de Timor, as autoridades desejavam iniciar com as suas congéneres australianas discussões técnicas com vista a elaborar um estudo geodésico comum. Mas não chegou a efectuar-se, ao que parece, por delongas da parte australiana47. No ano seguinte, após alguns contactos estabelecidos em Díli entre o subsecretário da Administração Ultramarina português, Joaquim da Silva Cunha, futuro ministro do Ultramar, e o cônsul australiano, Francis Whittaker, relativamente à emigração de portugueses para a Austrália, foi comunicado ao representante português que os seus concidadãos não estavam incluídos no programa de imigração australiano, estendendo a sua preferência pelos britânicos. Ficava apenas a promessa de se vir a ter em consideração a pretensão portuguesa, no caso de haver uma mudança favorável nas circunstâncias em que se processava a selecção de elementos48. Por contraste, em 1958, a visita a Fátima de Norman Thomas Gilroy, cardeal arcebispo de Sidney, à frente de uma peregrinação nacional de católicos australianos, constituía um momento também de reconhecimento a Salazar e à sua “maneira magnífica como [...] tem conduzido o País através de tempos agitados”49, como era referido pelo representante daquele prelado após este ter sido recebido pelo Presidente do Conselho de Ministros de Portugal. Esta postura não deixava de ser também um reflexo de uma imagem e de uma maneira de estar, com as quais a sociedade australiana conseguiu conviver durante décadas. Entre o final da guerra o ocaso da década de 1950, em termos gerais, a Austrália orientou a política de defesa nacional de modo a poder garantir a sua segurança de forma alargada, com pactos e acordos predominantemente regionais. Mas, a partir de 1957, o principal objectivo era já a “continental defence”, embora mantendo o nível de poder militar adequado ao envolvimento externo com eventuais adversários e de forma a respeitar os compromissos com os seus aliados. 47 Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246, SC3038/10/1 part 1, 1943-1961, documento n.º 313, do Departmet of National Development para o Department of External Affairs, Camberra, 10 de Agosto de 1956. 48 Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246, SC3038/10/1 part 1, 1943-1961, documento dirigido ao cônsul australiano em Timor, “Migration from Portugal to Australia”, Camberra, 14 de Agosto de 1957. 49 Cf. IANTT, AOS/CO/PC-ID, pt. 33 “Pedido de audiência para Norman Thomas Gilroy, Cardeal Arcebispo de Sydney, Austrália (1958)”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 australiana mudou, sobretudo em face da dinâmica que conheceu a descolonização na África e na própria Ásia, com reflexos na ONU, em cuja Assembleia Geral os novos Países passaram a ter uma maioria: “[...]. The decolonization process has affected Australia in two principal ways. In the first place, the process has had a market effect on international politics at large. [...]. Australia has faced an additional difficulty in that her regional company mainly comprises former dependencies, one of the more politically lively of them her immediate neighbour. This has made difficult the implementation of the obviously necessary policy of friendly relations with Asia, of rapport between a white, dependency-administering state and still sensitively nationalistic and at times aggressively anti-colonial states. In the second place, the decolonization process has touched territories which Australia administers, which are adjacent to (indeed, virtually contiguous with) her metropolitan territory and which have been higly valued by her in security terms. Australia may have been slow to see herself as a colonial power: [...]. Until recently, however, there has been little uncertaintly or inconsistency about the Australian view of the importance of holding control of Papua and New Guinea – the former, and closer, a colony or, in United Nations Charter terms, a non-self-governing territory under Australian sovereignty; the other a mandate and now a trust territory.”50 Os contactos da Austrália com Portugal sempre tinham ocorrido nas Nações Unidas e através do consulado australiano em Timor, raramente pelos consulados portugueses existentes em algumas cidades australianas. Em 1960, Portugal e a Austrália acordaram em estabelecer relações diplomáticas directas, ficando a embaixada portuguesa em Camberra a cargo de um encarregado de negócios, não se prevendo quando a Austrália enviaria para Lisboa um representante seu. Agora eram os governantes de Portugal que se apressavam a tentar negociar com os da Austrália em áreas nas quais nunca haviam aceitado aprofundar a cooperação. Em Março de 1961, diligenciaram para estabelecer um acordo de defesa, de modo a constituir-se uma frente comum contra uma eventual usurpação indonésia, e incluindo a preparação de oficiais e facilidades de treino51. 50 51 W. J. Hudson, Australia and the Colonial Question at the United Nations, Sydney, Sydney University Press, 1970, pp. 3-4. Cf. NAA, Portuguese Timor, “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246, SC3038/10/1 part 1, 1943-1961, telegrama n.º 8, confidencial, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 19 de Março de 1961. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 143 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Desde o início da década de 1960 à invasão indonésia A partir de 1960, a política externa A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 144 Ao longo deste ano, do lado australiano, várias diligências foram também sendo feitas de modo a reexaminar a importância militar de Timor português para o seu País, com particular interesse pelas implicações militares que podia ter a queda do território sob controle indonésio. Chegou-se à conclusão que a integração de Timor português na Indonésia não acrescentaria muito à sua capacidade militar, e que isso podia não representar um perigo efectivo para a Austrália, uma vez que esta dispunha de várias bases que podia utilizar contra esta posição avançada que, por sua vez, talvez não compensassse manter, tendo em vista a relação valor/preço52. Em Janeiro de 1962, o encarregado de negócios português, sob instruções do seu Governo, solicitou uma definição da Austrália no caso de uma agressão indonésia contra Timor português. O Departament of External Affairs sugeriu ao seu ministério que a resposta fosse oral e confidencial, assentando nas seguintes linhas: o Governo australiano levaria muito a sério uma agressão da Indonésia; nesta hipotética situação, as etapas a seguir seriam vistas à luz de todas as circunstâncias relevantes quanto tal acontecesse, pelo que seria de esperar que o Governo apoiasse propostas nas Nações Unidas de um cessar-fogo para a saída das forças indonésias; e não fornecesse apoio militar ou logístico, excepto em cumprimento de uma resolução das Nações Unidas ou em associação com o Reino Unido e os Estados Unidos da América53. Assim, ficavam bem delimitados os moldes de uma eventual intervenção australiana ante uma hipotético avanço indonésio sobre Timor português. Por isso, Portugal não podia contar com um apoio directo no caso de a sua soberania ali ser posta em causa. Nos finais do ano, o cônsul australiano em Timor, James Stanley Dunn, queixava-se ao seu Governo das perseguições de que era alvo por parte da PIDE, ele e o consulado, enquanto garantia que não tinha contacto com nenhum movimento separatista e as amizades que mantinha com alguns oficiais portugueses desafectos ao regime não tinham propósitos conspirativos, assim como não encorajava sobretudo militares portugueses a emigrar para a Austrália. Era acusado de tudo isto mas reclamava inocência, solicitando instruções para agir54. 52 Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954-1966, doc. n.º 3038/10/1, do Department of External Affairs para o Department of Defence, Camberra, 21 de Julho de 1961; e documento do Joint Planning Intelligence Committee, muito secreto, Melbourne, Setembro de 1961. 53 Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584248, SC3038/10/1 part 2, 1962-1963, documento do Department of External Affairs para o ministro, Camberra, 16 de Janeiro de 1962. 54 Idem, ibid., “Austalian Representation”,A1838, C 1505957, SC3038/10/6 part 1, 1951-1971, telegrama n.º 73, secreto, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 19 de Dezembro de 1962. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 55 Cf. Moisés Silva Fernandes, “Timor nas relações luso-australianas: as diligências de Menzies junto de Salazar para conceder autogoverno a Timor, 1961-1964”, Oriente, Lisboa, Fundação Oriente, n.º 5, Abril, 2003, pp. 16-17. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 145 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Este cônsul merecia muita desconfiança às autoridades cimeiras em Timor e, principalmente à PIDE, que o considerava senão apologista do comunismo, pelo menos simpatizante deste regime ou admirador da cultura russa, o que, na altura, era quase a mesma coisa. De facto, ele tinha servido na URSS e exibia conhecimentos de língua russa, manifestando admiração por alguns valores desses povos. Também não escondia a sua antipatia pelo regime vigente em Portugal. Por outro lado, ao conviver com alguns militares não afectos à situação, dentre os quais o major Pastor Fernandes, comandante militar, enquanto fazia a apologia do modo de vida australiano, prestava-se a ser objecto de observação e denúncia. Mas terminou a sua comissão de serviço em 1964, tendo ali acompanhado um período melindroso. Mais tarde, durante o domínio indonésio, este diplomata viria a ser um defensor militante da causa timorense. A inflexão da Austrália em relação à política colonial portuguesa foi notada pelos membros da ONU, tendo mesmo passado a integrar a “Comissão dos 24” desse organismo, encarregada da verificação da administração dos territórios não autodeterminados. Mas, no que lhe tocava directamente, estava ainda muito reticente em relação ao futuro da Papua-Nova Guiné Oriental, sob a sua administração. É também nesse contexto que deve ser apreciada a correspondência trocada entre Robert Menzies e Oliveira Salazar, nos primeiros anos da década de 1960. Com efeito, entre 1961 e 1964, verificou-se uma troca de correspondência entre os “arquiconservadores”, primeiro-ministro da Austrália, Robert Gordon Menzies, e o Presidente do Conselho de Ministros português, António de Oliveira Salazar. Dela resultou, basicamente, a rejeição de uma proposta moderada de concessão de um autogoverno a Timor, feita por Menzies a Salazar. Vários factores terão contribuído para que o primeiro-ministro australiano tentasse persuadir Salazar a inflectir a sua obstinada política colonial: o impacto dos acontecimentos dos primeiros meses de 1961 em Angola sobre a opinião pública australiana; a tomada de posição dos meios de comunicação social e do Partido Trabalhista na oposição; e as influências internacionais exercidas sobretudo pela ONU e pelos EUA para que os Países coloniais efectuassem descolonizações negociadas55. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 146 Na primeira carta, de 18 de Outubro de 1961, o chefe do Governo australiano, embora não abordando directamente a questão de Timor, exortava Salazar a tomar uma atitude mais conciliadora em relação à situação em Angola; ao capítulo XI da Carta da ONU e da resolução de descolonização 1542 (XV) relativamente às colónias portuguesas, que Portugal se recusava a cumprir; e à complexa situação dos refugiados angolanos no Congo. Apesar de partilhar o princípio de que a Assembleia Geral da ONU não devia pronunciar-se sobre os domínios portugueses e reiterasse a posição australiana de distanciamento em relação ao “Terceiro Mundo”, aconselhava Salazar a transigir, como o haviam feito as outras potências ocidentais, fornecendo à ONU informações sobre os territórios ultramarinos portugueses. A resposta de Salazar ocorreu a 28 de Outubro. O chefe do Governo português não só não cedeu em nenhuma das questões colocadas por Menzies, como lamentou a alteração de posição da Austrália para com o seu regime, ao mesmo tempo que tentou justificar a política colonial seguida, como um caso especial, semelhante a um Estado federado, propondo ao seu homólogo australiano que enviasse uma delegação do seu País a Angola, Moçambique ou outra colónia portuguesa para in loco apreciar a situação56. Efectivamente, a posição oficial da Austrália tinha mudado, pois, ao longo dos anos 1943 e seguinte, e no imediato pós-guerra, vários documentos atestam a intenção de libertar Timor das forças japonesas e de ali ajudar a restaurar e manter a soberania portuguesa57. Ao longo da década de 1950, como temos vindo a referir, essa posição não se alterara significativamente. Numa segunda missiva, em 8 de Fevereiro de 1963, em virtude de não lhe ter agradado a resposta de Salazar, preocupado com a evolução política na Nova Guiné Ocidental, e com as ambições expansionistas e atitudes belicistas de Sukarno, relativamente aos Países da região, Menzies propunha já a Salazar uma autodeterminação para Timor. Reconhecendo embora a diferença de perspectivas, esperava, no entanto, que viessem a verificar-se aproximações conjuntas; e recordava também a Salazar que a Austrália era membro da “Comissão dos 24” da ONU, sendo provável que, na 56 Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 13, carta do primeiro-ministro australiano, R. G. Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 18 de Outubro de 1961; e doc. n.º 16, carta de Oliveira Salazar para o primeiro-ministro australiano, R. G. Menzies , Lisboa, 28 de Outubro de 1961. Veja-se também: Moisés Silva Fernandes, art. cit., p. 17. 57 Veja-se: IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, docs. n.ºs 35 e 36, da embaixada britânica em Lisboa, de 14 de Setembro de 1943 e de 28 de Novembro de 1944, respectivamente; e n.º 39, telegrama enviado da embaixada de Portugal em Londres, de 28 de Novembro de 1944. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 58 Cf. Idem, ibid., pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 40, carta do primeiro-ministro australiano, R. G. Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 8 de Fevereiro de 1963. Veja-se também: Moisés Silva Fernandes, art. cit., pp. 17-18. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 147 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália sessão que se aproximava, não apenas as questões relativas às colónias africanas, mas também o futuro de Timor português, viessem a ser levantados. Ora, o seu País, em virtude da proximidade geográfica com Timor, e da fronteira terrestre comum entre Portugal e a Indonésia, via-se compelido a pronunciar-se, prevenindo, assim, Salazar de que Timor podia tornar-se para Portugal num sério problema político regional e internacional, a manter-se o estatuto do território sem que as suas populações se pronunciassem sobre o seu destino, de acordo com as regras internacionais58. Algumas apreensões de Menzies eram partilhadas por Salazar, que não confiava muito na posição oficial da Indonésia, e assistia com receio à contestação da política colonial portuguesa em Jacarta, e às tentativas de infiltração na fronteira oeste de Timor e no enclave de Oé-Cússi, tendo reforçado o contingente militar no território desde os princípios da década de 1960. No entanto, a posição de princípio tinha de se aplicar a todas as possessões portugueses, da qual o próprio Governo se encontrava prisioneiro, não podendo agir diferentemente em qualquer delas. A resposta do chefe do Governo português seguiu para a Austrália em 27 de Fevereiro de 1963. Nela rejeitava o princípio de autodeterminação sugerido, contestando a sua concessão “a esmo”, por, segundo dizia, não assegurar a liberdade dos homens; adiantava que a Constituição portuguesa tinha sido plebiscitada, e que o chefe de Estado e os deputados eram eleitos por todos os Portugueses, designadamente os das províncias ultramarinas; que o Ocidente se estava a deixar influenciar pelos blocos comunista e afro-asiático, e que lamentava a colaboração da Austrália neste domínio; e relativamente à ameaça de paz em Timor, argumentou que a Austrália não devia preocupar-se com a ordem interna nem com um ataque à soberania, mas com a maneira como essa soberania se observaria, uma vez que Timor não podia ser um Estado independente e que nesta matéria só havia duas hipóteses: continuar a fazer parte de Portugal como província autónoma, que já era, ou ser anexado pela Indonésia. Ora, como não previa qualquer “domínio ou condomínio australiano”, por melhores relações que pudessem existir entre a Austrália e a Indonésia, parecia-lhe mais seguro e mais atento aos interesses australianos um Timor português do que integrado naquela República. Salazar invocava ainda o comportamento australiano durante a Segunda Guerra Mundial em A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 148 Timor e as declarações de aceitação dos dirigentes indonésios em relação ao estatuto da colónia, e salientou as relações de amizade entre os cônsules australiano e indonésio em Díli, aproveitando o ensejo para solicitar informações acerca das actividades do cônsul australiano James Stanley Dunn59. Para Salazar, a questão que se colocava era a seguinte: se a o domínio da Austrália era impossível, se a independência de Timor se revelava inviável e se a soberania portuguesa parecia ser a única segura para a Austrália, o que pensavam os seus dirigentes ou podia fazer o seu Governo para manter o statu quo? Para tal, devia abandonar a ideia de que o povo estava apto a escolher quanto a relações internacionais e a definir o seu estatuto interno, e de que isso seria a situação mais favorável à Austrália. Apontava depois o caso de Goa como exemplo a evitar, a cujas populações também havia sido prometida a autodeterminação60. Por seu lado, em telegrama de 5 de Maio de 1963, com base num recorte do jornal australiano “The North Territory News”, de Darwin, que dava grande relevo a um apelo do Republican Party (Partido Republicano) para que a própria Austrália fizesse a libertação de Timor, o governador de Timor avançava a seguinte interpretação: “a Austrália está desenvolvendo mais abertamente uma política de incitamento da Indonésia para um ataque contra nós para melhor se perceber quais são os verdadeiros propósitos da Indonésia no futuro próximo”, o que considerava mau para a Austrália, revelando “medo e insegurança” na sua política externa e “manifesta desorientação” perante a opinião pública61. Entre a última carta de Salazar e a resposta de Menzies, em 23 de Maio de 1963, a que a seguir nos reportamos, o Parlamento australiano aprovou a proposta de lei do Governo Menzies, que instituiu a House of Assembley (Assembleia Legislativa) para a Papua-Nova Guiné Oriental. Na sua constituição, procurava-se cooptar um elevado número de elementos crioulos do território, evitando o aparecimento de um movimento nacionalista. Mas a natureza conservadora do projecto mereceu críticas 59 Cf. Moisés Silva Fernandes, ibid., pp. 18-19. Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 42, carta de Oliveira Salazar para o primeiro-ministro australiano, R. G. Menzies, Lisboa, 27 de Fevereiro de 1963. Veja-se também: Moisés Silva Fernandes, ibid., p. 19. 61 Cf. IANTT, AOS/CO/UL-8I, pt. 5 (cont.), “ Governo de Timor”, telegrama do governador de Timor para o Ministério do Ultramar, Díli, 6 de Maio de 1963. Veja-se também: Idem, AOS/CO/PC-78I, pt. 3 “Mensagens sobre a situação política em Timor (1961-1963)”, mensagem n.º 47, secreto, do governador de Timor para DEFNAC, Díli, 7 de Maio de 1963. 60 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 62 63 Cf. Moisés Silva Fernandes, art. cit., p. 19. Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 56, carta do primeiro-ministro australiano, R.G. Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 15 de Outubro de 1963. Veja-se também: Moisés Silva Fernandes, ibid., p. 20. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 149 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália do Labour Party (Partido Trabalhista), que defendia mais autonomia para o território, receando os ataques dos Países do bloco afro-asiático à Austrália62. Em 15 de Outubro de 1963, Menzies respondeu a Salazar, referindo que a questão do domínio ou condomínio australiano sobre Timor não se colocava, clarificando assim um ponto que Salazar tinha sub-repticiamente deixado; quanto à acusação de falta de solidariedade da Austrália com o mundo ocidental, Menzies assegurou que o seu País de modo algum colaboraria com forças que estivessem interessadas na desintegração desse espaço, estando consciente da herança europeia e que desejava que a Europa pudesse manter os seus interesses. Lembrou a Salazar que, apesar da Austrália fazer parte da “Comissão dos 24”, nada podia fazer para manter o statu quo, numa conjuntura internacional claramente adversa. Por fim, atendendo a que a Rádio Indonésia e um jornal de Hong Kong tinham divulgado a informação de que o “movimento de libertação de Timor”, a URT (União da República de Timor), havia solicitado o reconhecimento e o apoio do Governo de Sukarno, Menzies exortou Salazar a procurar envolver a ONU em Timor. Em resumo, o chefe do Governo australiano estava apreensivo com as repercussões regionais e internacionais dos diferentes interesses em presença no território vizinho de Timor63. Em 5 de Março de 1964, nova missiva de Salazar tentava rebater os argumentos de Menzies, retomando as questões: a Carta da ONU e a indevida interferência desta organização na vida dos povos; a política colonial portuguesa não contrariava aquela Carta e as normas que regiam a comunidade internacional; o controle dos blocos comunista e afro-asiático sobre a ONU e o receio do Ocidente em os enfrentar; a conivência dos Países ocidentais no caso de Goa; o reiterar de que Timor Oriental não era viável como País independente, de que a Indonésia não aceitaria tal estatuto e de que de a única alternativa era manter ali o statu quo; uma eventual tutela ou protecção da ONU de Timor era “ingénua”; o envolvimento da ONU na Nova Guiné Ocidental não estava a garantir a autodeterminação, mas sim a anexação pela Indonésia; lamentava a falta de apoio ocidental à política colonial portuguesa, considerando-a de “resultados catastróficos, para o próprio Ocidente e para as A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 150 populações em cujo nome se proclamam certos princípios, e cuja defesa e progresso se diz ter em vista”; o vaticínio de que, uma vez derrubadas as barreiras que a antecediam numa série de recuos, a própria Austrália poderia ter que defender-se; por último, a compreensão da dificuldade de a Austrália apoiar abertamente o seu País, mas pouca compreensão por “certos aspectos menos amistosos da Austrália em relação a Portugal”, como a campanha na imprensa australiana contra a política colonial portuguesa, a alegada dificuldade em obter “pequenos serviços de apoio logístico” para Timor e a ausência de uma missão diplomática australiana em Lisboa64. Nesta última carta enviada a Menzies havia muitos aspectos que, em 29 de Fevereiro de 1964, haviam sido avançados por Salazar ao ministro dos Negócios Estrangeiros americano, George Ball, ao rejeitar a proposta do seu País para uma solução política negociada para a questão colonial portuguesa. Vingava, assim, a opção do regime por uma solução militar65. Essa posição já havia sido tomada em 1961, não só em relação a África, como, coerentemente, a todos os outros domínios coloniais portugueses. A perspectiva de Menzies não colidia de todo com a presença portuguesa em Timor, uma vez que toda a sua governação se tinha caracterizado por posições conservadoras e ausência de mudanças significativas. O que propunha a Salazar parecia apenas uma solução moderada que se reflectisse numa maior autonomia para Timor – um autogoverno –, onde a elite local participasse mais na governação e nos destinos do território, de modo a conter o expansionismo javanês66. De resto, apresentava uma perspectiva semelhante àquela que, nesta altura, informava o modelo ensaiado na Papua Nova Guiné Oriental. Mas foi ela própria evoluindo, a partir de então. Entretanto, em princípios de Fevereiro de 1963, o Department of External Affairs australiano enviava um documento às suas embaixadas de Washington, Londres e Jacarta, bem como a outros departamentos de Estado, no qual realçava que Timor português só teria viabilidade económica com uma ajuda financeira e técnica do exterior. Ao mesmo tempo, apresentava a continuada presença portuguesa como uma crescente estagnação económica, prejudicial sobretudo à população indígena, que 64 Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961-1964)”, doc. n.º 60, carta de Oliveira Salazar para o primeiro-ministro australiano, R. G. Menzies, Lisboa, 5 de Março de 1964. Veja-se também: Moisés Silva Fernandes, ibid., pp. 21-22. 65 Idem, ibid., p.22. 66 Idem, ibid., pp.22-23. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 67 Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor”, A109, C1160284, SC 1974/9010, 1961-1964, ofício n.º 2296, do Department of External Affairs para várias embaixadas e departamentos de Estado, Camberra, 5 de Fevereiro de 1963. 68 Idem, ibid., “Australian Relations with and Polices towards Portuguese Timor” A1838, C584248, SC3038/10/1 part 2, 1962-1963, documento confidencial, Camberra, 18 de Fevereiro de 1963. 69 Idem, ibid., “Australian Relations with and Polices towards Portuguese Timor” A1838, C584248, SC3038/10/1 part 2, 1962-1963, documento secreto, Camberra, 25 de Fevereiro de 1963. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 151 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália seria propícia ao aparecimento de levantamentos. Contudo, receava-se que um ataque indonésio provocasse uma reacção portuguesa, criando uma situação de insurreição em toda a província, com apoios divididos. Segundo se dizia, aos Timorenses não faltaria vontade de expulsar os Portugueses, carecendo apenas de uma liderança, o que acabaria por acontecer, contando com a ajuda indonésia67. Uns dias depois, num “Encontro Especial do Comité dos Negócios Estrangeiros na Casa do Parlamento”, o ministro dos Negócios Estrangeiros australiano disse que Timor não tinha importância estratégica para a Austrália; que não lograria futuro como País independente; e que a melhor solução seria a sua integração na Indonésia, por meios pacíficos e não em resultado de qualquer acção agressiva. Contudo, reconhecia que, dada a intransigência do Governo de Salazar, seria difícil encontrar um caminho para o conseguir, uma vez que todas as iniciativas australianas se revelavam infrutíferas, apesar de o Governo norte-americano considerar que Portugal marcaria uma posição importante se conduzisse os Timorenses à autodeterminação68. Na sequência das iniciativas anteriores, foi constituído um “Grupo de Trabalho sobre Timor Português”. As deliberações deste grupo deviam ser tomadas em alta confidencialidade e no prazo máximo de três semanas. Como base de trabalho, eram-lhe apresentadas três considerações de forma clara: os Portugueses nada fariam pelos Timorenses; os EUA não apoiariam o colonialismo português; e os indonésios, se não houvesse quem os impedisse, avançariam contra o território, sendo isso um sério encorajamento para os elementos irresponsáveis e expansionistas na Indonésia e constituindo, a longo prazo, uma grande ameaça para os interesses australianos. Nessa eventualidade, um poder revolucionário e nacionalista, apoiado por armas russas, constituiria um perigo às portas da Austrália, esperando os EUA e o Reino Unido que este País tomasse alguma iniciativa para o impedir. Assim, este grupo de trabalho devia explorar todas as medidas possíveis e analisar os desenvolvimentos que podiam ser iniciados ou encorajados, de modo a evitar a afectação dos interesses australianos69. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 152 No entanto, o relatório do grupo de trabalho concluía que o executivo australiano, depois da saída dos Portugueses, poderia via a dispor de mais tempo do que se pensava em relação à Indonésia. Este País tornar-se-ia então mais flexível em relação ao futuro estatuto internacional de Timor. Entretanto, o aparecimento de um movimento nacionalista interno seria apenas uma questão de tempo e, se constrangido a actuar contra a administração portuguesa, só podia ater-se ao apoio da Indonésia. O perigo mais imediato podia ser o surgimento de um movimento de resistência genuína no interior de Timor, que viesse a ser aniquilado pelo Governo, provocando assim uma situação volátil, já que muitos dos seus elementos podiam tentar fugir para Timor Ocidental, pedindo asilo e criando situações delicadas de confrontação70. A um nível mais alargado, o problema de Timor já havia começado a fazer parte das Quadripartite Talks (entre delegações dos Estados Unidos da América, Grã-Bretanha, Austrália e Nova Zelândia), que tiveram lugar nos meses de Fevereiro e Outubro de 1963, em Washington. Aí se discutiu o assunto em duas vertentes: 1 – O que fazer perante uma acção indonésia contra Timor, tendo em conta que as partes não estavam interessadas em assistir a uma agressão, até pelo perigo que isso representava para outros territórios (britânicos e australianos, entenda-se), havendo aqui, perante sinais evidentes de ameaça, que tentar dissuadir a Indonésia, através de organismos das Nações Unidas , designadamente o “Comité dos 24”, de modo a ser esta instituição a resolver o futuro de Timor português. A maior dificuldade estava em que, em tal situação, o Governo de Portugal tentaria persuadir a Grã-Bretanha e os EUA a apoiar a manutenção do seu regime colonial em Timor, invocando as facilidades militares concedidas no Ultramar português a estes Países. 2 – Considerar a questão suscitada por Portugal, em 1962, na reunião da NATO, na cidade de Atenas, uma consulta multilateral ou acção que podia ser decidida em resultado das conversações de Washington. De facto, nestas conversações, analisaram-se as várias questões que se prendiam com o futuro de Timor, na sua complexa amplitude: o território não tinha viabilidade económica, mas, por outro lado, as populações nativas não haviam reivindicado uma separação de Portugal; a Indonésia, mais tarde ou mais cedo, tentaria anexar Timor, com o qual não tinha diferenças étnicas, mas também não havia um passado histórico comum; e o regime português 70 Idem, ibid.,“The Future of Portuguese Timor”, A109, C1160284, SC 1974/9010, 1961-1964, relatório do Grupo de Trabalho do Departament of Officers, Camberra, 4 de Abril de 1963. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 71 Cf. NA (National Archives – Londres), Portuguese Timor, “FO 371/169908: Indonesian regional ambitions: defence of Borneo Territories, Malaya and Portuguese Timor (1963”, Quadripartite Talks on Indonesia – Washington February 1963 – Steering Brief, Brief n.º 1 e Brief n.º 15; e Quadripartite Talks on Indonesia – Washington October 1963, Brief n.º 10. Veja-se também: “FO371/169801: Political relations with Indonesia: potential threat to Portuguese Timor”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 153 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália não estava disposto a entregar um milímetro dos territórios coloniais que administrava, nem cederia às pressões das Nações Unidas . Ora, o que se afigurava mais eficaz e vantajoso para os interesses ocidentais era tentar inibir a agressão indonésia e colocar o futuro do território nas mãos das Nações Unidas. Pesados todos os prós e contras, tornava-se aconselhável associar Portugal a qualquer acção multilateral que viesse a envolver o território. Ou seja: a mais ou menos longo prazo, uma acção da Indonésia sobre Timor parecia inevitável e conduziria à integração; e o interesse das partes era que houvesse uma transição pacífica do território para a Indonésia. Para que isso acontecesse, devia envolver-se a ONU desde já e discutir-se com outros participantes como e quando tal devia ocorrer, uma vez que o assunto podia ficar para mais tarde, quando a situação de perigo se tornasse mais séria. Entretanto, havia que persuadir o Governo português a fazer progressos na direcção de conceder ao território um Governo mais autónomo. Qualquer decisão, quando o caso se viesse a colocar, devia assegurar aos habitantes de Timor Oriental o direito ao exercício da autodeterminação71. Tendo em conta estes desenvolvimentos, parece-nos agora que o futuro de Timor estava traçado bem antes de 1975 e que só a conjuntura então definida lhe havia de deparar, a muito custo e a prazo, outro caminho. Por seu lado, perante a intransigência do executivo português em descolonizar Timor Oriental, e devido ao conjunto de interesses americanos e ingleses, que impediam que confrontassem directamente Portugal, tinha sido atribuído um papel activo de persuasão à Austrália e apontada a ONU como a entidade que, mais tarde ou mais cedo, haveria de ter uma acção indispensável naquele território. Entretanto, em 1962, o jornalista australiano Pat Burgess, que visitara Timor como jornalista desportivo, escrevera depois alguns artigos, que foi publicando no jornal The Sun, mandados traduzir pela subdelegação da PIDE em Timor. Num deles “Os ‘diggers’ disseram que voltariam, mas essa esperança diluiu-se”, podia ler-se: “Se tivéssemos tomado conta de Timor em vez de a restituirmos hoje aos portugueses, teríamos pelo menos a satisfação de receber a visita de sir Hug Foote e um comité A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 154 das N. U.[Nações Unidas] ao território para nos dizerem o que devemos fazer para a autodeterminação dos indígenas.”72 Em contraste com a atitude mais crítica do Governo e dos media australianos, o interesse de alguns sectores australianos por Timor parece ter aumentado com o retomar dos voos regulares pela Trans Australian Airline (TAA), permitindo-lhes uma mais fácil comunicação e oferecendo-se-lhes como destino turístico. Em 1963, no que se refere mais directamente ao possível interesse australiano no desenvolvimento do território, o próprio cônsul da Austrália em Díli, James Dunn, sugeria às autoridades portuguesas locais que contactassem o Governo do seu País, com vista a obterem uma “comparticipação australiana” para esse fim, “pois ele, certamente, estaria na disposição de o fazer”. Esta diligência chegou a ser interpretada como uma possibilidade de, a este título, ser feita uma indemnização de guerra a Portugal73. Todavia, a sugestão prendia-se apenas com a instalação de alguns interesses australianos em Timor Oriental, no seguimento, aliás, de uma estratégia já antes delineada. Na primeira semana de Agosto de 1963, o encarregado de negócios de Portugal em Camberra, Rebello de Andrade, fazia uma visita a Timor, com a finalidade de estudar as possibilidades de aumentar as trocas comerciais deste território com a Austrália. No seu relatório, apontava para a necessidade de uma tentativa séria de penetração do café no mercado australiano, na venda de chapéus e cadeiras de palha, e de mobiliário de madeira, além do incremento do turismo. Em resposta, o governador do território fazia saber que a penetração do café estava a ser tentada através do mercado de Darwin, utilizando a carreira aérea, e do de Sidney, recorrendo ao navio “Arbiru”. Também as outras sugestões estavam a merecer diligências urgentes por parte do Governo, de modo a interessar os australianos74. Ou seja: não havia nada a fazer que não estivesse a ser tentado. 72 IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta n.º 8972, relatório n.º 31/62, confidencial, da subdelegação da PIDE em Timor para a direcção-geral da PIDE em Lisboa, Lisboa, 17 de Dezembro de 1962, Anexo: “Tradução do artigo do jornalista australiano, Pat Burggess, ‘Os ‘diggers’ disseram que voltariam, mas essa esperança diluiu-se”, The Sun, 26 de Novembro de 1962, p. 5. 73 Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário P.A.A., maço 809, processo 948,46, “Relações Políticas com a Austrália”, ofício n.º 1608, secreto, do Ministério do Ultramar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 9 de Março de 1963. 74 Idem, ibid., armário 1, gaveta 2, maço 220, “Visita a Timor do Encarregado de Negócios de Portugal em Camberra, dr. Rebello de Andrade (31/7 a 7/8 de 1963)”, ofício n.º 7194/E-7-15-1, confidencial, do Ministério do Ultramar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 10 de Dezembro de 1963. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 75 Cf. IANTT, AOS/CO/UL-58, pt. 2 “Situação em Timor (1965)”, Relatório da Visita do Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, 1965, pp. 57-58. 76 Cf. AHU, MU/GM/GNP/034 Timor, “Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, pt. 2 (1964-1966), relatório respeitante ao mês de Julho de 1964, enviado com o ofício n.º 68, secreto, do governador de Timor para o Ministério do Ultramar, Díli, 18 de Agosto de 1964, p. 7. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 155 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Efectivamente, sugestões não faltavam. Mais difícil era passar de tentativas esporádicas ao estabelecimento de circuitos nos mercados australianos e, a montante, garantir uma produção contínua de qualidade e de prestação de bons serviços, no que ao turismo e transportes dizia respeito. E, acima de tudo, prevalecia agora a questão política da soberania portuguesa em Timor. No Relatório da visita que fez a Timor, em finais de 1964, o subsecretário da Administração Ultramarina previa que a evolução das relações de Portugal com a Austrália não ia ser fácil e se prenderia muito com o modo como o conflito da Malásia de desenvolvesse. Como, em seu entender, o expansionismo indonésio esbarrava contra a protecção dada pelas tropas da “Reserva Estratégica da Comunidade” à Malásia, isso fazia da Austrália um potencial adversário da Indonésia. Prevendo então, que a colisão entre os dois Países era uma questão de tempo e de oportunidade, achava que o vizinho do Sul deveria orientar a sua política externa no sentido de um entendimento com Portugal, levando a um reforço da posição deste País em Timor e lembrando, por exemplo, que o aeroporto de Baucau, em aviões convencionais, estava a hora e meia de voo de Darwin, que, por sua vez, se encontrava a seis horas de voo em “jacto” das principais cidades do Sul da Austrália. Aliás, desde a reacção indonésia à formação da Malásia parecia esboçar-se uma melhoria no relacionamento com Portugal, verificando-se menor agressividade da imprensa e um maior interesse pelos recursos turísticos de Timor75. No entanto, a agudização da crise na Malásia não atingiu as repercussões esperadas, pelo que os receios de confronto directo se desvaneceram. Agora era Portugal, com receio da Indonésia, a querer estabelecer um acordo com a Austrália, oferecendo quase tudo. Em Julho de 1964, o Relatório da Comissão de Defesa Civil de Timor referia que se estava “processando em crescente intensidade um surto de grande interesse da Austrália pelo Timor português.” O sinal mais evidente consistia no facto de, nas últimas semanas, representantes de várias indústrias se terem deslocado a Díli, a fim de estabelecer contactos para uma aproximação económica entre Timor e a Austrália76. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 156 Verificava -se, assim, não diremos um entusiasmo, mas um interesse suficiente, que os poderes políticos locais e os agentes económicos não podiam deixar de interpretar como de algum optimismo em relação à evolução política no Timor português. Tudo levava a crer que a Austrália não só o não considerava como um “caso perdido”, como havia de empenhar-se em que essa evolução contemplasse os interesses dos seus cidadãos. No entanto, parecia ignorar-se que a Austrália era um País onde havia eleições livres e a própria posição, em política externa, além dos interesses a contemplar, dependia também da orientação do partido ou coligação que o governasse. Mas havia quem compreendesse isso e estivesse atento, como acontecia com o encarregado de negócios de Portugal em Camberra. Em Outubro de 1966, este diplomata enviou ao governador de Timor um comentário ao texto de declarações sobre a política externa, na parte em que se referia a Timor português, proferidas em Agosto do mesmo ano pelo Sr Bryant, membro da ala esquerda do Partido Trabalhista Australiano, na oposição. Tratava-se de um ataque à política governamental no Sudeste Asiático: “Eu gostava de ver o Governo assumir uma atitude de moralidade internacional baseada na não -violência e na inviolabilidade das fronteiras. Concordo plenamente com o Governo se introduzir algumas das garantias da Nações Unidas acerca das fronteiras nacionais. Portugal tem, certamente, poucos amigos, mas se a Indonésia resolvesse invadir Timor tentando realizar a ‘libertação’, ou tudo o que possa ser chamado, afirmaria que a comunidade internacional devia rejeitar aquela acção e actuar a favor do povo afectado. Creio que a necessidade internacional mais premente é garantir as fronteiras dos Países mais pequenos do mundo. Depois, devemos rejeitar a ideia de que a violência é um direito válido da política nacional. Todos devemos acatar as decisões internacionais”77. 77 AHU, ibid., “Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, cx. 3 (1965-1967), relatório respeitante ao mês de Outubro de 1966, enviado com o ofício n.º 86, secreto, do governador de Timor para o Ministério do Ultramar, Díli, 21 de Novembro de 1964, Anexo B: “Ofício n.º UL-A 2/59, de 1 de Setembro de 1966, do encarregado dos negócios de Portugal em Camberra para o governador de Timor, comentando o texto das recentes declarações sobre a política externa, feitas pelo membro trabalhista do Partido Australiano, Sr. Bryant, em que se refere ao Timor Português”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Embora se tratasse apenas de uma posição de princípio e o partido continuasse por mais algum tempo na oposição, bem avisadas estavam as autoridades portuguesas acerca do que mais tarde podiam esperar. Era esse também o sentido da História. No entanto, vimos a expressão da intransigência de Salazar. Outra importante vertente a ter em conta prende-se com a evolução do relacionamento entre a Austrália e a Indonésia pós-Sukarno. Nos primeiros anos da década de 1970, além da participação na ANZUS e na SEATO, e com a mesma perspectiva de reforço da segurança regional, a Austrália fez acordos bilaterais de carácter defensivo, particularmente com a Indonésia. Neste âmbito, ainda nos finais dos anos sessenta, a ajuda a este País começou com um apoio de técnicos das Forças Armadas australianas, apoiadas pela RAAF, às Forças Armadas indonésias na elaboração da carta geográfica de Bornéu. Em 1971, estas actividades estenderam-se a um grande projecto em Samatra. Mas, o mais importante contributo neste domínio foi a transferência de 16 aviões de combate “Sabre”, da RAAF para a Força Aérea indonésia. Dois anos depois, era feita uma concessão até ao limite de 20 milhões de dólares pelo Governo australiano com vista à melhoria das forças de vigilância marítima indonésias, incluindo diverso material. A ajuda incluía também exercícios navais conjuntos, cooperação em pesquisa técnica e um acordo indonésio para regular as pescas nas águas da Austrália79. 78 Idem, ibid.,“Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, cx. 3 (1965-1967), relatório respeitante ao mês de Outubro de 1966, enviado com o ofício n.º 86, secreto, do governador de Timor para o Ministério do Ultramar, Díli, 21 de Novembro de 1964, Anexo E: “Ofício n.º POL-B 2/68, de 1 de Setembro de 1966, do encarregado dos negócios de Portugal em Camberra para o governador de Timor, comentando as declarações de oposição (Partido Trabalhista Australiano) sobre Descolonização”. 79 Cf. Robert O’Neil, “Defence Policy”, in Australia in Word Affairs 1971-1975, pp. 20-21. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 157 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Porém, o mesmo responsável incluía também a posição oficial do Partido Trabalhista, aprovada em convenção, respeitante à descolonização, a qual não oferecia quaisquer dúvidas e incluía Timor Oriental: “O Partido Trabalhista deseja uma descolonização autêntica dos territórios do Norte do Bornéu, do Sarawak, do Brunei e do Timor Oriental, mas considera que a influência australiana seria útil, procurando que tal descolonização se realizasse de acordo com os princípios da Organização das Nações Unidas. O Partido Trabalhista pensa que a Austrália devia insistir junto da Comissão do Pacífico Sul para que promova e organize a descolonização de todos os territórios do Sul do Pacífico”78. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 158 O Programa de Cooperação de Defesa com a Indonésia, iniciado em 1972, era descrito como de “cooperação”, mais do que “ajuda”, abrangendo actividades que iam para além dos anteriores projectos com este fim. A estratégia do Departamento de Defesa era sugerir projectos seus e procurar evitar convites de ajuda de defesa, do tipo “listas de compras”. Mas, na prática, havia “dificuldades consideráveis” para encontrar áreas sustentáveis de cooperação, nos três ramos das Forças Armadas80. Os principais objectivos expressos deste programa eram os seguintes: – demonstrar aos Indonésios um empenhamento sério na cooperação de defesa conjunta, com um programa prático que, em termos financeiros, não fosse comparativamente inferior aos esforços despendidos com as forças de defesa australianas envolvidas na Malásia e em Singapura; – estreitar a posição de influência na Indonésia, para desenvolver ulteriores relações de confiança e segredo, de modo a preencher a política regional de segurança da Austrália; – desenvolver vantagens mútuas, sustentadas em contratos de trabalho com as forças armadas indonésias, reconhecendo a importância do seu papel no tecido administrativo e governamental; – ajudar a Indonésia a tornar as suas Forças Armadas equipadas a nível razoável, com o seu desenvolvimento dirigido para um caminho sensível, que evitasse um desnecessário desvio de recursos e preservasse experiências essenciais; – providenciar assistência de clara utilização para um ataque externo e não para o Governo assegurar uma posição contra a oposição interna; e – apoiar, quanto possível, projectos que tivessem mérito de desenvolvimento económico e capacidade de defesa da Indonésia81. Apesar das críticas da ala esquerda do Partido Liberal, o Governo do trabalhista Gough Whitlam, formado após a vitória nas eleições de 1972, empenhou-se em tornar o programa de cooperação de defesa com a Indonésia como um modelo para futuros acordos, no que respeitava a assistência técnica, troca de pontos de vista, treino e exercícios conjuntos82. 80 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Defence: Co-operation with Indonesia”, A1838, C1757323, SC696/2/2/ 1, 1974, Informação do Foreign Affairs para o ministro, Camberra, 9 de Agosto de 1974. 81 Idem, ibid., “Defence: Co-operation with Indonesia”, A1838, C1757323, SC696/2/2/ 1, 1974, Informação do Foreign Affairs para o ministro, Camberra, 9 de Agosto de 1974. 82 Cf. Robert O’Neil, art. cit., p. 21. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 83 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Reports on Economic Development”, A1838, C551952, SC756/2 part 1, 1948-1975, “Portuguese Overseas Provinces – Relations with Australia”, 1969. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 159 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Esta aproximação de interesses regionais, que visava também atrair mais simpatia dos Países vizinhos, e um maior afrontamento em relação a situações coloniais, marcariam uma nova orientação da política externa australiana, conduzida pelos trabalhistas, e ajudará a compreender melhor a atitude australiana em relação à invasão de Timor português pela Indonésia. Entretanto, no dia 13 de Abril de 1969, teve lugar em Timor a cerimónia da inauguração do memorial levantado como um tributo ao seu povo pela assistência dada aos militares australianos da Companhia de Comandos que, durante a Segunda Guerra Mundial, numa guerra de guerrilha, combateu as tropas japonesas em solo timorense. A iniciativa foi da Associação de Comandos australiana, contou com a participação financeira do Governo em metade do seu custo, 4000 libras australianas, e teve a presença do administrador dos Territórios do Norte, em representação do Governo australiano83. Além destes actos mais solenes, havia verdadeiras “romagens de saudade” a Timor de antigos comandos australianos que, segundo o metereologista Manuel Costa Alves, eram bem vistas pelo povo timorense. Quanto à situação no Timor português, nos finais de 1970, o Ministério dos Negócios Estrangeiros australiano chegava à conclusão de que: não se previam desenvolvimentos internos em Timor, que se revelassem significativos do ponto de vista australiano; o interesse político australiano em Timor seria limitado, quer o seu novo estatuto decorresse de uma saída voluntária dos Portugueses, quer de uma administração exterior; não se esperava para breve uma acção indonésia que se apoderasse de Timor, mas também não era provável que outra qualquer força que o tentasse pudesse resistir à Indonésia; a longo prazo, o estatuto de Timor seria a incorporação na Indonésia; o interesse político da Austrália em Timor português seria mais bem defendido em Portugal, na Indonésia ou noutros Países, do que num consulado em Díli; os serviços secretos australianos tinham sido devidamente informados pelo consulado acerca do que verdadeiramente lhes interessava em Timor: disposição de tropas, instalações militares, estradas, campos de aviação e enseadas, havendo talvez a limitação de, futuramente, a Austrália não poder prestar esse serviço aos Estados Unidos; e as relações com Portugal podiam melhorar através de um embaixador residente em Lisboa. Por tudo isto, não se justificavam os custos A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 160 da manutenção do consulado em Díli, aconselhando-se o seu encerramento84. De facto, em Agosto de 1971, depois de algumas diligências junto das autoridades portuguesas para acertar as principais questões relacionadas com a cessação de actividades do seu consulado em Díli, a Austrália, concretizou o que desde algum tempo se anunciava. Esta medida política levantava alguns problemas à administração colonial portuguesa, em virtude do relacionamento existente e da dependência que Timor registava em alguns domínios. Logo aquando do primeiro anúncio do fecho, a delegação da PIDE/DGS em Timor comunicou aos seus serviços centrais os seguintes pontos a ter em atenção, relativamente ao assunto: – a Austrália era então o País que mais atraía os timorenses, quer para emigrar quer para fins turísticos, necessitando do respectivo “visto” para ali entrarem; – Darwin, cidade ao Norte da Austrália, era local de residência de muitos timorenses, que para ali haviam partido em busca de uma vida melhor, com famílias radicadas em Timor, os quais, gostariam de as visitar de vez em quando; – Timor, por causa do seu petróleo e dos seus minérios, passara a ser mais procurado por várias companhias australianas para investimento de capitais, havendo interesses comuns aos dois Países a acautelar; – politicamente, um maior afastamento da Austrália implicaria uma indesejável aproximação da Indonésia, e um prejuízo para os povos da província, que ficariam mais desprotegidos e afastados do mundo; e – sugeria-se também que, uma vez que os australianos estavam dispensados da apresentação de “visto” para entrarem em Portugal metropolitano, esse acordo fosse tornado extensivo aos portugueses residentes em Timor, quando se deslocassem à Austrália, designadamente em viagens de turismo ou de negócios, remediando assim parte dos inconvenientes resultantes do encerramento do consulado85. 84 Idem, ibid., “Portugal: Foreign Policy”, A1838, C1874207, SC49/2/1/1 part 1, 1959-1971, documento do Foreign Affairs para o ministro, confidencial, Camberra, 1 de Dezembro de 1970. 85 Cf. IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8978, relatório n.º 4/71 – G. U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 30 de Abril de 1971, pp. 8-10. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 86 Idem, ibid., “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8978, relatório n.º 7/71 – G. U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Julho de 1971, pp. 11-12. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 161 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália De facto, por ordem do Governo australiano, deslocou-se depois a Díli o snr. Lazarus Liveris, director do Departamento de Emigração do Território Norte da Austrália, para troca de impressões com as autoridades portuguesas e para apresentação de sugestões sobre o modo de facilitar a ida de portugueses à Austrália, com dispensa de visto consular. As conversações continuaram depois em Darwin com o inspector da PIDE/DGS, tendo sido acordado que a documentação dos futuros emigrantes fosse enviada através da Repartição Provincial da Administração Civil para o consulado de Portugal em Darwin, através do qual seriam tratados todos os assuntos com os Serviços de Emigração Australianos naquela cidade, enviando-se a Timor, quando o número de emigrantes o justificasse, um funcionário categorizado para apreciar os pedidos e dar-lhes seguimento, servindo-se de médicos portugueses para os exames necessários. Precisamente, quanto aos doentes que necessitassem de deslocar-se à Austrália, foi aceite que, em casos de urgência, os mesmos pudessem ali entrar sem autorização prévia e sem visto, desde que tal fosse pedido telegraficamente pelo Governo de Timor, com a garantia de pagamento das respectivas despesas. No que respeitava aos turistas, segundo o sr. Liveris, continuava a exigir-se que os mesmos fossem portadores de passaporte válido, certificado internacional de vacinação, atestado médico, certificado de bom comportamento moral e civil, bilhete de regresso a Timor ou para continuação de viagem, e o mínimo de cinco dólares australianos ou moeda equivalente por cada dia que desejassem permanecer na Austrália, admitindo que o atestado médico e o certificado de bom comportamento fossem válidos por um ano e pudessem ser utilizados um número ilimitado de vezes86. Apesar das medidas para mitigar o impacto, o encerramento do consulado australiano em Díli, além do significado político, veio dificultar imenso o relacionamento entre Timor e o seu poderoso vizinho do Sul, do qual tanto dependia. Na Austrália, a partir de 1973, com o Partido Trabalhista no Governo, conjugaram-se vários factores, que levaram ao fim da “golden age”: Whitlam, confrontado com as contracções da economia, tinha dobrado o investimento público nos últimos três anos. Para satisfazer ambições de modernização, efectuou um corte de 25% nos direitos alfandegários. Por outro lado, com a valorização da moeda, muitos pequenos produtores A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 162 faliram. Ao mesmo tempo, os preços e os salários tinham subido acima dos 10% no fim do ano. Veio então o embargo imposto ao Ocidente pelos Países árabes em retaliação pela guerra do Yom Kippur, no Médio Oriente, provocando o aumento do custo do petróleo. O impacto directo sobre a Austrália foi limitado, por ter sido possível satisfazer as suas necessidades energéticas. Porém, os efeitos indirectos foram catastróficos. A inflação resultante da crise do petróleo trouxe uma onda de choque contra a economia mundial, que quebrou a rede de comércio e investimento. Nos anos seguintes, as nações mais industrializadas entraram em “stagflation”, estagnando a produção com alta inflação. O desemprego atingiu níveis não vistos desde os anos 30. Em 1975, com as contracções orçamentais, passou de 250.000. Tinha chegado ao fim a “golden age”87. Entretanto, em 1973, relativamente a Portugal e à sua política colonial, podia ler-se na própria imprensa australiana: “A Austrália presentemente tomou uma posição de condenação às violentas acções de Portugal nas suas possessões distantes da Austrália, mas, encoraja as relações com o Timor Português, nosso vizinho estrangeiro mais próximo. Por uma fórmula inexplicável, presumivelmente tomada pelo 1.º Ministro, a Austrália decidiu que Timor está excluído das resoluções da ONU que impõem sanções contra os territórios ultramarinos portugueses. [...]. À parte do transporte de tropas portuguesas à civil para aquela colónia, a Austrália exporta anualmente para Timor, produtos no valor aproximado de um milhão de dólares (a importação de Timor cifrou-se em 8 dólares) e encoraja as firmas australianas para explorarem petróleo e minerais, até ao momento não demonstrou qualquer desaprovação a uma nova sociedade a ser estabelecida pelas empresas australianas desde que o partido Trabalhista assumiu o poder.”88 No mesmo periódico, punha-se depois em confronto esta actuação com as palavras do próprio Gough Whitlam, proferidas dez anos antes, quando estava na oposição: “O Timor Oriental tende a tornar-se como anacrónico a qualquer País do Mundo excepto a Portugal[...]. Não merecemos ser considerados e estimados no 87 88 Cf. Stuart Macintyre, ob. cit., p. 233. IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório n.º 8/73 – G. U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Agosto de 1973, Anexo: “O Vizinho Império Moribundo”, The Australian, 13 de Julho de 1973, p. 1. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 A ambiguidade da Austrália situava-se no confronto entre os princípios de autonomia dos povos, em termos gerais, e dos seus interesses locais e regionais, que envolviam, naturalmente, a Indonésia e Timor Oriental. Em 18 de Agosto de 1973, para dar corpo à ideia de que defenderia melhor os seus interesses em Lisboa do que com um consulado em Díli, tendo sobretudo em vista a questão pendente da área de exploração marítima do petróleo, a que se fará referência mais abaixo, o Governo australiano colocou o seu primeiro embaixador residente em Lisboa, K. T. Kelly. Efectivamente, no que se refere à presença portuguesa em Timor, tendo em consideração o período que vai desde os primeiros anos da década de 1960 até 1975, no essencial, a posição do Governo australiano era ambígua e até contraditória. Por um lado, votava favoravelmente as resoluções da ONU que criticavam o colonialismo português; por outro lado, subsidiava uma ligação vital para a manutenção da situação colonial vigente e para a deslocação de passageiros, e apoiava várias companhias comerciais com interesses ali instalados. Por seu turno, a imprensa australiana, com várias iniciativas, dava a conhecer aos cidadãos do seu País as belezas naturais do território, enquanto denunciava as dificuldades e o subdesenvolvimento patentes, que atribuía à administração colonial. Simultaneamente, a curto ou a médio prazo, preparava a sua opinião pública para uma inevitável mudança política, tendo em consideração quer as contraditórias declarações dos dirigentes indonésios quer a acção dos movimentos que, mesmo episodicamente, emergiam na direcção da autonomia90. Em Timor Leste: Amanhã em Díli, José Ramos-Horta refere que, quando se deslocou à Austrália, em Julho de 1974, “a questão de Timor Leste era completamente desconhecida do público e a sua cobertura na imprensa periódica era nula.” Por sua 89 Idem, ibid., “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório n.º 8/73 – G. U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Agosto de 1973, Anexo: “O Vizinho Império Moribundo”, The Australian, 13 de Julho de 1973, p. 2. 90 Veja-se: Geoffrey C. Gunn, Timor Loro Sae: 500 Anos, Macau, Livros do Oriente, 1999, pp. 290-292. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 163 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Mundo se continuarmos a apoiar os portugueses. Eles devem ser informados em termos directos que o nível de vida deve ser rapidamente elevado e concedido total direito de autodeterminação[...]. Devemos actuar rapidamente através das Nações Unidas para solucionar esse problema”89. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 164 vez, “Nos círculos do poder em Camberra, duas escolas se confrontavam: a do Departamento de Negócios Estrangeiros, povoado por burocratas que tinham o intelecto assestado sobre a Indonésia como a grande parceira da Austrália na região e isso prevalecia sobre todas as outras considerações. A do Departamento de Defesa que ainda via Timor Leste como um ‘buffer zone’, zona tampão, base avançada de defesa da Austrália contra um potencial inimigo ao norte, obviamente a Indonésia.” Daí, concluir que, “Elementos-chaves do Departamento de Defesa viam assim com bons olhos um Timor Leste independente.”91 Ainda segundo o mesmo autor, alguma imprensa, com destaque para o jornalista Peter Hastings, do Sydney Morning Herald, “intimamente ligado à Defesa e aos serviços de Inteligência australianos, favorecia igualmente um Timor Leste independente.” Mas, como o próprio reconhece, o limite de tempo e a onda de simpatia criada não permitiram “virar” a opinião pública australiana para um apoio massivo à causa de um Timor-Leste independente. Por seu lado, o funcionamento do sistema político, com prevalência da posição do Governo, e as cumplicidades estabelecidas, ao nível diplomático, jogavam a favor de Jacarta92. A ausência de viabilidade económica de um Timor Oriental independente tinha sido invocada por Salazar em várias circunstâncias e era, provavelmente, a maior reticência que os Países desenvolvidos colocavam a tal possibilidade política, mesmo depois do golpe militar de 1974 em Portugal. Num relatório de 27 de Agosto de 1974, James S. Dunn, antigo cônsul australiano em Díli e director do Foreign Affairs Group, refere esta situação, salvaguardando, no entanto, o aparecimento de um milagre, que seria o jorrar de petróleo93. A propósito da posição australiana, o antigo cônsul em Díli advertia que a ela podia ser simpática a influentes políticos indonésios que preconizavam a incorporação, podia até ser proveitosa para os interesses australianos na região, mas arriscava-se a levar a que outras capitais do Sudeste Asiático, designadamente Port Moresby (Papua-Nova Guiné Oriental), perdessem o respeito pelo seu País, além de que se podiam estar a abrir caminhos aos políticos indonésios, com implicações inimigas para a 91 José Ramos-Horta, Timor Leste: Amanhã em Díli, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, pp. 141-142. Cf. Idem, ibid., pp. 142-143. 93 Cf. NA, Portuguese Timor–East Timor, “FCO 15/1956: Political Situation in Portuguese Timor (1974)”, Portuguese Timor before and after the coup. Options for the future. Documento preparado por J. S. Dunn, do Foreign Affairs Group-Parliament of Australia, Camberra, 27 de Agosto de 1974, p. 16. 92 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 94 Idem, ibid., p. 24. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 165 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália segurança regional. Por isso, preconizava que a Austrália se empenhasse numa cooperação com a Indonésia, com vista a ajudar a construir um novo Estado, se esse fosse o desejo claro da população. Também a reabertura do consulado em Díli deveria ser feita rapidamente, de modo a facultar informação segura e atempada ao Governo. A Austrália devia ainda ajudar, com vários tipos de assistência, Portugal, e as forças políticas emergentes em Timor e o próprio povo94. Mas não foi esse o caminho seguido pelo seu Governo. Em Setembro de 1974, em Jogyacarta (Java-Indonésia), num encontro, para o efeito realizado, o futuro de Timor foi discutido entre o primeiro-ministro australiano, Gough Whitlam, e o Presidente indonésio, Mohammed Suharto. Whitlam assegurava a Suharto que se mostrava muito confiante, uma vez que, desde 1972, as suas medidas tomadas em matéria de política externa tinham sido bem aceites pelo seu partido – o partido do Governo –, pelo que seria importante ouvir o Presidente indonésio acerca do evoluir dos acontecimentos em Timor. Para ele, havia duas coisas fundamentais: não se opunha à integração de Timor português na Indonésia; e isso devia acontecer de acordo com a escolha expressa do povo timorense. Por isso, assegurava que a Austrália não procurava ter com aquele território nenhuma relação especial, dada a diferença que os caracterizava a todos os níveis. Reiterava também a ideia dominante de que Timor era demasiado pequeno para ser independente e economicamente inviável. Referia ainda que, para a opinião interna do seu País, a incorporação na Indonésia se apresentava como um processo natural, brotando dos desejos do povo. Por sua vez, Suharto considerava que a Timor se apresentavam duas alternativas: a independência ou a incorporação noutro País. Quanto à primeira, não lhe reconhecia viabilidade económica, pelo que, se tal acontecesse, necessitaria da ajuda externa, por motivos meramente políticos. Nesta situação, um eventual aproveitamento da URSS e da China provocaria a intervenção de outra grande potência, o que constituiria “um espinho no olho da Austrália e um espinho nas costas da Indonésia”. A aceitação do princípio de autodeterminação, que a Indonésia reconhecia ao povo de Timor português, podia resultar na independência, com os problemas referidos. Por sua vez, a escolha pela incorporação na Indonésia não podia fazer-se como um estado separado, mas como uma região autónoma ou daerha, como o distrito especial A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 166 de Jogyacarta, uma vez que a República não era uma federação. Terminou desejando que a incorporação ocorresse segundo os desejos do povo timorense e no melhor interesse da região, da Indonésia e da Austrália95. Assim o primeiro-ministro Whitlam fazia saber a Suharto que o Governo australiano favorecia uma eventual integração de Timor português na Indonésia, contanto que este fosse o caminho que satisfizesse a opinião internacional e os interesses da estabilidade regional. No entanto, a reacção da opinião pública fez com que a política australiana fosse sobretudo na direcção do reconhecimento do povo daquele território à autodeterminação, pelo que, em finais de 1974, a orientação política ia já no sentido de integração na Indonésia, desde que isso expressasse o desejo dos Timorenses e se encontrasse na linha que satisfazia a opinião internacional96. Na sequência do encontro de Jogyacarta, de 3 a 5 de Abril de 1975, na cidade australiana de Queenslândia, Townsville, o Presidente indonésio Suharto e o primeiro-ministro australiano Whitlam estiveram reunidos mais uma vez para discutir o futuro de Timor. Suharto reafirmou que a Indonésia não tinha “ambições expansionistas e que favorecia um processo de autodeterminação para os Timorenses Portugueses”. Mas, dois meses antes, o jornal indonésio “The New Standard”, controlado pelo conselheiro do Presidente Suharto em Segurança, general Ali Murtopo, publicara artigos onde se afirmava que “Timor não se pode tornar independente por não dispor de recursos naturais e porque um Timor independente seria permeável à penetração comunista afectando a estabilidade regional”. Como refere J. Chris Chrystello, em Abril, as preocupações de segurança regional tinham passado do “vermelho” ao “amarelo”97. De facto, a evolução política no território e a pressão de alguma opinião pública australiana aconselhavam algumas cautelas em relação à abertura manifestada anteriormente pela Austrália à Indonésia. Assim, o ministro dos Negócios Estrangeiros recomendava ao primeiro-ministro: manter um diálogo com os Indonésios, de modo a tentar afastá-los de uma medida avançada e assegurar que os desenvolvimentos não se tornassem um obstáculo às boas relações entre os dois Países; tentar explicar aos líderes timorenses que a Austrália respeitaria os desejos do seu povo num 95 Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor, Policy”, A1209, C4151579, SC1974/7573, 1974-1975, Extract of Meeting between the Prime Minister and President Soeharto, Jogyakarta, 6 de Setembro de 1974. 96 Cf. NA, Portuguese Timor- East Timor, “FCO 15/1956: Political situation in Portuguese Timor (1974”, ofício n.º 3/28, da British High Commission para a embaixada australiana em Lisboa, Camberra, 5 de Novembro de 1974. 97 Cf. J. Chris Chrystello, Timor-Leste: 1973-1975, o Dossier Secreto, Matosinhos, Contemporânea Editora, 1999, pp. 91-92. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Mas, nessa altura, a dinâmica dos acontecimentos no território ultrapassava todas as previsões e já dificultava qualquer execução concertada. Com efeito, numa carta do embaixador australiano em Jacarta, datada de 4 de Outubro de 1975, Richard Alexandre Woolcott, dirigida ao Departament of External Affairs, mas com carácter pessoal, encontramos exposto o que podíamos considerar o pragmatismo dos interesses: – o âmago do problema de Timor português para a Austrália devia inserir-se no futuro relacionamento com a Indonésia e com o Sudeste da Ásia como um todo; 98 Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor, Policy”, A1209, C4151579, SC1974/7573, 1974-1975, documento do Foreign Affairs para o primeiro-ministro, s/d. 99 Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C150600, SC3038/10/15 part 1, 1975-1976, documento do ACFOA para o Foreign Affairs, Camberra, 16 de Setembro de 1975. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 167 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália genuíno acto de autodeterminação, mas que eles deviam ter cuidado com actos que corressem o risco de os colocar nas mãos da Indonésia; que não devia abrir um consulado em Díli; e que a eventual ajuda a prestar seria sob uma forma que envolvesse também Portugal e a Indonésia, mas que, chegado o momento, a iniciativa devia ficar apenas com estes dois Países98. A Austrália devia tentar sobretudo não se comprometer directamente. Não era nessa direcção que apontavam algumas organizações da sociedade civil australiana, que tomavam posições dignas de registo, como, por exemplo, o ACFOA – Australian Council for Overseas AID (Câmara Australiana de Assistência ao Ultramar) – que, em finais de Agosto de 1975, na sua reunião anual, tomou uma série de posições relativamente ao que se passava em Timor, tentando envolver o Governo australiano num outro sentido: – expressando a sua consternação pelo conflito que já ocorria em Timor, exigia do Governo australiano que mostrasse uma conduta humanitária e ajudasse, o mais rápido possível, a construir uma resolução justa; – apelava ainda ao executivo australiano para: expressar o seu apoio ao princípio de independência da escolha do povo timorense e opor-se a uma intervenção externa que viesse influenciar o futuro estatuto do território; oferecer todas as facilidades disponíveis para acabar o presente conflito; restabelecer o consulado em Díli; e promover o desenvolvimento da assistência em Timor-Leste, onde já havia carência de bens essenciais, sobretudo na região de Maubisse, de modo a restaurar a normalidade99. – reconhecia que a situação era complexa, verificando-se um conflito entre o princípio de autodeterminação consagrado na Carta das Nações Unidas e a incorporação na Indonésia, considerada pelos Países da região como a melhor saída da colonização para Timor Oriental; – este choque entre princípios e interesses (nacional e regional), por um lado; contemplava também, por outro lado, a vontade de alguns dirigentes indonésios, nomeadamente o Presidente, de que a incorporação resultasse de um processo preparado com tempo suficiente para levar as forças políticas genuínas de Timor-Leste a emergir; – a posição australiana devia orientar-se sobretudo pelo interesse nacional e não via como Timor independente podia interessar à Austrália; – a longo prazo, o relacionamento da Austrália com a Indonésia situar-se-ia ao nível dos mais importantes na política internacional, designadamente com o Japão, EUA e possivelmente a China; – a Austrália não devia opor-se ao que a Indonésia, apoiada por outros Países da região, via como o seu interesse de segurança nacional; – a autodeterminação era um princípio que a Austrália devia continuar a enfatizar, mas não havia condições para um acto genuíno dessa natureza, sendo um facto “de que podemos não gostar, mas ao qual temos que nos habituar”, porque nem a incorporação na Indonésia nem um Governo da FRETILIN, estabelecidos pela força, o constituíam; – ao colocar o território perante esta alternativa, era Portugal que tinha falhado e não a Indonésia; – por mais que isso envolvesse contradição de princípios, os interesses da Austrália eram mais bem servidos com a incorporação de Timor Oriental na Indonésia do que como um País independente; e – como mediador, a Austrália devia resistir à tentativa de manipulação indonésia no seu próprio interesse, e à eventual tentação de substituir Portugal na sua incapacidade ou desinteresse, sendo o não envolvimento a atitude aconselhável100. A intenção deste diplomata parecia ser sobretudo a de persuadir o ministro Peacock a modificar a sua posição pró-independência de Timor-Leste, aconselhando o não-envolvimento do País. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 168 100 Idem, ibid., “Richard Alexander Woolcoot, Personal Letters”, A11.443, C4151643, SC6, 1975-1977, documento da embaixada australiana em Jacarta para o Department of External Affairs, Jacarta, 4 de Outubro de 1975. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 101 Cf. NA, Portuguese Timor-East Timor, “FCO15/1706: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”, ofício n.º M73, do Department of Foreign Affairs para o Foreign Office, Camberra, 31 de Outubro de 1975. 102 Idem, ibid., “FCO15/1707: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”, ofício n.º M81, do Department of Foreign Affairs para o Foreign Office, Camberra, 29 de Novembro de 1975. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 169 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Mas, em 31 do mesmo mês, o Governo australiano fazia saber que estava interessado em contribuir para a resolução pacífica do problema de Timor, de modo a que o povo pudesse exercer o seu direito à autodeterminação, oferecendo o seu território para conversações, enquanto responsabilizava os “imaturos aspirantes a líderes políticos” dos partidos formados pelo clima de guerra civil instaurado, e Portugal, pela deterioração a que a situação chegara desde o golpe da UDT (11 de Agosto de 1975). Ao mesmo tempo que dizia compreender a apreensão da Indonésia, referia ter insistido para que este País perseguisse os seus interesses por via diplomática e esclarecido que se opunha ao uso da força. Numa séria advertência à FRETIILIN, referia também que estava fora de questão a aceitação de um partido como único representante de Timor Oriental101. Nesta conformidade, a Austrália não reconheceu a declaração unilateral de independência feita pela FRETILIN em 28 de Novembro de 1975, que os outros partidos também não aceitaram, insistindo na responsabilização de Portugal, País detentor da soberania102. Com a formação de um novo Governo, presidido por Malcom Frazer à frente de uma coligação liberal-conservadora, e à luz dos mais recentes desenvolvimentos em Timor e dos procedimentos das Nações Unidas, a Austrália procedia a uma revisão da sua política relativamente a Timor-Leste. Com efeito, as duas questões equacionadas eram as seguintes: a Austrália aceita a incorporação de Timor português na Indonésia?, e como pretende envolver-se nesse problema? Em 22 de Dezembro de 1975, o secretário do Department of External Affairs recomendava ao ministro: – a Austrália devia aceitar a incorporação de Timor Oriental na Indonésia para que em breve parecesse um acto consumado; – o País não deveria resistir a esta tendência, antes devia aceitá-la como a que constituía no momento a melhor solução; – havia, no entanto, que ter em conta uma sensibilidade regional para um eventual envenenamento das relações entre a Indonésia e a Austrália; – embora contra as presentes indicações, se os Indonésios fossem incapazes de assegurar o controle de Timor Oriental, o Governo australiano devia estar 170 – A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália – – – – preparado para rever as suas políticas com vista a persuadi-los a aceitar algo entre a incorporação e um mais genuíno processo de autodeterminação; a Austrália devia permanecer como tinha estado, evitando tornar-se uma parte principal do problema; se a opinião regional e internacional aumentasse a pressão, a Austrália podia ter de envolver-se no solo de Timor, não mais do que desejava, e excluir o emprego das suas forças armadas; a Austrália devia continuar a apoiar publicamente a necessidade de um processo de autodeterminação em Timor e ainda que não achasse que ele pudesse ser genuíno, devia encorajar a Indonésia nesse sentido; era necessário continuar a explicar aos Indonésios as dificuldades internas que se deparavam ao Governo australiano, devendo continuar a preveni-los de que aceitavam os seus objectivos básicos da integração, mas necessitavam de criticar publicamente os métodos utilizados; e nas Nações Unidas, a Austrália não devia desempenhar o papel de apologista da actuação da Indonésia, ao mesmo tempo que revelaria entendimento pela sua especial posição, não estando na linha da frente dos seus críticos103. Esta posição de princípio, já após a invasão indonésia, deixava caminho aberto para um posterior reconhecimento, em 1978. Entretanto, a situação humanitária em Timor Oriental havia-se deteriorado fortemente. Com vista a manter em estado satisfatório de nutrição a população civil e assistir aos refugiados no Timor indonésio, a Cruz Vermelha Australiana enviara 10.000 dólares para o ICRC – International Committee of the Red Cross (Comité Internacional da Cruz Vermelha), sendo metade para um programa de assistência para cerca de 40.000 refugiados na metade ocidental da ilha, com um custo total estimado em 300.000 dólares para dois meses, em colaboração do ICRC com a Cruz Vermelha Indonésia. A ajuda incluía ainda 100 toneladas de arroz e 50 toneladas de farinha, a arranjar para distribuir nas semanas seguintes104. 103 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Submissions to Ministers and Briefs on Portuguese Timor”, A1838, C1505915, SC3038/10/1/2 part 3, 1975-1976, documento, secreto, do Department of External Affairs para o ministro, Camberra, 22 de Dezembro de 1975. 104 Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C150600, SC3038/10/15 part 1, 1975-1976, telegrama n.º 1240, do Department of External Affairs para o primeiro-ministro australiano e outras entidades, Camberra, 28 de Outubro de 1975, enviando o texto de uma conferência de imprensa dada pela Australian Red Cross Society, em 22 de Outubro de 1975. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 105 Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C 150600, SC 3038/10/15 part 1, 1975-1976, documento n.º 52, da Australian Red Cross Society, Camberra, 19 de Janeiro de 1976. 106 Cf. NA, Portuguese Timor-East Timor, “FCO15/1707: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”, telegrama n.º 236, imediato, da Missão do Reino Unido em Nova York para o Foreign Office, Nova York, 8 de Dezembro de 1975. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 171 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Após a invasão indonésia, a Cruz Vermelha Australiana foi forçada a sair de Timor Oriental. Em princípios de 1976, enviou 3000 libras australianas à sua congénere indonésia para apoiar ali o seu trabalho, depois de, anteriormente, haver fornecido uma quantidade de leite para ser distribuído pelos refugiados no Timor Ocidental. Também a Cruz Vermelha Internacional teve que retirar, não tendo depois resultado a pressão da Cruz Vermelha Australiana para que aquela voltasse ao território, de modo a poder exercer as suas tarefas específicas conforme a Convenção de Genebra105. De facto, os militares indonésios não queriam observadores no terreno e isso sobrepôs-se às normas internacionais. No imediato, a acção indonésia sobre Timor Oriental foi referida também por Camberra como um objectivo de restabelecer a lei e a ordem que Portugal não tinha sido capaz de preservar, considerando-o louvável, mas cujo uso da força era matéria a acordar e a regular agora. Defendia também o Governo que devia tentar-se um cessar-fogo e proporcionar uma oportunidade para que o Conselho de Segurança tomasse deliberações de modo a garantir que tivesse lugar um acto de autodeterminação, observado pela ONU e ao qual se esperava que a Indonésia respondesse positivamente106. Para o Governo australiano, o acto estava consumado. Havia que tentar minimizar-lhe os efeitos e procurar que a ONU viesse a empreender um processo que lhe desse legitimidade. Perante as circunstâncias, parecia resignado e tentava encontrar justificações para o pragmatismo que se ajustava aos seus interesses, como acontecera em várias ocasiões anteriores. Diferente foi a reacção de algumas organizações da sociedade civil australiana perante a brutalidade usada pelos chamados “voluntários” indonésios sobre Timor: No seu encontro de 17 de Dezembro de 1975, o ACFOA voltou à liça e apelou ao Governo australiano para: – se opor “à interferência externa destinada a influenciar o futuro estatuto de Timor português” e ao uso da força; – como organização humanitária, vendo-se impedido de prestar assistência ao povo de Timor-Leste, solicitava também ao Governo australiano para que tomasse as maiores iniciativas no que concernia: à ajuda ao estabelecimento de uma zona neutra para refugiados e para distribuição no território; ao apelo a todas as partes no conflito para que observassem a Convenção de Genebra; à insistência para que a Cruz Vermelha Internacional pudesse seguir para Timor imediatamente, a fim de poder prestar ajuda humanitária e fazer o seu trabalho médico; e à oferta de facilidades aos refugiados para que pudessem deslocar-se para a Austrália e ali serem acomodados; – reconhecendo o impedimento ao programa de ajuda a Timor-Leste, o Governo devia então suspender a entrega de duas aeronaves e toda a ajuda militar à Indonésia até que ela cessasse a presente intervenção; e – recomendava ainda ao Governo australiano para que desse o seu apoio ao esboço de resolução do 4.º Comité das Nações Unidas e ainda mais fortemente à acção das Nações Unidas, que solicitava a saída dos agressores e visava garantir o princípio de independência de escolha ao povo de Timor português107. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 172 Por sua vez, numa conferência de imprensa sobre a situação em Timor, dois bispos australianos, J. Gleeson, the Chairman of Australian Catholic Relief e R. Mulkearns, the Chairmain of the National Commission for Justice and Peace, apelaram a todo o povo da Austrália e particularmente aos católicos para: rezarem para que o combate terminasse rapidamente e não viesse a ocorrer uma guerra de guerrilha; apoiarem programas de ajuda humanitária que esperavam poder continuar para que as vítimas daquela triste situação não fossem forçadas a sofrer ainda mais; e oferecerem imediata hospitalidade e socorro aos refugiados que solicitassem asilo e assistência na Austrália. A todos os líderes políticos australianos apelavam para trabalhar no sentido de: uma acção urgente das Nações Unidas que pusesse fim ao combate; uma rápida determinação das Nações Unidas que facultasse a expressão dos desejos do povo de Timor-Leste, livre de pressão ou interferência de forças externas; um efectivo programa de refugiados por parte da Austrália; e um programa de ajuda humanitária108. A convergência de pontos de vista no sentido de repúdio da acção violenta da Indonésia, de empenhamento do Governo da Austrália junto da ONU, no próprio terreno e na ajuda directa, bem como da sociedade australiana, evidencia uma visão muito completa da situação e das implicações que o drama vivido pelas populações de Timor havia de repercutir. Mas, os interesses políticos ofuscavam esta visão abrangente. 107 Idem, ibid., “FCO15/1708: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”, Anexo: “Press Release: Aid to Timor”. 108 Idem, ibid., “FCO15/1708: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”, Anexo: “Press Release: Statement on Timor”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 109 Idem, ibid., NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 173 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Com a retirada portuguesa, em 1975, ficava ainda pendente a questão da plataforma petrolífera entre a Austrália e Timor. O processo das negociações entre Portugal e a Austrália para a definição da fronteira marítima de Timor, iniciado no longínquo ano de 1953 e que viria a envolver mais tarde também a Indonésia, para o estabelecimento de uma linha de demarcação comum, foi interrompido com a invasão do território por este País, deixando para trás a questão conhecida por Timor Gap, com repercussões no apoio da Austrália à anexação. Com efeito, em 1971, a Austrália mostrara-se relutante em assinar um acordo de fronteira marítima com Portugal, enquanto esta não tivesse sido definida com a Indonésia. Nos dois anos seguintes, foi o Governo português que manifestou interesse em diferir as negociações até depois da Lei da Conferência sobre o Mar, prevista para a Conferência Internacional sobre Direitos Marítimos, a realizar em Junho de 1974, em Caracas (Venezuela), onde se esperava que viesse a ser claramente definida a regra da mediana, que o Governo português contrapunha à da plataforma continental, preconizada pelo seu homólogo australiano. Entretanto, em Janeiro deste ano, o Governo português autorizara o seu ministro do Ultramar a assinar um acordo com a companhia americana Oceanic Exploration Company, de Denver, à qual veio a conceder direitos de exploração de petróleo e outros minerais, numa área submarina de cerca de 60.000 quilómetros quadrados. Nos termos da concessão, a companhia devia sediar-se em território português entre 60 dias após a assinatura do contrato. O seu capital inicial teria de ser de 1,5 milhões de escudos, e o Governo de Timor devia deter 20% das acções. A companhia podia ter que recorrer a financiamento português ou estrangeiro, por empréstimos ou títulos emitidos, podendo também, com a autorização do ministro do Ultramar, ser associada a outras afins numa joint venture. Depois do período inicial de prospecção, a concessão podia ser estendida por mais dois anos se a companhia pagasse, por ano, um aluguer da superfície de 60$00 por quilómetro quadrados, sendo para cada extensão posterior, pago, anualmente, a importância de 80$00 por quilómetro quadrado109. Parte desta área no Mar de Timor era reclamada pela Austrália, como estando dentro da sua jurisdição. Além do mais, segundo a versão australiana, a área cruzava-se com sete concessões garantidas ou renovadas a várias companhias de exploração nacionais, entre 1963 e 1969. Além da desconfiança política, a essência da disputa A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália 174 situava-se no seguinte: enquanto a Austrália defendia que havia duas plataformas continentais distintas nessa área, separadas pela “Baixa de Timor”, que se situa a cerca de sessenta milhas a Sul daquele território e a trezentas milhas a Norte da Austrália; Portugal sustentava a tese de que havia apenas uma plataforma continental e que a linha média devia ser traçada entre a costa australiana e a de Timor. Em 25 de Março de 1974, perante a atitude portuguesa, o Governo australiano apresentou um protesto oral através do embaixador de Portugal em Camberra, mas reiterava a vontade de negociar, e esclarecia que a atitude e o protesto não se relacionavam com os acontecimentos políticos ocorridos na Guiné-Bissau, como podia supor-se110. A concessão efectuada por Portugal rejeitava também as bases do acordo firmado em 1972, entre a Austrália e a Indonésia, que assegurava à Austrália o controle sobre cerca de 70% do leito marinho entre o norte do País e a ilha de Timor111. Em resposta ao protesto oral, o embaixador português entregou uma Nota, contendo os pontos de vista do seu Governo: – Portugal reconhecia apenas uma plataforma continental entre a Austrália e Timor português e a linha média entre as respectivas costas como fronteira, pelo que tinha feito uma concessão até esse limite do lado português; – a concessão continha cláusulas que acautelavam um ajuste de fronteira resultante de um eventual acordo internacional; – a concessão, que restringia a companhia a certos tipos de prospecção sísmica e magnética, era por um período inicial de 18 meses, renovável por outros sucessivos de 12 meses, até a questão da fronteira estar definitivamente resolvida entre Portugal e a Austrália; e – Portugal rejeitava as declarações públicas do primeiro-ministro australiano sobre a matéria, mas mantinha a sua vontade de negociar as fronteiras, preferindo esperar pelo resultado da Conferência de Caracas112. 110 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Oil”, A1838, C1875689, SC756/2/4/1, 1955-1976, protesto contra Portugal sobre as concessões de Petróleo no Mar de Timor. Veja-se também: IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório n.º 8/73 – G.U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Agosto de 1973, Anexo: “Austrália encara a séria Estância das Nações Unidas sobre a Baliza Marítima de Timor” (Tradução). 111 Veja-se: Geoffrey C. Gunn, ob. cit., pp. 281-282. 112 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Australian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C550911, SC3038/10/1 part 5, 1974-1975, documento do Department of Foreign Affairs, Camberra, 18 de Abril de 1974. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Cônsules da Austrália em Timor português (Díli) 1946-1971 1946-1947: Charles Eaton 1947: A Rigram (em exercício) 1947-1950: Henry White 1951-1952: N. McE Elliott 1953-1954: Vago 1955-1961: Francis Whittaker 1962-1964: James S. Dunn 1965-1967: D. W. Milton 1968-1969: John Denvers 1970-1971 (31 de Agosto): M. F. Berman. O Consulado iniciou as suas actividades em 1 de Janeiro de 1946. (Fonte: NAA, Portuguese Timor) 113 Cf. A. Barbedo de Magalhães, Timor-Leste – Interesses internacionais e actores locais, Vol. I: Da Invasão australo-holandesa à decisão australo-indonésia de anexar, 1941-1974, Porto, Edições Afrontamento, 2007, pp. 203-204. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 175 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Em 11 de Dezembro de 1974, foram concedidos direitos de exploração à Petrotimor, um consórcio liderado pela American Oceanic Exploration e envolvendo interesses portugueses. Mas este abandonou os escritórios em Díli e interrompeu os trabalhos de prospecção, após o golpe da UDT113. A questão da exploração do petróleo ficou nestes termos, de conflitualidade de interesses entre Portugal e a Austrália, quando ocorreu a invasão indonésia do território. Após a retirada da administração portuguesa, continuou a verificar-se uma grande ambiguidade por parte do executivo australiano, quer apoiando, durante anos, a sua anexação pela Indonésia e reconhecendo-a, oficialmente; quer, posteriormente, liderando a força que visou garantir o cumprimento do resultado do Referendo de 1999.NE 176 REFERÊNCIAS ANTUNES, José Freire, Salazar e Caetano: Cartas Secretas 1932-1968, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993. A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália CHRYSTELLO, J. Chris, Timor-Leste: 1973-1975, o Dossier Secreto, Matosinhos, Contemporânea Editora, 1999. DUNN, James, Timor, a People Betrayed, Milton, Queensland, The Jacaranda Press, 1983. 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N.º 14 Abril de 2009 pp. 123-176 Carlos Alberto Damas* Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 177 ■ Abstract: In order to restore “peace and unity with the French Republic” after the so-called “orange war”, Portugal was forced to settle balances with the Napoleon demand for war compensation. This study broaches the subject of the multiple terms, the vicissitudes and personal business interests, commercial and others, that conformed to the governmental, diplomatic, commercial and banking contacts pertaining to the bank loan effected in 1802 of 13 million florins, which would safeguard the sought-after neutrality of the country in relation to the Napoleon advance. The difficult negotiations – where amongst many important personalities D. Rodrigo de Souza Coutinho and important businessmen such as Joaquim Pedro Quintela and Jacinto Fernandes Bandeira as well as the main European bankers of the time were involved –, reached a favourable agreement after mortgaging the diamond production of Brazil as well as the income derived from the tobacco contract. Introdução O PRESENTE ESTUDO – que constitui parte de uma investigação em curso – pretende dar a conhecer aspectos porventura menos conhecidos das negociações empreendidas pelo Governo português para a obtenção de meios financeiros no mercado externo, que permitissem solver os compromissos que foi forçado a assumir, entre os anos finais do séc. XVIII e os primeiros do século XIX. Com recurso à intermediação dos negociantes Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira, os governantes nacionais, com destaque especial para D. Rodrigo de Souza Coutinho, Presidente do Real Erário de 1801 a 1803, procuraram – em momentos diferentes, mas sempre para “satisfazer à França os interesses pecuniários que S.A.R. se obrigou a dar-lhe...”1 –, o financiamento junto de duas das mais prestigiadas casas bancárias da praça londrina. * 1 Director do Centro de História do Grupo Espírito Santo. • Centro de História do Grupo BancoEspírito Santo. ([email protected]) Aos Professores João Cosme (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) e Rita de Sousa (Instituto Superior de Economia e Gestão, da Universidade Técnica de Lisboa) estou reconhecido pela disponibilidade que tiveram para ler a versão inicial deste estudo. Agradeço também aos Técnicos Superiores de Arquivo, John Orbell e Moira Lovegrove, do Baring Archive, em Londres, e à Joana Braga do IAN/TT a pesquisa de documentação existente relacionada com este tema. IAN/TT, Livro de registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Cypriano Ribeiro Freire, 16 de Fevereiro de 1802. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias Sir Francis Baring & Cº. e Henry Hope & Cº. (1797-1802) Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 178 As dívidas tiveram a sua origem na participação portuguesa nas guerras europeias, de “mau agouro”2 para o País, contribuindo para o agravamento das débeis condições financeiras do Reino. Esta comunicação faz uma primeira abordagem aos múltiplos condicionalismos, vicissitudes e jogos de interesses, mercantis e outros, que envolveram os contactos governamentais, diplomáticos, comerciais e bancários tendentes à efectivação dos empréstimos. Na primeira parte do texto esboça-se o contexto político e financeiro que justificou o apelo aos empréstimos externos, após o que, e com os dados disponíveis nesta fase da investigação, se explanam alguns dos aspectos mais significativos das negociações. E se, em 1797, as diligências dos governantes não lograram convencer os potenciais credores, já em 1802, o empréstimo bancário de 13 milhões de florins esteve na origem do lançamento da primeira emissão obrigacionista portuguesa nos mercados internacionais. A ideia para o desenvolvimento desta investigação foi sugerida pela leitura de um texto evocativo do bicentenário do primeiro empréstimo obrigacionista português (1802-2002), redigido por John Orbell, responsável pelos arquivos do Baring, e editado pelo ING Bank, entidade bancária holandesa que, em 1995, absorveu a Baring Brothers & Co. Ltd., banco de investimento e de gestão de activos sedeado na capital inglesa. De acordo com John Orbell, se a transação de 1802 representou um marco na história fiscal e económica de Portugal, para o Barings, no mesmo ano, tal operação foi igualmente um marco na sua história, por ter sido a primeira operação de relevo daquela Casa Bancária no mercado dos empréstimos internacionais, razões suficientes para que esse evento fosse de novo recordado, dois séculos depois. 1. Enquadramento político-financeiro Poucos anos após o eclodir da Revolução Francesa, mais concretamente a partir de 1792, o nosso país viu-se envolvido na belicosa teia que emergiu do choque de interesses económicos e políticos entre a Inglaterra e os seus aliados e a França revolucionária e imperial. No crepúsculo do século XVIII e no dealbar de Oitocentos, a Portugal parecia não restar outra alternativa senão a “compra” da neutralidade, mas essa busca, bem 2 Jorge Braga de Macedo, Álvaro Ferreira da Silva e Rita Martins de Sousa, “War, taxes, and gold”, p. 209. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 3 4 António Ventura, “Uma cimeira ibérica em 1796”, p. 144. Jeremy Black, How the French revolution stuck the Portuguese, p. 24. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 179 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias cedo, viria a revelar-se uma miragem face aos condicionalismos estratégicos e geográficos das potências beligerantes. Numa Europa acometida pelos ventos revolucionários, a conflagração contra a coligação de países com os quais a Grã-Bretanha estabeleceu alianças (Rússia, Prússia, Áustria, Espanha e alguns principados alemães), inicia-se com a declaração de guerra da França à Áustria e à Prússia em Abril de 1792. A bandeira que a todos unia era a da restauração do trono francês. A contragosto Portugal ver-se-ia também envolvido num conflito do qual, inicialmente, procurara manter-se afastado, investindo antes numa política de frágeis compromissos, consequência da sua posição “de grande debilidade, dependente do auxílio inglês e dos caprichos egoístas da sua multissecular aliada”3. Em Agosto de 1792, dias depois do destronar dos reis franceses, o governo português rejeitou a tentativa austríaca para que o País participasse na coligação europeia contra a França. A nossa participação nessa aliança só teria lugar caso a Espanha fosse atacada, atitude que mereceu então a concordância do governo inglês. A morte de Luís XVI, em Janeiro de 1793, conduz a Espanha a declarar guerra à França no mês seguinte. Esta retribui com uma dupla declaração de guerra à Grã-Bretanha e à Espanha, respectivamente em Fevereiro e Março de 1793. Estes acontecimentos determinaram a assinatura de um convénio de mútua amizade e socorros, em 15 de Julho de 1793, entre D. Maria I de Portugal e Carlos IV de Espanha. Por sua vez, o agravamento da tensão franco-britânica levou a Grã-Bretanha a alterar a sua posição inicial, buscando o apoio activo de Portugal4. Na sequência dos esforços diplomáticos então desenvolvidos, o Príncipe Regente, em 26 de Setembro, assinou a convenção luso-inglesa de mútuo auxílio. Assim se iniciava o que tem sido designado como o nosso afrontamento com a “dolorosa supremacia francesa”. Em Setembro, um corpo expedicionário português constituído por cerca de 6000 homens comandados pelo militar escocês John Forbes, junta-se ao exército castelhano da Catalunha. Aí tiveram lugar as campanhas do Rossilhão, chegando o exército luso-castelhano a ameaçar as cidades de Bayonne e Perpignan, com as forças Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 180 portuguesas a ocuparem as povoações de Ceret e Villeneuve. Contudo, a contra ofensiva francesa, a partir de finais de 1793 obrigou à retirada precipitada dos efectivos portugueses e espanhóis, a que se seguiu a derrota dos realistas francesas, apoiados por efectivos anglo-castelhanos, em Toulon, em 19 de Dezembro desse ano, mercê da estratégia de um desconhecido militar, de seu nome Napoleão Bonaparte. A retaliação das forças do Directório prosseguiu na Catalunha e em Navarra, no segundo semestre de 1794, e chegou ao País Basco, onde as cidades de S. Sebastián, Bilbao e Vitória foram ocupadas. Estes sucessos forçaram Godoy a assinar, em Julho de 1795, o Tratado de Paz de Basileia5, pelo qual a Espanha reavia (liquidando as esperanças dos partidários da autonomia basca) as povoações ocupadas, em troca da cedência6 de metade da ilha de S. Domingo aos franceses. Madrid juntava-se assim à França revolucionária deixando Portugal isolado. Nesse período e durante algum tempo apenas, a República revolucionária intensifica a guerra marítima, através do corso, contra o aliado continental do seu principal inimigo, pressionando a Coroa portuguesa a negociar a paz. Mas, nesse teatro líquido da guerra o poder naval britânico iria infligir sucessivos desaires à já enfraquecida força naval da Convenção e ao seu forçado aliado, a Espanha de Carlos IV. Em Agosto de 1796, os dois Estados pirenaicos assinavam o Tratado de Santo Ildefonso, que mais contribuiu para desequilibrar a situação em desfavor de Portugal. Com efeito, num dos artigos secretos desse convénio o monarca espanhol obrigava-se a influenciar ou, se necessário, a forçar Portugal a fechar os portos aos ingleses logo que a guerra fosse declarada, “e o Directório Executivo da República Francesa promete à Espanha todas as forças necessárias para esse efeito, se Portugal ousar resistir à vontade de Sua Majestade Católica”.7 Como consequência, na primeira semana de Outubro a Espanha declara oficialmente guerra à Grã-Bretanha. A estratégia da “corte das Tulherias” (expressão de Acúrsio das Neves) obtivera o que sempre desejara, ao separar uma grande potência como a Espanha da sua natural aliança com a rival insular. 5 Com o mesmo nome, Tratado de Paz de Basileia, a França assinou convenções com a Prússia, em 5 de Abril e com o Landgrave de Hesse-Cassel, em 28 de Agosto. 6 Que era virtual, como nota Michel Kerautret em Les grands traités du consulat (1799-1804), p. 51 7 4º Artigo secreto do Tratado de aliança de Santo Ildefonso, in Michel Kerautret, Les grands traités... p. 57. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 8 Marten Buist, At spes non fracta. Hope and Co., 1770-1815. Merchant bankers and diplomats at work, p. 383. António Ventura, Uma cimeira ibérica em 1796, p. 148. 10 Em 1807, François de Beauharnais, embaixador francês na corte de Madrid, descrevia ao seu Ministro das Relações Exteriores a personalidade do “Príncipe da Paz” nestes termos: “É falso, velhaco e ignorante”. Cf. Thierry Lentz, p. 14. 11 Jorge Borges de Macedo, O bloqueio continental, p. 38. 9 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 181 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias Por sua vez, a posição política portuguesa estribava-se na aliança com a Grã-Bretanha, condição que não quis romper, declarando a sua neutralidade no conflito anglo-espanhol. Alguns investigadores, ao analisarem os rumos diversos que os dois países ibéricos tomaram nas circunstâncias de então, não entenderam as razões predominantes da nossa ligação à corte de Jorge III, decorrente da secular aliança luso-britânica. Tal foi o caso de Marten Buist ao considerar que, “Portugal foi incapaz de seguir o exemplo da Espanha na busca da paz”8. Com efeito, se examinarmos atentamente as variáveis que se apresentavam e as condições geo-estratégicos que determinaram o comportamento de cada um dos actores neste cenário, a atitude portuguesa foi a mais consentânea com os interesses nacionais. Já os espanhóis, sem muitas alternativas, e atendendo até a que, e como assinala António Ventura9, o Pacto de Família entre a Espanha e a França assinado em 1761, continuava ainda em vigor, Manuel de Godoy, o jovem primeiro ministro espanhol10, lançou a Coroa dos Bourbons na órbita do seu vizinho do norte, no tempo em que Napoleão Bonaparte, Comandante em Chefe do Exército francês em Itália, somava vitórias para a bandeira tricolor. Recorde-se que na península italiana a Espanha tinha interesses que procurava – em vão – acautelar, o que era uma razão mais para justificar a oscilante política de Carlos IV. A diplomacia portuguesa, debatendo-se entre a cedência a um “compromisso continental [que] só podia afectar o equilíbrio da estrutura económica com que Portugal se integrava na conjuntura mundial”11, e a fidelidade à aliança inglesa, que pretendia honrar, movimenta-se para que o país não fosse obrigado a uma opção em definitivo pelas alternativas que se lhe apresentavam, para mais quando, não só as deficiências do exército português, mal equipado e mal organizado, não eram de molde a sugerir qualquer envolvência em campanhas militares, como a debilidade das finanças públicas não deixavam margem para acções mais adequadas. No Outono de 1796, António de Araújo de Azevedo, representante português na capital holandesa, inicia, em Paris, negociações para a assinatura de um Tratado de Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 182 paz a troco de um pagamento de 3 milhões de cruzados (aproximadamente 10 milhões de libras tornesas, ou 1,2 milhões de libras esterlinas), cujo empréstimo pelo mesmo montante, em Março de 1797, a Coroa portuguesa procuraria, sem êxito, assegurar junto de banqueiros londrinos, como veremos. Em paralelo com a acção diplomática, e para fazer prover o exaurido tesouro público, a Rainha autoriza o Real Erário “a aceitar todo o dinheiro que se oferecer por via de empréstimo, até á quantia de dez milhões de cruzados, a juro de cinco por cento em cada um ano”.12 Aos credores eram entregues apólices de 100$000 cada, constituindo estas títulos de dívida da Real Fazenda que podiam circular como letras de câmbio. Em Março do ano seguinte, este empréstimo foi ampliado para 12 milhões de cruzados, ficando os novos mutuantes, a vencer um juro de 6% e isentos do pagamento da décima. Meses depois, a 10 de Agosto de 1797, em Paris, ficou estabelecido o pagamento de 10 milhões de libras tornesas e a permissão de entrada anual de apenas 6 navios ingleses nos portos nacionais. Mas a Grã-Bretanha, confrontada com o lento desfazer da coligação antigaulesa que averbava derrotas sucessivas, opôs-se aos termos do Tratado, que não foi ratificado por Portugal. A situação de incumprimento provocou na França napoleónica, a subida de tom da irritação contra a Coroa portuguesa, que mantinha abertos os seus portos aos navios britânicos. Meses depois, o Tratado de Campo Formio, entre a França e a Áustria, assinalou o fim da 1.ª coligação europeia, deixando a Grã-Bretanha quase isolada na luta que lhe movia o seu adversário. No decorrer de 1799, e com o vizinho reino ibérico cada vez mais submetido aos ditames dos interesses franceses, D. João – entretanto nomeado regente do Reino –, procura não só quebrar o isolamento diplomático, como defender os interesses comerciais e estratégicos do país, subscrevendo Tratados de amizade e comércio com a Rússia, a regência de Tripoli e o bei de Tunes, no mesmo ano em que o general Bonaparte recebia o título de Primeiro Cônsul. Em Maio de 1800, Armand Lebrun Houssaye, Chefe de Brigada do 3.º Regimento dos hussardos ameaçava: “Portugal não quer fazer a paz connosco? Conquistá-lo-emos”. No dia 1 de Outubro do mesmo ano, a França e a Espanha celebram o 2.º Tratado de Stº. Ildefonso, pelo qual o reino de Carlos IV devolve – em troca de abstractas 12 Resolução régia de 29 de Outubro de 1796, in Colecção de Legislação Portugueza..., p. 327. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 *** Em Agosto de 1800, Napoleão dizia a Talleyrand que o general Berthiez, enviado para Madrid como ministro plenipotenciário, “devia exortar, por todos os meios possíveis, a Espanha a fazer a guerra a Portugal”. 14 E tão bem o fez que Carlos IV – pai de Carlota Joaquina de Bourbon, Princesa espanhola e futura Rainha de Portugal – , em 27 de Fevereiro de 1801, e sem esperar pelas tropas francesas, declarou guerra a Portugal, com o objectivo de forçar o nosso país a fechar os portos à Grã-Bretanha. Fazendo-se eco da fraseologia do Primeiro Cônsul, os seus partidários apregoavam o mesmo que, em muitas outras circunstâncias e noutros contextos, seria dito aos povos submetidos ao domínio recente da França napoleónica: “É para restituir à nação portuguesa a sua independência e o seu antigo poder, é para quebrar os seus ferros e arrancá-la a uma vassalagem humilhadora, que Bonaparte levou a guerra a Portugal. Ele quer regenerar esta nação, dar-lhe o conhecimento das suas forças e a energia que em outro tempo animou os conquistadores das Índias e os 13 14 Damião Peres, História de Portugal, Vol. VII, p. 281 Thierry Lentz, Les relations franco-espagnoles, p. 8. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 183 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias promessas em obter territórios na Toscânia –, o antigo domínio francês da Louisiana. Cerca de dois anos depois, em 30 de Abril de 1803, Napoleão, por não poder defender todos os seus domínios coloniais, tratou de vender por 60 milhões de francos esse território aos Estados Unidos que, por intermédio dos Baring, emitiu um empréstimo obrigacionista no valor de 11, 25 milhões de dólares. Da Grã-Bretanha, Portugal não poderia esperar grande auxílio, tendo mesmo o seu representante diplomático em Lisboa, John Hookman Frere, aconselhado o governo português a armar-se “quanto lhe fosse possível”13, no mais curto espaço de tempo. Nesta fase, e até ao armistício celebrado entre Napoleão e o Czar Alexandre da Rússia, em 1807, a estratégia inglesa delineada por William Pitt assentava no apoio maciço em dinheiro, armas e abastecimentos às potências da Europa (Prússia, Áustria, Rússia), não fazendo Portugal parte das suas prioridades estratégicas. A esperança britânica em conter as ofensivas napoleónicas nos principais países das diversas coligações, a terceira e última das quais, formada em 1805, um ano antes do falecimento do líder britânico, foi varrida pelas vitórias sucessivas de Napoleão e dos seus cabos de guerra. Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 184 rivais castelhanos; ele quer ser o protector de um povo oprimido, e colocá-lo naquela ordem que devem ocupar os senhores do Brasil e do Tejo”.15 Os dados estavam lançados e o tempo era escasso para tomar previdências. Ainda assim, o Regente do Reino procurou suprir o esgotamento dos recursos financeiros lançando mão de mais um empréstimo público. No preâmbulo do alvará de 7 de Março de 1801 diz D. João que, havendo procurado “por todos os meios compatíveis com o decoro (...) evitar que a guerra acendida na Europa envolvesse os meus fiéis vassalos...”, para fazer face a despesas extraordinárias no aprovisionamento do Exército e da Marinha, era necessário ter recursos também extraordinários e, nesse sentido, ordenava “sem perda de tempo” a abertura de um empréstimo de 12 milhões de cruzados. Aproximadamente dois meses depois, a 20 de Maio, as tropas espanholas, comandadas por Manuel Godoy, invadem o território português tomando as praças de Olivença, Juromenha e Campo Maior, que se entregaram sem luta, circunstância que não deixou de intrigar o senhor dos franceses, desconfiado que uma guerra tão curta não poderia ter origem senão num entendimento entre Godoy e os portugueses.16 Duas semanas após a chamada “guerra das laranjas”, a 6 de Junho, Portugal é coagido a assinar, em Badajoz, dois Tratados de paz, com cada uma das potências belicistas. Num deles, a Espanha, para além de obrigar Portugal ao pagamento de uma vexatória indemnização pelos danos e prejuízos causados pelas embarcações da Grã-Bretanha ou de Portugal durante a guerra, e ainda, a compensar o tesouro espanhol pelos débitos que as suas tropas deixaram de satisfazer quando se retiraram da guerra de França, ficou com a posse de Olivença. No outro Tratado, com a França, entre outras cláusulas, ficou consignado que, até à assinatura da paz entre a França e a Grã-Bretanha, os portos e ancoradouros portugueses seriam interditos aos vasos de guerra e de comércio ingleses, em contrapartida da sua abertura aos da República e seus aliados. No clausulado secreto, o Príncipe Regente obrigava-se ao pagamento de 15 milhões de libras tornesas, metade em dinheiro, metade em pedras preciosas. As condições estabelecidas nessas convenções não agradaram ao Primeiro Cônsul que exigiu a anulação dos Tratados, obrigando Portugal a submeter-se a um outro convénio, assinado em Madrid, datado de 29 de Setembro pelos ministros plenipo- 15 “Tableau historique et politique des opérations militaires et civiles de Bonaparte”, citado em Acúrsio das Neves, História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, vol. I, p. 164. 16 Thierry Lentz, Les relations franco-espagnoles, p. 9. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 *** Em Outubro de 1801, e para dar satisfação às suas obrigações em troca da “boa paz e união com a República Francesa” que o Príncipe do Brasil por decreto de 28 17 O Art.º 6.º dos preliminares de paz de Londres, estabelecia que os territórios e as possessões ultramarinas portuguesas manteriam a sua integridade. 18 Eugénio Tarlé, Napoleão. Vol. I, p. 206 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 185 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias tenciários Cipriano Ribeiro Freire e Luciano Bonaparte, dois dias antes da assinatura, em Londres, dos preliminares de paz das hostilidades franco-britânicas, A indemnização de guerra a pagar por Portugal foi agravada para 20 milhões de libras tornesas, para além do estabelecimento de novos limites entre as Guianas francesa e portuguesa, que beneficiavam generosamente o domínio territorial francês. A Coroa espanhola, que recusou revogar o Tratado de Badajoz, foi ameaçada de perder a ilha de Trindade se cumprisse as cláusulas assinadas com o Regente português. A paz temporária que os dois inimigos acordaram em 1 de Outubro17, contribuíra para diminuir a tensão. O momento de as tropas francesas invadirem Portugal, não obstante a compra da neutralidade, ainda não chegara. Para já, essa “neutralidade” representava um provento de 2,5 milhões de libras tornesas para o orçamento do estado francês, a juntar aos muitos outros milhões extorquidos às nações sob o seu domínio, efectivo ou não. Para Eugueni Tarlé, “um dos aspectos mais característicos das finanças napoleónicas, era considerar as despesas de guerra, como despesas “ordinárias” e nunca extraordinárias”.18 Para que isso acontecesse, Napoleão e os seus marechais utilizavam todos os pretextos, reais ou fictícios, para que no orçamento do estado francês não existissem despesas extraordinárias. De entre os muitos contribuintes forçados, nos anos finais do século XVIII, para além de Portugal, citem-se os casos do Duque de Parma que, em 1796, na luta que opunha franceses a austríacos no decorrer da campanha de Itália, não obstante a sua declarada neutralidade viu não só o território do Ducado ser atravessado pelo exército de Napoleão, como teve ainda de pagar uma contribuição de 2 milhões de francos. Ou, um ano depois, quando o Papa Pio VI foi obrigado, pelo Tratado de Tolentino, datado de 19 de Fevereiro, a comprar a paz, que lhe garantia a posse dos territórios pontifícios, mediante a entrega de 30 milhões de francos ouro. Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 186 desse mês mandou observar, Portugal enceta os primeiros contactos com os banqueiros Baring de Londres, com vista à emissão, no mercado internacional, de obrigações no valor de 13 milhões de florins19, tema sobre o qual nos debruçaremos mais adiante deste estudo. Entretanto, a 26 de Março de 1802, e para dar corpo à nova política francesa em relação a Portugal, chega a Lisboa o General Jean Lannes, representante diplomático que Napoleão nomeara em Novembro do ano anterior, para tratar dos interesses daquele país junto da hesitante corte portuguesa, na sequência do Tratado de paz luso-francês assinado no final de Setembro, em Madrid. A chegada do representante do Primeiro Cônsul, “excedeu as expectativas de Bonaparte, exasperou a delegação diplomática britânica e deixou preocupados os emigrados franceses”20. Segundo nos indica Margaret Crisawn, no notável artigo que dedica à missão do General Lannes em Lisboa, a sua missão consistia em proteger os interesses da França, particularmente à custa dos da Grã-Bretanha. Considerando que parte do governo português, ao não promover a aplicação prática do bloqueio aos navios de Sua Majestade Jorge III, e em demorar o cumprimento das cláusulas do Tratado de Madrid, evidenciava uma posição servil perante os interesses do seu principal inimigo, o militar francês desenvolve uma estratégia de permanente confrontação. Para isso, não hesita em socorrer-se de atitudes pouco consentâneas com o cargo que exercia21. O intuito era o de forçar o Regente a demitir alguns dos ministros, considerados anglófilos, propósito que viria a conseguir. D. Rodrigo de Souza Coutinho e Pina Manique eram dos “anti-franceses” que Lannes mais queria ver afastados das funções que desempenhavam. Em relação a este último, só os argumentos dos seus ministros é que levaram o Príncipe Regente, a não demitir o Intendente, depois de ter prometido fazê-lo. Com efeito, na sequência de um incidente com um ajudante de campo do general francês, este ameaçou abandonar o seu posto e regressar a França, a menos que Pina Manique fosse afastado. Não tendo alcançado os seus intentos, Lannes concretizou a ameaça, partindo para França em 10 de Agosto de 1802. Para D. João, a “abrupta e inconvencional” saída 19 O equivalente a 80 milhões de euros. Margaret Chrisawn, A military bull in a diplomatic China shop: Jean Lannes’s mission to Lisbon 1802-1804. 21 Em carta datada de 5 de Abril de 1803, Souza Coutinho levava ao conhecimento de Talleyrand a “incivilidade” do seu representante em Lisboa, que chegava ao ponto de “interromper o Príncipe Regente a meio de uma frase” (Vd. Margaret Chrisawn, Ob. cit.) 20 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 187 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias do embaixador constituiu, numa primeira fase, motivo de alarme e preocupação. Mas, em 1803 – já depois do retorno de Lannes a Lisboa – D. João acabou por ceder, afastando-o do cargo de Administrador Geral da Alfândega. Quanto a D. Rodrigo de Souza Coutinho, as pressões que sobre ele se exerceram, levaram-no a apresentar a demissão a 15 de Novembro. D. João, consciente da decisiva acção do Conde de Linhares na condução das finanças públicas, num primeiro momento recusa a pretensão. Meses depois, e sem que Lannes abandonasse os seus intentos, o nosso Ministro das Finanças vê deferida pelo Príncipe Regente a sua exigência, sendo exonerado a 31 de Agosto de 1803. Outros dois portugueses com cargos oficiais da mais alta importância foram sacrificados, também em 1803, em consequência da perseguição do representante diplomático francês: o embaixador português em Paris, Dom José Maria de Souza e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dom João de Almeida Mello e Castro, que foi substituído no cargo pelo Visconde de Balsemão, Luís Pinto de Souza Coutinho. Por essa ocasião já o general francês regressara a Lisboa, reenviado por Bonaparte. Com efeito, desde 10 de Março de 1803 que o cidadão Lannes voltara a incomodar todos quantos resistiam às exigências da França. No Outono de 1803, D. João acabou por ceder em grande parte às imposições apresentadas pelo diplomata gaulês para grande desapontamento do embaixador britânico, Lord Robert Stephen Fitzgerald, que assistia ao dissipar da sua influência na Corte portuguesa. Segundo Crisawn, que vimos citando, Lannes tirou partido do seu novo estatuto junto do Regente para exigir a assinatura de um Tratado que substantivasse a nova correlação de forças. Em 3 de Junho, e na sequência do apresamento de um navio-correio inglês feito ao largo de Bordéus por um barco pirata francês que transportava um volume contendo 15.000 quilates de diamantes portugueses – consequência do reassumir das hostilidades entre a França e a Inglaterra – D. João decreta a proibição do acesso de corsários das potências em guerra aos portos portugueses, com o intuito de “regular o inviolável sistema da neutralidade”. Mas a tentativa da Coroa esbarrou com a intransigência francesa que considerou de nulo efeito tal declaração. Das conversações diplomáticas que se seguiram – em que já participou D. Luís de Vasconcelos, sucessor de Souza Coutinho –, no último trimestre de 1803, foi redigido um acordo secreto entre Portugal e a República Francesa, que recebeu a assinatura de D. João em 19 de Dezembro. Pressionado pelo Primeiro Cônsul a introduzir alterações mais favoráveis à França, a chamada convenção franco-portuguesa de neutralidade e de subsídios, foi formalmente assinada por Lannes e Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 188 por José Manuel Pinto de Souza 22 a 19 de Março de 1804. Nela se estipulava que as obrigações impostas a Portugal pelo Tratado de 29 de Setembro de 1801, e para garantir a neutralidade, fossem convertidas “num subsídio pecuniário de 16 milhões de francos” 23, a par da concessão de facilidades comerciais às mercadorias franceses (sedas, panos de linho e algodão, rendas, cambraias e joalharias). Portugal ficava obrigado a liquidar, um mês após a ratificação do convénio, em dinheiro, o valor correspondente às prestações desde 1 de Dezembro de 1803; o resto do subsídio seria liquidado através de obrigações no valor de um milhão de francos, sucessivamente pagáveis de mês a mês até à liquidação da responsabilidade. Para a concessão de um empréstimo suplementar que suportasse os novos ditames, Bandeira ainda sondou as casas Hope e Baring. Mas no contexto da guerra reaberta, a operação foi considerada desaconselhável pelos banqueiros. Por sua vez, a reacção inglesa não se fez esperar: o governo britânico considerava que o pagamento de qualquer subsídio português à França seria considerado, como “um acto de ajuda aos inimigos de Sua Majestade [e lhe] dava o direito de considerar Portugal como um inimigo”24. Poucos anos faltariam para que, após a instituição do bloqueio continental, em Novembro de 1806 e a celebração da paz com a Rússia, assinada em Tilsit, a 8 de Julho de 1807, o imperador Napoleão Bonaparte dispusesse do tempo e dos meios necessários para se dedicar a Portugal, nação que nunca deixara de ter debaixo da sua atenção e vigilância, para mais quando a adesão dos portugueses ao bloqueio não se verificara. Duas semanas depois, a 27 de Julho, as tropas francesas, com o apoio castelhano, a quem foi prometida uma parcela do território português, começaram a concentrar-se em Bayonne, preparando-se para a invasão. A 12 de Agosto, o representante diplomático francês em Lisboa apresentou um ultimatum, exigindo o rompimento 22 Representante diplomático português em Estocolmo. Michel Kerautret, ob. cit,, p. 305-307. Na documentação consultada, esta é a única vez em que a designação da moeda francesa aparece em francos. Segundo Rodrigues de Brito, “ainda hoje em França a livra tornesa, posto que já ideal e imaginária, e que vale cento e cinquenta e um réis e 70/100, serve para o cômputo das contas(...)”. In Memórias políticas, p. 162. Segundo Damião Peres (História de Portugal, vol. VI, p. 277), o valor da indemnização era de 18 milhões de libras. Esta convenção foi anulada em 1 de Maio de 1808 pelo Manifesto e artigo adicional que D. João fez publicar no Rio de Janeiro. 24 Margaret Crisawn, ob. cit. 23 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 2. O primeiro pedido de empréstimo (1797) “Os banqueiros não gostam da guerra, mas não desdenham as oportunidades de negócio que os acasos da guerra lhes proporcionam”25. A asserção de Philip Ziegler adapta-se bem às vicissitudes que a eclosão das guerras da França revolucionária semeou na Europa depois de 1789, e aos benefícios que estas proporcionaram aos irmãos Baring, prestigiados banqueiros ingleses, aos quais Portugal recorreu pela primeira vez em 179726. * * * No final do século XVIII, a firma dos irmãos Baring era já uma das mais antigas e conceituadas casas bancárias da city londrina, e à qual, no decurso dos séculos seguintes, viriam a recorrer os mais diversos governos estrangeiros na mira de empréstimos que solvessem problemas domésticos ou financiassem iniciativas de grande valor. Fundada em 1762, a partir da actividade de um merchant bank, esta Casa Bancária no decorrer do tempo foi objecto de várias alterações na sua designação social: de John & Francis Baring & Cº., no ano da fundação para Sir Francis Baring & Cº. (1801) e Baring Brothers & Cº., de 1807 em diante. A importância desta Casa no contexto das instituições bancárias europeias era de tal modo relevante que, em 1818, Armand du Plessis, Duque de Richelieu, ainda Presidente do Conselho e Ministro dos 25 26 Philip Ziegler, The sixth great power, p. 55. Em 1762, Martinho de Melo e Castro, representante diplomático português em Londres, solicitava os bons ofícios de John Perceval, 2º Conde de Egmont (então membro da Câmara dos Lordes e futuro Primeiro Lord do Almirantado) para a obtenção de um empréstimo de 200 mil libras que desse ao Tesouro português os meios necessários para a defesa do Reino, ameaçado de invasão das tropas franco-espanholas ao abrigo do Pacto de Família., no contexto da guerra dos Sete Anos. (IAN/TT – Ministério do Reino, Maço 616, Caixa 178, 27 de Setembro de 1762). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 189 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias das relações de Portugal com os ingleses. Sem resposta, a 29 de Novembro, um dia após o embarque de D. João e da sua corte para o Brasil, as tropas de Junot passam a fronteira portuguesa consumando a ocupação do extremo ocidental do Atlântico, na intenção de fechar definitivamente uma das portas de entrada das mercadorias inglesas na Europa. Mal sabia o então imperador dos franceses que a resistência de guerrilha que lhe foi movida nos estados peninsulares marcaria o início do fim do seu “reinado”. Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 190 Negócios Estrangeiros francês, nomeava as seis grandes potências europeias de então: França, Inglaterra, Áustria, Rússia, Prússia e Baring Brothers27. A prosperidade destes banqueiros, acrescida nos anos em que os britânicos procuravam restaurar o trono dos Bourbons em França, devia-se em grande parte ao pragmatismo dos seus responsáveis, como atesta a subida da média anual de lucros no período de 1794 a 1798, de 33.077 libras para 93.984 libras no lustro seguinte. Mas não só. Em Fevereiro de 1793, Henry Hope, merchant banker anglo-holandês foi obrigado a abandonar Amsterdão e a sair do país, quando se deu a primeira tentativa de invasão do território pela França. Segundo Buist, que citamos, em Londres constituíram a firma Henry Hope & Cº. Poucos meses depois regressou à praça de Amsterdão onde permaneceu até Outubro de 1794, altura em que retornou a Londres acompanhado de John Williams Hope, quando os revolucionários da Convenção, numa segunda ofensiva, preparavam a tomada final da República das Províncias Unidas, no Inverno de 1794/1795. Levava consigo perto de quatro centenas de obras de arte, que constituiu “um dos maiores e mais bem documentados exemplos, de transferência de capital do continente europeu antes da chegada da Revolução Francesa e dos seus exércitos”28. Na capital inglesa, onde os negócios bancários eram conduzidos pelos irmãos Baring, a junção da sua experiência em transacções do mercado de capitais com a actividade seguradora do comércio internacional de mercadorias dos banqueiros holandeses, concorreu para criar, o que Larry Neal designa como uma “unique combination”, a qual durou mais de um século, beneficiando de forma notória a importância e os ganhos que a John e Francis Baring tal parceria proporcionava. * * * A abordagem a estas casas bancárias, seria feita em 1796 por dois dos mais importantes negociantes de Lisboa, Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira que, segundo Jorge Pedreira, as escolheram com base em antigas relações de negócio. Com efeito, “a firma Henry Hope & Co. pretendera, por mais de uma vez, 27 28 John Orbell, Baring Brothers & Cº., Limited. A history to 1939, p. 23. Larry Neal, The rise of financial capitalism, p. 180. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 *** A partir do Verão de 1796 as trocas de correspondência entre os agentes da coroa portuguesa, Bandeira e Quintela, e as casas bancárias Insinger, de Amsterdão, e Hope e Baring, de Londres, em momentos diferentes, ilustram as vicissitudes que rodearam a frustrada operação, com intervenções de permeio, dos irmãos Stephens (John e William), da Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande. Inicialmente a proposta portuguesa era a de obter um empréstimo de 1,2 milhões de libras (cerca de 11 milhões de cruzados), sobre hipoteca de diamantes, a depositar no Banco de Londres, que cobrissem não só o valor do empréstimo, como os juros, num total de 2 milhões de libras. Joaquim Pedro Quintela, na fase preliminar de contactos com os banqueiros, ainda no decorrer de 1796, dirige-se quase em simultâneo a Londres e a Amsterdão, diversificando as possíveis fontes de financiamento, precavendo-se desse modo para a hipótese de um deles não aceitar a operação. 29 Desde 1765 que a casa Hope & Cº. de Amsterdão, tentava obter o contrato dos diamantes. Para o efeito, de acordo com Buist, os contactos com Portugal foram processados através do representante diplomático dinamarquês em Lisboa. 30 Jorge Pedreira, Os homens de negócio da praça de Lisboa (1755-1822). Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social, p. 180 e segs. 31 Idem, ibidem. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 191 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias arrebatar a Daniel Gildemeester o monopólio da venda dos diamantes no estrangeiro29. Nunca atingira o seu desiderato mas, em 1791, conseguira fazer-se escolher por Joaquim Pedro Bandeira, o novo concessionário, para seu agente em Amsterdão”30. Quanto a Francis Baring, considerado “porventura a personagem mais influente da City na transição para o séc. XIX, mantinha um antigo relacionamento comercial com John Standley, negociante britânico em Lisboa que servia também como guarda-livros a Jacinto Fernandes Bandeira”31. Sobre a primeira tentativa de obtenção de financiamento nos mercados internacionais em 1796/1797 são escassas as referências a tal pedido, provavelmente por o mesmo não ter chegado a concretizar-se. A ela aludem, de forma muito sucinta, Philip Ziegler e Marten Buist nas histórias dos Baring e Hope. Contudo, a mesma documentação a que tiveram acesso contém abundante informação que justifica uma análise mais aprofundada, particularmente a que se encontra em Londres. Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 192 Em carta datada de 25 de Junho, remetida a H. Insinger, entre outras questões abordadas, o negociador português pedia que este disponibilizasse a soma em questão, caso o empréstimo solicitado a Henry Hope, de Londres, (a quem primeiro se dirigira) fosse recusado, como veio a acontecer. Em 18 de Julho o responsável da Insinger & Cº., em carta dirigida ao agente português, dizia responder “muito mal à confiança que deposita em mim, devido à situação precária a que nos conduziu a ruinosa guerra, e ao esgotamento das nossas finanças”32. Ao longo da missiva espraiava-se em alegações diversas, argumentando que o governo holandês para encontrar dinheiro tivera de recorrer a empréstimos internos forçados, acrescentando: “se emprestássemos ao estrangeiro soma tão considerável, o nosso governo poderia acusar-nos de anti-patriotismo. Os procedimentos de um empréstimo do Rei da Sardenha são ainda muito recentes na memória de cada um, para que não cause embaraços num negócio que é, um pouco, da mesma natureza”33. Alguns dias depois, Quintela replicou dizendo que conhecia muito bem os “avis publics”, segundo os quais havia pouco dinheiro em circulação. E, quanto a Amsterdão, acrescentava: “Mas para uma cidade tão rica e fértil, e que em dois anos emprestou tantos milhões ao Imperador, 3 milhões de cruzados são uma bagatela”34, e com fina ironia terminava dizendo que a hipoteca que oferecia aos emprestadores num dos “ditos” bancos públicos, ou nas suas próprias mãos, se assim o quisessem, “est pour le moins aussi bien sure que la promesse d’une tête couronnée”. Prevendo que do mercador-banqueiro holandês não obteria quaisquer fundos, e conhecendo a conflitualidade existente no mercado distribuidor dos diamantes, J P Quintela pressiona-os, dizendo que poderia procurar noutro país quem lhe fizesse o empréstimo, estando para isso disposto a fazer o depósito dos diamantes em Hamburgo ou Londres “de tantas pedras para 4 milhões de cruzados”, em troca da obtenção da quantia dos ditos 3 milhões, “que me é necessária sobre hipoteca”. Na documentação existente nos arquivos do extinto Baring Brothers & Cº. Ltd. (actual ING Baring Holdings, Ltd.), em Londres, este assunto é retomado em Fevereiro do 32 Baring Archive, NP, 1 A-19.7. Carta de H. A. Insinger a Joaquim Pedro Quintela, 18 de Julho de 1796. O rei da Sardenha obtivera um empréstimo de 200.000 francos da casa holandesa, sobre hipoteca de diamantes aí depositados, no valor de 11 milhões de francos. Mas, com a tomada de Amsterdão pelos franceses, esse tesouro foi confiscado. Apesar desse esbulho, Insinger garantia a Quintela: “pode dizer-se que estamos em paz com os portugueses, e que a propriedade da vossa nação será respeitada aqui”. 34 Baring Archive, NP, 1 A-19.7. Carta de Joaquim Pedro Quintela a H. A. Insinger, 25 de Julho de 1796. 33 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 35 Baring Archive, NP, 1 A-19.7. Carta de Jacinto da Costa Bandeira para Sir Francis Baring, 21 de Fevereiro de 1797. 36 As actuais ilhas Reunião e arquipélago das Comores. 37 John James Stephans (1748-1826), irmão e sócio de William Stephans. Após a morte deste em 1802, herdou a Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande (Cf. Maria Cristina Pancada Correia, A Marinha Grande sob o sopro do vidro, De c. 1748 a c. de 1810. Lisboa: 2002, p. 57. Tese de Mestrado em História Local e Regional. Faculdade de Letras de Lisboa (Texto policopiado). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 193 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias ano seguinte, através da carta que Jacinto Fernandes da Costa Bandeira remeteu a Sir Francis Baring, banqueiro a quem recorreu, após a recusa de Insinger. Embora as condições propostas fossem as mesmas (empréstimo de 1,2 milhões de libras por hipoteca de diamantes), Bandeira avança com uma outra garantia hipotecária, no caso de a oferta não ser satisfatória: a penhora ou mesmo a venda das ilhas de Timor, Solor e Boléu, ou ainda, se necessário, o território de Moçambique35, esclarecendo que as ilhas asiáticas eram “todas subordinadas a Goa, e que nos dizem ter alguns bons portos, abundância da melhor madeira de sândalo, cera e algumas mercadorias necessárias à China”. Francis Baring, entusiasmado com as garantias territoriais, dá a conhecer o assunto ao Gabinete britânico, na pessoa do seu Primeiro Ministro, William Pitt. Aduzindo razões para persuadir o governo a concordar com o empréstimo, argumentava que as ilhas poderiam ser utilizadas pela Companhia da Índias Orientais. Acrescentava ainda que a East Indian Company podia usufruir, o “rico reino e ilhas de Moçambique, um excelente porto na costa oriental de África, lugares esses que, em tempo de guerra, podem refrear os franceses das ilhas Bourbon36 e da Maurícia”.Tendo presente a situação de guerra no continente europeu, crescentemente dominado pelos seus inimigos, acrescentava que as ilhas e territórios portugueses “podiam ser hipotecados e de grande utilidade para o comércio africano da East Indian Company”, logo que a navegação pelo Cabo da Boa Esperança fosse restabelecida. Pedia uma resposta pronta do Governo inglês, uma vez que, sendo o empréstimo politicamente aprovado pelo Governo de Sua Majestade Britânica, o Príncipe Regente de Portugal encarregaria o seu representante em Londres, de ratificar as condições do acordo, entregar os penhores, receber as prestações a dinheiro e adequar os prazos de resgate. À cautela, o banqueiro expediu no mesmo dia uma cópia desta missiva a John James Stephans37, negociante inglês há muito radicado em Portugal. O memorando “muito secreto” em que respondeu ao banqueiro, começava por confirmar que a carta de Bandeira com vista à abertura das negociações para o empréstimo, havia sido Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 194 sancionada pela Corte, embora sem a concordância unânime do governo quanto à proposta de hipotecar Moçambique ou as ilhas da costa ocidental africana. De forma muito pragmática, Stephans dizia que se a East Indian Company quisesse emprestar o dinheiro, os territórios oferecidos podiam ser aceites. Mas acrescentava: “se bem que tenham bons portos, como garantia privada não servem para nada”; donde, se o empréstimo fosse concedido pela Casa Bancária John & Francis Baring & Cº. , os penhores deveriam ser ou em diamantes ou com a hipoteca dos rendimentos do contrato do tabaco ou da Alfândega. Não se esqueceu de oferecer os seus préstimos para participar na negociação com os portugueses, dos quais poderia obter na “presente emergência” em que se encontrava o governo de Lisboa, um juro de 7% ou mesmo um pouco mais, com as garantias em mão. A 7 de Março de 1797, em carta dirigida à firma William & John James Stephens & Cº, de Lisboa, Sir Francis dizia que procurava obter outros pareceres, uma vez que “a situação deste país no que se refere aos seus poderes pecuniários e recursos é tão frágil e tão diferente do que já foi”. O entusiasmo perante as condições oferecidas pela Coroa portuguesa, levava-o a considerar que, muito embora as dificuldades em Inglaterra fossem grandes devidas à escassez de capital, entendia que elas não eram obstáculos intransponíveis. Sem dúvida que a tentação era grande. Mas era necessário obter previamente o aval político do governo britânico. No dia 14 de Março, William Pitt recebeu pessoalmente o banqueiro a quem comunicou as suas reservas quanto à possibilidade de ser concedido o empréstimo a Portugal. Justificava-se dizendo recear “que as condições actuais e a situação difícil que Portugal atravessava, aconselhavam o impedimento do empréstimo” 38. O Primeiro Ministro enjeitou a hipótese de venda, ou mesmo a cedência temporária das possessões ultramarinas portuguesas, deixando claro que, no caso dos banqueiros avançarem com a transacção, esta seria exclusivamente da responsabilidade privada dos emprestadores. Não era pois, o momento ideal para o governo servir de garante a operações de financiamento a governos estrangeiros, ainda que, e estritamente em termos políticos, Pitt encarasse com bons olhos o sucesso da operação de ajuda ao seu aliado continental. Ao tempo o governo inglês debatia-se com crescentes dificuldades financeiras, não obstante o recurso continuado ao aumento dos impostos sobre os mais variados 38 Baring Archive, NP, 1 A-19.7. Carta de Francis Baring para William & John Stephens, 14 de Março de 1797. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 39 40 Idem, ibidem. Publicada em D. Rodrigo de Souza Coutinho, Textos políticos económicos e financeiros, vol. II, p. 103-105. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 195 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias produtos (chá, tabaco, açúcar, bebidas alcoólicas, cavalos, entre outras). Apesar dessas medidas o défice orçamental continuaria a subir, atingindo em Novembro de 1797, 22 milhões de libras, situação que a breve prazo iria tornar insustentável a posição do primeiro-ministro britânico. Falhada a tentativa de obter a garantia do governo inglês, o interesse de Francis Baring na operação ficou seriamente comprometido. Em nova carta que enviou aos irmãos Stephans dava conta da recusa governamental em apoiar o empréstimo, e acrescia alguns outros argumentos de interesse para este estudo. Desde logo a constatação de que “não sendo para a Coroa portuguesa muito agradável entregar parte das suas possessões territoriais nas mãos de privados, o assunto ficava confinado aos diamantes e às rendas do tabaco...”. Entrava depois no que considerava a “parte mais desagradável deste assunto”, a saber, a preocupante situação em que Portugal, e mesmo outros países, se encontravam no que se referia a operações monetárias a que, e no caso concreto da Corte de Lisboa, se somava a sua frágil situação política. E rematava o seu raciocínio do seguinte modo: “It maybe necessary to observe to you, that it will be impossible to procure bills on Portugal, to remit for large sums, and we have no gold to send”39. Mediante o cenário de risco e sem apoio político, os irmãos Baring optaram por recusar, em data que desconhecemos, a proposta de Jacinto Fernandes Bandeira. Recorde-se que, quase em simultâneo com as diligências dos negociantes portugueses para obtenção do empréstimo na Grã-Bretanha, o governo português – depois de a Espanha, em Outubro de 1796, ter declarado guerra aos britânicos –, procurava outras fontes para aumentar os seus recursos financeiros, diante de um quadro que, tudo indicava, seria de guerra iminente. Assim, por alvará de 13 de Março, o empréstimo interno de 10 milhões de cruzados, decretado em 29 de Outubro do ano anterior, foi actualizado para 12 milhões. Muito embora do lado inglês a recusa já estivesse assumida, em Portugal, ainda em Abril de 1797, D. Rodrigo de Souza Coutinho, a pedido do Regente, dava o seu parecer acerca deste empréstimo40. No plano que elaborou prova, através de cálculos detalhados, que para realizar esta operação bancária, só o pagamento de juros a 5% num período de 25 anos Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 196 atingiria o valor de 1,33 milhões de libras, excedendo os 1,2 milhões do empréstimo pedido, além de que os ingleses obrigavam ao depósito, no Banco de Inglaterra, de diamantes que garantissem o total do empréstimo e dos juros. Razões bastantes para que Souza Coutinho – para mais quando se conhecia a generalizada descapitalização do tesouro público, geradora de uma natural desconfiança sobre a nossa solvência – fosse de parecer que o empréstimo não deveria sequer ser tentado. Nesta conjuntura o responsável pelo Erário Régio “aproveitou a ocasião para concluir a favor de uma reforma completa da administração da Fazenda Real, acompanhada da reforma da fiscalidade”41. Nos anos seguintes, o governo português iria procurar – através do aumento das rendas e recorrendo ao endividamento interno – fazer face às despesas extraordinárias para a defesa do Reino, operações essas cuja análise não cabe neste breve estudo42. 3. O primeiro empréstimo obrigacionista português (1802) Como “os tiros que o governo francês despedia sobre Londres reverberavam sempre para o Tejo”43, cinco anos depois, e sem que a almejada neutralidade pudesse ser alcançada, a Corte de Lisboa ver-se-ia obrigada, uma vez mais e pelas razões já aduzidas na primeira parte deste trabalho, a voltar ao mercado internacional e ao auxílio dos banqueiros ingleses. Se a primeira tentativa da França revolucionária em 1795, para colocar Portugal sob o domínio da Espanha, acabou por não se concretizar, a segunda, em 1801, resultou na invasão do Alentejo, com a anexação de Olivença, e na assinatura de outro Tratado nos termos ditados pelos vencedores. Era mais uma tentativa para, por um lado, forçar o derradeiro aliado continental dos ingleses a aderir à estratégia de Napoleão para quem o controlo sobre Portugal se tinha tornado essencial44 e, por outro, a prova de que a defesa da neutralidade que o país perseguia, mais não era do que um adiar do que viria a ocorrer em 1807. Para comprar a paz e retomar a soberania sobre o território, Portugal assina, primeiro o Tratado de Badajoz, no qual se previa o pagamento de uma indemnização 41 Nota de Andrée Diniz Silva in D. Rodrigo de Souza Coutinho, Textos políticos, económicos e financeiros 1783-1811, Tomo II, p. 103. 42 Sobre esta matéria vd.: Luís Espinha da Silveira, “Aspectos da evolução das finanças públicas portuguesas nas primeiras décadas do século XIX (1800-27)”; Nuno Valério et allia, As finanças públicas no Parlamento português. Estudos preliminares. 43 José Acúrsio das Neves, História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, vol. I, p. 180. 44 Sandro Sideri, Comércio e Poder. Colonialismo informal nas relações anglo-portuguesas, p. 173. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 45 Marten G. Buist, At spes non fracta. Hope and Co., 1770-1815. Merchant bankers and diplomats at work, p. 387. Este autor refere uma primeira aproximação, feita em Março de 1800, por Quintela a Henry Hope & Cº. para a concessão de um empréstimo que foi recusado. Esta firma, no entanto, manifestava-se disposta a avançar, em conjunto com a casa Sir Francis Baring & Cº., uma quantia de 100.000 libras esterlinas, por um prazo de 2 anos, a um juro de 6%, e 5% de comissão, garantido por 40.000 quilates de diamantes avaliados em 147.000 libras esterlinas. 46 Idem, ibidem. 47 De entre as condições impostas pelos banqueiros estrangeiros, ressalta a obrigação do Príncipe Regente decretar a prorrogação do contrato geral de tabaco por mais 9 anos sem ir à praça, “com o aumento de cem mil cruzados por ano, “assegurando a Quintela, Bandeira, Cruz Sobral e demais sócios o monopólio da venda deste produto. (Decreto de 8 de Fevereiro de 1802). O produto do contrato ficava consignado ao cumprimento das obrigações para com os emprestadores, “na parte que for necessária”. Ver tb. Raul Esteves dos Santos, Os tabacos, p. 49 e Fernando Dores Costa, Crise financeira, dívida pública e capitalistas 1796-1807, p. 78. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 197 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias de guerra no valor de 15 milhões de libras tornesas, importância esta que a voracidade de Napoleão subira, pelo Tratado de Madrid, de Setembro de 1801, num primeiro momento para 25 milhões, que depois reduziu para 20 milhões, a realizar em dinheiro, pedras preciosas e outros valores comerciais. No final do mês seguinte (Outubro de 1801), John Standley aborda a Casa Baring quanto à possibilidade de um empréstimo de 300.000 libras esterlinas a conceder à Coroa portuguesa, pedido que obteve parecer favorável45. Segundo Buist, o governo francês exigia a Portugal o pagamento de 4 milhões de cruzados em dinheiro, diamantes no valor de 3 milhões, e outros 3 milhões em algodão e açúcar, sendo que 1/3 destes valores deveriam ser satisfeitos até meados do mês seguinte, isto é Novembro. Contudo, pouco depois, os franceses mudaram de opinião e exigiram que a exacção fosse satisfeita na sua totalidade em numerário. Por essa razão Standley propôs ao seu correspondente o aumento para 1,2 milhões de libras esterlinas. Nas abordagens iniciais junto do banqueiro Francis Baring este recomendou ao governo português a participação de Quintela, uma vez que lhes parecia “insensato ignorar uma tão respeitável e poderosa casa”46. Esta circunstância veio determinar o afastamento, nesta operação, de John Standley, que assim viu gorada a possibilidade de auferir as elevadas comissões que se propunha. Em Novembro, a Coroa portuguesa, através dos já mencionados negociantes Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira47, formalizou junto da casa bancária Sir Francis Baring & Cº., um pedido de empréstimo, por dez anos, no total de 13 milhões de florins (1,2 milhões de libras esterlinas), mediante o lançamento de Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 198 uma emissão obrigacionista nos mercados internacionais. Portugal garantia a operação por via de um depósito imediato de diamantes no valor aproximado de 300.000 libras esterlinas, e para o pagamento dos juros e comissões, a hipoteca das rendas dos tabacos e das propriedades da Coroa. Em princípios de Dezembro de 1801, George Baring, filho do sócio principal da casa bancária londrina, acompanhado do banqueiro Pierre Labouchère, da firma Hope & Cº. empreendem um tormentosa viagem até Lisboa, onde chegam a 28 de Janeiro do ano seguinte para negociarem, in loco, as condições da operação. Refeitos da lenta travessia dos Pirinéus48, efectuada no dorso de mulas depois da fracassada tentativa de alugarem um barco em Bayonne, logo que aqui chegou, Labouchère desdobrou-se em diligências, numa intensa actividade pluridisciplinar (advogado, contabilista, banqueiro, tradutor)49, a fim de, segundo dizia, no mais breve espaço de tempo possível Portugal poder dispor da quantia que lhe era necessária. Segundo Buist, uma das primeiras decisões tomadas foi a de transferir a operação para a casa Hope & Cº., de Amsterdão por sugestão dos banqueiros londrinos, o que seria de interesse da Coroa portuguesa também “porque os empréstimos estrangeiros eram difíceis de colocar em Inglaterra e muito dispendiosos”50. Mas, de acordo com o preâmbulo do contrato terá sido o banqueiro inglês quem, face ao elevado montante da operação, propôs que a Casa Hope & Co., então a operar em Londres, participasse na operação a fim de se “juntar a eles para a recolha da dita soma de um milhão e duzentas mil libras esterlinas (...)”51. Assim, com a anuência do governo português, as casas Baring e Hope concertavam esforços e dividiam responsabilidades. A 8 de Fevereiro de 1802, um dia após o genro de Sir Francis ser recebido por D. Rodrigo de Souza Coutinho, o Príncipe Regente emitia a carta de confirmação e aprovação das condições que regulavam esta operação financeira52, consignando no 48 O percurso de Bayonne a Madrid demorou 9 dias. Cf. Buist, p. 389. The bicentenary of the 1802 Kingdom of Portugal bond issue, p. 4. 50 Buist, p. 390. Mas não só por estas razões. Tinha sido previamente acordado que o grau de participação de cada casa seria de 5 para 2, assumindo a Hope & Cº., o maior quinhão. 51 IAN/TT, Livro de Registo, Contrato para o empréstimo de treze milhões de florins, 19 de Fevereiro de 1802., fólios 1 a 5. 52 Os textos da confirmação e aprovação das condições do empréstimo (ambos com data de 8 de Fevereiro) estão transcritos em: D. Rodrigo de Souza Coutinho. Textos políticos, económicos e financeiros, 1783-1811, Tomo II, p. 256 e seguintes; Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real (1761-1808). Vol. 420, fls. 172-181. 49 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 * Semanas depois os intermediários portugueses informavam a Casa Hope & Cº. que a bordo do navio “Príncipe de Gales” seguia a primeira de uma série de 6 caixas, contendo 20 000 quilates de diamantes brutos do Brasil, com destino à Casa Bancária 53 Na sequência desta condição de banqueiros da Coroa portuguesa, em 22 de Junho de 1802, a operação de compra pela Real Fábrica da Cordoaria de 14.000 quintais de cânhamo, foram dadas instruções ao cônsul português em Riga, Venceslau Teodoro Gama, para que o pagamento fosse feito através de saques sobre a Casa Baring, a liquidar pela Casa Dias Santos. 54 Na realidade apenas de 11.050.000 florins, depois de deduzidas as comissões e outras taxas. 55 IAN/TT, Livro de Registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Cypriano Ribeiro Freire, 16 de Fevereiro de 1802, fl. 7. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 199 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias parágrafo 8º, que as casas Sir Francis Baring & Cª. e Hope & Cº. fossem consideradas “como banqueiros e agentes especiais da minha real Coroa, tanto na Holanda, como na Inglaterra”53. Na semana seguinte D. Rodrigo de Souza Coutinho expediu uma carta para os representantes diplomáticos de Portugal em Madrid e em Paris dando-lhes conta das condições do empréstimo de 13 milhões de florins54 acabado de negociar. Em aberto ficava o take over price da operação, acordado provisoriamente em 92%, devido ao estado precário dos mercados de crédito na Europa. Os negociadores bancários anteviam mesmo as dificuldades de circulação de uma nova emissão obrigacionista à taxa de 5%, o que levou a Corte, nas negociações, a aceitar o prejuízo de 8%, que posteriormente viria a fixar-se nos 10%. No dia 2 de Março, Labouchère e Baring partiram de Lisboa, com destino a Gibraltar, de onde rumaram a Paris, que alcançaram a 17 de Abril. Na capital francesa esperava-se que Pierre Labouchère pudesse fazer alguns ajustes com vantagem para a Fazenda Real. Nas missivas diplomáticas eram dadas instruções para que junto do representante da Casa Baring se mostrasse “o sistema que se deve seguir de exagerar aos franceses a dificuldade que há em se achar os sobreditos fundos, a fim de que ele tente se pode descontá-los com vantagem para a Coroa de Portugal”55. Em concreto, a Cypriano Ribeiro Freire pedia-se que “se puder sem comprometimento fazer vacilar o governo francês sobre a possibilidade da exacção dos pagamentos na época prometida”. Foi esta a alternativa aceite pelos franceses, sendo o primeiro pagamento fixado para antes de 1 de Junho de 1802. Situação que se ajustava igualmente às pretensões dos banqueiros, então a braços com a participação num empréstimo ao governo britânico que lhes imobilizava boa parte dos fundos disponíveis. Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 200 Sir Francis Baring & Cº. “a quem enviaremos nos barcos seguintes todos os outros diamantes que se encontram no nosso tesouro real, e os que esperamos este ano do Rio de Janeiro”56. Depositadas no Banco de Inglaterra as pedras preciosas seriam entregues à consignação da firma Insinger & Cº., de Amsterdão, que se responsabilizava pela sua venda. Os pormenores relacionados com a transacção dos diamantes e os diferentes interesses envolvidos nesse negócio vêm descritos num capítulo da obra de Marten Buist, intitulado “The portuguese diamond loan”, assim como os diversos incidentes que entretanto ocorreram, radicados na situação política em que a Holanda se via envolvida, e que teve como consequência a recusa dos governantes batavos em autorizar que a emissão obrigacionista tivesse lugar em Amsterdão. Recorde-se, a propósito, que neste período vivia-se a denominada “paz experimental”, entre a França e a Grã-Bretanha, decorrente do Tratado de Amiens, circunstância que a casa Hope & Cº. aproveitou regressar a Amsterdão. Para esse ressurgimento no mercado financeiro do seu país, Henri Hope contava precisamente com o lançamento dos títulos portugueses, esperando com isso assegurar para a então República da Batávia, o comércio de diamantes, em detrimento da Grã-Bretanha. * Assegurada a operação e reajustados os prazos de liquidação, em 6 de Maio, o Príncipe Regente, “havendo consignado para o pagamento dos fundos e interesses do empréstimo (...) não só o produto dos diamantes que existiam no meu Real Erário e dos que a ele vierem enquanto o mesmo empréstimo não se extinguir, mas também o que for preciso aplicar das mesadas e quartéis do preço do actual Contrato Geral do Tabaco, e da prorrogação que por esta causa mandei fazer...” autoriza o Ministro das Finanças que os descontos que eventualmente tivessem de ser feitos nas mesadas, fossem não só creditados na conta do tesouro público, “mas também que sejam infalíveis e inalteráveis sem que lhe obstem casos ou ocorrências extraordinárias porque a todos deve prevalecer o contrato e convenção assim celebrados”57. 56 Baring Archive, NP, 1 A-19.8. Carta de Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira, 25 de Fevereiro de 1802. 57 Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real (1761-1808). Vol. 420, fl. 172. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 * Na sequência dos compromissos estabelecidos, a 14 de Maio de 1802, o tesoureiro do governo francês, o cidadão Estève, recebeu os primeiros 3 milhões de libras tornesas58 entregues pelas casas Perregaux & Cie. e Baguenault & Cie., através de saques sobre a Hope & Cº. Os pagamentos seguintes, com início em 30 de Junho de 1802, seguir-se-iam ao ritmo de 1 milhão por mês, até 31 de Agosto de 1803. A estes 18 milhões de libras tornesas juntavam-se os 2 milhões em dinheiro metálico que, em Março ou Abril, os negociadores portugueses deveriam entregar em Lisboa, a Leclerc, cunhado de Napoleão, para financiar a expedição que este, em 1802, enviou para conter a rebelião que se declarara na ilha de Santo Domingo, no ano anterior. Contudo, em Junho, e porque os 2 milhões de libras “se achavam aqui demorados”, a França exigiu a sua entrega em Paris, operação que foi realizada pelos negociantes Quintela e Bandeira, não sem que o governo português diligenciasse através de D. José Maria de Souza, nosso embaixador em Paris, para que este entrasse em negociações “para ver a indemnização que o governo francês quer conceder pelas despesas que houve com a remessa destes fundos para Lisboa, e de Lisboa para Paris, pois é sempre essencial não fazer maiores sacrifícios do que aqueles que são necessários”59. Neste período as pressões do governo francês eram tais que em quase todo o expediente trocado entre Souza Coutinho e os seus correspondentes, se fazia eco das “insistentes solicitações deste governo que devora tudo, e cuja inquietante ambição não tem nem repouso nem limite”60. O receio do poderio francês estava sempre presente e era patente nas missivas do correio diplomático. 58 Cerca de 1 440 000 florins. (Uma libra tornesa em 1803 era equivalente a 0,48 florins, cf. Buist, p. 394) IAN/TT, Livro de registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a D. José Maria de Souza, 15 de Junho de 1802. 60 Idem, ibidem. 59 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 201 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias Quanto aos diamantes, nas cláusulas do contrato provisório celebrado com Labouchère ficara estabelecido que os mesmos constituíam a garantia principal do empréstimo. Tanto os que se encontravam à data no Tesouro Régio, avaliados em 250.000 libras esterlinas, como todos aqueles que, mal chegados a Lisboa, seriam enviados para depósito no Banco de Inglaterra, e que seriam vendidos à medida das necessidades da Hope & Cº. Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 202 *** Em 18 de Janeiro de 1803 a casa holandesa dirigia a D. Rodrigo de Souza Coutinho uma carta, fazendo o ponto da situação do empréstimo português, de que esta Casa Bancária passava a ser então única responsável, assim como o acompanhamento das contas para que o Real Erário as conferisse. Segundo a documentação disponível, no mês anterior os banqueiros ingleses deixaram de assumir a gestão principal do empréstimo, consignando o negócio definitivo à casa de Amsterdão. Depois de fazer prova na boa vontade da Hope & Cº., o sócio principal, Henry Hope, dizia que “apesar das dificuldades dos tempos e das circunstâncias, o nosso zelo e a nossa dedicação não foram de modo algum retardados, e que se preferimos o sistema da prudência, não dando a Sua Alteza Real esperanças que os acontecimentos pudessem desmentir, estamos no entanto vivamente compenetrados da importância de que esta operação possa efectuar-se nos termos acordados no seu começo”61. Dava a conhecer que a perseverança do governo holandês ao não autorizar a assinatura das obrigações por um notário local, coagia a uma “pequena alteração, não na obrigação original, que está concebida de maneira a servir em todos os casos”, mas na solicitude de Jacinto Fernandes Bandeira e de Joaquim Pedro Quintela, que deviam, em Lisboa, procurar a assinatura de um notário nas reimpressas “obrigações parciais” que a Casa Sir Francis Baring & Cº. mandara fazer, nas quais a palavra “Amsterdão” fora substituída por “Londres”. Os títulos seriam, a pouco e pouco, enviados para Lisboa por via marítima, após o que retornariam a Amsterdão para a assinatura dos banqueiros que asseguravam a operação. Este incidente esteve na origem de algum atraso no lançamento das obrigações no mercado holandês, suportando os banqueiros os “dissabores” decorrentes do imprevisto acontecimento. Este episódio motivara já uma carta, em Agosto do ano anterior, de Souza Coutinho a João Paula Bezerra, nosso representante em Haia, para que procurasse remover “todas estas dificuldades e conseguir do governo batavo que consiga a favor de uma potência amiga aquelas mesmas facilidades que tem acordado a respeito de outras potências, e que são muito conformes aos seus interesses económicos, dando um novo movimento ao comércio que existe entre os dois países”62. Mas, ao que 61 Baring Archive, NP, 1 A-19.8. Carta da firma Hope & Co. a D. Rodrigo de Souza Coutinho, 18 de Janeiro de 1803. 62 IAN/TT, Livro de Registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a João Paulo Bezerra, 20 de Agosto de 1802, fl. 21 v. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 63 Os atrasos na chegada dos diamantes a Londres, que eram objecto de constantes reparos de Sir Francis Baring, obrigaram o Presidente do Real Erário a esclarecer que “o distrito dos diamantes no Brasil estava bastante afastado das costas, para que as ordens da Corte aí chegassem tão prontamente quanto os desejos de Sua Alteza Real” (Carta de 20 de Novembro de 1802). 64 Baring Archive, NP, 1 A-19.8. Carta de Henry Hope para John Standley, 18 de Janeiro de 1803. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 203 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias consta, as diligências não tiveram sucesso, em parte devido à frágil situação política holandesa, então “colonizada” pela França. Ainda pela missiva de 18 de Janeiro de 1803, já mencionada, ficamos ainda a saber da pouca receptividade dos investidores em subscrever as obrigações. Contudo, a Hope & Cº. estava esperançada nos esforços que envidaria para que fosse possível a subscrição da totalidade das 13 000 obrigações. E fazia esta profissão de fé, na sequência da carta que o responsável pela Fazenda Pública portuguesa enviara a Francis Baring, justificando o atraso na entrega dos diamantes do Brasil, “que esperamos com impaciência pela feliz chegada”. Na longa exposição que a Casa Hope & Cº. juntava à contabilidade da operação, ressalta as cautelas com que estes banqueiros, não obstante os sucessivos protestos protocolares pela consideração que tinham para com Souza Coutinho e para com o Príncipe Regente, não deixaram de fazer notar que os progressos da emissão, estavam dependentes da chegada ou não dos diamantes necessários para cobrir o investimento63. Mas não só. A qualidade das pedras preciosas fazia também oscilar a conta corrente, resguardando-se sempre os banqueiros com o argumento de que “até que possamos reconhecer o valor das parcelas esperadas, não podemos dar às nossas vendas toda a actividade que desejamos”, razão pela qual não podiam adiantar valores a crédito da Coroa portuguesa. A conta corrente, no final de Dezembro de 1802, acusava um saldo positivo de mais de 3 milhões de florins a favor de Portugal, quando ainda faltava saldar junto do governo francês prestações no valor de 8 milhões de libras tornesas (cerca de 3,8 milhões de florins). O défice resultante seria liquidado através de saques mensais de 100 000 libras sobre Quintela ou Bandeira. Na mesma data, numa outra carta remetida para Lisboa, John Williams Hope, confessava a John Standley, e depois de dar nota da conta-corrente do empréstimo, que se tinha convertido à ideia de que Portugal “tem mais do que amplos meios para providenciar todas as suas necessidades, desde que possa, por muito tempo, ser governado com a mesma sabedoria e moderação”64. A elogiosa referência tinha como destinatário D. Rodrigo de Souza Coutinho, responsável pelas finanças públicas portuguesas que, com determinação e empenho, Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 204 vinha desde 1801 a implementar o programa de saneamento das contas do Estado. Segundo Cardoso, “a coerência e determinação com que [D. Rodrigo] defendia uma orientação anti-francesa na política externa, em Junho e Agosto de 1803, viriam a ser a última oportunidade de demonstrar que queria estar no governo para exercer a sua política(...)”65. O que era verdade. Datado de 20 de Junho de 1803, Souza Coutinho, a pedido do Regente, lavra um parecer sobre a compra da neutralidade à França66, onde manifesta a opinião de que “as proposições da França não podem de modo algum ser aceites em primeiro lugar porque nenhuma potência poderia actualmente dar 36 milhões de libras67 sem recorrer a empréstimos (...). Para o responsável pelas finanças públicas, melhor seria utilizar tal quantia na defesa de Portugal, sustentando a sua independência “do que sujeitar-se a um sistema de escravidão perpétuo” tornando o Regente feudatário do governo francês. Incita D. João a defender-se, pondo-se “à testa da sua Nação, ou para morrer independente com ela na Europa, ou para ir em último resultado criar um grande império no Brasil” e de onde pudesse vir a retomar os seus domínios no continente europeu. Justifica-se aqui uma nota sobre a subscrição das obrigações portuguesas. Segundo Buist (p. 403), no final de 1802, das 5.000 obrigações vendidas, 3.418 foram adquiridas pela Casa Hope; esta revendeu 1.793 títulos a diversos membros da sua família, enquanto 942 foram contabilizadas nas reservas da Casa Bancária, Outras 972 foram adquiridas por investidores particulares, familiares de Labouchère, Quintela, Bandeira e o embaixador José Maria de Souza. Em 1803 a Casa hope comprou mais 3.000 e um grupo de empresários liderados por Willem Borsky comprou 1.000. Estes grupo, no final de 1804, tinha em carteira 2.678 obrigações do empréstimo português. Em Agosto de 1803, a Hope & Cº. liquidaria a última prestação à França. Pouco mais de um ano depois, Sir Francis Baring, a propósito dos empréstimos concedidos a Portugal e aos Estados Unidos, escrevia a Henry Hope: “(...) The Portuguese government was weak, its Ministers ignorant, thinking to receive the law at your 65 José Luís Cardoso, O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII, 1780-1708, p. 187. Publicado em Ângelo Pereira, D. João VI. Príncipe e Rei, p. 123-124. 67 Este valor poderá corresponder à soma das indemnizações de 20 milhões de libras tornesas (Tratado de Madrid de 29 de Setembro de 1801), e de 16 milhões de francos estipulados na Convenção de subsídios assinada em 19 de Março de 1804, mas que provavelmente em Junho de 1803 era já do conhecimento de Souza Coutinho. 66 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 68 69 70 71 72 Baring Archive, NP, 1A 4.59. Carta de Sir Francis Baring para Henri Hope, remetida de Bath, 3 de Outubro de 1804. Monstro fabuloso com cabeça de mulher e corpo de abutre. José Acúrsio das Neves, História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, p. 170 e 186. Ângelo Pereira, D. João VI. Príncipe e Rei, p. 114. Carta do General Marquês de Alorna a D. João, 19 de Janeiro de 1804 (in Ângelo Pereira, p. 141). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 205 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias hands. Not so those with whom Alexander negotiated”68. E acrescentava: “Mas não aqueles com quem Alexander [Baring] negociou”, isto é, com os americanos. Opinião possivelmente não partilhada pelo destinatário, cujo irmão, e como anteriormente ficou referido (nota 51), louvara os governantes de Lisboa. Ainda antes do final desse ano, e como já referido, a França voltaria a exigir o pagamento de outra indemnização, de novo com a promessa de garantir a neutralidade a Portugal. Para Acúrsio das Neves, Napoleão “vendia Tratados para ter dinheiro, e faltava a eles para obter novas vendas”, pois só assim era possível “satisfazer a vontade destas harpias69 que queriam devorar Portugal”70. Com efeito, mesmo depois da partida da Corte para o Brasil, na véspera da primeira invasão francesa, o nosso país continuaria, ao longo dos anos, e embora de forma irregular e com muitos incidentes de permeio, a solver os compromissos internacionais que assumira para a compra de uma neutralidade que os invasores, em circunstância alguma estiveram interessados em respeitar, donde o reconhecimento de que, “(...) nem as habilidades diplomáticas, nem o ouro do Real Erário, conseguiram refrear as ambições imperialistas de Bonaparte”71. A invasão do território nacional iniciara-se em 1801, com a conivência de uma Espanha que cometera “a aleivosia de nos pedir socorro contra os franceses; de nos fazer a guerra porque o demos; de nos dar aparências de que não principiará as hostilidades; e de cair de repente sobre as nossas praças”72. A compra da paz a que Portugal se sujeitou, esteve na origem da exacção de 20 milhões de libras tornesas que a Coroa teve de procurar além fronteiras. Não podendo contar com a mobilização forçada de recursos militares para as suas campanhas, o que obrigou às nações europeias que conquistou, a França exigia – a um país onde a abundância de diamantes vindos do Brasil era uma excelente alternativa –, um pesado tributo para garantir a paz. E, em 1810, quando Portugal ainda não saldara as suas dívidas junto da banca europeia, já as divisões francesas invadiam o território do último aliado britânico, lançando a mais total devastação sobre o país. Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias 206 Conclusão Este estudo apresenta os resultados da investigação a decorrer sobre o primeiro empréstimo obrigacionista português, com base nos arquivos da Casa Baring e na documentação conhecida existente nos Arquivos Nacionais. Não obstante a inglória busca de uma neutralidade que poupasse o País à devastação que assolou a Europa, Portugal ver-se-ia arrastado para o torvelinho da conflitualidade europeia, vítima dos ardis da política da Corte castelhana (que acabaram por lhe ser fatais) e das conveniências estratégicas de um aliado secular com uma visão unívoca das suas responsabilidades enquanto parte contraente da mais antiga aliança europeia. Dessa situação de grande fragilidade do reino de Portugal aproveitou a França para exigir ao aliado da sua inimiga, contributos financeiros incomportáveis para a fazenda pública nacional, que os responsáveis pelas finanças portuguesas procuraram prontamente cumprir de acordo com as instruções do Príncipe Regente. A situação financeira internacional existente à data dos pedidos feitos pelo governo português, entre 1797 e 1802, não se apresentava favorável aos desígnios nacionais. Com efeito, as alterações que a Revolução francesa provocou em toda a estrutura política, social e económica da Europa – de que os pedidos portugueses foram uma consequência – não eram de molde a favorecer as pretensões da Coroa portuguesa, no esforço para encontrar os meios monetários que satisfizessem a voracidade dos novos senhores da Europa. Os argumentos invocados pelos banqueiros a quem Portugal se dirigiu giravam à volta das dificuldades dos mercados internacionais para a realização de operações que, no contexto da guerras napoleónicas, assumiam elevado risco, que manifestamente não estavam dispostos a assumir sem sólidas garantias. Com base em considerações de natureza ou política ou financeira, ou mesmo ambas, consoante os momentos, os banqueiros e governos da Grã-Bretanha e da Holanda (muitas vezes cruzando argumentos) justificaram as suas dúplices atitudes, em relação às operações que lhes foram submetidas por Portugal. E se, em 1797, os argumentos político avançados pelos ingleses impediram os banqueiros Baring de mediarem uma apetecida operação financeira, para mais garantida (e se a hipoteca da produção diamantífera não fosse suficiente), pela oferta dos territórios da África oriental sob domínio português, em 1802, os cobiçados diamantes do Brasil, a par das rendas do contrato do tabaco, sossegaram o espírito dos credores. Mas também porque as condições, sobretudo políticas, tinham sofrido mudança. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 FONTES MANUSCRITAS Arquivo Histórico do Tribunal de Contas Fundo. Geral do Erário Régio Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real, 1761-1808. Livro 420 (1801-1803) Cartório Avulso Caixa 40 Baring Archive at ING Bank (London) Northbrook Business Papers 1A – 4.4, 4.6, 4.25, 4.52, 4.59, 13.3, 19.7, 19.8. 1D – 11.6 73 Carl Von Clausewitz, Princípios da guerra, p. 20. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 207 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias Do primeiro momento sobressai a recusa da Casa Insinger & Cº., de Amsterdão, em emprestar dinheiro aos portugueses, com base no “anti-patriotismo” de que poderia ser acusada pelo seu governo. De igual modo os ingleses, segunda escolha dos negociantes Bandeira e Quintela, recusariam o seu envolvimento alegando a inoportunidade do momento, ao verem rejeitada a garantia política que desejavam do governo de William Pitt. Mas este, a debater-se com sérias dificuldades na condução da sua política interna, não quis expor-se a maior desgaste. Em 1802, e tendo como pano de fundo a confrontação franco-britânica, prevaleceu o “business as usual”, que proporcionou à França receber de Portugal as prestações mensais de um milhão de libras tornesas, inicialmente através dos banqueiros ingleses. Não obstante a conjuntura depressiva que Portugal suportou e as humilhações a que foi sujeito, a orientação estratégica de D. João permitiu evitar que o país se sujeitasse à vontade do inimigo, e pudesse continuar a lutar, na esteira dos ensinamentos de Von Clausewitz, um dos quais estipula que “teremos o dever de intervir quando as hipóteses de sucesso são diminutas, desde que a única alternativa seja a inacção e a capitulação”73.NE 208 Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo Ministério do Reino Maço 616, Caixa 178, 27 de Setembro de 1762 Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias Ministério da Fazenda Livro de registo pertencente ao empréstimo de Baring & Cª. e Hope & Cª. Livro 3974, 16 de Fevereiro de 1802 a 11 de Junho de 1807 FONTES IMPRESSAS Colecção da legislação portugueza desde a última compilação das ordenações, redegida pelo Desembargador António Delgado da Silva. Legislação de 1791 a 1801. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828. 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N.º 14 Abril de 2009 pp. 177-210 João Sabido Costa* A política diplomática portuguesa anterior à transferência 211 ■ Abstract: At the beginning of the so-called Napoleonic Wars, Portugal kept an extremely advantageous trade position regarding France and England. Therefore, although entering the Roussillon War, in a first moment, in order not to be excluded from an alliance between Spain and England, Portugal tried its best to be neutral vis-â-vis the different belligerent parties. That option was nevertheless antagonised by France, who tried to push Portugal into its side. Highly dependent of sea traffic to keep its economic growth, Portugal had only the alternative as to join England in the process of war. England was then – as always – the main world sea Power, whose consent was essential to sustain any regular trade by sea. While secretly negotiating with England the necessary conditions to keep its sovereignty, territorial integrity and the safety of its huge overseas territories in Africa, America and Asia, Portugal maintained simultaneously a constant dialogue with France with a view to postpone a possible invasion of its territory in Europe until the negotiations with England were ripe. Imagining a defenceless and terrified Portugal, fearful of its martial power, Napoleon never thought that with the resourceful solution of moving the Court to Brazil, the Prince Regent D. João would put the Portuguese sovereignty out of his reach. In fact, unable to control the Portuguese lawful rulers, any French presence in Portugal was to be limited to a military one. Dealing with two of the world main powers of the time, the Prince Regent D. João played a skilful but extremely dangerous diplomatic game that nevertheless lead to the keeping of the Portuguese royal house as well as of all of the Portuguese territories. COMO SE SABE, há duzentos anos atrás, no início de 1808, a Corte Portuguesa chega ao Brasil, para aí se instalar durante algumas décadas. Foi uma acção pioneira, para a época, o fato de uma Corte Europeia, o que na altura significava o centro nervoso de todo * Diplomata, Cônsul-Geral em Salvador. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil da Corte para o Brasil A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 212 um país, se transferir para uma das suas colónias, isto é, para um dos territórios ultramarinos que nessa altura várias potências da Europa detinham e administravam, por descoberta ou conquista. Afinal, que tipo de circunstâncias levava, assim, a essa deslocação, a que muitos mais tarde (efectivamente mais tarde) chamaram fuga? O circunstancialismo, indubitavelmente, foi o das Guerras Napoleónicas, que então grassavam pela Europa. E a deslocação portuguesa para o Brasil, de certo modo, alargando o cenário – bélico e diplomático – europeu, para outro continente, provava que a Europa já não se podia considerar um espaço geoestratégico fechado, mas que outras regiões do mundo influenciavam – inclusive por motivos económicos – o que nela se forjava. Na verdade, o julgamento que dessa decisão de “transmigração” pela Corte Portuguesa, no final de 1807, foi mais tarde analisada e julgada à lupa das necessidades de justificação de outro sistema social e político, que transformou o cultivo da ciência histórica num quase panfleto onde tudo cabia: caricatura, análises comportamentais, intuições que até poderiam ser geniais senão desprovidas de suporte documental, suficiente espírito crítico e consistência com o quadro geral do período focado. Essa foi uma análise histórica que causou uma percepção que “ficou”, em Portugal e não só, nomeadamente devido à ausência de uma historiografia posterior que a esse período se dedicasse com espírito verdadeiramente científico e analítico. Por outro lado, mesmo nos dias de hoje, a ausência de uma historiografia verdadeiramente “diplomática” leva a que a intenção da análise dos “passos” da diplomacia do período antecedente, as negociações, o envio e retirada de representantes, fossem entendidas de um modo literal, sem se atender ao objectivo geral visado, que é essencial na percepção de qualquer processo diplomático e que dá um sentido a todas as peças dessa sequência, que não podem ser entendidas desgarradas. Do mesmo modo, é um fato que o conteúdo de qualquer declaração, proposta, ou mesmo ameaça num processo internacional não pode ser vista como diferenciada das reais possibilidades da sua concretização. Igualmente, o recurso à personalidade dos personagens históricos, incluindo os “defeitos” e “qualidades” que as posteriores gerações lhes atribuem, só com muito cuidado podem ser usadas para justificação dos fenómenos históricos e da sua sequência. Na realidade, diz-nos a experiência da observação, ou a leitura de estudos históricos, que a vontade humana, ou a falta dela, pode bem pouco na complexa conjuntura de fatos cruzados e concatenados que desliza, com inércia imparável, nos NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 1 Citado por Braga de Macedo, págs. 30 e 31. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 213 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil corredores do tempo. Mesmo que fosse só pela multiplicidade quase infinita das vontades humanas envolvidas – em níveis de decisão ou influência diferentes, é certo – ficava demonstrada a incapacidade de um só ser derrotar o fado inelutável dos destinos da História. Isso não significa claro, que defendamos a anulação da vontade e do querer humano na determinação da História. Queremos, é, dizer que qualquer vontade individual terá de ser, em qualquer estudo, relativizada, sendo certo que qualquer grande príncipe ou soberano da História soube aproveitar a massa quase esmagadora de factores políticos, sociais e económicos que se antepunham, em vez de tolamente se lhes procurar opor. Outro aspecto que tem prejudicado a nossa visão histórica de um período tão importante para Portugal – e Brasil – é que, na ausência de estudos nacionais suficientes, os factos da época são relidos pela óptica de historiadores de outras nacionalidades, vulgo europeias, que, naturalmente, tendem a enaltecer o ponto de vista do seu país, descurando – muitas vezes até por desconhecimento e menor compreensão da nossa Língua – a documentação eventualmente explicativa que segue guardada nos nossos arquivos: afinal, continua sendo uma quimera a possibilidade científica de uma História Universal verdadeiramente imparcial e objectiva. Como refere Braga de Macedo1: “(...) a história diplomática tem sido escrita na óptica das grandes potências, desprezando a pequena dimensão. (No entanto, sem) a pequena dimensão, a análise limita-se a organizações que, como é o caso dos impérios, sendo estatais, às vezes ultrapassam a nação”. A dimensão nacional da História, e a sua “diferencialidade” específica são, assim, essenciais para a compreensão pelo português ou outro, da História de Portugal. Valeria a pena referir, neste contexto, o importante papel que a historiografia e os autores brasileiros, a propósito das Comemorações de 1808, deram para a revisão histórica deste período, de um modo muito mais racional, permitindo explicar os importantes acontecimentos que, a partir daí, conduziram, inclusive, à independência do Brasil. De qualquer modo, se pretendermos ter uma perspectiva do que foi a política internacional seguida por Portugal nos anos antecedendo a partida da Corte para o Brasil, teremos de focar os seguintes aspectos. A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 214 As Guerras Napoleónicas e a Política de Napoleão As Guerras chamadas “napoleónicas” iniciaram-se, na realidade, ainda antes “de Napoleão”, no final do século XVIII, como consequência da Revolução Francesa. Esta veio pôr, de modo drástico, em causa o sistema político e social vigente em França, criando uma perspectiva de alteração de equilíbrio internacional na Europa, e dando origem a uma reacção tendencialmente articulada de diversas potências contra o Estado Francês. Foram várias, entre 1792 e 1806 as sucessivas coligações negociadas contra França, no início das quais Portugal participou, todas elas vindo, de certo modo, a ser desfeitas na sequência do conflito com as tropas francesas. É nessa série de fatos políticos e bélicos, já iniciada, que se vem a destacar a figura de Napoleão Bonaparte, depois arvorado à mais alta chefia da Nação. Nesse sentido, as “Guerras Napoleónicas”, as terrestres, combatidas em solo europeu, procuraram assegurar, para França, condições de defesa, garantias de estabilidade e um papel por ela considerado suficiente e adequado na “balança” da Europa. Decorridas em primeiro lugar nas fronteiras geográficas orientais de França, nos “Países Baixos Austríacos” e no Piemonte, foram-se desenvolvendo – inclusive por outras regiões sucessivamente mais a Leste (até pelo aproveitamento por Napoleão das vantagens estratégicas dos Alpes) –, à medida que tal se tornava necessário para França assegurar a instalação de soberanias amigas em regiões estrategicamente interessantes, ou para firmar juridicamente, através de Tratados, as condições de Paz e de favorecimento que este país pretendia obter das potências com as quais havia estado em guerra. Surge, assim, a República Italiana, em 1802, a Coroação de Napoleão como Rei de Itália, a Coroação de José Bonaparte como Rei de Nápoles, em 1806, a de Luís Bonaparte como rei da Holanda, no mesmo ano. São, por outro lado, sucessivamente firmadas a Paz de Basel e a Paz com Espanha, ambas em 1795, o cessar-fogo com o Piemonte, em 1796, o cessar-fogo de Leoben e a Paz de Campo Formio com a Áustria, ambos em 1797, a Paz de Lunéville, em 1801, a Paz de Amiens em 1802, a Paz de Pressburg em 1805 e a Paz de Tilsit em 1807. Fator importante da influência de Napoleão na política europeia foi a aceleração da dissolução do Sacro Império Romano Germânico, instrumento importante da política da Áustria na Europa, entidade que, na realidade, já estava bastante abalada pelo crescente relevo de um Estado como a Prússia. Napoleão contribui para criar, assim, um complexo de Estados germânicos, alguns dos quais se tornam seus importantes aliados, como a Baviera, vendo alguns, inclusive, elevado o seu estatuto no plano internacional. É o que acontece, por exemplo, para além da Baviera, com o Würtemberg, Mainz, Baden, Berg e Hesse-Darmstadt. Também NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 Situação inglesa Com a Inglaterra a situação era completamente diferente. Estrategicamente oposta a Napoleão desde a primeira hora, procura evitar intervenções de grande vulto no continente enquanto comprova ser completamente capaz de derrotar as forças navais francesas (e espanholas). Nessa sua política, e à medida que Napoleão dominava a Europa, os portos portugueses continuavam a prestar um apoio precioso às esquadras inglesas, intervindo a Marinha portuguesa, quando necessário, ao lado da inglesa. Posição portuguesa anterior ao Bloqueio Continental Após a decapitação de Luís XVI, no início de 1793, o desejo da França era que Portugal se mantivesse neutro no seu conflito com outros países europeus. No entanto, o “(...) Governo de Lisboa, preocupado com a aliança que fora entretanto celebrada entre a Grã-Bretanha e a Espanha, de que não fazia parte, resolveu participar na coligação contra a França (...)”3, celebrando dois acordos com aqueles dois países. Terá de se recordar que, aliado tradicional da Inglaterra, não interessava a Portugal qualquer aproximação deste país a Espanha, principalmente se esta se concretizasse de forma que o excluísse. Como já se viu, desse belicismo português resultou a sua entrada na Guerra do Russilhão, que terminou com uma paz separada entre França e Espanha. Procurando 2 3 Reifenscheid, pág. 281. Magalhães, pág. 121. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 215 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil o Chefe da Casa de Nassau se torna Gtão-Duque e o de Leyen, Príncipe2, alterando o equilíbrio do mapa político europeu. Já a Oeste, pelo menos até 1808, a política napoleônica foi mais simples. Tendo ganho com sucesso a Guerra do Russilhão, de 1794, contra a Espanha – esta, nomeadamente, ajudada por Portugal – a França firma, em Junho de 1795, uma paz com aquele país, pela qual ele se torna seu aliado e, se necessário, instrumento para controlar Portugal, o mais ocidental país da Europa – na perspectiva francesa, seria, assim, suficiente uma articulação com Espanha para determinar o destino de Portugal. Será de dizer, contudo, que logo esse último ponto de vista se desfaz, com os resultados fracos da “Guerra das Laranjas”, de 1801, invasão espanhola de território português da qual resulta – para Espanha – o ganho de fato da aquisição de Olivença, e, para o “mundo”, a evidência de dois exércitos que se “poupavam” (principalmente o português) e de um invasor que não mostrava grandes desejos – ou capacidades – de conquistas extensas num território com as características do de Portugal. A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 216 recuperar o terreno perdido, e uma vez que a guerra deixara de lhe interessar, Portugal tenta estabelecer uma paz com França, sendo, em 10 de Agosto de 1797, celebrado um Tratado, a que se seguiu “(...) outro relativo ao pagamento de dez milhões de francos à França, com data de 20 de Agosto”4. Portugal concederia também facilidades comerciais a França e interromperia a ajuda militar a Inglaterra. Seriam também revistas as fronteiras da Guiana francesa. Após peripécias várias, os tratados, depois de serem assinados por França, são-no, por fim, por Portugal, mas então já sem ser aceites pela Parte francesa. A partir daí, vai ser a França que não se contenta com a neutralidade portuguesa, pretendendo atrair Portugal “para o seu campo”5. Não conseguindo, orquestra com Espanha a já referida invasão de Portugal. Após esta “Guerra das Laranjas”, resultam, em 1801, tratados de paz com Espanha e França. “Por estes tratados Portugal comprometia-se a fechar os portos aos navios britânicos devendo a Espanha restituir as praças tomadas (salvo Olivença). Portugal teria de pagar à França uma indemnização de 15 milhões de libras tornesas, aceitar as fronteiras da Guiana (francesa) até à foz do rio Arawani e autorizar a importação de lanifícios franceses no regime de nação mais favorecida”6. O fim do apoio português a Inglaterra continuava a ser uma das condições impostas. Estas condições foram depois agravadas, por iniciativa francesa, em Setembro de 1801. No entanto, Portugal mantém, de facto, o apoio militar a Inglaterra, tanto através da colaboração da esquadra portuguesa, como da aceitação de acções inglesas organizadas a partir de Portugal. Como refere Light7: “Portugal (...) era forçado a recorrer a um jogo político bem orquestrado a fim de manter a França à distância e, ao mesmo tempo, conservar boas relações com o seu aliado tradicional, a Grã-Bretanha”. Tal significava, também, para o Governo português, ignorar as referidas disposições negociadas com França em 1801 relativas ao encerramento dos seus portos aos ingleses. “Em 19 de Março de 1804, as negociações com França culminaram com a “Convenção de Neutralidade e Subsídios entre o Príncipe Regente D. João e a República Francesa”, assinada pelo plenipotenciário português José Manuel Pinto de Sousa, ministro de Portugal em Estocolmo, e pelo plenipotenciário francês, general 4 Idem, 122. Idem, pág. 124. 6 Idem, 123. 7 Pág. 22. 5 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 A política económica francesa – o Bloqueio Continental Parte essencial deste processo bélico, e na sequência do estabelecimento por Inglaterra de um bloqueio naval às costas de França, foi o recurso (por Napoleão) à “guerra económica” a Inglaterra, através da decretação, em 21 de Novembro de 1806, do chamado Bloqueio Continental, “pelo qual se proibia o comércio com a Inglaterra, país considerado em estado de sítio e se declarava boa presa todo e qualquer barco que tivesse tocado em porto inglês. Estas decisões do bloqueio foram alargadas por um decreto de 17 de Dezembro de 1806, que ampliava a designação de boa presa aos barcos que houvessem pago imposto ao Tesouro britânico ou tivessem recebido a visita de um navio inglês”9. “O objectivo era fechar o continente europeu às produções, industriais e outras, remetidas de Inglaterra e suscitar assim a desorganização deste país, cuja prosperidade assentava no envio, para diferentes regiões, da sua produção, realizada em excelentes condições técnicas e distribuída por um aparelho comercial também de excepcional valor”10. Das decisões de Napoleão foi notificado o Governo Português, que não se terá importado muito por diversas razões. Na realidade, tanto ou mais importante que para Inglaterra, o era o comércio através dos portos portugueses para França. Efectivamente, já no Tratado de Paz de 29 de Setembro de 1801, “(se) estipulava (...) o encerramento dos portos portugueses à navegação inglesa, condição que, evidentemente, não teve (como se viu) qualquer efeito”11. Também a seguir à “ruptura da Paz de Amiens e das medidas inglesas sobre o bloqueio da costa francesa, a Corte de Lisboa publica o decreto de 3 de Junho de 8 Light, pág. 20. Macedo, pág. 38. 10 Idem, pág. 38. 11 Idem, pág. 41. 9 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 217 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil Jean Lannes. Estipulava-se o pagamento e o preço para manter a paz, equivalente a 40 mil libras por mês”8. Este tratado haveria, porém, de vir a ser ignorado por França, quando determinou impor (também a Portugal), a política conhecida como Bloqueio Continental. De salientar que as vantagens comerciais que nessa altura Portugal mantinha face a França e Inglaterra justificavam que, para obter a neutralidade, se afigurasse disposto a aceitar exigências francesas (aliás, aparentemente nunca concretizadas) que, noutro circunstancialismo financeiro, seriam francamente intoleráveis. A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 218 1803 (...)12”, aprovando medidas de fiscalização da neutralidade portuguesa, mas que “(...) estavam longe de ser cumpridas à risca. Salvavam as aparências, em face da situação difícil criada para a Inglaterra depois daquela paz13”. Na realidade, pelo facto de a sua Marinha controlar os mares, a Inglaterra tolerava o comércio francês, que se desenrolava paralelamente ao seu. Essa tolerância pararia, porém, pela própria intolerância francesa, caso se quisesse impor realmente o bloqueio continental. “O encerramento dos portos portugueses (...) era um projecto cuja realização prejudicava França em virtude dos grandes abastecimentos de produtos coloniais que daqui recebia14”. “Para levar a efeito o esforço que o Bloqueio impunha, os franceses foram forçados a cortar a sua mais segura via de abastecimento em produtos coloniais”15. Esse fato é claramente referido no Manifesto do Príncipe Regente, já no Rio de Janeiro, a 1 de Maio de 180816: “A França recebeu de Portugal desde 1804 a 1807, todos os géneros coloniais e matérias-primas para as suas manufacturas. A aliança da Inglaterra com Portugal foi útil à França, e na decadência que tiveram as artes e indústrias, em consequência de uma guerra perpétua por terra e de outra desastrosa por mar, em que ela só teve desbaratos, foi sem dúvida de grande vantagem para a França o não ter sido o comércio de Portugal interrompido; por certo foi ele igualmente útil a ambos os países”. Por outro lado, sem poder marítimo suficiente, a França (e com ela Espanha) nunca teria hipóteses de verdadeiramente controlar os portos portugueses. “Napoleão, na sua estratégia, ao ter que entregar às armas a solução da resistência portuguesa ao Bloqueio Continental, teve que anular uma fonte essencial para os seus abastecimentos em matérias-primas”17. Já para Inglaterra, o comércio português não se centrava tanto nos produtos coloniais, nomeadamente brasileiros. A “(...) distribuição do comércio inglês era mais harmónica do que o francês, pois apresentava uma participação mais equilibrada de produtos ultramarinos e metropolitanos e ainda de produtos reexportados (...). O vinho, o sal, o azeite e as lãs continentais equilibravam ou, por vezes, ultrapassavam 12 13 14 15 16 17 Idem, pág. 41. Idem, pág. 41. Idem, pág. 61. Idem, pág. 69. Citado por Macedo, pág. 50. Macedo, pág. 54. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 Alternativas colocadas a Portugal perante a imposição do Bloqueio Continental Como refere Borges de Macedo21, perante a nova situação criada com a (então já mais forte) obrigação imposta pela França a Portugal de aderir ao Bloqueio Continental, e embora a preferência portuguesa continuasse a ser pela neutralidade, a única opção seria a “guerra ao lado de Inglaterra, que dominava o mar”. Pois “(...) era do Atlântico que Portugal recebia a prosperidade, a riqueza e a segurança, expressas no amplo comércio colonial que se movimentava nos seus portos: por aí, tinha a garantia permanente de poder receber auxílio militar com que podia fazer face aos perigos da fronteira terrestre”22. 18 Idem, págs 54/55. Idem, pág. 55. 20 Idem, pág. 40. 21 Pág. 40. 22 Macedo, pág. 40. 19 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 219 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil o algodão, o açúcar, as madeiras, os couros ultramarinos”18. O “(...) comércio inglês mergulhava no interior (de Portugal) e interessava-se igualmente pela produção metropolitana. O fato não é de pequena importância, para se compreender a vitalidade da união de interesses anglo-portugueses na luta contra a hegemonia continental da França e a dificuldade desta potência encontrar, em Portugal, para além de indivíduos isolados, camadas sociais interessadas em relações políticas mais profundas entre os dois países”19. Para os portugueses do continente, o comércio com Inglaterra era muito mais interessante do que aquele com França, que beneficiava mais as cidades costeiras e os territórios coloniais. Tal ficou, aliás, comprovado, pela raiva provocada no povo português contra França aquando da partida de mercadores ingleses, em Outubro de 1807. Desse modo, pela consciência da ambiguidade dos interesses franceses, o Governo Português foi descurando o cumprimento das “instruções” emanadas de Napoleão, ao mesmo tempo que “(...) procurava tranquilizar o País, pondo em evidência que o Oceano Atlântico escapava ao domínio napoleónico20”. Claro que, em 1807, tudo mudou, com o agravamento das imposições francesas. Dá-se, assim, início ao “Verão quente” desse ano, que se prolongaria até Novembro, com a saída da Corte para o Brasil. A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 220 Tal não significava naturalmente, que não tivesse havido divisões dentro do Estado Português sobre o rumo a tomar. É, assim, normalmente, apontado o Ministro António de Araújo de Azevedo como o defensor de que o “second best”, a seguir à manutenção da neutralidade, seria a opção por França: isto é, a tentativa de um entendimento com França que a persuadisse “a não invadir Portugal”23- era a visão depois classificada como “francófona”. A esta perspectiva opor-se-ia outra geralmente classificada de “anglófona”, que defenderia o corte imediato com França e a entrada na guerra ao lado de Inglaterra. Nesse sentido, no Conselho de Estado de 19 de Agosto, D. Rodrigo de Sousa Coutinho defende que, em vez de manobras dilatórias, deveria partir para a guerra com França e Espanha, sendo a possibilidade da ida da Corte para o Brasil uma estratégia de recuo em caso de fracasso da força militar no continente. Venceu, contudo, o parecer de manter as duas frentes “abertas” – eventualmente com vista a “não fechar portas” antes da formalização de um entendimento com a Grã-Bretanha. Portugal procurou mostrar aos franceses a inutilidade dos seus esforços e a vantagem (principalmente comercial) que a própria França teria na manutenção do “status quo”. Por outro lado, como apontam muitos autores, prevendo-se a possibilidade da transmigração da Corte para o Brasil, urgia ocultar todos os preparativos (que tinham de ser volumosos), deixando sempre aberta a possibilidade de uma tergiversação face à França. De todas as formas, apesar de todo o apoio inglês, não se podia pôr de lado um possível desentendimento com aquele país – nesse caso, sendo útil a manutenção de uma política “francesa”. O não encerramento de relações com França permitia, assim, colocar uma certa pressão diplomática sobre as negociações que prosseguiam com Londres, através de um perigoso jogo de “bluff ” só completamente esclarecido, à última hora, à boca do Tejo, no momento da saída para o Brasil da Família Real. Nesse sentido, poder-se á classificar como “realista” a linha diplomática prevalecente, que mantinha os canais comunicação abertos com França – nomeadamente para obstar a uma invasão militar do solo português – até ter a certeza das condições concretas dos compromissos ingleses (firmadas no Tratado de 22 de Outubro de 1807). 23 Light, pág. 19. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 24 25 Macedo, pág. 15. Light, pág. 28. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 221 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil Por outro lado, a total imperícia da diplomacia francesa, transformando diligências em quase ameaças militares não deixou espaço na opinião pública portuguesa para qualquer espírito de negociação “séria” com França, principalmente por tais “ameaças” não serem susceptíveis de concretização devido à inferioridade naval deste país. Na realidade, no deslumbre dos seus sucessos bélicos, Napoleão terminou caindo na armadilha da teorização excessiva, confundindo as condições de imposição do Bloqueio ao Leste Europeu com as possíveis em Portugal. “Aí (no Leste Europeu), o bloqueio continental negociara suportes políticos que lhe eram concedidos pelas autoridades legais. O mesmo sucedia no Mediterrâneo“24. Com Portugal, Napoleão nunca chegou a negociar esses suportes, julgando poder angariá-los facilmente pela força. Teremos de pensar também nas “ameaças” francesas de invasão – como, aliás, referida também na Paz de Tilsit – e “desmembramento” de Portugal, declarações datando já de 1806 e feitas, de certo modo, como forma de pressão sobre a Inglaterra – ciente a França da importância que para Inglaterra tinha a possibilidade de acesso aos portos portugueses. Esse tipo de intenções vem mais tarde a concretizar-se no famoso Tratado de Fontainebleau, ratificado por Napoleão em 29 de Outubro de 1807, segundo o qual o território português seria dividido em três partes: “Entre-Douro e Minho seriam dados à Rainha da Etrúria, formando a Lusitânia Setentrional, em troca da Toscana; Alentejo e Algarves pertenceriam a Godoy (ministro de Espanha e doravante Príncipe dos Algarves); e Beira, Trás-os-Montes e Estremadura seriam mantidos pelos Bragança, se certas condições fossem cumpridas (inclusive a improvável devolução de Gibraltar à Espanha), senão reverteria para soberania da França. As colónias portuguesas seriam divididas entre a França e a Espanha”25. O Rei de Espanha alcançaria o título de Imperador das Américas e protetor dos Novos Reinos da Lusitânia e dos Algarves. Teria também o direito de investidura desses novos reinos no caso de interrupção das linhas reinantes. É neste ambiente que prosseguem os contactos diplomáticos entre Portugal e França (e Espanha), principalmente já no Verão de 1807, quando as pressões francesas no sentido do Bloqueio se tornam mais agudas: Em 17 de Julho de 1807, “Talleyrand recebe ordem para advertir, mais uma vez e mais energicamente, o Príncipe Regente D. João de que de deve fechar definitivamente os portos aos ingleses: confiscar-lhe os bens e prender os residentes em A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 222 Portugal, dentro de um prazo que terminava a 1 de Setembro desse ano. Dez dias depois da advertência – a 27 de Julho -, começa a concentrar-se em Baiona o corpo de exército que deveria invadir o país”.26 Em 29 de Julho, o Ministro interino dos Negócios Estrangeiros francês, Hauterive, transmite a D. Lourenço de Lima, que regressava de Tilsit, as exigências francesas, informação que chega a Lisboa a 10 de Agosto, tendo o Embaixador de Portugal em Espanha, o Conde da Ega, recebido igual notificação, que também foi apresentada pelos representantes de França e Espanha em Lisboa, em 12 de Agosto. Tem então lugar, em Lisboa, o Conselho de Estado de 19 de Agosto, que toma diversas decisões estratégicas, com o intuito de evitar ou adiar uma invasão. Daí resultou a decisão de “aceitar” o encerramento dos portos, mas não o confisco dos bens ingleses em Portugal. Importante, seria também “dar a conhecer” a Londres a situação portuguesa, ao mesmo tempo em que seria dado início a negociações com o Governo britânico. António de Araújo consegue prorrogar, entretanto, o prazo do “ultimato” franco-espanhol para 1 de Outubro, vitória dessa “política de proscratinação”27. Mas a reacção portuguesa às ameaças francesas continua sendo lenta. Portugal vem a “aderir” ao Bloqueio Continental apenas a 25 de Setembro. Como decidido em Conselho, na carta de “adesão” ao Bloqueio, o ministro António de Araújo de Azevedo recusa-se “a fazer o confisco dos bens ingleses (alegando que os bens portugueses na Inglaterra poderiam ser confiscados por represália e eram muito superiores28)” e põe “a questão evidente de que o Bloqueio Continental, a ser levado a efeito, acarretaria o bloqueio inglês aos portos portugueses29”. “Insinuava, por outras palavras (o ministro português), que a França não tinha poder naval para empreender, com êxito, operações no Atlântico (...)30”. De todas as formas, em 1 de Outubro deixam Portugal os representantes diplomáticos de França e Espanha. Depois disso, a 20 de Outubro, é dada ordem de saída dos barcos ingleses. “Essa ordem é recebida pelas autoridades do Porto de Lisboa, dois dias depois de os 26 Macedo, pág. 39. Light, pág. 35. 28 O que numa primeira fase começou por acontecer. 29 Macedo, pág. 45. 30 Idem. 27 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 31 Idem, pág. 43. Idem, pág. 45. 33 Light, pág. 55. 32 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 223 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil elementos comerciais ingleses mais importantes – discretamente avisados – terem saído ou terem tomado as suas precauções31”. Portugal garante à Inglaterra que nunca prenderia os súbditos britânicos, admitindo a Inglaterra a possibilidade de encerramento dos portos portugueses, se tal fosse condição para impedir uma invasão. Estava, assim, ciente, o Governo de Londres que, salvo se se verificasse uma invasão francesa de Portugal, seria difícil a França, inferior em poder marítimo, verificar eficazmente o cumprimento das condições do Bloqueio. Mesmo assim, a ordem régia só é posta em execução quinze dias depois, através das seguintes (quase risíveis) medidas: “vedou-se a saída a uma escuna (inglesa) e deram-se indicações a cinco militares para vigiarem um brigue!32” Entretanto, a 22 de Outubro, Napoleão comunica ao Encarregado de Negócios português em Paris a sua decisão de declarar guerra a Portugal, já depois da saída do Embaixador D. Lourenço de Lima, que viajava para Lisboa para relatar a ameaça napoleónica, por ele pessoalmente ouvida, de pôr termo ao reinado da Casa de Bragança em Portugal, notícia só recebida na capital portuguesa a 27 de Outubro. É com base nesta informação que o Conselho decide, em 30 de Outubro, o envio a Paris do Marquês de Marialva, como Embaixador Extraordinário, para informar Bonaparte das providências tomadas contra os ingleses. Com vista a suster uma possível invasão, Marialva poderia também negociar o casamento do Infante D. Pedro com uma sobrinha de Napoleão, para além de transportar consigo diamantes e presentes valiosíssimos – não chegará, contudo, nunca, a passar de Madrid. Ainda com o objectivo de impedir uma invasão, em 5 de Novembro, o Príncipe Regente assinou o decreto atendendo ao restante das exigências de Napoleão, tendo sido instruído Lord Strangfdord, representante diplomático inglês, para abandonar Lisboa. Contudo, a notícia, recebida a 23 de Novembro “de que tropas francesas estavam em território (português) forçando a marcha para chegar a Lisboa, somada à informação exibida no (jornal francês) Le Moniteur (de 11 de Novembro, eventualmente trazido para Lisboa por um barco inglês), sobre o destino que Bonaparte reservara para Portugal e sua família real, fechava quaisquer opções que, até então, esta pudesse ter tido”33. A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 224 O Conselho de Estado de 24 de Novembro decidiu, assim, que “a família real deveria partir para o Brasil34”, sendo instituído um Conselho de Regência. Foi concedida audiência a Lord Strangford, que permanecia num barco inglês, ao largo de Portugal. O aviso ao público da sua partida foi já feito por D. João a 28 de Novembro, quando já estava embarcado. Negociações com Inglaterra Tinham prosseguido, entretanto, as negociações com Inglaterra, que culminaram num Tratado só ratificado por esta em Janeiro de 1808, mas cujas principais disposições tinham sido acordadas, em Londres, desde 22 de Outubro. Para as compreender, será necessário apreciar quais as principais preocupações das Partes, Inglaterra e Portugal, no decurso das mesmas. Posição inglesa Além de todas as razões comerciais e económicas atrás citadas, para a Inglaterra, Portugal era um dos raros pontos de apoio da armada britânica, que usava o Algarve para bloquear os portos do sul de Espanha. Interessava-lhe, assim, manter o acesso à costa portuguesa. No entanto, como as tropas francesas bem o experimentariam (e os ingleses tinham noção desde o início), são imensas as dificuldades do poder militar de ocupação sem o apoio político ou da população no território ocupado. Para a Inglaterra era, assim, mais preocupante um D. João colaborador com os franceses que um Junot ocupando Lisboa, pois só o Príncipe português teria condições de, mesmo que só a partir de terra, tornar mais completamente efectivos os preceitos do bloqueio. A Inglaterra defendia, assim, vigorosamente, na perspectiva da inevitabilidade da invasão francesa de Portugal, a partida do Regente para o Brasil, o que, não só, salvaguardaria a soberania sobre o solo metropolitano português como – segunda grande preocupação inglesa – evitaria que a esquadra portuguesa passasse para o serviço dos seus inimigos. Pois interessava à Grã-Bretanha a preservação da operacionalidade (não em mãos francesas) da esquadra de Portugal. Como refere Keneth Light35, embora já não tivesse a importância relativa que tivera, a força da 34 35 Idem, pág. 55. Pág. 61. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 Posição portuguesa Para Portugal, o importante era assegurar a soberania sobre o seu território – e a permanência da Casa de Bragança, posta em risco por Napoleão. Necessitava, assim, da formalização pela Inglaterra de compromissos concretos, que nomeadamente salvaguardassem contra eventuais ameaças inglesas, sempre possíveis (pelas próprias necessidades bélicas e estratégicas dos contendores) no decurso de uma guerra tão abrangente como aquela que se verificava. A pressão sobre Inglaterra não poderia, assim, ser muito grande. Por exemplo, a já referida decisão de encerramento dos portos portugueses a Inglaterra, de finais de Outubro, não incluía, como já se viu, a ilha da Madeira. Mesmo assim, são tomadas medidas de defesa dos nossos portos, inclusive no Brasil. Por outro lado, em todas as medidas de aparente cedência à França, a diplomacia portuguesa conseguiu, mesmo quem sempre imediatamente, ir sossegando os seus aliados ingleses da pouca consistência destas. “Em Londres, o governo de S.M. reconheceu as circunstâncias especiais e incomuns que tinham forçado Portugal a fechar os seus portos. O sentimento em relação a Portugal, longe de ser beligerante, era compreensivo e condescendente; como resultado, as ordens dadas na primeira reacção às notícias recebidas de Portugal foram canceladas; os navios e bens pertencentes a mercadores portugueses na Grã-Bretanha foram liberados”36. Vale a pena, contudo, focar ainda um dos aspectos mais controversos dos acontecimentos desse período, a “transmigração” da Corte Portuguesa para o Brasil, conforme designada por alguns actuais historiadores. 36 Light, pág. 96. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 225 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil frota portuguesa era ainda considerável, sendo composta por 23 naus de linha, 18 fragatas e uma dúzia de corvetas, bergantins e escunas. Outro aspecto, que depois se vem a concretizar, é o da garantia de um importante porto no Atlântico oriental, nomeadamente no caso da ocupação – mesmo que momentânea - pela França dos portos portugueses. Centram-se, assim, as atenções na ilha da Madeira, que nunca é envolvida nas disposições adoptadas por Portugal contra Inglaterra nos termos do Bloqueio Continental. Resta dizer que, caso essas condições não fossem conseguidas, pelo menos aquelas concernentes à esquadra, Londres estaria prestes a impô-las à força contra Portugal. A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 226 A ¨”transmigração” da Corte para o Brasil A possibilidade da transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, com vista a, a partir daí, melhor defender (e se necessário recuperar) a totalidade do seu território, criando uma base operacional mais defensável do que a do território europeu, datava já de há vários séculos. Após o início das Guerras Napoleónicas, fora, no entanto, expressamente referida pelo Marquês de Alorna, em 1801, e por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em 1803. Esta ideia teria já sido discutida, em 1806, entre a Inglaterra e Portugal, na sequência das “ameaças” feitas por Talleyrand a Lord Landerdale sobre a possibilidade de invasão e desmembramento de Portugal. Não era, naturalmente, uma tarefa leve, ou fácil. Como diz Lilia Moritz Schwarcz37: “Organizar um esquadrão (naval) sem grande aviso prévio e fazer a realeza mudar de casa, levando de quebra a pesada estrutura burocrática portuguesa, não era tarefa fácil: ao contrário, era sina das mais monumentais”. “Os preparativos para transferir a Família Real e a Corte para o Brasil (...) tiveram início bem antes que os representantes francês e espanhol junto à Corte Portuguesa entregassem os ultimatos dos seus países. O plano teria seguido várias fases: chamar de volta várias esquadras de suas tarefas normais para o posto de origem em Lisboa, a fim de serem aprestadas para a longa jornada; suspender o transporte de mercadorias e riquezas do Brasil; e o recolhimento, em terra, de tudo que fosse transportável e pudesse ser levado, inclusive o arquivo do Estado, bibliotecas e metade do erário”38. Coloca-se também a possibilidade de ser apenas um príncipe português, eventualmente D. Pedro, a ir para o Brasil, em vez do seu pai. Na realidade, essa eventualidade – que chegou a ser divulgada - alicerçar-se-ia em duas razões: uma, a que visava disfarçar os preparativos da ida total da Corte, encabeçada pelo Príncipe Regente; a segunda a de, de qualquer forma, assegurar a soberania portuguesa sobre o Brasil – inclusive em face da Inglaterra – independentemente do rumo real que os acontecimentos seguissem na metrópole. Em 7 de Setembro, é enviado ao Rio de Janeiro o bergantim Gavião, avisando da possibilidade da transferência para o Brasil da Corte Portuguesa. Ainda em 21 de Novembro, António de Araújo manifesta preferir que a deslocação para o Brasil pudesse ser usada como “moeda de troca” com Napoleão, 37 38 “Apresentação: Entre a melancolia e a obstinação”, in Light, pág. 9. Light, pág. 21. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 O Tratado com a Inglaterra Da Convenção que em 22 de Outubro com a Inglaterra, ressaltam os seguintes aspectos40: Ter-se-á, primeiramente, que ver que, no ritmo a que os acontecimentos se precipitaram, o seu texto não levava necessariamente em conta a definitividade de uma invasão francesa de Portugal metropolitano, que poderia, talvez, pensava-se, ainda ser evitada. Procurava-se, sim, obter garantias inglesas, mesmo face a “cedências “que pPortugal se visse obrigado a fazer a frança para evitar a invasão. O objectivo da Convenção é, pois, apontado como a conservação da Monarquia Portuguesa, a Ilha da Madeira e as mais possessões portuguesas. O Art. I visava evitar qualquer acção inglesa – sem coordenação com Portugal – contra a Ilha da Madeira e possessões portuguesas sem “algum passo ou declaração hostil” de França contra Portugal, mesmo se, para evitar guerra com França, Portugal praticasse algum “acto de hostilidade contra a Grã-Bretanha, fechando os seus portos à bandeira inglesa” (como se viu, a Inglaterra estava disposta a aceitar o encerramento dos portos – que, de qualquer modo, seria sempre difícil de verificar por França, se isso mantivesse o território português em “mãos amigas”). Do mesmo modo, D. João vedaria o Brasil e a ilha da Madeira a franceses, mesmo que ao serviço de Portugal. O Art. II A Inglaterra comprometia-se a concordar e apoiar uma eventual deslocação do Príncipe Regente para o Brasil, mesmo “sem ser a isso forçado pelos 39 40 Pág. 13. Consultar Light, pág. 242 e segs. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 227 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil para este não invadir Portugal. Mas não foi essa a opção de D. João, que decide não dar, sequer, essa satisfação aos franceses, a de revelar o que se encontrava em negociação com Inglaterra. No entanto, a decisão final sobre a deslocação só foi tomada em 24 de Novembro de 1807. E sobre esse acontecimento, diz, assim, Kenneth Light39: “A importância da jornada empreendida rumo ao Brasil, em 1807, pela Família Real portuguesa, pela maioria de sua corte e por um grande número de cidadãos – um total de 12 a 15 mil homens, mulheres e crianças, considerando as tripulações – deriva da consequência que essa ação teve na História”. A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 228 procedimentos dos franceses dirigidos contra Portugal”, bem como de um “príncipe de sua família”. Segundo Art. III, em caso de Portugal se vir forçado a fechar os portos aos navios ingleses, Portugal admitiria o uso provisório pela Inglaterra da Ilha da Madeira, em termos a acordar com o Embaixador português em Londres. O Art. IV continha disposições sobre a esquadra portuguesa, incluindo a exigência inglesa da entrega dos fortes costeiros de Portugal que protegessem a partida da Corte para o Brasil e a interferência inglesa nas designações dos comandantes dos barcos que a transportassem. Pelo Art. VI, a Inglaterra obrigava-se a respeitar a soberania da Casa de Bragança sobre o território metropolitano português, assim como a manter “relações de amizade” com a regência que, em caso da partida da Corte para o Brasil, seria deixada em Portugal. A Convenção foi ratificada por Portugal em 8 de Novembro, com a ressalva por Portugal das disposições prevendo, nomeadamente, a entrega à Inglaterra do comando dos fortes que protegessem a partida da Corte, algumas disposições relativas à esquadra portuguesa, nomeadamente a interferência na escolha dos comandantes dos barcos que transportassem a corte para o Brasil, e a cedência de um porto franco no Brasil. Estas reticências levam a que a Inglaterra, como referido, atrasasse a ratificação do documento. Como se viu, uma das cláusulas do Tratado foi a tão apregoada “escolta inglesa”, que para muitos, ainda hoje, é interpretada como uma espécie de “dependência” portuguesa da dominação britânica. Na realidade, mal grado tudo, a negociação da protecção naval britânica, para além dos seus aspectos práticos – como aquele, referido por Light41, de que “as naus (de guerra) da armada (portuguesa) estavam transformadas em navios de transporte”, não ao podendo, desse modo, defender-se – permitia classificar a ida da Corte Portuguesa para o Brasil como um gesto integrado na estratégia de guerra conjuntamente seguida por Portugal e pela Inglaterra, e não como um gesto unilateral de D. João, exposto às ilações que a Grã-Bretanha quisesse tirar desse ato: a escolta “selava” a coerência da viagem com a Aliança luso-inglesa. 41 Pág. 21. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 Conclusão Em resumo, após uma fase inicial de belicismo contra a França, devido ao risco (depois dissipado) de Portugal ficar excluído de uma aproximação anglo-espanhola, a política diplomática portuguesa consistiu, essencialmente, nos seguintes aspectos: tentar a todo o custo manter a neutralidade no conflito europeu – pelo menos a partir de 1795; caso isso não fosse possível, negociar com Inglaterra as melhores condições de sobrevivência integral de Portugal (que nessa altura era muito maior que a sua parte europeia), ao mesmo tempo que tentava, por todos, os meios, postergar (ou evitar) uma agressão militar francesa contra o território português. Tratava-se, afinal mais-ou-menos, daquilo que percepciona o personagem de José Norton, em “O último Távora”44: “(...) não ter a Inglaterra em força aberta contra nós (portugueses) e conseguirmos que a França se ponha connosco em estado de não dar auxílio a Espanha contra nós (...)”. A imposição napoleónica do Bloqueio Continental e o pouco respeito demonstrado por Portugal por parte do próprio Napoleão e seus representantes tornam também impossível qualquer negociação com França, e a nossa política para com este país passa a ser a da dilação, enquanto se negociam com Inglaterra as 42 Light, pág. 101. Citado por Light, pág. 109. 44 Pág. 141. 43 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 229 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil Por outro lado, no que respeitava às condições não ratificadas por Portugal, de entrega dos fortes e monitorização do comando da esquadra, é o próprio Lord Strangford que desaconselha a sua imposição, aliviado que ficara com a constatação, quase no último minuto, da intenção de partida da Corte42. A subtileza da diplomacia portuguesa nessa questão, aliás, reflecte-se nas próprias palavras de Sir Sidney Smith, comandante da esquadra inglesa que acompanhará D. João ao Brasil, que por sua vez tentara convencer o Príncipe regente a aceitar o propósito inglês de que lhe fosse transmitido o comando dos fortes portugueses que protegessem a partida43: “Sua Alteza Real recusou com grande delicadeza e sentimento, mas estava bastante fixo em sua determinação nesta direcção, embora tenha dito que ele ficaria feliz em vê-los (os fortes) em minha posse, se eu pudesse obtê-los por negociação com a regência que ele tinha estabelecido, e à qual ele não gostava de dar ordens sob suas presentes circunstâncias, para não comprometê-la, e aos habitantes de Lisboa, com os franceses”. A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil 230 condições de uma estratégia portuguesa, que incluía a deslocação do Governo para o Brasil. Afinal, Napoleão haveria de estar certo quando mais tarde reconhece ter sido D. João o (único) soberano que o ludibriou. Com a partida para o Brasil, e perante o seu envolvimento num conflito internacional, onde “o poder político (português) acompanhou a disposição estratégica dos seus recursos reais (afinal, a orientação do príncipe D. João VI) mais não fazia do que aplicar a regra de ouro de Von Clausewitz, quanto à estratégia que é de evitar sujeitar-se à vontade do inimigo e poder continuar a luta militar”45. “Curiosamente, quem primeiro beneficiou com uma tal situação jurídica (ou sua ausência, criada pelas tropas francesas em Portugal), foi a própria Espanha, também (de início) invasora. Ao substituir, como rei, Fernando VII, herdeiro Bourbon do trono espanhol, por José Bonaparte, a ilegitimidade da presença francesa em Portugal alargava-se a toda a Península (Ibérica) que assim se tornava território ocupado”46. Tratou-se, afinal, das “ligações efectivas entre a diplomacia, os interesses económicos e a segurança nacional”47 perante o aumento do peso da ideologia oriunda dos ideais da Revolução Francesa. A partida da Corte para o Brasil constituiu, também, o reforço e confirmação da Aliança Inglesa e de um “destino” atlântico português. Acompanha, também, a ascensão da Inglaterra na Europa e, com isso, certa dominação inglesa sobre o continente, com consequências também para Portugal. Mas isso transcende já o objectivo deste texto.NE BIBLIOGRAFIA Braga de Macedo, Jorge, “Diferencialidade Revisitada: a Propósito dos Lançamentos da 2.ª Edição Revista e Ilustrada da História Diplomática Portuguesa”, in Negócios Estrangeiros, 10 de Fevereiro de 2007; Light, Kenneth, “A viagem marítima da Família Real – A transferência da Corte Portuguesa para o Brasil”, Zahar 2008; 45 Macedo, pág. 15. Idem, pág. 15. 47 Idem, pág. 14. 46 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 Macedo, Jorge Borges de, “O Bloqueio Continental”, Gradiva, 2.ª Edição 1990; 231 Magalhães, José Calvet de, “Breve História Diplomática de Portugal”, Publicações Europa-América, 1990; Nunes, António Pires, “Portugal e o novo conflito armado emergente da Revolução Francesa”, in Nova História Militar de Portugal, Direção de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, Vol. III, Círculo de Leitores, 2004; Reifenscheid, Richard, “Die Habsburger in Lebensbildern, von Rudolf I. bis Karl I.”, Diedrichs, 2000; Rothenberg, Gunther, “Die Napoleonischen Kriege”, Brandenburgisches Verlaghaus 2000; Ventura, António, “Portugal e a Revolução Francesa: da Guerra do Russilhão à Guerra das Laranjas”, in Nova História Militar de Portugal, Direção de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, Vol. III, Círculo de Leitores, 2004; NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 211-231 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil Norton, José, “O último Távora”, Editora Planeta do Brasil, 2008. Francisco Knopfli* Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio 232 Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio ■ O Brasil e Portugal tiveram sempre um processo de relacionamento com vicissitudes que foram sempre resolvidas pela boa vontade dos seus Povos. A experiência adquirida como Cônsul em Santos e Embaixador em Brasília levam a concluir que do Império até à Democracia os caminhos não-coincidentes se inscrevem num contínuo. O momento actual, e após a assinatura do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, assinado pelos Ministros Jaime Gama e Luís Filipe Lampreia, em 22 de Abril do ano de 2000, e a actual disposição dos governantes de hoje, faz acreditar que os velhos do Restelo das nossas relações não têm razão de ser. DIZEM que terão sido quatro os portugueses que ficaram na Costa do Descobrimento enquanto a frota de Cabral seguia o seu caminho para Calecute. Estes quatro “luso-brasileiros” tinham destinos cruzados, dois ficaram porque quiseram, eram grumetes desertores, provavelmente seduzidos pela sensualidade da Terra. Os outros dois eram degredados, exilados à força, a Mata Atlântica que prenunciava o Pantanal e o Amazonas e a afabilidade dos Tupiniquins, era-lhes indiferente, tal o desejo que guardavam de voltar ao Reino. Durante três décadas os portugueses foram ao Brasil em busca de pau-brasil não havendo notícia de qualquer acto violento entre os portugueses, os franceses e os tupiniquins. A exploração da madeira consolidou as feitorias onde conviviam soldados e artesãos orientados por um feitor coadjuvado por um escrivão. Cabo Frio, São Vicente, Igaraçu, Porto Seguro, Santo Aleixo, Santa Cruz foram algumas delas que perduraram até à decisão de D. João III iniciar a colonização oficial do Brasil. Até aqui as lutas eram sobretudo entre portugueses e franceses e seus aliados índios e nunca entre americanos e europeus. OS HISTORIADORES * Diplomata. Ex-Embaixador de Portugal em Brasília. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 233 Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio Será a introdução do cultivo da cana-do-açúcar que trará a violência entre os portugueses e as nações índias. A conquista da terra, a necessidade de braços escravos rompem o “idílio” luso-tupi. Com a administração portuguesa estabelecida em Salvador, por decisão de D. João III, e com a chegada dos primeiros jesuítas a paz esfumou-se nas relações luso-índias. O colonizador, como se referiu, necessitava da mão-de-obra indígena, em breve o escambo ou compra de cativos “deixaram a breve trecho de satisfazer as presentes necessidades de braços para a lavoura canavieira”. A revolta dos Caetés na capitania de Pernambuco já no terceiro quartel de século XVI e a cena de antropofagia que tirou a vida a cerca de cem náufragos da nau Nossa Senhora da Ajuda – o Bispo Sardinha era um dos que o mar havia poupado para morrer às mãos dos Caetés – são duas cenas que demonstram o reabrir da tensão entre colonos e indígenas. Com a expedição punitiva que de imediato se organizou e com o aparecimento da varíola, mais de trinta mil índios pereceriam só na região da Bahia/Pernambuco provocando a paralisação da economia agrária. Acrescente-se a constante atenção dos jesuítas às costumeiras irregularidades dos colonos na tomada de índios, e fácil será entender como em poucos anos o paraíso brasileiro se tornou em terra madrasta para a maioria dos seus filhos. O Rei D. Sebastião, em 1570, inspirado na “filosofia” jesuística, proíbe por diploma régio a escravização dos índios convertidos, deixando de fora todos os outros que não haviam querido ou podido abraçar a religião católica. A fuga constante dos índios em particular dos Tupinambás, mas também dos Tamoios e Carijos, dos engenhosos que deles dependiam a quase 100% levou a que da escravatura se passasse a modelos de trabalho voluntário pago. Mas a inadequação dos índios para a pecuária e metalurgia trouxe problemas acrescidos. A solução seria a de importar escravos de África, o que foi feito de forma sistemática na segunda metade do século XVI. Durante os últimos quarenta anos do século XVI terão atravessado o Atlântico, em particular vindos da Costa da Guiné, primeiro, e já no fim do século de Angola, cerca de 100.000 escravos. Os escravos africanos passaram a substituir os índios nos engenhos de açucar no cultivo da folha do tabaco e na criação de gado, continuando os índios a trabalhar nos campos de cultivo de mandioca. O Governador-geral Tomé de Sousa, que fundara Salvador em 1550, cessa funções em 1553 depois de ter iniciado a exploração de sertão e mandado fortificar as poucas vilas na costa Sul. Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio 234 Mas o Brasil Português foi constantemente cobiçado, primeiro pelos franceses com o desejo de constituírem a França Antárctica, na região do Rio de Janeiro, sonho frustrado de Nicolau Durand de Villegagnon, e depois pelos holandeses de Maurício de Nassau, já durante a monarquia dual. Recuperada a coroa por D. João VI, consolidada a soberania portuguesa nos territórios ultramarinos, caberá ao Marquês de Pombal, já na segunda metade do século XVIII abrir uma nova página política e económica sobre a América Portuguesa, onde havia sido descoberto, em Minas Gerais, ouro e diamantes em quantidades suficientes para obrigar a mudança da Capital de Salvador para o Rio de Janeiro. Sublinhe-se que o aportar de Cabral a Santa Cruz não foi fruto de um qualquer acidente de navegação como alguns já pretenderam, correspondendo antes a uma estratégia clara e previamente definida de Portugal e a um conhecimento científico da arte de navegar e da construção naval. As longas negociações do Tratado de Tordesilhas em 1494 são também a demonstração do bom conhecimento geográfico dos portugueses e de uma Diplomacia hábil e segura. A colonização do Brasil por outro lado também não foi fruto do destino. A administração portuguesa, nomeadamente a partir de D. João III, lançou as bases de uma verdadeira e efectiva organização territorial e administrativa das novas terras de Santa Cruz, da foz do rio Amazonas, no actual Estado do Pará até ao que hoje é o Estado de Santa Catarina. Os Negócios da Índia afastaram Portugal do Brasil por quase 50 anos, todavia o reconhecimento territorial foi feito logo nos primeiros anos do século XVI graças às expedições de Gonçalo Coelho, logo depois foram criadas as capitanias hereditárias, processo já utilizado com êxito nas ilhas atlânticas: primeiro, atribuindo à iniciativa particular a posse e usufruto das terras, experiência que deixou sinais de sucesso, pelo menos, em S. Vicente, no litoral paulista e em Pernambuco; e depois através de um regime de administração por delegação directa do monarca que inaugurou o sistema do Governo-Geral no Brasil, com sede inicial na Bahia, e que transitou depois para o Rio de Janeiro, já em 1793, época em que o titular da representação real passava então a ter título de Vice-Rei. Com um sistema de administração colonial bem implantado no terreno, cedo se desenharam, por parte dos governantes portugueses, os propósitos de desenvolver, promover e aproveitar as inúmeras riquezas que a terra brasileira guardava. Inaugurava-se também o ciclo de cana-do-açúcar e da actividade dos engenhos. Já no século XVII o Brasil seria o primeiro produtor mundial de açúcar. Durante a monarquia exógena ocupou o Brasil posição de importância e destaque no que alguns autores consideram ser a “atlantização da política externa de Portugal” (tendência compreensível, aliás, face às condicionantes geopolíticas então impostas a NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 235 Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio Portugal no contexto europeu) com o seu consequente afastamento das conexões e laços continentais. Como regra de sobrevivência, Portugal privilegiou, naquele conturbado e difícil período da sua história, mais do que com África, as relações com o Brasil, tornando mesmo dispersa e ocasional a frequência das grandes linhas de tráfego com o Mediterrâneo e o Mar do Norte onde a importância relativa da Feitoria da Flandres ia progressivamente diminuindo, tendo até em conta a transferência, entretanto operada, do comércio das especiarias para Lisboa. Não obstante a Restauração da Independência de Portugal, em 1640, ter assinalado, de facto, o seu “regresso à Europa” e o inevitável envolvimento nas contendas que opunham a Espanha e a Casa de Áustria à França e à Holanda, não nos restarão hoje dúvidas acerca da proeminência e relevo do papel desempenhado pelo Brasil, em momento particular da nossa história comum, no quadro da política externa portuguesa da época. Evidenciavam-se então as principais coordenadas e linhas de força de uma diplomacia própria em que a vocação atlântica se afirmava, naturalmente, como traço caracterizador determinante e onde o Brasil era peça fundamental. É ainda, por esta altura, que se começou a traçar, no Brasil, o primeiro esboço de uma consciência propriamente brasileira, de um amor e apego à terra que brancos, portugueses ou descendentes de portugueses, negros vindos de África e índios nativos indistintamente partilhavam e que então originou o movimento denominado Insurreição Pernambucana. A revolta genuína dos locais contra a presença do invasor holandês que assolou o Nordeste brasileiro durante o domínio espanhol em Portugal traduziria, por antecipação, essa natural capacidade de integração e adaptação de muitas raças e povos a uma terra que já então consideravam sua e que veio a constituir, porventura, nos planos antropológico e sociológico, uma das maiores riquezas do Brasil moderno. Ficou o século XVIII assinalado por vários factos integrantes do passado comum de portugueses e brasileiros, compondo um painel histórico rico de acontecimentos e que testemunham, uma vez mais, a importância do Brasil para Portugal, nomeadamente no quadro da sua história diplomática e da sua afirmação enquanto potência europeia. São exemplos do referido: I – Descoberta do ouro que iniciou o “ciclo de ouro”, (1700 e 1770), durante os reinados de D. João V e D. José o ouro afluiu então generosamente ao Reino, contribuiu para a magnificência, majestade e prestígio da Corte portuguesa no contexto da política europeia e do seu relacionamento com as outras Casas Reais ao longo de quase toda a centúria; Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio 236 II – Assinatura do Tratado de Madrid (que veio estabelecer as fronteiras entre as possessões Portuguesas e Espanholas na América do Sul, até aí regidas pelo já anacrónico tratado de Tordesilhas, provocando a consolidação territorial e geográfica do Brasil Moderno); III – Acção do Marquês de Pombal no Brasil (caracterizada por inúmeras iniciativas destinadas a reforçar as estruturas administrativas locais, tais como a instrução pública, a lavoura, a indústria, a navegação, a arrecadação da Fazenda, a organização militar. No plano das reformas judiciárias, da protecção dos seus confins territoriais e nas providências sociais); em todos estes domínios, como alguém já afirmou, “o dedo gigante de Pombal ficou assinalado no Brasil”; IV – O movimento emancipacionista denominado “inconfidência mineira”, em 1792, que teve como figura proeminente o alferes José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, conhecido na história brasileira como o protomártir da Independência, A revolta dos conjurados de Minas Gerais foi então duramente reprimida mas não deixou de constituir sinal dos tempos que se avizinhavam e haveriam de trazer consigo, trinta anos depois, a declaração de independência do Brasil. Cheio, pois, de significados e premonições o século XVIII para o devir da terra brasileira. Pleno de antecipações históricas que contribuiriam para o que haveria de ser o Brasil nas duas primeiras décadas da 19.ª centúria e o projectariam para uma existência enquanto Grande Nação independente, de dimensão continental e factor geopolítico incontornável na perspectiva da evolução do continente sul-americano. Em 1808, como consequência dos graves imperativos internacionais prevalecentes na nova ordem europeia e em que os desígnios expansionistas de Napoleão Bonaparte, dando corpo a uma concepção visionária e utópica de uma França Imperial, constituíam expressão mais evidente, determinou o Príncipe Regente de Portugal, D. João, a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. De 7 de Março de 1808 até 26 de Abril de 1821 seria aquela cidade a capital da Monarquia portuguesa, facto de extraordinário significado para o futuro político do Brasil. Fácil é-nos hoje imaginar o incentivo e a projecção aqui verificadas com a instalação da Família Real e da máquina política e administrativa portuguesa, implicando a transmigração de cerca de 15.000 pessoas e propiciando a criação de uma aristocracia e nobreza locais e de quadros superiores que haveriam de constituir as elites dirigentes da Nação. O Brasil passou a ser sede de órgãos administrativos semelhantes aos de Portugal. O Corpo Diplomático tinha sede no Rio de Janeiro, de onde partiam as instruções para a representação portuguesa no Congresso de Viena, chefiada pelo Duque de NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 Significativamente, com a aclamação do Príncipe Regente como Rei, após a morte de D. Maria I, no Rio, em 20 de Março de 1816, a Monarquia Portuguesa passa a denominar-se Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Na verdade, o Brasil deixava aqui de ser colónia pois já era parte integrante do Reino. O Brasil acedeu à independência em 1822 numa conjuntura internacional marcada pela fragmentação do Império Espanhol nas Américas e pelos ventos emancipistas que sopraram no que hoje é a América Central na esteira da Revolução Americana, da Revolução Francesa e do fenómeno napoleónico. Foi, contudo, um processo diferente, já que não foi fruto de uma guerra como na América espanhola, e singular, dados os particulares condicionalismos históricos que o rodearam, radicados na longa presença da Corte portuguesa no Brasil e nos laços entretanto aqui criados pela Família Real. Sem dúvida, o processo de independência dentro do regime monárquico originado de Portugal foi factor de grande importância para a manutenção da unidade territorial do Brasil como Grande Nação Soberana que hoje é. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 237 Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio Palmela. Foi instaurado o livre acesso à actividade industrial, criadas as escolas de medicina na Baía e no Rio, a Academia Militar no Rio de Janeiro, o Banco do Brasil e o Jardim Botânico. Permitiu-se a entrada de estrangeiros, o que contribuiu para abrir o Brasil ao Mundo e dotá-lo de um imenso capital humano que tão fundamental se revelaria para a construção da independência que estava próxima. Colocou o Governo a tónica da sua acção nas actividades económicas, financeiras e fazendárias com a abertura dos portos, a criação de uma cadeira de ciência económica no Rio de Janeiro e a criação de uma Companhia de Seguros na Baía. Fica caracterizado: I – Uma vez mais a clara vocação atlantista de Portugal no quadro da sua acção externa; II – A consolidação da estratégia dos nossos governantes em dotar o Brasil de sólidas estruturas de poder, culturais e de organização e estabilidade territorial que se revelariam fundamentais para a sua independência; III – A afirmação do Brasil como natural extensão geográfica de Portugal, enquanto a sua projecção estratégica no Atlântico Sul, assente numa relação cujas componentes humana, sociológica, linguística e cultural lhe atribuíam posição especialíssima no contexto do seu Império Colonial: quer em relação a África, onde só após a Conferência de Berlim houve a necessidade da “ocupação efectiva” em virtude da falência da tese que ali defendemos dos “direitos históricos”, quer mesmo em relação ao Império do Oriente onde não podemos manter intactas as nossas posições. Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio 238 Desde o reconhecimento da independência por Portugal, em 1825, até à segunda metade do século XX, e não obstante as vicissitudes por que passaram as relações entre as duas Pátrias irmãs, foi longo e fecundo o caminho percorrido. Alcançada a maturidade dos regimes e a Democracia plena, e após o labor da estruturação jurídica das suas relações bilaterais, feito, todo ele, ao longo do século XX, alcançámos patamares de entendimento, diálogo e relacionamento. Estes parecem agora propiciar, mais do que nunca, uma real convergência luso-brasileira em que as relações políticas e económicas se apresentam já à altura das expectativas legítimas geradas pela natureza dos laços que nos unem. Em particular, nos finais do século passado, em que, no plano político se reforçaram mecanismos de cooperação bilateral, com a periodicidade dada às Cimeiras Governamentais e o processo regular de consultas políticas, estas últimas permitindo a concertação de posições dos dois países em temas relevantes da agenda internacional. Por outro lado, são incontáveis as visitas de Estadistas, Ministros, Secretários de Estado e responsáveis de ambas as partes, bem reveladoras do interesse que Portugal e o Brasil suscitam nos dois lados do Atlântico. A clarividência e vontades dos nossos Governantes em impulsionar e redimensionar o relacionamento bilateral aos mais diversos níveis, de acordo com critérios mais modernos e inovadores, sob um adequado e bem estruturado enquadramento político, é também visível no plano económico, financeiro e dos investimentos. Por outro lado, a presença activa de Portugal no processo de integração na Europa e o papel do Brasil no contexto do MERCOSUL têm facilitado o fluxo de investimentos de ambas as partes à procura de novos e mais promissores mercados. Em particular, sabe o Brasil que tem em Portugal, na União Europeia, já hoje o seu principal parceiro comercial, um aliado preferencial. Acresce, naturalmente, o indiscutível interesse de Portugal em levar para a União Europeia o peso e o prestígio da sua relação com o Brasil. Refira-se que a abertura do Brasil à economia internacional e o retomar do crescimento económico chamaram os investimentos portugueses para participar, de forma determinante, no processo de desenvolvimento e reforço da economia brasileira. Com efeito, podemos afirmar que as relações económicas entre Portugal e Brasil, num plano global, são hoje excelentes e atravessam uma fase de dinamismo sustentado. Mas é sobretudo na área dos investimentos directos de capitais portugueses no Brasil que a transformação e a evolução do relacionamento é mais visível. Estes investimentos distribuem-se fundamentalmente pelos sectores de cimentos, bancos, energia e telecomunicações e estão presentes praticamente em todo o NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 239 Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio território brasileiro. Capitais portugueses participam nos Bancos Itaú, Inter-Atlântico. A Portugal Telecom adquiriu participações no processo de privatização da Telebrás num valor estimado em mais de US$ 3 biliões, concretizando o maior investimento já realizado por uma empresa portuguesa no estrangeiro; por outro lado, a CIMPOR-Cimentos de Portugal comprou 4 fábricas brasileiras do sector, totalizando um investimento de cerca de US$ 500 milhões. Estes são apenas alguns exemplos do vigor e expressão dos negócios que estamos a fazer em terra brasileira. Já em 1996, o montante de capitais portugueses no Brasil representou 30% do total de investimentos directos externos portugueses nesse ano e o investimento acumulado de Portugal, para 1997 – ano que assumi a gerência da nossa Embaixada em Brasília – atingiu valores superiores a US$ 4,5 biliões. Refira-se, por outro lado, que segundo dados do BNDS – Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social – Portugal era, na altura, o quinto maior investidor estrangeiro no Brasil. Uma última palavra para referir ainda que ao interesse da relação bilateral e da relação entre espaços integrados juntam-se as relações com a África lusófona, traduzidas na criação e afirmação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). São, pois, estes, alguns dos termos fundamentais de um processo histórico comum que nos levou, juntos, do sonho e da utopia de Cabral à realidade hodierna, que nos projecta no futuro e que as Comemorações dos 500 Anos da Descoberta pretenderam demonstrar perante o Mundo. Estas últimas tiveram acertos e desacertos, mas foram passos dados por caminhos certos que, espero, ajudem a que o vector multilateral não se sobreponha ao bilateral, no contexto das nossas relações. Será ainda de destacar que o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, que foi assinado pelo Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal e pelo Ministro de Estado para as Relações Exteriores do Brasil no dia 22 de Abril de 2000, em Porto Seguro, dia em que se comemoram os 500 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, representa um novo marco no relacionamento bilateral entre os dois países. O novo Tratado encontra-se ajustado às coordenadas políticas e ao sistema de valores prevalecente nos dois países, reflectindo o facto de Portugal e o Brasil serem hoje países assentes na organização democrática do Estado de Direito, no respeito dos direitos e liberdades fundamentais e na busca de uma maior justiça social. O Tratado é igualmente compatível com o novo enquadramento internacional, caracterizado pelo crescente peso dos movimentos de integração regional, tomando em linha de conta o impacto na definição das relações bilaterais resultante da adesão de Portugal em 1986 à Comunidade Económica Europeia e da adesão do Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio 240 Brasil ao MERCOSUL, bem como da integração de ambos na CPLP desde a sua fundação em 1996. Quanto ao seu conteúdo, o Tratado incorpora e amplia o conteúdo dos vários Tratados bilaterais até aqui existentes, que ficam na sua maioria expressamente revogados (ver lista em anexo), retomando-os num novo enquadramento doutrinal, sendo de destacar: a) a definição de uma forma sistematizada, dos mecanismos institucionais previstos para prossecução e acompanhamento das relações bilaterais; b) o estatuto dos portugueses no Brasil e dos brasileiros em Portugal, onde se verifica uma importante inovação que constitui a redução de cinco para três anos do período mínimo de residência exigido para acesso ao estatuto de igualdade relativamente aos nacionais do Estado de residência. c) no âmbito da cooperação cultural, científica e tecnológica, inova-se ao estabelecer como regra a validação mútua dos graus e títulos académicos emitidos pelas Universidades, as quais vêem expressamente reconhecidas a sua competência nesta matéria; do mesmo modo, é igualmente respeitada a autonomia das ordens profissionais quanto às autorizações para o acesso e exercício da profissão em condições de igualdade; d) na área da cooperação económica e financeira, é introduzido um preceito programático visando a criação de dispositivos legais que permitam um tratamento tendencialmente unitário das pessoas singulares e colectivas de ambas as nacionalidades no outro país, com o objectivo de propiciar uma eventual aproximação mais profunda entre as economias portuguesa e brasileira; e) o Tratado abrange ainda as áreas do Meio Ambiente e Ordenamento do Território, Segurança Social, Justiça, Administração Pública, Acção Consular, e contempla o alargamento da cooperação a novos domínios nas áreas da Saúde e das Forças Armadas, onde é referida a cooperação militar no quadro das Operações de Paz das Nações. A iniciativa de elaborar um Tratado-Quadro entre os dois países foi proposta pelo Governo português às autoridades brasileiras em, Abril de 1996, por intermédio do Ministro dos Negócios Estrangeiros português Jaime Gama. Uma vez convalidada a ideia pelos dois Governos em Dezembro desse ano, a Cimeira de Brasília de 1997 deu luz verde à negociação do novo Tratado. O Tratado consubstancia-se, no fundo, no desejo bilateral de simplificar o ordenamento jurídico que nos liga, esquecendo o supérfluo para dinamizar o nosso relacionamento actual. Esse foi o desejo dos seus criadores, entre os quais incluo os diplomatas portugueses acreditados, na altura, no Brasil.NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 ANEXO 241 Acordo entre Portugal e os Estados Unidos do Brasil para a Supressão de Vistos em Passaportes Diplomáticos e Especiais, celebrado em Lisboa, aos 15 dias do mês de Outubro de 1951, por troca de Notas. Tratado de Amizade e Consulta entre Portugal e o Brasil, celebrado no Rio de Janeiro, aos 16 dias do mês de Novembro de 1953. Acordo sobre Vistos em Passaportes Comuns, entre Portugal e o Brasil, concluído em Lisboa, por troca de Notas, aos 9 dias do mês de Agosto de 1960. Acordo Cultural entre Portugal e o Brasil, celebrado em Lisboa, aos 7 dias do mês de Setembro de 1966. Protocolo Adicional ao Acordo Cultural de 7 de Setembro de 1996, celebrado em Lisboa, aos 22 dias do mês de Abril de 1971. Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre portugueses e brasileiros, celebrada em Brasília, aos 7 dias do mês de Setembro de 1971. Acordo, por troca de Notas, entre Portugal e o Brasil, para a abolição do pagamento da taxa de residência pelos nacionais de cada um dos países residente no território do outro, celebrado em Brasília, aos 7 dias do mês de Julho de 1979. Acordo Quadro de Cooperação entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, celebrado em Brasília, aos 7 dias do mês de Maio de 1991. Acordo entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil relativo à isenção de Vistos, celebrado em Brasília, aos 15 dias do mês de Abril de 1996. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 232-241 Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio INSTRUMENTOS JURÍDICOS BILATERAIS EXPRESSAMENTE REVOGADOS PELO TRATADO DE AMIZADE, COOPERAÇÃO E CONSULTA ENTRE A REPÚBLICA PORTUGUESA E A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Jorge Azevedo Correia* 242 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião: três contributos para uma fundamentação do O regresso da Comunidade e a ascensão da religião liberalismo ■ Abstract: In a time where the liberal lexicon presents itself as the hegemonic language of contemporary political paradigm and liberal principles are being submitted to profound reshaping we can observe several proposals for redefining the meaning of “liberty” and “liberalism”. In the present article we analyze three proposals for a new definition of the principles of liberal societies, namely Pierre Manent’s “A Razão das Nações” (Edições 70, Lisboa, 2008), Marcello Pera’s “Perché Dobbiamo Dirci Cristiani” (Mondadori, Milano, 2008) and John Gray’s “Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of Utopia” (Penguin Books, London, 2007). These proposals are based on an understanding of the inadequacies and insufficiencies of the liberal lexicon and liberalism and set themselves to find a more profound foundation of liberalism in either community or religion. These proposals seem to cast away the specter of the “disenchantment of the world” – viewed by many as an inevitable consequence of Modernity – and rediscovering community and religion as the way for preserving liberal society. Introdução AS SOCIEDADES MODERNAS são recorrentemente confrontadas com o anúncio ou o panegírico da extinção das comunidades políticas, da dissolução das diferenças num mundo em uniformização e globalização, originado no crescimento de uma racionalidade materialista que relega as concepções religiosas e filosóficas para o plano meramente pessoal. Nos últimos três séculos assistimos frequentemente a estas exageradas certidões de óbito do fenómeno religioso e de “desencantamento do mundo”1. Comte, Marx ou Nietzsche, criaram as suas ideologias preparando o mundo para a inevitabilidade da confrontação com a inexistência do Criador, que, segundo perspectivavam, provinha do apogeu da compreensão moderna do mundo. Segundo a sua interpretação, os homens religar-se-iam segundo a nova * 1 Assessor do Instituto Diplomático, MNE. Max Weber, “Politics as a Vocation” in From Max Weber: Essays in Sociology, tradução e edição de H. H. Gerth and C. Wright Mills, New York: Oxford University Press, 1946, p.155. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 2 3 4 5 6 Ver Andrew Wernick, Auguste Comte and the Religion of Humanity:The Post-Theistic Program of French social theory, Cambridge University Press, Cambridge, 2001, pp. 153-220. Karl Marx e Friederich Engels postularam no seu Manifesto Comunista a união universal dos trabalhadores, sendo a sua última mensagem no manifesto “Proletários de todo o Mundo, Uni-vos!”. A ideia de que Nietzsche foi uma figura fundamental no surgimento de uma nova ideia política, o nazismo, é ainda hoje debatida, sendo, contudo, indiscutível que a nova percepção do Homem comportaria uma renovada estrutura comunitária. Uma das interpretações mais frequentes dessa ordenação é a o “anti-fundacionalismo de Foucault. Já Ernst Junger, Armin Mohler ou Oswald Mosley fundamentaram nas teses de Nietzsche a formulação da sociedade nacional-socialista. Ver a este propósito Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, Lisboa, 2008. Em particular, David Held Democracy and the Global Order: From the Modern State to Cosmopolitan Governance (1995), Cosmopolitan Democracy: An Agenda for a New World Order (com Daniele Archibugi) (1995) e Cosmopolitanism: A Defence (2003). NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 243 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião compreensão das coisas terrenas, abandonando assim as comunidades tradicionais, baseadas na fé e no costume. Em Comte as várias comunidades caminhariam para um culto da Humanidade, através da “filosofia positiva”, e encontrariam desta forma uma comunidade mundial em que se realizaria o sonho da racionalidade perfeita2. Na teoria de Marx, o mesmo sonho de uma “cosmópolis” subsiste na defesa do internacionalismo proletário, que se afirma nesta concepção como única construção social lícita à luz dessa interpretação do futuro do Homem3. Nos escritos de Nietzsche existe, da mesma forma, uma reconfiguração necessária da comunidade para que esta acomode a essência do laço preponderante entre todos os seres humanos, a “vontade de poder”4. A própria teoria liberal, que pertence ao núcleo duro da ideologia contemporânea, contribui, em muito, para a presente ilusão sobre o fim da comunidade e a emergência de uma ordem universal. A “razão”, como factor determinante da existência humana, impeliria, segundo a teoria de Kant5, a Humanidade a uma submissão a leis com a abrangência de toda a Criação e, através dessa obediência, constituir-se-ia uma nova jurisdição universal, com valor cogente. Recentemente, no mesmo sentido, os estudos de David Held6 debruçam-se, sob um ponto de vista liberal, sobre a forma como o mundo moderno e as suas interacções geram depreciação dos particularismos e fortalecem a “inclusividade” no seio da ordenação política. Estas características são um factor decisivo no mundo contemporâneo e nos processos de integração global que o caracterizam. A emergência do Liberalismo, contudo, parece ter resultado num tipo de sociedade diferente, onde as suas várias parcelas (indivíduos, famílias, grupos, associações profissionais) se encontram num estado de autonomia ou independência, ainda que muitas vezes meramente teórica, face à comunidade. O Liberalismo como ideia política, O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 244 expressão teórica desse impulso autonómico, apresenta-se, portanto, como uma ideia abrangente, capaz de proceder a uma organização da sociedade que prescinde de uma estrutura de univocidade política. Tal posição resulta na aposição de valores à comunidade política, como defendeu Rawls, a apresentação de uma concepção de Justiça desprovida de fundamento ontológico, e que se sobrepõe a todas as considerações de cariz religioso e moral. É neste desígnio de supremacia face às várias percepções de Bem e as finalidades lícitas da comunidade, que o Liberalismo se apresenta como ideia de neutralidade, superando assim a perspectiva religiosa enquanto ideia suprema da comunidade. A pretensão liberal de que o sistema de autonomia individual se constitui como cúpula neutral da organização política, pressupondo uma doutrina em que o Liberalismo e seus valores e objectivos possuem um valor próprio e auto-sustentado, não dependendo de perspectivas ou concepções culturais ou religiosas para a sua afirmação é amplamente contestado no nosso mundo, mas sustentado por autores liberais de todos os quadrantes, sendo uma das pedras-de-toque da sociedade contemporânea. A veracidade desta proposição é debatida por autores que a vêem como um erro que mina toda a nossa compreensão da política e pelos liberais que fazem a sua apologia, compreendendo ambos que se fala da própria fundamentação das sociedades ocidentais e que dessa concepção partirá toda a aceitação ou rejeição da forma como as comunidades se estruturam presentemente7. O Liberalismo tem dificuldade em conviver com a sua própria natureza enquanto ideia abrangente. Se por um lado se arroga como ideia motriz da sociedade, por outro lado, por considerar a autonomia individual como seu desígnio fundamental, apresenta algum pudor na delimitação clara do seu sistema de valores e das suas finalidades, permanecendo um enorme debate entre os que acreditam que as finalidades do liberalismo político se podem encontrar na própria compreensão liberal do mundo (a Autonomia) ou que se submetem a finalidades externas. No nosso tempo esta clivagem é patente pela forma como o Liberalismo, por si só, se apresenta cada vez mais como incapaz de dar soluções ao problema fundamental da obediência política, não comportando hoje o paradigma liberal, ou dizendo melhor 7 À aceitação da neutralidade liberal de pensadores liberais como Bruce Ackerman em Justice in the Liberal State, Yale University Press, New Haven CT, 1980; John Rawls em Justice as Fairness: a Restatement, Erwin Kelly (ed.), The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge MA, 2001; ou Ronald Dworkin, “Liberalism” in A Matter of Principle, Harvard University Press, Cambridge, 1985; responderam autores em sentido inverso como são os casos de Michael Sandel em Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge University Press, Cambridge, 1982; Alasdair MacIntyre, After Virtue, Duckworth, London, 1981; ou Charles Taylor, Sources of the Self, Harvard University Press, Cambridge MA, 1992. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 8 No Liberalismo Clássico a fundamentação última da ordem jurídico-política repousa num conjunto de axiomas religiosos que transbordam para a razão secular. No Neoliberalismo presente, por seu turno, a defesa das virtudes do sistema liberal é feito enquanto permite um conjunto de finalidades externas ao próprio liberalismo (progresso, bem-estar, segurança, propriedade) e não segundo a perspectiva de que o Criador colocou o Homem na Terra com o poder de tomar sua uma parte da criação que seria inviolável por outrém. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 245 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião “neoliberal”8, a capacidade para erguer uma sociedade fundamentada em axiomas que validem universal e racionalmente esta função social. Qualquer apologista da “escola liberal clássica” pode aperceber-se dessa incapacidade pela forma como a nossa justiça “liberal” comporta um sem-número de transacções involuntárias de propriedade, sem que estas sejam observadas como uma violação do direito fundamental à propriedade. Em sistemas políticos onde a referência política máxima é a Democracia, onde o valor principal é a Vontade da comunidade, como pode ser arguida qualquer concepção que seja superveniente e que possa evitar que a política recaia num despotismo maioritário? Como pode um sistema de propriedade individual defender a sua fórmula quando aceita que a Democracia, a vontade dos cidadãos, é a racionalidade última da argumentação política? As três obras analisadas por este artigo consistem em compreensões da referida incapacidade do Liberalismo Político dotar a comunidade de valores que sejam de maior valor normativo que a apologia da autonomia individual. Pierre Manent discute os condicionalismos comunitários (sociedade civil, discursividade comum, identidade, religião) que possibilitam a existência de uma sociedade liberal e democrática que não incorra na assumpção de que não existem normas externas a si. Este é um argumento que segue uma longa linhagem na filosofia política ocidental e cristã, concentrando a sua atenção nas condicionantes sociais indispensáveis à existência de um regime constitucional bem ordenado. Só numa sociedade em que existam crenças fortes acerca da ordem política pode repousar nas mãos da população o poder de eliminar dívidas, de transferir propriedade individual para finalidades colectivas, de decidir da vida e morte dos concidadãos. Essa condição do sistema liberal-democrático é possível apenas numa sociedade em que os laços vêm de um profundo sentido partilhado de Justiça. Onde não exista esse forte sentido colectivo, que coloque acima das transacções e opiniões políticas as estruturas civilizacionais que possibilitam a existência intocada de esferas de liberdade social, a liberdade dos indivíduos e das colectividades encontra-se à mercê da vontade das maiorias, predominando aí relações de força social e não de direito. O propósito da comunidade e em particular do Estado-Nação, é dotar os cidadãos de um enqua- O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 246 dramento que permita a manutenção de consensos, condição prévia do político, acerca dessas estruturas essenciais. A Nação é, dessa forma, segundo Manent, uma instituição geradora ou respeitadora da “sociedade civil”, afirmando-se como conjunto de elementos que transcendem o carácter meramente volitivo da política liberal. No conceito de Estado-Nação repousam os conceitos que subjazem a uma sociedade, os seus dogmas e postulados tácitos, que constituem o verdadeiro reduto da comunidade, a sua pressuposição colectiva. O livro de Marcello Pera desvia-se deste argumento político, quanto à natureza da comunidade. Ao invés de estabelecer a preponderância da comunidade na determinação dos significados das coisas humanas, Pera remete para as insuficiências da afirmação autónoma e não-transcendente do liberalismo que é timbre do nosso tempo. Sob uma perspectiva liberal, seguindo os trilhos marcados por Lord Acton, ou mais presentemente Joseph Weiler, o autor procura demonstrar de que forma o Liberalismo contemporâneo e os sistemas liberais não podem – como o não fizeram no tempo de sua concepção – prescindir de uma compreensão de Deus para revestir de carácter normativo as suas prescrições. Recorrendo a uma análise dos founding fathers do liberalismo, e à forma como estes repudiaram a construção de sistemas onde não existisse a presença ou o reconhecimento de Deus, Pera passa a elaborar uma justificação para a reordenação do sistema liberal, para a sua refundação ou recentramento no seio dos preceitos do Cristianismo. Contra as definições actuais do Liberalismo que postulam o afastamento da questão da transcendência da esfera pública (Rawls, Habermas, Rorty)9, o senador italiano pretende ancorar no liberalismo os preceitos da civilização judaico-cristã, como complementos essenciais para a interpretação e enquadramento dessa mesma ideia política. Se o argumento de Pera consiste na necessidade de um Deus que complete a construção do Estado fundado no jusnaturalismo liberal, o argumento de Gray acerca da Modernidade caminha no sentido de mostrar como as próprias concepções que possuímos na contemporaneidade sobre as relações entre a Religião e a Política se baseiam em falsos pressupostos de laicismo e irreligiosidade. Todo o laicismo que é apanágio do nosso tempo não é mais, segundo Gray, que um reflexo da visão cristã do Mundo, um Cristianismo segundo a perspectiva da Modernidade. O Cristianismo sem Deus, do nosso tempo e dos últimos séculos, vive de um conjunto de elementos cristãos que sofreram adulterações modernas: a crença no fim da História e na existência 9 Aquilo a que Pera chama “equação laica”. Pera, p. 25 e segs. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 Pierre Manent: A Comunidade como Intangível “A nossa democracia extrema, que intima ao respeito absoluto das identidades, junta-se ao fundamentalismo que pune de morte o apóstata. Já não há mudança legítima, porque já não há preferência legítima. Sob o flash da sua unidade proclamada, a humanidade imobiliza-se para uma adoração contínua e interminável de adoração de si” 11. 10 A irredutibilidade de posições e a crítica por vezes demasiado simplificada demonstram até que ponto os pressupostos para o debate racional se encontram inquinados. A título de exemplo veja-se a recensão de A. C. Grayling “Through the Looking Glass”, in The New Humanist, vol.122, n.º 4, Jul/Aug 2007. 11 Manent, p. 15. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 247 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião de um sentido da mesma, na perfectibilidade humana, na possibilidade da ciência dotar o Homem de certezas. Estas características são, para o filósofo britânico, apenas um longo epílogo do Cristianismo e um ressurgimento de conceitos cristãos despidos da sua espiritualidade e transcendência. Este é um severo ataque à pretensa neutralidade do ateísmo e do agnosticismo dominantes no ideário liberal observado em Pera, mais precisamente à ideia de que a política é, conforme o cânone contemporâneo e pós-moderno, mero fruto dos desejos do Homem e concepção independente das visões extra-subjectivas dos cidadãos. Esta concepção, de que todo o ordenamento político implica uma escolha positiva e nada equidistante perante as várias propostas político-morais de sociedade, vai ao cerne do problema do político do nosso tempo, tendo, por isso, gerado um apaixonado, ainda que comprometido, debate10. As três obras apresentadas são um reequacionar da forma como vemos o Liberalismo Político (nas suas formas clássica ou reformada), questionando o papel crucial que a contemporaneidade lhe atribui como ideia autónoma, fundadora, auto-suficiente ou equidistante e portanto, superior no plano político. As três obras apresentam-se como tentativas de salvar a sociedade e o ethos liberal, através da dotação de significados mais profundos a essa concepção política. No caso de Manent é a comunidade e as suas instituições sociais que têm a função de evitar o totalitarismo, a consequência lógica do liberalismo. Já para Pera é a religião e a perspectiva que a sociedade tem desta que tem esse papel de coluna vertebral da fórmula liberal, servindo-lhe de correctivo e de referencial interpretativo. Em Gray o Liberalismo é assombrado por um conjunto de mitos do passado que lhe dão um carácter agressivo, precisando o liberalismo de os substituir por formulações de maior benevolência. O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 248 Relativamente desconhecido em Portugal, Pierre Manent é um autor francês de créditos firmados, que goza de enorme aceitação no mundo anglo-saxónico e nalguns sectores da análise teórica política que se reclamam do legado intelectual de Leo Strauss. Depois do sucesso entre os académicos que foi a publicação de Les Libéraux12, uma história do percurso filosófico do liberalismo francês, que mereceu uma reedição em 2001 e uma versão em inglês pela Princeton University Press13, bem como da revificação da problemática tocquevilliana da democracia14, operada em Tocqueville et la nature de la démocratie (1982, reed. 1993)15, Manent surge com uma obra eminentemente política. Reflectindo, mais uma vez, na questão das condições da democracia, Manent introduz como característica essencial da democracia a comunidade e em particular o Estado-Nação, como forma política que permite a conjugação da responsabilidade colectiva com a possibilidade de uma realização em que os fundamentos da sociedade não se encontram sujeitos a um escrutínio permanente16. Este é um eco evidente da problemática de Alexis de Tocqueville que em De la Démocratie en Amérique (1835 e 1840), analisou a forma como a sociedade democrática e moderna poderia manter a sua estrutura intocada por determinadas visões igualitárias que perigam a liberdade. Afirmava Tocqueville que só através de um escrupuloso respeito pelas várias esferas da sociedade (a família, a comunidade e a religião) poderia a Democracia sobreviver sem que o impulso igualitário, uma força da mesma modernidade que origina a proposição democrática, tomasse conta do governo e destruísse as estruturas da propriedade e da autonomia humana17. Manent prossegue esta linha argumentativa e reflecte sobre as condições de permanência de esferas da vida social imunes à “vontade humana” (a autoridade 12 13 14 15 16 17 Editado pela Gallimard em 2001, após primeira edição de 1986. Sob o título An Intellectual History of Liberalism, trad. Rebecca Balinski, Princeton University Press, Princeton, NJ:, 1994. Uma descrição iluminadora do renascimento desta problemática por via de pensadores como Leo Strauss e Irving Kristol pode ser encontrada em Bruce Frohnen, Virtue and the Promise of Conservatism: the legacy of Burke and Tocqueville, pp. 90-118, University Press of Kansas, Kansas, 1993. Também traduzida para inglês nos EUA como Tocqueville and the Nature of Democracy, trad. John Waggoner, Rowman & Littlefield, Lanham MD, 1996. Contra a tese de Ernest Renan em “Quest’ce une Nation?” (1882) em que esta é entendida como subproduto das vontades de permanecer em comum, Manent apresenta a nação como um acervo de valores comunitários que constituem o próprio entendimento da comunidade. Valores que são prévios à vontade e ao seu auto-entendimento. Transformando assim o entendimento da própria definição de liberdade. Através desta inversão conceptual, a liberdade deixa de ser encarada como esfera de autonomia individual, para ser entendida enquanto capacidade dos indivíduos para obter determinados fins. Sobre este assunto a fonte clássica mais referida é o artigo de Isaiah Berlin, “Two Concepts on Liberty”, The Clarendon Press, Oxford,1961. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 18 Aristóteles, Política, Livro VI. Idem. 20 Manent, p. 12. 21 Manent, p. 14. 22 Este é um tema do straussianismo que Manent perfilha. Em “The Three Waves of Modernity” in An introduction to Political Philosophy: ten essays by Leo Strauss, ed. Hilal Gildin, Wayne State University Press, 1989, pp. 86-98, Leo Strauss observa de que forma a emergência da filosofia moderna, em particular a de Rousseau, compõe uma visão da comunidade como mero produto humano e como esta perspectiva conduz ao totalitarismo da perspectiva marxista. 19 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 249 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião paternal, o respeito pelos ancestrais, o respeito pelo divino, são redutos em que a vontade humana não consegue subverter as tradições estabelecidas), que, segundo Tocqueville, mantêm a possibilidade de uma sociedade livre da reinvenção totalitária. Esta reinvenção, segundo Manent, só pode ser limitada ou abortada através de uma estrutura identitária, que subjugue a vontade do presente às responsabilidades do passado. Como Aristóteles observou há mais de 2300 anos, os regimes democráticos, ao consagrarem como vinculativa apenas a vontade dos cidadãos, possuem a capacidade de não respeitar os anteriores vínculos da “cidade”18, sendo que por isso terão tendência para se tornarem uma máquina de extorsão dos pobres, a maioria, aos ricos, a minoria, e um regime de arbitrariedade que ninguém beneficia19. A razão de ser do Estado-Nação prender-se-ia com essa mesma representação histórica de continuidade que permite uma síntese entre a liberdade e a autoridade. Possibilitando que o presente tenha a necessidade e a capacidade de redimir o passado, torna-se possível que a política possua uma “memória institucional” onde reside a concepção do “justo” e do “injusto”20. A emergência da União Europeia, um projecto essencialmente político, é, no dizer de Pierre Manent, um perigoso desafio que não pode prescindir do Estado-Nação, dado o risco que constitui um kratos sem demos21. Onde não existe uma comunhão entre a comunidade e onde aquilo que é comum – o elemento que une e é prévio às perspectivas individuais dos vários membros que permite que um agregado humano se qualifique como tal – nasce o espectro do relativismo. Estamos aqui perante um ponto straussiano. Uma comunidade que não possui um conjunto de significações partilhadas sobre o que é Bom, ou que não é detentor das ferramentas civilizacionais para tal, trilha o caminho do relativismo (seja pela via historicista ou pela via igualitária), sendo que em tal concepção político-moral o papel do diálogo racional declina e perde qualquer importância. A aceitação de qualquer visão como lícita, porque situada, subjectiva e inconsequente na estrutura política é uma característica do totalitarismo, que a União Europeia, pela sua ausência de uma concepção de justiça supra-subjectiva que lhe sirva de identidade, parece perfilhar22. O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 250 O que o Manent descreve no capítulo dedicado à Democracia é uma interessante reflexão sobre o papel do Estado Moderno no mundo contemporâneo (poder-se-á dizer numa era pós-moderna). O Estado Moderno que tinha o papel de disciplinador e de nivelador na “disciplina napoleónica” é destituído em prol de uma concepção de governo como elemento respeitador e gestor de diferenças23. O Maio de 68, com todo o seu apelo autenticista e expressivista, é o grande momento de afirmação dos ideais do relativismo, que se condensam socialmente na perspectiva do Estado como mero administrador dos recursos colectivos e respeitador de diferenças insanáveis e insondáveis dos indivíduos. Ao conceber o Estado como mero administrador e não como elemento reflexivo da comunidade, a Europa (que tem como lema “a unidade na diversidade”), abraça como sistema de valores a abrangência e a tolerância. Sem possuir um sistema valorativo que não seja o respeito por todos os sistemas, como expressões de individualidade, o político reduz-se a uma acção arbitrária de resolução de conflitos que tem como propósito único a manutenção do próprio sistema político24. A crítica de Manent, embora velada, é evidente. Um sistema que se baseia na tolerância e na abrangência não possui em si os elementos que permitam discernir entre a posição lícita e ilícita, tendo por isso a incapacidade de traçar fronteiras entre os “seus” e os “outros”. Sem incorrer em dicotomias schmittianas, Manent denuncia a ilogicidade desta concepção de Estado, que se expressa no paradoxo de um Estado que não aceita a pena-de-morte para os assassinos, mas que pede aos seus cidadãos cumpridores que dêem a vida por si25. O Estado que não encontra diferenças que sejam passíveis de excluir alguém da sua égide e de remeter o indivíduo para fora da sua esfera de protecção (lançando o prevaricador na terra de ninguém do estado-de-natureza) é reflexo dessa decisão de não tomar posição sobre o que é ou não justo. Para Manent, o Estado-Nação é o ponto de equilíbrio entre a obediência e o voluntarismo, que permite que sejam preenchidas as condições para uma relação de justiça partilhada pelos cidadãos, residindo aí a verdadeira comunidade. Afirma: “É a comunidade política que mantém em conjunto e faz retinir todos os registos da palavra, e toda a comunicação verdadeira apoia-se nessa escala harmónica.”26. A inexistência dos significados partilhados de que se reveste a verdadeira comunidade é 23 Manent, p. 22. O autor descreve esta “ideologia” pós-moderna na frase citada que serve de mote ao presente segmento do artigo. 25 Manent, pp. 30-32. 26 Manent, p. 39. 24 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 Marcello Pera: Os Fundamentos Cristãos da Liberdade “Ma Atene e Roma non annullano a Betlemme, né Betlemme annulla Gerusalemme. Il cristianesimo è l’anima dell’Europa, non perché non si sia mescolato con altre culture, ma perché le ha portate ad unità, le ha articulate, fuse, composte in un quadro che ha fatto della terra in cui sbarcarono Pietro e Paolo il «continente cristiano».29 27 Escolhe kantianamente não ter escolhas, identidade ou matriz cultural, mas identificar-se com princípios abstractos. 28 Um império universal que o autor descreve na citação inicial. 29 Pera, p. 96. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 251 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião uma das razões da degenerescência da governação para a governance. A governação, relação entre governantes e governados que vai no sentido das normas que preenchem os sentidos da justiça da comunidade, é substituída pela governance, conjunto de acções político-administrativas que visam interacções com o exterior e não a relação directa com os governados, com vista à manutenção do Poder. Essa substituição é uma degradação da política em sentido clássico, uma vez que uma relação política, em que o interesse ou bem dos cidadãos não é a máxima regra, se torna em massa informe, uma sociedade em que a força (violenta ou não) triunfa e onde não existe lugar para qualquer bem-comum ou concepção de justiça (ou de “dever ser”) que sirva de orientação imparcial ao aparelho político. A Europa Unida é uma concepção política em que a comunidade recusa ter uma identidade substantiva27 e recusa uma concepção sobre qualquer forma de transcendência. A miragem do Estado Neutro, um equívoco da neutralidade da teoria liberal contemporânea, esconde apenas uma posição agnóstica e que possui claras implicações políticas: uma implicação de identificação e outra de delimitação, onde não existe uma fronteira inequívoca do “nós”, religiosa e cultural, onde impere apenas a identificação da aceitação do “outro” enquanto fronteira essencial da delimitação do “eu” ou do “nós”, não existe uma limitação espacial do domínio político, o que remete para uma estrutura imperial de Poder com todas as suas vicissitudes28. A outra incapacidade prende-se com a impossibilidade de dotar a comunidade de uma estrutura valorativa e independente das estruturas de vontade individual, que tenham a capacidade de formular e enquadrar concepções de justiça. Sem uma escolha moral concreta, o político tende a transformar-se numa mera declaração de intenções, ou numa mera gestão de diferenças com intuitos económico-políticos. Esta degradação dos vínculos políticos é diagnosticada por Manent e um ponto-de-partida para a reflexão teórica de Marcello Pera. O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 252 Prefaciado por carta do Papa Bento XVI, o livro de Marcello Pera é de interesse para a compreensão da encruzilhada liberal. Compreender de que forma o Liberalismo pôde prescindir de uma compreensão de Deus, até que, sem grande controvérsia, emergiu como pensamento “sem traço de divindade”30, é, possivelmente, a questão mais importante para compreender o presente das sociedades ocidentais. Apresentando-se como uma “ideia abrangente”31, o liberalismo contemporâneo interpreta-se como uma ideia dirigente da sociedade que prescinde das escolhas morais fundamentais, remetendo tais decisões para o foro privado/individual de cada membro da sociedade. Esta visão esquece que, no passado mais recente (sécs. XVII- XIX), as próprias fundamentações da liberdade, o liberalismo clássico, se encontravam intimamente ligadas a uma concepção teológica. Ainda que se tenha tornado ideia fundamental do nosso tempo, o liberalismo não conseguiu tornar-se num sistema de valores, numa concepção política que guarda as respostas fundamentais sobre as questões humanas. As variadas tentativas de transformar a liberdade individual em finalidade da comunidade (do marxismo ao anarco-capitalismo libertário) terminaram em descrédito ou sendo absorvidas por outras finalidades políticas sem essa finalidade libertária (progressismo, neo-liberalismo, social-democracia, sindicalismo…). Dessa incapacidade nascem inúmeros conflitos no nosso tempo, e a incapacidade do liberalismo responder a assuntos que lhe são directamente relevantes, como o caso de determinar os limites da “Vida Humana”, para que esta possa ser protegida juridicamente, é apenas um dos casos em que se demonstra de que forma o liberalismo se terá de socorrer de outras formas de pensamento (religião, filosofia, ciência, democracia), para a prossecução de suas finalidades. É no seguimento destas insuficiências do liberalismo, que hoje em dia parecem ser salientadas um pouco por todos quadrantes, desde a “crítica comunitária do liberalismo” à Teoria Crítica, que Pera conduz um argumento interessante acerca das origens e do espírito do liberalismo. Segundo este autor, o jusnaturalismo, a ideia de que a comunidade deve agir em conformidade com a Natureza e não com critérios voluntários, é um elemento essencial do liberalismo, servindo-lhe de limitação. Esta visão de Pera sobre Locke, os Founding Fathers, ou Kant, é fundamental, uma vez que este vê o Liberalismo enquanto forma política supra-democrática, ou seja, um reduto que 30 31 Richard Rorty in Pera, pp. 25-26. Na teoria política anglo-saxónica o termo descritivo é “comprehensive”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 32 Reduto máximo da expressão comunitária que serve de limitação ao poder dos indivíduos e que distingue os “regimes constitucionais” das “democracias” na tipologia aristotélica. Ver Aristóteles, Política, Livro IV. 33 Pera pp. 46-47. 34 Pera pp. 46. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 253 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião se encontra imune às pressões do político e que ordena toda a estrutura legislativa. As afinidades com Pierre Manent são evidentes. Onde em Manent a Constituição – em sentido clássico32 – se encontra nos preceitos comunitários, em Pera o reduto máximo da inteligibilidade do sistema liberal reside no Cristianismo, sendo este quem dota o liberalismo das várias finalidades e significados de que o Liberalismo, por si só, é incapaz de possuir33. Pera considera que o Cristianismo garante ao liberalismo, como já havia sido reivindicado pelos fundadores do liberalismo, um ponto exterior, imperativo, natural, uma formação que se baseia não em estruturas de arbitrariedade individual e colectiva – como as arguidas por Rousseau e seus seguidores –, mas na existência e submissão a um construção racional que se funda na Natureza da Criação. A essência jusnatural do Liberalismo, que Pera defende na senda dos grandes liberais clássicos, é um factor decisivo na obtenção de duas conclusões de relevo: que o liberalismo é insuficiente na sua formulação contemporânea e que a formulação contemporânea, ao rejeitar pressupostos religiosos na sua formulação, não só se afasta do desígnio dos seus fundadores, mas perde a sua inteligibilidade enquanto sistema de valores. O afastamento dos conceitos religiosos da “esfera pública”, da discussão central das nossas sociedades, acarreta, dessa forma, não apenas uma degradação do Cristianismo ou, se se preferir, da religião, mas a própria erosão dos conceitos formativos do sistema liberal. A liberdade, segundo a concepção jusnaturalista, que Pera observa nos liberalismos clássicos e que defende, não se funda num conjunto de axiomas de preferência, nas vontades comunitárias (mesmo as inconscientes e involuntárias que Manent releva), mas por um respeito por concepções de Humanidade que se encontram nas formulações do Cristianismo e que determinam a Igualdade do Género Humano34. A alternativa a estas concepções seria um Estado sem qualquer traço ético, uma agregação política que não se orientasse no sentido de obter quaisquer finalidades éticas benéficas para os seus membros. Pera rejeita esta formulação política, que parece estar “na mesa”, num momento em que as propostas políticas para a Europa Unida fazem uma apologia da neutralidade ou mera operacionalidade/funcionalidade dos preceitos jurídico-políticos. Por toda a obra é latente a compreensão de que num discurso O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 254 político depauperado de uma reflexão sobre os princípios éticos e religiosos, os conceitos que presidem ao respeito pelas liberdades de terceiros se encontram numa situação crítica. E da mesma forma, contra Habermas, Pera afirma que o patriotismo constitucional liberal35 não possui capacidade para fundamentar uma comunidade política como a Europa, dado que o seu apelo reside no que cada uma das várias interpretações europeias, as culturas nacionais, tomam por Europa e não por um conjunto de valores que residam na mesma. Pera fala da perspectiva do “patriotismo constitucional” de Habermas como um “cosmopolitismo” fundado em camadas de memória histórica (o Holocausto e os Totalitarismos e as lutas pela democracia, pelo Estado-Social, a paz e contra a hegemonia americana36) que nada têm de originalmente europeu. No mesmo sentido, uma união não se faz de diferentes perspectivas ou interpretações sobre um mesmo objecto, mas de perspectivas ou percepções comuns sobre a mesma. Construir uma Europa baseada em perspectivas sobre um mesmo objecto, a Constituição Europeia, ou outra, é proceder a uma falsa unificação, sem espessura37 para responder aos desígnios que dela se exigem e que só se coadunam com a existência de uma resposta ao desafio ético do nosso tempo38. Fundamentar o liberalismo é, desta forma, mais do que pretender inserir a religião na vida liberal, conseguir destruir os falsos pressupostos de neutralidade liberal que sustentam as formas de liberalismo que o estão a destruir e que será a grande razão para a reflexão que John Gray elabora sobre a Modernidade. John Gray: A Religiosidade do Secularismo “The age of utopias ended in Fallujah, a city razed by rival fundamentalists. The secular era is not in the future, as liberal humanists believe. It is in the past, which we have yet to understand.” 39 Passadas as ilusões do “thatcherismo”, onde se distinguiu com um livro notável que reabilitou F. A. von Hayek enquanto pensador político40 – numa época em que era visto como mero economista –, e do New Labour, por onde passou na década de 90, John Gray emergiu como crítico dos humanismos e um autor de relevo em termos 35 36 37 38 39 40 Pera pp. 79-86. Pera p. 84. Pera p. 86. Pera pp. 86-90. Gray p. 261. Hayek on Liberty, Blackwell, Oxford, 1986. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 41 John Gray, Straw Dogs: thoughts on humans and other animals, Farrar, Straus & Giroux, 2007. Ver Nota 1 deste artigo. 43 É interessante observar como as fórmulas liberais de declaração de direitos subsistiram num mundo em que as concepções deístas já não são afirmadas como fonte das mesmas. 44 John Gray interpreta na Modernidade uma obsessão com o Progresso, que é bastante similar à posição de Leo Strauss em Thoughts on Machiavelli (University of Chicago Press, Chigago IL, 1995.), onde esta é vista como a obsessão com a compreensão das leis da Natureza não para a submissão às suas normas (como é apanágio do pensamento clássico), mas para uma reformulação do mundo à vontade humana, perspectiva de que Maquiavel foi o grande precursor. 42 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 255 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião de pensamento original. Em Straw Dogs41, o seu livro anterior, o propósito era denunciar a inquietude do Mundo Moderno, a sua reverência pela funcionalidade, a religiosidade da produção e a incapacidade de gerar contemplação. Em Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, o autor tenta traçar uma genealogia do erro das sociedades modernas, no intuito de libertar o sistema liberal da sua fundamentação humanista, que, segundo este, impregna toda a vida ocidental. Black Mass não é apenas mais um livro de questionamento da sociedade ocidental, mas uma obra em que é traçada uma História da Modernidade e uma interpretação do Iluminismo e da sua descendência política e filosófica enquanto subproduto de uma mesma substância religiosa. O argumento não é, de forma alguma, original, mas encontra força ao longo das páginas do livro, onde se vão explicando os processos sob os quais o Cristianismo foi transmutado em “religião política” ou “religião secular” pelos intérpretes da Modernidade. A substituição da escatologia Cristã por um conjunto de elementos religiosos adulterados e imanentizados, onde a salvação do Cristianismo se metamorfoseia no Mundo Novo, no ponto ómega do Progresso, no fim-da-escassez do socialismo científico de Marx, no Comunismo de Estaline ou no Homem Novo do Nazismo é uma ideia que perpassa todo o livro. Contra as teses de “desideologização” ou de desencantamento do Mundo42, Gray mostra ao longo do livro como nada existe de secular no secularismo e como este se encontra decisivamente povoado por ideias que não são mais do que aplicações à mentalidade materialista da modernidade dos preceitos da religião. Tal tem implicações profundas na forma como apercebemos o nosso tempo, como a generalidade das comunidades ocidentais não questionam posições como os Direitos Humanos, que se inscrevem claramente numa tradição religiosa-filosófica há muito abandonada43, como as nossas sociedades apresentam o Progresso como uma imperatividade insofismável e inescapável, como vivem absorvidas com o controlo de imprevistos e de circunstâncias naturais44. O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 256 Como é evidente, existem numerosos conceitos do Estado Contemporâneo que saem maculados pela exposição de Gray, que expõe como a suposta neutralidade do Estado liberal e democrático o seu posicionamento não-valorativo45, a sua equidistância perante as formas de vida e as crenças morais, não passam de um simulacro, não sendo mais do que uma enfabulação com finalidades políticas. Se a religião formalizada é despromovida e subordinada ao domínio da esfera privada, a “religião política” torna-se hegemónica e traz consigo o perigo do Totalitarismo, a dogmatização dos cultos secularistas do progresso e o seu predomínio político através da máquina estatal. A “missa negra” a que o título original da obra alude, e que foi com enorme prejuízo retirada do título da versão portuguesa do livro46, é uma descrição da corruptela religiosa em que a nossa ideologia, a religião política contemporânea, se transmutou e que, na senda do milenarismo cristão, acreditando ser possível o estabelecimento da perfectibilidade humana e o estabelecimento da utopia no nosso mundo, criou uma “para-religião” da perfectibilidade humana47. A acção política, desta forma, passa da perfectibilidade moral, a busca da obediência ao preceito, à acção sobre o mundo e a tentativa de construção do paraíso terreno. A política e as próprias ciências do fenómeno político adquirem um significado radicalmente diferente do anterior, passando a visar não a compreensão ou explicação de fenómenos, mas a acção sobre o mundo, a erradicação dos seus males, do sofrimento à exclusão social. A sociologia engagé dos anos 60 e 70 que se destinou a eliminar aquilo que considerava serem as “doenças sociais” do seu tempo, nada mais foi que um estado terapêutico, que acreditou na eternidade das coisas físicas e na morte das coisas perenes, sem nunca se questionar sobre a legitimidade do enquadramento e das suas expectativas utópicas. O neoconservadorismo da Era Bush cai nesse mesmo erro, sendo uma tentativa “evangélica” de cumprir a missão divina de instaurar o paraíso terreno: o “Fim da História” liberal e democrático, da escatologia de Fukuyama48. O laço entre estas duas ideias é evidente e Gray é eficaz a demonstrar as semelhanças de weltanschauung entre o milenarismo utópico do socialismo revolucionário e a crença no carácter redentor da Democracia e “Destino Manifesto”49 americano que enformou a política externa 45 Atente-se no que foi dito sobre este assunto a propósito de Manent na p.10 deste artigo. A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas (Guerra e Paz, Lisboa, 2008) não parece ser um título capaz de descrever com as mesma precisão que a “missa negra” a forma como a religião cristã e seus mitos se apresenta para Gray como uma presença que mancha o pensamento liberal. 47 Gray, p. 23. 48 Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, Free Press, 1992. 49 O “Manifest Destiny” que corresponde à crença no carácter redentor dos Estados Unidos da América. 46 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 50 Gray, p.36. Em Gray p. 173, o autor descreve de forma muito interessante a relação entre Alexandre Kojéve e Francis Fukuyama que traduz para a linguagem neo-liberal e capitalista um conjunto de conceitos provenientes do marxismo, em particular a inevitabilidade da emergência de uma ordem capitalista. 52 Gray, p. 173. 53 John Gray descreve (Gray pp. 34;37;46) a forma como a violência e a guerra são, no mundo moderno, encaradas como forças descisivas, no sentido de fornecerem ao mundo o seu sentido verdadeiro. Gray descreve essa tendência como “optimismo beligerante”. 54 A crença numa relação directa entre os representantes da comunidade política americana na Administração Bush foi um assunto muito debatido a partir da véspera da tomada de posse, de no discurso pré-inaugural: “Tomorrow, I will take an oath and deliver an inaugural address. You’ll be pleased to hear I’m not going to deliver it twice. But I will speak about freedom. This is the cause that unites our country and gives hope to the world and will lead us to a future of peace. We have a calling from beyond the stars to stand for freedom, and America will always be faithful to that cause.” 51 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 257 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião americana dos últimos anos, numa característica amálgama de neoconservadores, securitários, nacionalistas americanos e democratas-radicais. Segundo esta aliança, o mundo pode e deve emular uma determinada interpretação do american way of life, sendo esta transição o último estádio da História. Segundo Gray, a perspectiva sobre o fim-da-história neoconservador está intimamente ligado ao problema central da Guerra Moderna e à forma como esta adquire na cultura moderna um carácter catártico e redentor. Gray observa como na Idade Média nenhuma guerra era vista como uma prática que poderia mudar o mundo50, mas apenas como uma última ratio na resolução de disputas. A isto se contrapõe a Guerra no Iraque, de clara feição neoconservadora, em que, apesar da multiplicidade de modos de acção possíveis, o conflito bélico é visto como um degrau para a obtenção de um Mundo Novo, dos “amanhãs que cantam” do capitalismo global51. Desta posição, claramente contra a política externa da Administração Bush, não podem ser depreendidos quaisquer alinhamentos políticos utópicos ou marxistas, uma vez que Gray claramente imputa aos neoconservadores americanos a forma mentis do trotskismo52, onde o carácter redentor da violência como portadora do “paraíso terreno” está, e se mantém, bem patente53. Daí que Gray dê caça a todos os movimentos modernos, às pretensões imanentistas das Utopias de esquerda ou direita, e a todos os que pretendem, como Bush, assumir relações directas com Deus através de “chamamentos para além das estrelas”54 ou da história das relações de produção. O problema encontra-se, segundo este, na crença de que o Mundo tem um sentido, que irá desembocar num mundo mágico, onde não existe “pecado” (seja este um erro racional dos iluministas, o espírito individualista do marxismo ou o anticapitalismo do paraíso “neocon”) e onde a humanidade se encontra em perfeita sintonia cósmica O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 258 com o Universo. Qualquer que seja a Fé que provenha da árvore imanentizadora55 da Modernidade, a prática encontrará sempre dificuldade em adequar-se à realidade, seja na crença absoluta da liberalização e da livre-iniciativa empresarial como panaceia – Gray traça uma brilhante genealogia do liberalismo como religião do mercado de Adam Smith a Margareth Thatcher56 –, seja na fé marxista na acção reguladora e omnipotente da centralmente planificada economia do Bloco de Leste, que vai ganhando adeptos por todo o mundo na sua versão adulterada. A crença de que vivemos numa era pós-religiosa é, segundo Gray, uma ilusão criada pelo Iluminismo, como forma de justificar todos os crimes (afogamentos colectivos, decapitações) da Revolução Francesa, é uma mera ilusão justificativa. Acreditar que vivemos numa época de superioridade face ao passado foi a estratégia encontrada para reconciliar a sociedade moderna com o facto de não conseguir transcender os mitos redentores do Cristianismo e defender a violência como forma de garantir a preservação contra a violência religiosa. Só através da criação de uma Paz definitiva no nosso mundo, se pode justificar a violência secular para terminar com a religiosa. É desta forma que o secularismo, através da Utopia, se crê acima da disputa religiosa e num “moral high ground”. Conclusões: Fundamentar o Liberalismo – Um Novo Liberalismo? As propostas dos autores, sumariamente apresentadas, passam pela inscrição do Liberalismo em estruturas de pensamento que o transcendem, evitando o monopólio da vontade humana como fundamento legislativo, que o liberalismo entendido como finalidade em si própria parece acarretar. Pretendem da mesma forma contrariar esta formulação, que parece gerar situações de ingovernabilidade ou situações em que os direitos são utilizados para destruir a fonte de direitos donde os primeiros emanam57. Quando tomados como princípios absolutos ou finalidades, a “autodeterminação” do indivíduo ou a inviolabilidade da propriedade, sem que estejam inseridos numa estrutura que ordena o seu alcance – um quadro interpretativo –, entramos no domínio axiomático, onde 55 A crença de que o homem tem na sua existência terrena a única dimensão existencial. Gray, pp. 108-131. 57 Grande parte da literatura conservadora do século XX parte do “paradoxo de Weimar”. A questão essencial para autores conservadores como Leo Strauss ou Eric Voegelin, que foram emigrados do Reich Nazi, prendia-se com as condições existenciais da democracia e com a forma como um sistema constitucional liberal, pleno de garantias e “evoluído”, como ainda hoje é proclamada a “República de Weimar”, permitiu a ascensão dos regimes totalitários. 56 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 58 Afirmações como “quero “x”, porque sim” são impedimentos a qualquer discussão racional e impedem qualquer diálogo que vise a compreensão ou fundamentação, tornando impossível qualquer fundamentação filosófica. 59 Gesellschaft no alemão original. 60 Gemeinschaft no alemão original. 61 O direito a desprezar os símbolos nacionais é hoje, cada vez mais, um direito consagrado nas estruturas legislativas e nas práticas sociais das nações europeias. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 259 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião nada é possível explicar ou fundamentar58. E os autores alertam com veemência para o perigo de explicar a liberdade com a liberdade, não explicando os seus benefícios numa escala de valores, mas apresentando-a como única finalidade possível. A obra de Pierre Manent propõe a Comunidade como elemento corrector do liberalismo. O Estado-Nação, uma forma específica desta, é, segundo o autor, a melhor forma de, recorrendo aos elementos que se encontram na sociedade, evitar o colapso do liberalismo sobre si próprio, evitando as consequências lógicas da Modernidade e do Liberalismo que concorrem para o niilismo e para uma sociedade desordenada. Aqui surge, porém, uma dificuldade na perspectiva de Manent. Ferdinand Tönnies estabeleceu, em Gemeinschaft und Gesellschaft (1887), uma distinção fundamental entre associações humanas voluntárias e involuntárias. Às primeiras chamar-se-ia “sociedade”59, enquanto que às segundas “comunidades”60. Emerge daí uma distinção imprescindível, que consiste em saber se o Estado-Nação presente não tem mais de “sociedade” do que de “comunidade”, ou seja se o elemento preponderante das nossas agregações políticas não é o carácter voluntário das instituições e a forma como um cidadão se pode não rever nas própria nação61. Este é, também, um problema tocquevilliano, sendo fundamental perceber de que forma na sociedade as instituições sociais naturais foram impregnadas pelo voluntarismo que caracteriza a ideia liberal e, por consequência, a ideia democrática. Analisando o problema, facilmente se poderá detectar que não estamos perante um Estado-Nação monolítico, mas perante uma “idealização” do conceito, dado em muitos Estados da Europa as estruturas sociais autónomas (onde segundo a teoria de Alexis de Tocqueville repousaria a essência da liberdade moderna) foram há muito adulteradas pelo Estado com o seu carácter voluntário e igualitário, assim como pela imposição dos seus princípios, sendo neste momento meros reflexos da ordenação estatal. A forma como o casamento e a família se encontram neste momento subordinadas a concepções meramente civis, sendo tomadas pela política e sociedade como matérias referendáveis, demonstram como essa “teoria da sociedade civil”, que Manent anexa ao Estado-Nação, se apresenta extremamente débil na Europa do nosso tempo. Onde o Estado parece ter penetrado as várias esferas da existência O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 260 humana, pouco espaço há para a autonomia organizacional das estruturas sociais. Nessas circunstâncias o papel do Estado-Nação enquanto elemento correctivo do carácter autonomista do liberalismo é dúbio, para dizer o mínimo. O argumento de Marcello Pera, encontra também um conjunto de problemas que se prendem com as particularidades do Catolicismo quando colocado perante o Liberalismo. Socorrendo-se da concepção constitucional americana do Divino, que é claramente influenciada pelo Deísmo lockeano62, Pera faz uma defesa de uma concepção do Divino como guardiã das normas do liberalismo. A aplicação do paradigma americano ao processo de constitucionalização da Europa encontra, porém, bastantes problemas conceptuais. Marcello Pera ressuscita as formulações do Constitucionalismo Americano, a ideia de um Deus tido constitucionalmente como um referencial externo que garante a igualdade e a vinculatividade da ordenação política, é uma parte importante do legado lockeano na tradição americana. Mas essa influência reflecte-se num dúplice problema: a formulação lockeana pressupõe a exclusão da ordem política de pessoas que não perfilhem essa visão protestante de Deus, sendo também uma formulação situada no tempo, com difícil transposição para o enquadramento católico. Ambas as objecções estão claramente interligadas. A primeira, a exclusão de católicos e ateus da sociedade, provém da própria natureza da revolução americana, um projecto de auto-governo que visava libertar do passado europeu as populações protestantes do Novo Mundo. Contudo, a influência de Locke e da vinculatividade jusnaturalista da constituição, tem vindo a ser erodida no século XX. Este facto representa um problema para a tese de Pera. Ou o autor toma como exemplo as teorias fundacionais americanas e se desliga do espírito do tempo actual americano, que já pouco reconhece o carácter imperativo da concepção protestante do Divino, e aceita como natural a exclusão dos católicos e ateus da ordem política (contra o espírito do tempo actual do liberalismo), ou aceita o espírito americano e a forma como as interpretações constitucionais presentes afastam qualquer relação com Deus da ordenação política. Não se verificando o espírito do tempo do momento fundacional da ordem americana, é difícil ver como tais conceitos poderiam ser transpostos para uma ordem constitucional europeia. O mesmo se pode aferir quanto à perspectiva constitucional americana ser transplantada para uma ordem com uma formulação social (aceitando verdade na tese de Pera de que a Europa ainda encontra a sua 62 Ver S.G. Hefelbower, The Relation of John Locke to English Deism, University of Chicago Press, Chicago IL, 1918. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 63 A concepção protestante aceita a comunidade política como realidade meramente humana, sendo por esse facto que toda a teoria jusnatural secularista se apoia nessas premissas. Já a perspectiva católica clássica, perfilhando o jusnaturalismo clássico, crê na comunidade política como ferramenta de propósitos que não os meramente seculares, como postulada pela visão de justiça política de São Tomás de Aquino. 64 Pera, pp. 49-54. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 261 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião formulação mental essencial, a base da sua cultura, no Cristianismo) onde imperem pressupostos católicos, dada a diferença entre ambas as visões da política, a cultura protestante e católica63. Da mesma forma, é bastante problemática a observação da forma como Pera tenta compatibilizar o hegelianismo de Benedetto Croce64 e a sua apologia do Espírito Cristão da contemporaneidade com o Catolicismo. Segundo o autor italiano, o liberalismo não pode prescindir do Cristianismo, uma vez que é esse o “espírito do tempo” que ainda predomina nos sentidos que damos ao mundo e nos valores de que o povoamos. Esta asserção esconde, contudo, uma afirmação mais profunda: que a assertividade social do catolicismo provém da forma cultural dos indivíduos e não da verdade intrínseca da sua mensagem. Coloca dessa forma o Cristianismo como fórmula mental das sociedades europeias, e dá-lhe, em virtude desse posicionamento, carácter de trave-mestra dos sentidos da sociedade liberal. A forma como Pera apresenta o Catolicismo e o Cristianismo como pura forma cultural, sendo independente da sua estrutura e hierarquia de valores e meramente dependente do sentir dos crentes. Ao colocar a questão nesses termos o Cristianismo torna-se líquido e modelável, podendo a qualquer momento ser confundido com formulações que lhe poderão ser opostas. Importaria saber qual a autoridade, bem como o quadro interpretativo, que, em caso de necessidade de esclarecimento desse espírito cristão, procederá à limitação do quadro liberal. Que autoridade poderá assumir a tarefa de interpretar os sentidos do liberalismo para que este não resvale no niilismo? Para John Gray, a fundamentação do liberalismo e a forma como este resvala invariavelmente em “religiões políticas” deve-se sobretudo à presença de mitos fundadores incompatíveis com a mensagem liberal. Onde Pera considera a necessidade de fundamentar o liberalismo na cultura cristã, Gray considera que a principal tarefa do liberalismo presente é apartar-se dos mitos cristãos que geraram a Modernidade e empreender uma refundação da sua fórmula mental sobre formas mais inócuas, mais capazes de preservar o respeito pela alteridade que fundamenta o liberalismo. Encontramo-nos aqui num momento pós-moderno de refundação do liberalismo, onde, ao estilo heiddegeriano, o próprio passado é visto como uma construção do O regresso da Comunidade e a ascensão da religião 262 presente, onde são as finalidades presentes a determinar o mito. Encontramo-nos assim perante uma solução ultra-moderna para um problema moderno, onde o desejo de alterar ou aperfeiçoar o paradigma existencial conduz a uma reconstrução da própria estrutura espiritual do indivíduo e da sociedade. Apoiando-se fortemente na obra de Hobbes e Oakeshott65, na observação sociológica das religiões orientais66, Gray apela a uma construção que rejeita toda a teleologia cristã e moderna, em favor de uma sociedade sem quaisquer finalidades transcendentes. Tal sociedade, afirma, respeitará a subsistência física e moral de todos os seus membros por possuir como finalidade política a mera contemplação do tempo e do mundo natural. Quanto a este ponto da reformulação do pensamento ocidental, os problemas com que Gray se depara são inúmeros, sendo o seu livro omisso quanto a quaisquer respostas concretas. Na base de todo o livro subjaz a ideia de que o Cristianismo é a causa motriz da Modernidade, não sendo, em grande medida, os dois conceitos absolutamente destrinçáveis. Tal pode ser observado na forma como Gray descreve o Cristianismo como principal força da Modernidade que determina o seu carácter teleológico e salvífico, dotando-se da capacidade de fazer o Bem e de nesse processo proceder a todo o tipo de crimes. É, contudo, fundamental retroceder um pouco, observando o que escreveram outros autores que se debruçaram sobre a Modernidade enquanto religião secular, para proceder a uma compreensão mais profunda da natureza do secularismo e da sua relação com o Cristianismo. Autores como Max Weber ou Karl Löwith postularam-na como reflexo da concepção judaico-cristã, da esperança do Cristianismo e da espera judaica67. Mas aquele que é, sem dúvida, o grande teórico das “religiões políticas”, Eric Voegelin, ancorou as formas ideológicas da Modernidade numa acção de “imanentização da escatologia cristã”, significando esta a redução do horizonte humano ao eixo de existência terrena, onde elementos claramente escatológicos como o Paraíso é transformado em Utopia, a salvação é transmutada na crença na perfectibilidade humana, onde a Fé é substituída pela certeza científica racionalista, onde a Paz Cristã é substituída pela ausência de conflito. Ao contrário de Gray, que vê no Cristianismo a fonte de toda a imposição sobre o “outro”, Voegelin define como problema estrutural da Modernidade o abandono da posição tradicional do Cristianismo, a metaxia, onde toda a avaliação da realidade repousa sobre uma visão do “outro mundo”, transcendente, 65 Gray, pp. 260: 294. As religiões sem catecismo aludidas em Gray, p.297. 67 Yotam Hotam, Gnosis and Modernity, in “Totalitarian Movements and Political Religions”, n.º 8 : 3, pp. 59-68. 66 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 68 O autor explica como a Igreja se opôs, na Idade Média, às religiões políticas, mas não discute a eficácia ou como esta resistência seria ou não eficaz no mundo de hoje. 69 Vários autores vêem como origem desta concepção de paz social como grande finalidade política, que terá importância fundamental na tradição política anglo-saxónica, na obra de Marsílio de Pádua Defensor Pacis. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 242-263 263 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião para uma concepção meramente imanentista do cosmos. Em Voegelin, a Modernidade é um Cristianismo degradado, onde os seus conceitos-chave foram substituídos por uma concepção meramente terrena, residindo nessa degradação a própria degradação do pensar contemporâneo. Em Gray, porém, o Cristianismo alberga tanto as ideologias modernas, como os preceitos tradicionais que se lhe opuseram, incluindo, desta forma, uma coisa e o seu contrário. O facto de Gray não explorar a forma como o Cristianismo e a Igreja se opuseram à concepção imanentista e secularista, apesar de a mencionar68, cria um problema de definição do que é o Cristianismo e de que forma se deve às suas concepções a fonte dos males modernos. A rejeição do Cristianismo e a sua substituição por mitos mais inofensivos, parte dessa premissa insuficientemente analisada, numa linha em muito tributária da filosofia política britânica de Hobbes e Oakeshott, onde a paz civil se sobrepõe às concepções de justiça provindas das posições filosóficas e religiosas da comunidade69. O desígnio de Gray de reconstruir a fórmula mental de toda uma civilização, desprezando os seus elementos constitutivos, com o propósito da sua pacificação decisiva, não corresponderá ao mesmo impulso e método das religiões políticas totalitárias? O Liberalismo encontra-se, na sociedade pós-moderna, perante um problema essencial. É ele a gramática comum da sociedade, o detentor de toda a fórmula discursiva de Direitos e Deveres, de esferas individuais, de premissas libertárias da comunidade e, contudo, dada a sua falta de subsistência metafísica e afirmação da sua visão peculiar do mundo, tornou-se uma concha vazia à espera de hospedeiros que lhe preencham os sentidos e definições. A própria história do liberalismo pode ser confundida com esse processo. O triunfo da discursividade liberal significou pouco em termos de sedimentação dos seus conceitos e mesmo o socialismo mais férreo se esconde sob o manto dos direitos laborais e das garantias adquiridas, para subverter as premissas do liberalismo. Da mesma forma, os autores e obras que foram observados procedem a essa mesma tentativa de dotar o discurso liberal de um conjunto de significados (clássico, medieval e moderno ou ultramoderno, respectivamente) que são estranhos à formulação liberal clássica da sociedade, buscando outras argumentações, mais amplas que o próprio liberalismo.NE Fauzia Nasreen* 264 Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, Embaixadora Fauzia Nasreen, por ocasião da assinatura do Protocolo de Cooperação Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão entre o Instituto Diplomático e a Academia His Excellency Ambassador Carlos Neves Ferreira. President of the Diplomatic Institute of Lisbon And Officers of the Portuguese Foreign Office I AM DELIGHTED to be in Lisbon – a city that has fascinated me for a very long time. I have been captivated by its mystique and charm. Equally charming are the people of Portugal. The warmth and hospitality which I have received since my arrival here has touched me deeply. I am thankful to the Portugese Ministry of Foreign Affairs and the Diplomatic Institute of Lisbon for making it possible for me to visit your beautiful country. My special gratitude goes to His Excellency Ambassador Carlos Neves Ferreira for organizing this morning’s activities. I am confident that the conclusion of the MOU which we have concluded today will be a precursor to a valuable partnership between our two institutions. I also attach great importance to the opportunity to share my thoughts with the officers of the Portugese Foreign Office on the foreign policy of Pakistan. My views reflect the understanding of a person detached from the official positions on day-to-day developments in the external relations of Pakistan. Let me at the outset remind you that, among the different factors influencing the foreign policy of any country are two categories of factors: the determinants and the variables. In the case of Pakistan by and large the determinants can be identified as • Geography or geo-strategic location of Pakistan; • Historical legacies and outstanding disputes; • Ideological and cultural moorings; and • Aspirations of the people of Pakistan. * Directora-Geral da Foreign Service Academy of Pakistan. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 265 Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão The most significant factor in the variables is the international setting and the regional environment. Since foreign policy is constantly operating within these paradigms and change is a constant factor, adjustments have been an imperative also for us. Building on the guiding principles of inter-state relations Pakistan’s foreign policy lays paramount emphasis on the internationally recognized norms which include sovereign equality of all states; non-interference in the internal affairs of other states; respect for the sovereignty and territorial integrity of all states; non-aggression and peaceful settlement of disputes. As a matter of policy we have desired to develop friendly and cordial relations with all countries of the world. As we all know management of foreign policy is a complex phenomenon especially for a country like Pakistan as we do not have the option of withdrawing into isolation neither we would want to exercise that option. Let me refer to our founder leader’s vision of Pakistan. It was of a country that desired peace and good neighbourly relations and of a country that was to be a moderate Muslim state. These ideals came into collision with disputes and conflicts that emerged as soon as the state was created. The exercised by the leaders in earnest good faith were inspired by making the country not only survive but stand on its own feet. Security challenges gave hardly any option and obviating vulnerabilities as well as sustaining defence equilibrium with the eastern neighbour dictated the direction of our foreign policy for several decades. The Cold War scenario also posed grave options for Pakistan. The foreign policy pursued reflected the interplay of domestic compulsions and opportunities and challenges arising from the global and regional developments. I will start with the most significant determining feature of Pakistan’s foreign policy that is the geo-strategic location. From time to time the nuances have changed while referring to our location. Our linkage with four important regions: South Asia, Central Asia, West Asia and the Middle East, has provided continuity in the foreign policy preoccupation. In the 21st Century Pakistan wants to leverage its geography by promoting infrastructure connectivity and by becoming a hub of economic and commercial activity and a trade, energy and tourism corridor. These can be actualized through foresight, determination and focused strategies. Our geo-strategic location is our inherent strength. Since one of the crucial objectives of foreign policy is to promote economic prosperity, Pakistan’s diplomacy and policy framework have progressively evolved to achieve these goals. The discussion automatically leads me to the perennial debate about security and economic prosperity or development especially on the question which takes precedence. It is being regarded as a crucible in the context of reconstruction and stabilization of Afghanistan and indeed some of our own regions. The arguments have so Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão 266 far produced inconclusive results but beyond doubt they are intertwined. Security in a broader context would imply comprehensiveness. An umbrella of secure frontiers with solid human security and strength that will make a country’s voice credible and powerful, occupy a pivotal position in the foreign policy calculations and effective diplomacy. As a major participant in the global efforts to curb transnational terrorism, Pakistan stands at an enhanced level of strategic relevance for the interested major powers. Therefore the geographical location can be regarded both as a bane and a boon. The success of any foreign policy is co-related to the degree to which national interests are protected and promoted. It is inherent in withstanding pressures and converting challenges into opportunities. More importantly it is in creating necessary space for maneuverability. Considering that “Pakistan’s foreign policy has been extension of its national security requirements” in my view to a large extent the foreign policy has managed to deliver. In the present day context as I see it Pakistan is confronting some challenges in the spheres of • Fight against teror and dove tailing the external demands with domestic clamourings; • Constructive engagement with main partners such as the United States, the European Union and China; • Utilization of external relations for the economic and social development of Pakistan; • Image building of the country and correction of misperceptions; • Conversion of the Composite Dialogue with India into a result oriented process; and • Developing identity of perceptions with Afghanistan on regional security and internal stability of Pakistan and Afghanistan. With regard to fight against terror there are no two opinions about the dangers it poses to Pakistan's own security, the region and the world at large. Its history in the context of Afghanistan is all too familiar to us. However the principled stand of Pakistan is intrinsically linked with its own security, economic prosperity, development, eradication of poverty and the welfare of the people. Therefore it has constituted a major plank of our foreign policy. Our decision to join the international community and the coalition against terror in the aftermath of 9/11 was to ensure: • Security of the country against possible threats; • Non-disruption of economic measures; • Safety of our strategic assets; and • Regional security. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 Ladies and Gentlemen, Allow me to dilate upon Pakistan's relations with some of our major partners. Establishing long term, broad based and strategic relations with major powers especially the US, EU and China is of abiding and strong interest to Pakistan. Notwithstanding the periodical hiccups the strategic interests of Pakistan converge with the US on wider spectrum of bilateral, regional and global issues. The relations have shown considerable resilience. The shared objectives of eradicating global terrorism and promoting regional peace and security have added impetus to these ties. The leadership of the two has reaffirmed their desire to extend the cooperative relationship beyond the war on terror to include areas of defense, economy, trade, investment, education and technology. During the recent visit of the Prime Minister of Pakistan to Washington, the US President described Pakistan as a "strong ally and a vibrant democracy" and reiterated interest in forging a long-term multifaceted relationship with Pakistan. However the latest spate of US violations of Pakistani NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 267 Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão The end goals of combating terror have remained constant. The means have to be molded in a way that they lead to the higher aims. With this central theme Pakistan has advocated a three-pronged approach resting on political and economic means backed by the use of force. Our commitment to fight terror has been unswerving. We are fighting terror because we believe that this is in our interest as we have been its victim. In 2007 alone there have been more than 2000 civilian casualties in various bombing incidents across Pakistan, including the loss of former Prime Minister Benazir Bhutto. The latest horrific incident of terrorist attack in Islamabad on 20th September is a gruesome reminder of the danger to our security. While it has strengthened our resolve to eradicate this menace, we also favor concerted action for formulation of a comprehensive strategy to counter terrorism in all its forms and manifestations. It is also an un-denying fact that terrorism and its heinous form of suicide bombings have created an atmosphere of fear, uncertainty and chaos depriving the nation of Pakistan of economic prosperity and geo-strategic dividends. It has restrained us from achieving our true potential. It has marred the image of Pakistani Diaspora, denying educational and employment opportunities for Pakistanis abroad. It is taking a heavy toll on the psyche of the nation. Hence there is an overarching consensus on effectively dealing with terrorism. This can be done by possibly separating the hard core terrorist elements and the pliable extremist elements and those who are willing to renounce terrorism and changing the mind set of the latter. Addressing some of the fundamental catalyst factors such as injustice, desperation, economic deprivation, social inequity and poverty could have salutary impact on the overall counter terror strategy. Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão 268 territory through predators has caused consternation and anguish with the Government of Pakistan spelling out that "any action against the militants inside our territory is the sole right of Pakistan." It also stated that matters would be settled diplomatically. The President of Pakistan, Mr. Asif Ali Zardari's meeting with President Bush on 23rd September in New York was aimed at arriving at an understanding that would facilitate achievement of our mutual interests. Exchange of views has therefore been useful. European Union’s global strength as a cohesive body gives it interests with wider reach and dimension. Pakistan is cognizant of its long term relations with the Union as a whole as well as with individual member countries. Pakistan’s relations with the European Union are multifaceted with special interest in political, economic, commercial and migration issues. EU is the largest trading partner of Pakistan with a bilateral trade to the tune of US $10 billion. EU is also the largest investor and its ODA to Pakistan spans areas of poverty alleviation and sustainable development. Pakistan recognizes with interest EU priorities in the areas of consolidation of democracy, poverty alleviation and curbing rise of religious extremism and militancy in our region. The political dialogue revived in 2004 serves as a useful vehicle for exchanging views and ideas on a range of peace and security and other political issues. It also enables the two sides to set the pace for mutual, collaboration. The next Pakistan-EU troika meeting at the ministerial level took place in New York on the sidelines of the General Assembly meeting. A comprehensive review of relations took place. Pakistan has underscored its desire to forge greater cooperation. A roadmap for such a consolidated relationship was also discussed between the two sides. My view is that with the EU’s eastward thrust our ties with the Union have acquired a new dimension. The dynamics of Central Asia resting on energy together with EU member countries in Afghanistan, Pakistan should figure prominently in the Union’s calculus. We value EU’s understanding and support for Pakistan’s multi-pronged strategy to deal with extremism and militancy. With the strength of experience and sense of history the EU can play a pivotal role in dealing with the complexities of the regional situation. I think I will be remiss if I did not talk about Pakistan’s relations with Portugal. In addition to our interaction with Portugal within the framework of the European Union whose Commission’s President is the illustrious His Excellency Jose Manuel Barroso, our two countries enjoy multifaceted bilateral relations. These range from defence and security to commerce and political related exchanges. We deeply appreciate the solidarity displayed by Portugal when the devastating earthquake struck certain parts of Pakistan in October 2005. Your assistance has been valuable and touched the hearts of many Pakistanis. The sharing of the grief of the people of NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 Ladies and Gentlemen, Pakistan and China enjoy close and time tested relations. The two countries have convergence of political interests especially in the preservation of peace and stability at the global and regional levels. Political fundamentals of bilateral ties are sound reflected in the frequent high level exchanges and mutual cooperation. Numerous consultative mechanisms exist for promoting cooperation, understanding and support for each other in international forum. The two countries have signed a large number of agreements to enhance relationship in various fields. The recent efforts are aimed at giving boost to bilateral economic relations to bring them to a higher level, compatible with the political content of relationship. With an eye on future perspective, expansion of relations in educational and cultural fields as well as people-to-people contact is being encouraged. In addition to Chinese assistance for mega-projects, the two countries have identified a wide number of projects under the Five Year Programme on Trade and Economic Cooperation. These projects are in the sectors of energy, agriculture and infrastructure. Pakistan and China as partners want to bring peace and prosperity to the region through further consolidation of their relationship. We attach seriousness to the pursuit of tension free and cooperative relations with India. Our two countries have come a long way from the tense period of the years 2001 and 2002. The Composite Dialogue process has been in place since 2004. The latest fifth round was launched in New Delhi in July 2008. Both sides have agreed on several confidence building measures to remove mistrust and improve the atmosphere. Foreign Minister of Pakistan during his June visit to India held useful parleys with his interlocutors. He emphasized the necessity of a meaningful, constructive and result oriented dialogue aimed at resolving the core issue of Jammu and Kashmir. Pakistan is in favor of greater trade and economic relations with India – a relationship that should be based on a win-win partnership. Pakistan also wants to promote large scale multidimensional ventures such as Iran-Pakistan-India and Turkmenistan-Afghanistan-Pakistan-India gas pipelines. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 269 Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão Pakistan who have been victims of terrorism is evident from the appreciation of our role in the fight against terrorism. Portugal’s sympathy expressed at the highest level over the grievous loss of the former Prime Minister Benazir Bhutto shows the acute awareness here of the tragic dimension of terrorism and the price Pakistan is paying for combating this menace. My earnest hope is that your country will, in the backdrop of strategic patience, facilitate our efforts in reversing this catastrophic trend globally and regionally. Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão 270 We remain hopeful that the recent adverse developments will not result in the frittering away of gains made over the last four years. Our national priority is on socio-economic development – a prerequisite for internal and regional stability. This objective can be achieved only if there is a stable and peaceful neighborhood. It is also in the vital interest of our neighboring countries to ensure that stability prevails in all the countries of the region including Pakistan. The condemnation expressed at the highest level by India over the tragic loss of innocent lives in the terrorist attack of 20th September indicates the awareness at the regional level about the grievous and catastrophic trend internationally. President Zardari’s recent meeting with the Indian Prime Minister in New York has been productive. The Composite Dialogue will be resumed in October and the meeting of the Joint Anti-Terrorism Mechanism will also be held at the same time. The Indian Prime Minister has also invited President Zardari to visit India. These are positive indications of a forward movement. Let me also briefly mention about our multilateral diplomacy. Playing an active role at the multilateral institutions especially the United Nations is a priority in the policy of engagement with the international community and playing a constructive role in the international system. This engagement is a cornerstone of our foreign policy. Compatible with these objectives Pakistan has maintained a high profile through active participation in the UN activities and election to important UN institutions. Our areas of prime focus have been projection of Pakistan as a moderate Muslim country, developing international consensus on issues of prime concern to us, development issues and reform of the UN Security Council. On the last issue Pakistan favors a kind of reform that will not exacerbate the divisions and discord among the UN members. Pakistan also contributed as co-chair of the UN High Level Panel for UN System Wide Coherence at the head of government level. The Panel’s report highlighted the deficiencies in the UN delivery mechanism at the country level. A number of measures were presented to address the issues involved. Pakistan was selected as a model country for implementing these proposals. Ladies and Gentlemen, Economic prosperity, social stability and development are the overriding objectives of any government policy. Foreign policy is no exception. The idea behind creating economic interdependence in the region is to ensure a favourable situation for all parties. This is to be achieved through bilateral, regional and multilateral mechanisms that would create stakes and bring dividends to all concerned. This NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 271 Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão entails target oriented engagement with major powers, the US, the EU, Asian, Latin American and African countries. Several initiatives have been undertaken to widen the scope of collaboration. Intelligent management of our geo-strategic location is imperative if we want to convert challenges into opportunities. Our linkages with four important regions mentioned earlier have acquired even more significance in the 21st century. We do hope that the on-going discussion on the Reconstruction Opportunity Zones with the United States will come to early fruition and that the EU would also show its action oriented interest in this venture. Our philosophy is that economic interdependence that ensures benefit to all can be achieved through prudent policies taking into account the enlightened self interest of all concerned. Creating stakes of all concerned will bring the desired dividends to the region. Let me turn to our neighbouring country Afghanistan. It is a very important country for Pakistan and the security of our two countries is interlinked. As far as Pakistan is concerned we have always stood by Afghanistan in times of trial and tribulation. We have hosted for over a quarter of a century, millions of Afghan refugees on our soil. We are facilitating their honorable and dignified return to their home countries. We have supported the Bonn process and have pledged $320 million of assistance. Pakistan is one of the leading participants in the reconstruction of that country. Today, both countries are facing the twin menace of terrorism and extremism. No country is affected more, or has more stakes in Afghanistan’s success in fight against terrorism and extremism than Pakistan. Common threats demand collective responsibility based on deep trust and mutual understanding. Both the President and Prime Minister of Pakistan have met the Afghan President recently with both sides reiterating common desire to move forward leaving behind the blame game. Pakistan will continue to make sincere efforts to address and allay Afghan misgivings with the expectation that the same maturity will be shown by the other side. In conclusion let me emphasize that all foreign policies operate within certain constraints and limitations. They stem from a number of factors. However in a democratic dispensation domestic constituency assumes enhanced importance. The contours of our foreign policy be they in the context of relations with the countries of the region, or major powers and Muslim countries, are framed on the basis of the changing realities of the international system and the world in the 21st century. Nothing is permanent but change. Therefore foreign policy has to take into consideration this factor on a continuous basis. Adjustments in emphasis and nuances are necessary and inevitable. I end with words of thanks to all of you for a patient hearing. I want to thank our very capable Ambassador Fauzia Sana who has coordinated arrangements with such care and attention. With her focused and meticulous approach, I can see that she has made substantial contribution in forging our bilateral relations and in particular in promoting mutual understanding between Pakistan and Portugal. I thank you.NE Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão 272 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272 Notas de Leitura 273 274 Leonardo Mathias* UMA AUTOBIOGRAFIA DISFARÇADA de João Hall Themido Editora: Instituto Diplomático, MNE João Hall Themido Uma Autobiografia Disfarçada NÃO É DA nossa tradição a publicação de memórias de diplomatas. É uma das razões que me levam a saudar este livro do Embaixador Hall Themido, conjunto de recordações de uma carreira brilhante e diversificada, que enriquecem os reduzidos testemunhos da nossa diplomacia em termos de obras publicadas. Terão sido redigidas em roda livre, como nos diz o autor, sem apoio de notas ou arquivos, e quando atinge os oitenta anos. Sem compromissos portanto e liberto * Embaixador. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 275-276 de responsabilidades que o pudessem inibir. Mas é uma obra, como o são os livros de memórias, circunscrita a um espaço, o que dá outro prazer à leitura pelo que revela de um mundo próximo onde os acontecimentos marcaram um tempo da vida portuguesa que o autor não tem a pretensão de criticar mesmo se, aqui ou ali, deixa escapar um comentário que pode ser assumido como tal. É uma história que as novas gerações desconhecem mas que terão de começar a estudar. O português clássico, das Necessidades, que se reconhece facilmente, retrata-nos momentos, cidades e países bem como personalidades que cruzaram a vida pessoal e profissional do seu autor: Tanger, com um episódio pitoresco que se não esquece; Nova Delhi, e o trabalho de cifra no período que vai anteceder a invasão e ocupação de Goa; Estocolmo e os trabalhos para a tese do concurso a Conselheiro. E ainda a compra em Roma da Vila Barberini que se fica a dever ao seu bom gosto e à sua noção da dignidade da representação externa do Estado. Depois os grandes postos da carreira, Washington, Roma, Londres, quando difíceis, complexos e inesperados desafios se colocam com mais regularidade aos Chefes de Missão. E antes disso ou entre essas capitais, o exercício de altas funções em Lisboa. São casos numa 275 Uma autobiografia disfarçada Uma vida dedicada à Diplomacia Uma autobiografia disfarçada 276 Carreira que fazem de João Hall Themido actor ou observador atento das graves crises que nessa altura o país conhece. E fala-nos da Rodésia, do Biafra ou da situação em Macau, entre tantos assuntos que surgem no contexto da política ultramarina e da sua defesa. Como alto funcionário cumpre as suas obrigações com competência e lealdade. E assim o Ministério, mobilizado, está sempre presente e nele a rica personalidade de Franco Nogueira que seduz os homens da sua geração, e tantos outros, e não deixa indiferentes os que discordam dele. Estes momentos, cuja história está ainda por fazer, precisam de obras como esta para se ir juntando às demais, que de uma forma ou de outra, contribuem para o seu estudo quando se multiplicavam as ameaças ao país velho de séculos e a sua acção em África era contestada por cada vez maior número de nações. “Uma política de compromisso seria fácil mas levaria, a curtíssimo prazo, ao desaparecimento do Império português, que era justamente o que se pretendia evitar”. Pertencia a um grupo de elite, diz-nos o autor, onde todos colaboravam de forma desinteressada para o bem do país, por puro patriotismo e sentido do dever. Posso comprová-lo. A este respeito o autor demora-se a referir a evolução das nossas relações com os Estados Unidos, onde teve o privilégio de servir durante mais de dez anos, antes e depois da Revolução de Abril de 1974. Neste último caso por inteligente iniciativa de Mário Soares, que assim demonstrava não estarem em causa as orientações gerais da política externa nacional. O Embaixador lembra-nos que com Kennedy na Presidência se tinham alterado essas relações para pior. Embora melhores com Nixon, acabariam por NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 275-276 ficar definitivamente comprometidas pelo ultimato do Outono de 1973, quando a guerra do Yom Kippur impõe a utilização das Lages pelas forças americanas em apoio ao seu aliado Israel, sem qualquer consideração pelos interesses portugueses na altura. Hall Themido é depois testemunha da tentativa de reparação que nos é feita. Merece assim a este respeito observar a leitura que o Embaixador em Washington faz destas realidades. Alude às relações entre Portugal e os Estados Unidos que antecedem de meia dúzia de meses a Revolução de Abril e depois a forma como trata dos avanços e recuos a que essas relações ficam submetidas. Nota alta justifica-se para a excelente síntese que é o retrato de Mário Soares ou para as menções a Sá Carneiro, Costa Gomes ou Vasco Gonçalves e, no lado oposto, para Kissinger ou Carlucci. A literatura política dos últimos trinta anos tem-nos dado conhecimento dessas vicissitudes. Mas aqui é um dos principais actores portugueses que nos descreve como viveu e o seu depoimento é despojado, como são as melhores Informações de Serviço do Ministério dos Estrangeiros. E para melhor esclarecimento dos factos, e conhecimento da personalidade do autor, observa ainda Hall Themido ter resistido a uma carreira política que Theotónio Pereira lhe proporciona e não ter autorizado Franco Nogueira a sugerir o seu nome como seu substituto nas Necessidades. Pela qualidade intelectual de quem o escreveu, pela maneira como alude aos homens, aos factos e aos momentos políticos e diplomáticos que acompanhou, este livro do Embaixador João Hall Themido é um documento que preenche uma lacuna e enriquece uma biblioteca. Por tudo isso vale a pena ser lido.NE Pedro Catarino* Um livro sincero e corajoso PORTUGUÊS de Luís Esteves Fernandes Editora: Prefácio LI COM PRAZER e interesse o livro de memórias de Luís Esteves Fernandes, muito bem sintetizado no excelente prefácio de Teresa Patrício Gouveia. Constitui uma contribuição interessante e valiosa para a história político-diplomática dos anos abrangidos pela sua longa e brilhante carreira (1920-1961), mas dá sobretudo * ao leitor a imagem e o sabor do exercício da profissão de diplomata, quer nos seus aspectos substantivos, como agente da política externa e representante do seu país e como observador privilegiado da realidade política, quer no respeitante à gestão do quotidiano no relacionamento com a sua capital e com os meios locais. É o próprio LEF que o diz quando na introdução sublinha que “se começasse a desfiar o rosário, seria um não acabar”. Por isso propôs-se descrever em pinceladas largas o essencial das situações que foi vivendo, para o leitor ter a percepção da atmosfera em que actuou, acrescentando as reminiscências da sua experiência pessoal que mais vivamente permaneceram no seu espírito. E fá-lo com notável espírito de síntese, com a perspicácia de um observador inteligente e culto e com a maturidade e profundidade de um profissional experimentado e de alto calibre. Anote-se que as memórias são escritas, conforme nos é revelado pelo seu filho, que em tão boa hora decidiu editar o presente livro, entre 1964 a 1966, sendo portanto uma retrospectiva dos factos relatados. Após umas considerações preambulares e um capítulo dedicado a “Portugal no início do Século XX” e outro sobre “a Universidade Embaixador. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281 De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português DE PEQUIM A WASHINGTON. MEMÓRIAS DE UM DIPLOMATA 277 De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português 278 e início de carreira”, acompanhamos o percurso de LEF através de uma sucessão impressionante de postos, todos eles postos de topo, de grande relevância política. Vale a pena atentar nos títulos altamente sugestivos dos diversos capítulos, correspondentes a cada um dos postos e nas respectivas datas, para se ter ideia da riqueza e intensidade das experiências vividas por LEF. Bem diz LEF no preâmbulo: “só um cego ou um surdo não teria muito que contar em situação semelhante à minha”. Vejamos os capítulos: A China pós-imperial face ao colonialismo (1925-31); a França exangue (1932-33); Necessidades (1933-34); Reino Unido – ocaso de um Império (1934-35); África do Sul: a fénix Bóer renasce (1935-37); Sociedade das Nações – corrida para o abismo (1937-38); Espanha – triunfo dos nacionalistas (1939); no Japão da 2.ª guerra mundial (1940-45); Lisboa – Direcção-Geral dos Negócios Económicos e Consulares; primórdios do multilateralismo (1946-50); Washington de Truman a Kennedy; anticolonialismo onusiano e a política de avestruz (1950-61). LEF deixa patente a alta qualidade da sua prestação profissional como diplomata, bem como a sua dedicação à causa pública, ao mesmo tempo que mostra a sua forte personalidade e o seu espírito independente, fortalecido por uma visão universal e humanista, refinada certamente pela diversidade das suas experiências nas cinco partidas do mundo. Há dois postos que o marcam de uma forma mais profunda, o que se sente pela forma emotiva e pessoal como a eles se NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281 refere, pouco habitual para a personalidade fria e analítica de diplomata como era a de LEF. Trata-se da China e do Japão nos quais vive situações de natureza muito diferente que lhe suscitam sentimentos também muito diferentes. Publicou aliás, em 1948, um interessante livro intitulado China de Ontem, China de Sempre, constituído por “esbocetos da vida chinesa” escritos durante a sua estada em Pequim. Estes dois postos terão contribuído, mais do que quaisquer outros, para o amadurecimento da sua atitude e personalidade. Talvez por se tratar de sociedades e culturas tão radicalmente diferentes da nossa, cujo contacto nos induz a um esforço reflexivo sobre nós próprios e sobre as nossas idiossincrasias, talvez por ter em ambos vivido situações extremas de enorme intensidade emocional correspondentes a períodos críticos da história da China e do Japão, ou talvez pela escala do sofrimento humano cuja proximidade sentiu, esses 2 postos terão gerado em LEF uma impressão e sentimentos tão profundos. As experiências nos restantes postos, à excepção de Washington, embora tenham sido sempre em lugares pairando nos cumes da política mundial, foram passagens mais ou menos fugazes – nunca ultrapassaram os 2 anos – que serviram para amadurecer o seu espírito, diversificando e aprofundando a sua experiência. O seu relato e as suas observações sobre tais postos não são contudo menos interessantes. Finalmente Washington, onde permaneceu 11 anos, foi o posto que culminando embaixada, as instruções de Lisboa primavam pela carência, o que não importava, acrescenta. Refere com ironia que, aquando da sua partida para Pequim se despediu do seu Ministro, um homem culto e inteligente, acrescenta, este lhe fez um relambório sobre a epopeia dos descobrimentos dos portugueses sem lhe dar uma palavra de directivas ou instruções. Depois do seu regresso, após durante 5 anos ter vivido situações inimagináveis de tumultos civis e militares e um fervilhar das ambições das grandes potências, LEF foi apresentar-se ao novo Ministro. Este, já do novo regime, na época cognominado de Revolução ou Ditadura Nacional, faz-lhe também um relambório glorificando a nossa epopeia dos descobrimentos e missão civilizadora. Nem um comentário ou informação lhe pediu sobre a sua estada na China ou qualquer outro assunto. Em Paris, a chancelaria era escura e suja, definível no vocábulo – inverosímil. A posição portuguesa consistia no alheamento total ao que se passava na Europa. E quanto a África só na hora zero é que se reagia. “Santa Bárbara só é lembrada, quando troveja, ao menos no Palácio das Necessidades” – observa LEF. Em Londres, LEF lembra a diligência feita por instruções de Lisboa junto do Foreign Office no sentido de apoiar a invasão da Etiópia pelo exército italiano. E, no final da sua curta estadia em Londres desabafa: “desencantado como estava com os meus dias em Londres, ingratos e frustrantes, recebi agradavelmente a notícia da minha próxima nomeação para a União Sul Africana na qualidade de Encarregado de Negócios”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281 279 De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português a sua carreira, num período de grande intensidade política para Portugal – a pressão da ONU em relação à política colonial portuguesa, o assalto ao paquete Santa Maria, os ataques dos movimentos de libertação em Angola – faz sobressair o choque, sempre latente desde os tempos iniciais da sua carreira, entre a sua personalidade e a visão e espírito aberto que tinha do mundo e a sociedade fechada, arcaica e dogmática prevalecente no Portugal de então. Este embate, superlativado no período final da carreira de LEF, vem de certo modo fazer-nos compreender o desencanto e a acidez com que vai comentando as dificuldades com que se foi sempre deparando, resultantes de uma administração que não consegue dar coerência aos seus esforços, nem superar as suas contradições. Assim, logo após ter concorrido ao Ministério, embora tenha ficado em 1.º lugar no concurso de admissão, a nomeação para a primeira vaga é dada a um afilhado de casamento do Presidente Bernardino Machado! Dentro da legalidade, sublinha, por se tratar de um antigo revolucionário, agente consular na Galiza no tempo das incursões monárquicas. As descrições que faz do Ministério são cáusticas: um alguidar de lacraus, o ar que se respirava no domínio intelectual asfixiava, o trabalho… uma rotina monótona. Mas não havia razão para preocupação, no dizer de um velho director-geral dirigindo-se aos colegas mais jovens, que cita “isto era assim ainda os senhores não eram nascidos, assim continuará e todos vamos vivendo”. Na Embaixada em Pequim, apesar da existência de Macau, que justificava, nas palavras de LEF a própria existência da De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português 280 Enquanto na África do Sul conta que se desloca a Lourenço Marques para consultas com as autoridades da colónia, mas estas pouco ou nada se mostraram interessadas. Observa LEF: “à maneira portuguesa, prescindíamos da preparação, confiantes nos nossos dons de improvisação, de que usamos e abusamos”. Em Genebra, LEF, nos meandros da diplomacia multilateral, refere alguns episódios reflectindo a posição do Estado Novo para o qual a Organização Internacional do Trabalho era um antro socialista comunizante que transformava o equilíbrio social existente. Uma das questões ali debatidas dizia respeito às responsabilidades imputadas a Portugal no comércio de ópio em Macau. Foi um posto em que mais uma vez primou a falta de instruções. Depois de uma breve estadia em Espanha, em San Sebastián onde funcionava a capital, LEF é colocado em Tóquio como Ministro à frente da Legação de Portugal. Antes de partir vai despedir-se do Ministro das Colónias uma vez que a razão de ser da Legação em Tóquio derivava da presença portuguesa em Macau e Timor. O titular daquela pasta alude ao desmembramento da China e ao dinamismo da acção japonesa e recomenda a LEF, pasme-se, que procure obter o apoio nipónico para a resolução do velho litígio Portugal-China – a questão de soberania sobre a Ilha da Lapa! No regresso a Lisboa, LEF, diz que na Secretaria de Estado deparou com um deserto e desabafa: “senti-me isolado em país estranho”. O espírito de solidariedade e de camaradagem primavam pela ausência. Em relação à decisão do Governo português de recusar o Plano Marshall e dispensar qualquer ajuda financeira, empréstimos NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281 ou dádivas, comenta: “pobres, atrasados e arrogantes”. As observações e críticas atrás referidas, escolhidas entre tantas outras, reflectem o estado de desânimo que ganhou o espírito de LEF e têm tanto mais força quanto a sua estatura moral, profissional e intelectual é bem reconhecida. Em Washington e perante a política colonial do Governo, virada para o passado, irrealista e sem futuro, LEF esforça-se por introduzir alguns elementos de dinamismo que fizessem quebrar o dogmatismo daquela política. Fala com o Subsecretário do Ultramar, com o seu Ministro, na altura Franco Nogueira, com o próprio Salazar. Sugere um referendo em Goa, relatórios apresentados à Assembleia Nacional e fornecidos a título de informação à ONU, a criação nas províncias ultramarinas de escolas, liceus e universidades, a participação dos Governadores de Angola e Moçambique no Conselho de Ministros. Sugestões sempre rejeitadas, sem debate e sem discussão. Fraca a influência dos diplomatas, se poderá concluir, sobretudo quando se trata de aspectos da política do Governo consideradas por este como fundamentais. LEF sente por outro lado a falta de informação que deixa por vezes a embaixada em situações de embaraço, a retórica vazia das nossas posições oficiais, os actos e decisões insensatas. Desiludido, frustrado, desanimado, LEF pede o regresso a Lisboa para se reformar. Ainda lhe é oferecido o prestigioso posto de Londres e o cargo de Secretário-Geral, chefe da carreira. Recusa em ambos os casos. são um excelente meio de transmissão da experiência passada às novas gerações, que assim vão gradualmente recebendo e incorporando na sua capacidade genética um acervo de conhecimentos e faculdades essenciais para o exercício da sua profissão. Neste contexto, as memórias de LEF constituem um importante contributo e devemos-lhe a nossa gratidão por ter tido a generosidade de as ter deixado. Concluo, com um episódio que me foi contado pelo nosso saudoso colega Eduardo Condé, já falecido. Ele estava colocado em Washington no período em que o embaixador era LEF. Outro colega mais novo, António Cabrita Matias, também já falecido, acabara de chegar ao posto e Condé apressou-se a acompanhá-lo ao gabinete do Embaixador para os cumprimentos da praxe. LEF era um homem alto com uma figura imponente e austera. Levantou-se cortêsmente para cumprimentar o novo secretário de embaixada, que com o nervosismo da sua inexperiência e timidez, pegou na mão do velho embaixador e beijou-a respeitosamente. Muitas vezes pensei neste episódio, nos 4 anos e meio que estive em Washington, onde, como LEF, terminei, 45 anos depois, a minha carreira no estrangeiro.NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281 281 De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português Permitam-me uma reflexão final. A força da diplomacia é ditada muitas vezes por factores intangíveis que não podem ser quantificados e que se ligam à qualidade dos diplomatas. Tais factores prendem-se com a experiência acumulada através dos anos e que vai sendo absorvida por uma grande diversidade de meios pelas novas gerações. É claro que é essencial que a diplomacia demonstre capacidade de se modernizar, adaptando-se aos novos condicionalismos e desafios da sociedade e que neste sentido vá sempre renovando e actualizando os seus métodos de actuação e a sua própria mentalidade. Mas tratando-se de uma profissão em que as relações humanas são tão importantes e que põe em confronto os seus agentes com uma tão grande diversidade de culturas, mentalidades e interesses, haverá sempre um savoir faire que só se consegue afinar através da experiência. Portugal, com uma história de mais de 8 séculos e com uma riqueza de contactos de longuíssima duração e enorme diversidade, tem uma diplomacia que se vem exercitando há muitas gerações em toda a espécie de tratações e com toda a espécie de povos e países. É claro também, saliente-se, que a diplomacia vale o que valer o país que representa com o seu substrato social, peso histórico, nível cultural, desenvolvimento económico, com a força das suas instituições, com o seu nível científico e tecnológico, com a sua coesão. As memórias dos nossos diplomatas sejam elas análises sócio-políticas ou meras reminiscências pessoais do seu quotidiano Rui Reininho* Compositora e Intérprete Letra e música 282 LETRA E MÚSICA de Paulo Castilho Editora: Oceanos NADA NEM NINGUÉM pode ser tão ou mais refrescante do que uma memória; estendida, bem ou de males passados ela é forçosamente a origem de um romance, já que a matéria sintética de que se servem os poemas não se estende o suficiente até aos finos rebordos de uma pizza média, familiar. As décadas, eras prodigiosas que se contêm em ciclos mais ou menos menstruais arrumam-se em estantes, com os discos, os * Compositor e intérprete. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284 albuns de fotografias e os outrora livros de razão: reconhecemos aqui e ali uma brecha da cultura de cada um mas, sobretudo a civilização. Os diários, os escritos, é mais em gavetas, baús e sotãos; as músicas brotam das caves como os musgos e líquenes, os cogumelos e outras alucinações. Londres, Sintra, as avenidas (ainda) novas, um Maio soixanteouitarde, “we all come to look for America...”. Não houve coincidências – os que primeiro pousaram aos pés da Loura Albion para ouvir a Lola dos Kinks, sabiam de antemão que esta fora a britania dos mods, dos teddy boys, até dos cockneys. Sob um céu vitoriano de Camdem em que os taxistas não param de falar, para citar alguém de origem irlandesa e coração de leão. Aos primeiros acordes de uma guitarra eléctrica, antes e durante o choro azulado de um blue num pub dos arredores, quantas freaks de boas famílias não sonharam pertencer à psicadélica minoria que haveria de substituir o lema ‘Honny Soit qui Mal Y Pense’ pelo leitmotiv “sex’n’drugs and rock’n’roll”? A linha IMaginot de Cascais e do Estoril de príncipes exilados, a Granja Fozeira com Perdemo-nos da Mónica por um par de anos e isso custou-nos uma nova década. Apareceu-nos uma lisérgica nuvem ácida de novos ventos, ainda mais ambígua e decadente com um Bowie aos comandos de uma nave futurista, decadente, camp; a moça portuga que toca por aí então chama-se Ana Silva e as...Raincoats. Um adido cultural da embaixada portuguesa na altura submete-nos uma banda com um maxi single de uns tais Police e um tema (Rock Sand? Roxanne?) e a Mónica Mendes é uma giraça que tem um programa musical de autor na Rádio Comercial; o Rui Reininho é uma personagem de um conto (curto) do Pedro Paixão que se passa algures entre o Aniki BoBo e a Boavista do Porto. Sim, esse que odeia lavar pratos mais do que um dia, troca pences nas lavandarias às senhoras bifas (Hi, Love...) e sonha conhecer o Brian Eno e tocar no Marquee ou no Astoria enquanto entorna pints mornas no 100hundred Club. Todos fomos mais ou menos Mónicas, sonhando com o mais glamouroso palco da europa/mundo que se poderia abrir para as américas, lá Jefferson Airplane e a sua Elkie Brooks, se calhar a Janis Joplin, mesmo a Judy Blue Eyes ou a Joni Mitchell. A diplomacia é, segundo os grandes mestres, Paulo Rocha realizador no Japão e Ian Flemming em todo o lado, um nicho de espionagem privilegiado de comportamentos e criações. Quando não se confundem nas volutas da poesia, no ópio da política ou nos contornos das azeitonas dos gins mais ou menos secos, temos al fresco argutos nacos NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284 283 Letra e música os seus aristocratas arruinados, a Figueira mai-los do putsch Coimbrão summer 69, ei-los a bordo do trem expresso Marrakech, Stones, yardbirds e outros pássaros exóticos do terreiro. O Soho das pegas e boxeurs como o Bairro alto dos Faias e Severas dos papás, num voo kamikaze suicidário pós-guerra que não deixaria pedra sobre pedra da velha Miss Europa, entretanto viúva. E a Mónica. M de Matou, dial M for Murder. A aventura vivida essencialmente no feminino, como só Almodovar faria renascer mais tarde, com uns homens acessórios, fracos, inúteis e imprestáveis para lá das suas erecções e companheirismos, ver cumplicidades: a história começa, o quadro compõe-se e demoramos páginas emocionantes de câmara à mão sem nos apercebermos do sexo da primeira pessoa; ela mantém-se indefinida, como os cabeleireiros e as drugstores ambíguas da época. Confusão de sentimentos, diria Somerset Maugham mas também Oscar de realização para Wilde (e Waugh, no seu BridesHead, visitado pelos Vingadores de guarda-chuva, chapéu de coco e as minis op-arte de Miss Peel). A swinging London, por um lado Pop Beatle, condecorada pela rainha até cuspida pelos punks de Chelsea, a seita de Malcom Mclaren: o Blow-up de Antonioni com a guitarra bluesy a desfazer o amplificador no pesadelo de overdose de Hendrix, o hino do ultramar, o nosso Vietnam em Angola ou na Guiné. Letra e música 284 de prosa, pinceladas subtis que perduram pendentes em quadros vivos, nas casas, nas estradas e nas cidades que visita. O conde Drácula nunca entraria no sistema circulatório de uma casa (na Matilde) sem ser convidado: a Isabel é o Filipe mais o Pat menos o Chaz mais a mãe menos o arquitecto. O nosso ponto de vista, é o da Joana que já não sonha com o jesus christ superstar nem o Oh calcuta nem a ratoeira da Agatha Christie e o general hospital, os tin soldiers and nixons coming, a L.A. woman que diz: “conheci a Mónica muito bem, sou co-autor das canções”. Nem o de personagens que vivem na real idade, como tentou a popstar da Rebelo Pinto ao deitar-se com o Robbie Williams em High Street Kensington. Mas este livro dava um filme (outra Letra e Música, com Hugh Grant e a Drew dos Barrimore). Como um bom velho vinho e uma mota vintage e ao som do “Born to be Wild do nosso SteppenWolf: Gostámos mais do livro...NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284 Vasco Graça Moura* Algures no Mediterrâneo EM CAPRI OU O DIÁRIO ITALIANO DE GORKI de Marcello Duarte Mathias Editora: Oceanos COM UMA ESCRITA despojada e flexível, precisa e sugestiva, que sabe distribuir os materiais segundo uma economia criteriosa de modo a assegurar o ritmo da narração, é capaz de grande atenção aos pormenores cenográficos (paisagens, lugares, referências históricas, atitudes, gestos...) e, last but not least, dispõe de uma agilidade de formulação aforística fora do comum, só comparável à de Agustina * Bessa-Luís, este Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki, de Marcello Duarte Mathias, coloca uma série de problemas muito interessantes. O primeiro é o da remissão para o contexto histórico em que as coisas acontecem. O radicalismo político e a proximidade ideológica de Máximo Gorki com os social-democratas russos (os futuros bolcheviques) tinham-lhe valido a atenção da Okhrana, a polícia secreta russa, e também, por mais de uma vez, a ida para a prisão. Como escritor, Gorki já era célebre no seu país a partir de finais do século XIX. Em 1902, em represália pelas suas simpatias revolucionárias, o czar Nicolau II tinha anulado a eleição de Gorki para a Academia Imperial, o que levara à demissão de escritores como Tchecov e Korolenko e do matemático Markov. Depois da tentativa revolucionária gorada de 1905, o escritor, por razões de saúde e também por razões políticas, instala-se em Capri no ano seguinte. É aí que vai viver durante sete anos. E em Capri, onde escreve algumas das suas obras mais importantes, Gorki é visitado por duas vezes pelo seu amigo Vladimir Ulianov, mais conhecido por Lenine. A primeira guerra mundial e a revolução russa ainda estão longe. Mas há já surdos Escritor e eurodeputado.Texto de apresentação por ocasião do lançamento do livro, no dia 15 de Novembro de 2008. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290 Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki ENCONTRO 285 Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki 286 pressentimentos no horizonte, quer quanto a uma quer quanto a outra. Quanto à guerra, sabemos pelos trabalhos de historiadores das origens da guerra de 1914-1918, como A. J. P. Taylor e David Fromkin, a que ponto o estado-maior alemão pensava que a guerra na Europa, envolvendo a Alemanha, a França, a Áustria, a Rússia e a Inglaterra seria inevitável mais tarde ou mais cedo. Quanto à revolução na Rússia, embora a tentativa de 1905 tivesse falhado, as nuvens começavam a adensar-se cada vez mais sobre o horizonte político de Nicolau II e da sua corte. Gorki tinha assistido aos acontecimentos, porventura com alguma implicação neles: precisamente, durante o massacre do Domingo Sangrento de S. Petersburgo, o padre Gapon, um dos promotores da pacífica movimentação social que esteve na sua origem, tinha acabado por se refugiar no apartamento do escritor. Esta participação é, de resto aludida por Stefan Zweig no seu relato de um encontro com Gorki aqui referido. O período que vai do princípio do século XX a 1914 foi recentemente objecto de um compacto estudo de Philipp Blom, sugestivamente intitulado The Vertigo Years, Change and Culture in the West, 1900-1914 (Os anos da vertigem, mudança e cultura no Ocidente, 1900-1914). Esses anos da vertigem são os quinze anos em que se inscreve premonitoriamente quase tudo o que veio a acontecer no século XX, das grandes conquistas do espírito às grandes catástrofes humanas, das descobertas de Einstein e dos Curie ao genocídio no Congo de Leopoldo II, dos vários Modernismos, da eclosão do Futurismo e do Cubismo NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290 ao culto da máquina e da velocidade, das rupturas culturais e epistemológicas de Viena às repercussões europeias da Revolução Industrial, ao crescimento urbano desmedido, à criação dos grandes dispositivos para acolhimento das massas nas metrópoles urbanas, centros comerciais, cinemas, etc. Ou, citando o próprio Philipp Blom na sua introdução, “tudo o que ia tornar-se importante durante o século XX – da física quântica à emancipação da mulher, da arte abstracta à viagem no espaço, do comunismo e do fascismo à sociedade de consumo, do massacre industrializado ao poder dos media – tinha deixado fundas marcas nos anos anteriores a 1914, pelo que o resto do século foi pouco mais do que um exercício, alternadamente maravilhoso e horrível, de viver e explorar essas novas possibilidades”. É nessa mesma linha que Marcello Duarte Mathias nos diz agora quanto às grandes encruzilhadas ideológicas e impasses intelectuais e sobretudo à por vezes complexa fronteira entre, de um lado, ética e humanidade, e, do outro, pragmatismo, cinismo, violência e acusações de traição, cujos ecos e contra-ecos vêm reverberar a Capri para aí se personificarem, polarizados em Gorki e Lenine: “No fundo, encontramos aqui, avant la lettre, o debate dos grandes temas da intelectualidade europeia dos anos Trinta e dos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial”. Das duas personagens principais, Máximo Gorki e Lenine, ambas pela casa dos quarenta anos, são-nos dados retratos muito cuidados, quer no aspecto físico, quer no aspecto moral e intelectual. O de Gorki, procurando o desenho de corpo inteiro, o de Lenine, concentrado na expressão das feições. questões morais e dramas da existência, enquanto Lenine é um pragmático, dominado pela sua obsessão ideológica e política, e, provavelmente por causa disso mesmo, interessado em compreender a visão que o escritor lhe podia fornecer da Rússia, valorando a responsabilidade do escritor e do artista apenas na medida em que ela contribua para a consecução dos objectivos políticos que ele próprio defende com exclusão de todos os outros. Debate que, ainda hoje, tem os seus cultores. Tudo o mais passa para segundo plano, incluindo os envolvimentos amorosos. E é de notar que ambos os protagonistas se situam, nas suas preocupações, à margem dos grandes movimentos que estão, nesse preciso momento, a preparar uma revolução nas artes. Neste aspecto, parecem contentar-se com os primórdios do realismo socialista, de que Gorki é um dos founding fathers, apesar de, segundo Marcello Mathias, a poetisa Anna Akhmatova e o pintor Amedeo Modigliani terem passado por Capri, apesar de na Rússia, nessa Rússia de que Gorki tanto sente a falta, estarem a revelar-se nomes de vanguarda como os dos pintores Malevitch ou Larionov, dos músicos Sytravinsky ou Scriabine, de escritores como Maiakovsky ou como Ivan Bunin, Andrei Bely ou Leonid Andreyev, estes por sinal marcados pelo desespero e pela tragédia apocalíptica dos acontecimentos do Domingo Sangrento. Mas essas questões de ruptura formal com a tradição criativa não interessam aos dois amigos que, de resto, estão longe de se entender quanto a todos os pontos no tocante à revolução e à política. Como Marcello escreve, “a ideologia política não era aquilo que os aproximava, era precisamente aquilo NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290 287 Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki “Se o primeiro era corpo, figura, silhueta, sombra, ossos, o segundo era só rosto. Dele dimanava a intensidade e a violência contidas que são o traço principal do seu carácter”. Mas Lenine, que segundo o diário de Gorki não tem problemas de identidade, é ainda apresentado como viajando com outros adereços e acessórios típicos do revolucionário profissional (perucas de cor e formatos diferentes, uma pistola Browning, nomes falsos e falsas profissões, bengala de cavalo-marinho com estoque). De quem é a voz que nos narra os acontecimentos? De um investigador? de um ensaísta? de um jornalista? de um ficcionista? de um simples curioso? Essa voz fala na primeira pessoa e chega a citar Antero, essa voz elabora sobre os materiais de que dispõe, põe-se a conjecturar que o primeiro encontro entre Lenine e Gorki terá sido anterior a 1905, provavelmente por alturas de 1898, não sabendo todavia se antes ou depois do exílio de Lenine na Sibéria. E situa assim o caso: “Independentemente da verdade no tocante a este ponto, o certo é que logo se estabeleceu uma corrente de simpatia que, mau grado desavenças várias, perdurou pela vida fora. Nem de outro modo se compreende as idas de Lenine a Capri por dois longos períodos de tempo no meio de afazeres e compromissos de toda a ordem”. Retenhamos aquele início de frase: “Independentemente da verdade no tocante a este ponto”... Essa consideração vai projectar-se em muitos outros pontos cuja factualidade é estabelecida “independentemente da verdade” no tocante a eles. Da contraposição dos retratos resulta um Gorki (pseudónimo que, sintomaticamente, significa “amargo”) ensimesmado em Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki 288 que os separava”, embora muito mais tarde, já na década de trinta, as posições de Gorki se tenham caracterizado por uma grave ambiguidade pró-estalinista. Ou, como escreve Simon Montefiore, “mais tarde, Gorki tornar-se-ia amigo do ditador, escandaloso apologista, troféu patético e possivelmente vítima”. Na fase de Capri todavia, Gorki vive outro tipo de escrúpulos. E, como escreve numa entrada do seu diário, Lenine comentou ao vê-lo com A Morte de Ivan Ilitch debaixo do braço: “Os escritores, os artistas só falam da morte, não sabem falar de outra coisa. São uns derrotistas. Não é com gente como esse teu Tolstoi, um piegas bem-intencionado, que havemos de fazer a revolução, mas com os milhões de miseráveis que não sabem ler nem escrever e constituem, apesar de tudo, a verdadeira substância da nossa pátria. São eles, acredita, o nosso primeiro e último recurso”. Mas não é só da relação com Lenine e da necessidade de o entender na sua veemência política obstinada que o livro nos vai dando conta. “Lenine é um revolucionário; Gorki um revoltado. Ou, melhor dito, um inconformado”. Neste aspecto, ganha também especial sentido a evocação de Tolstoi e da natureza das experiências vividas que o separam de Gorki: “(…) o essencial da discórdia resultava sobretudo das origens de cada um. Gorki duvidava do inconformismo social de Tolstoi e do seu empenho em libertar o povo […]. Via-o como um grande senhor aristocrata que afectava não o ser, não sendo no íntimo outra coisa. Para Tolstoi, Gorki era um autodidacta em tudo, até no despeito”. O processo do diário é provavelmente o ideal para espelhar a maneira fragmentária NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290 como Gorki vê Lenine, numa espiral admirativa e crítica, mas por vezes também perplexa, hesitante e contraditória. Isso permite a Marcello Mathias incorporar no livro, também premonitoriamente, uma realidade que viria a desmultiplicar-se no futuro histórico: o mesmo Gorki que, nos 50 anos de Lenine, ficava maravilhado por ver “este homem simples, amável, afectuoso, rindo com um sorriso magnífico, transformar-se numa figura titânica, cuja importância é difícil de abarcar”, é quem, poucos dias depois da Revolução de Outubro, escreve que “Lenine e Trotsky não têm nenhuma ideia da liberdade e dos direitos do Homem. Já estão corrompidos pelo sujo veneno do poder”. Gorki tinha desde essa altura relações instáveis com os bolcheviques e chegara a ser ameaçado de morte por uma carta do próprio Lenine em 1919. E esse aspecto fragilizador e fragmentário da maneira como Gorki constrói a sua imagem de Lenine não escapou a Trotsky que achava muito fraco o que ele tinha escrito sobre Vladimir Ulianov, com uma textura de descrição que parecia feita dos elementos mais diversos e a presença constante do moralista pequeno-burguês. Este afrontamento, ora implícito, ora explícito, entre o criador artístico e o activista e ideólogo político é uma das alavancas permanentes do encontro em Capri. Um outro problema de crucial importância para este livro é o da relação entre o verdadeiro e o falso e a de ambos com o simplesmente conjectural. Grande parte das situações, dos documentos invocados e até das personagens mais ou menos secundárias que são referidas no livro não têm qualquer correspondência das coisas que fomos e deixámos de ser, a vertigem do passado e a saudade de todos os outroras”. Ora também em Capri, o diarismo fragmentado de Gorki corresponde a estas notas, espelhando uma consciência do exílio, incluindo o exílio da língua materna, as recordações da infância distante, as solidariedades políticas e outras, as meditações e as incertezas da condição presente do escritor. O mais curioso é que com a transcrição do diário coexiste, em contraponto, um comentário dubitativo e conjectural. Por exemplo, ao tratar da relação de Gorki com as mulheres e com as sucessivas mulheres da sua vida, o narrador interroga-se sobre o tipo de relação que Gorki terá “mantido com as mulheres que conheceu. De ternura? De conflito? De exasperação? De culpa? De encantamento?” E remata a sequência perguntando-se se Gorki terá encontrado nelas “uma cumplicidade em termos de equilíbrio afectivo, uma felicidade dos sentidos, uma grata dependência partilhada” para concluir: “Creio bem que sim”. Há aqui portanto uma dupla pista de ficcionalidade: a de um diário que nunca existiu e onde portanto o suposto autor nunca escreveu nada do que nos é dito no livro que ele escreveu e a do próprio narrador que conjectura outras coisas em paralelo com a suposição de existência e conhecimento do conteúdo desse diário. E assim, ao lado de personagens históricas que realmente existiram, Marcello inventa outras personagens históricas, factos, peripécias, textos, testemunhos, encontros, viagens, situações que nunca se verificaram..., incluindo a ida a Capri de Ana Akhmatova NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290 289 Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki histórica. Nunca existiram. São pura invenção, como diz o autor. Nunca existiu o diário de Gorki de que tanta citação é feita e que eu (e, como eu, qualquer leitor que se disponha a entrar no jogo) venho tomando como real para os exemplos e citações que dele vou extraindo. Salvo poucas excepções, nunca existiram jornalistas e entrevistas, factos referidos, personalidades cujos testemunhos são invocados. Armadilhando esses e outros aspectos da sua narração com um coeficiente de verosimilhança do mais elevado grau, é exactamente através do vero-símil, do semelhante à verdade, que Marcello Mathias procura chegar a essa verdade através da ficção, de uma ficção a cujo serviço põe o seu conhecimento muito vasto das problemáticas da autobiografia e da diarística (um dos temas que lhe são caros), de par com a sua leitura da História e a sua análise das paixões humanas, passando, ou melhor, fazendo a sua personagem Gorki passar “da teoria à prática” e pondo-a a dedicar-se à escrita desse diário. Num longo ensaio intitulado “Autobiografias e diários”, publicado há alguns anos na revista Colóquio/Letras, Marcello enumera algumas das notas que caracterizam este tipo de atitude e de escrita, entre as quais se incluem “o acaso, as horas de convívio, o lusco-fusco da memória e as encruzilhadas do tempo; a reflexão sobre os caminhos da criação, as mil expressões do nosso imaginário, mas também o inexprimível, o sagrado, certa maneira de estarmos no mundo, de o interpretar e refazer, o que afinal nos liga a ele e dele nos separa; a projecção da nossa individualidade, o confronto com os anos de infância e adolescência, o fluir Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki 290 com Modigliani, incluindo o estudo que Gorki estaria a redigir em 1909, “a conselho e por insistência de Lenine”, sobre Mazzini e Garibaldi, uma vez que no seu exílio de Capri as figuras de Garibaldi e Mazzini também acabam por se transformar em fantasmas políticos dessa estada mediterrânica. Este é mesmo o pretexto para uma espécie de mise en abîme em que Lenine teria incitado Gorki a desenvolver todo o livro sobre Mazzini e Garibaldi “em torno de um único e hipotético encontro que reunisse todos os outros”, uma vez que, para ele, “a verdade factual era meramente adjectivante quando comparada com a dimensão filosófica do diálogo político, o confronto de vontades, os temperamentos e as prioridades”, sendo certo que essa maneira de falsear a História por motivos de ordem ideológica repugnava a Gorki, o qual consignava no diário saber que “Lenine é uma consciência mutilada pela fé ideológica”. Ora a “verdade factual” deste encontro em Capri torna-se, ela também, meramente adjectivante e instrumental para a construção e o diálogo destas personagens que assim encontraram o seu autor e encenador. De resto, foi a leitura das memórias inexistentes de uma não menos inexistente Angelina que, diz o narrador, “me levou ao diário italiano de Gorki e me incitou mais tarde e a escrivinhar estas dezenas de páginas”. Temos portanto um texto suposto, as memórias de Angelina, de que somos informados já vai o livro em meio, as quais induzem à leitura de outro texto suposto, o diário de Gorki, por sua vez estudado primeiramente por um especialista ele também inexistente, o belga Maurice NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290 Martin-Merrère, professor de língua e literatura russas na Universidade de Bruxelas, quanto a cuja intervenção se chega a pôr a hipótese de ter implicado supressões ou a censura de partes do texto, o que, aliás, o próprio sempre terá negado. Deste modo se desdobra um jogo de espelhos fictícios que se vão incessantemente reenviando essas imagens virtuais e apresentando um conjunto interessantíssimo de questões para a teoria da literatura e do romance realista, até pela ambiguidade da forma romance, aqui contaminada, tanto pelo ensaio e pela reflexão, como por uma intromissão na História a partir de uma série de fontes absolutamente apócrifas com o objectivo de construir uma realidade ou de se objectivar a partir dela. Na penúltima página, fala-se neste “pequeno ensaio sobre o diário italiano de Gorki”; na última, lemos: “ (...) qualquer romance é uma tarefa comum que transcende o autor. No fundo, pede-se agora ao leitor que o reescreva, já sem ninguém a seu lado”. E é esse o convite aliciante para a solidão de uma leitura em que uma outra solidão humana se nos apresenta, nas suas estranhezas e nas suas amarguras, algures no Mediterrâneo, num dos tais momentos que prenunciaram e preludiaram muito do que no século XX veio a acontecer.NE José Carlos de Vasconcelos* TANTO MAR? PORTUGAL, O BRASIL E A EUROPA de Francisco Seixas da Costa Editora: Thesaurus Editora «AO LONGO DE quase quatro anos no Brasil coloquei sempre duas questões a mim mesmo: o que é hoje o Brasil para Portugal? E Portugal para o Brasil? Não sei se obtive ou obterei alguma vez a verdadeira resposta, mas ouso arriscar a minha», escreve Francisco Seixas da Costa na introdução ao seu novo livro Tanto Mar?. E * a resposta, ou melhor: as respostas, directas ou ‘indirectas’, a estas duas questões, são inteligentes, estimulantes e deviam mesmo constituir uma espécie de ponto de partida obrigatório para quem pretende reforçar e aprofundar, com realismo, as relações entre os dois países. O volume reúne 49 intervenções, artigos, mensagens, entrevistas, que constituíram «posições públicas assumidas» durante o período, agora chegado ao fim, em que Francisco Seixas da Costa (FSC) foi embaixador de Portugal em Brasília. E o título, claro, é tirado da famosa cantiga de Chico Buarque, escrita logo após o nosso 25 de Abril, com Portugal em plena euforia da liberdade conquistada e o Brasil ainda em ditadura. De «tanto mar» a nos «separar» falava então o poeta/ compositor/ cantor. FSC, logo em Outubro de 2005, na Folha de São Paulo, no que constitui o primeiro artigo coligido, após aquela excelente introdução, que dá uma visão englobante, sistematizada, das ideias e perspectivas do autor, FSC, dizia, comenta: «Desde que cheguei ao Brasil, há uma coisa que aprendi: Chico Buarque não tem razão. Hoje já não há tanto mar a nos separar». Jornalista e escritor. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 291-293 291 Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa Portugal/Brasil: compreender e agir Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa 292 O livro divide-se em três partes. A primeira, que trata especificamente de «Portugal e o Brasil», está por sua vez dividida em cinco capítulos: Política, Comunidade, Cultura, Economia, História. A segunda, a mais curta, chama-se «Portugal, o Brasil e a Europa» (que é o subtítulo, descritivo, do próprio volume). A terceira, «Diálogos», colige 11 entrevistas a órgãos de comunicação social portugueses e brasileiros, ou a parte delas relativa às matérias aqui em pauta, sendo de destacar a concedida ao programa «Roda Viva», em rede nacional da TV Cultura. Como se vê ou infere, dentro de uma unidade temática fundamental, há uma diversidade grande de assuntos; e também da forma de os abordar. Porque o livro é, além do mais, de certo modo, uma consequência, um reflexo, um resumo e uma espécie de balanço final da acção de Seixas da Costa na sua «missão brasileira». Assim, nestas páginas têm presença marcante questões que vão das sobretudo atinentes à comunidade portuguesa e aos luso-descendentes, às económicas – com destaque para as importantíssimas relações entre os dois países nesse domínio – e às culturais, em particular as da língua. E estas são absolutamente essenciais, até porque na base do que especifica e mais profundamente nos liga, há cinco séculos e para sempre – do que FSC tem plena consciência, sabendo muito bem, ao contrário de outros, que a língua e o ‘cultural’ são decisivos mesmo para o económico. Quanto à relativa diversidade de forma ela resulta nomeadamente dos vários destinos NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 291-293 dos textos e fins que visaram atingir. Não podem deixar de ser diferentes, como são, não só no conteúdo como na forma, mensagens no Dia de Portugal ou no Dia da Comunidade Luso-Brasileira, intervenções para empresários, investidores, intelectuais ou mesmo no Senado Federal, artigos para múltiplos órgãos de comunicação social, incluindo alguns dos mais importantes do Brasil, como a referida Folha de São Paulo, O Globo, etc. Quanto a estes artigos, sublinhe-se que as mais das vezes eles representam o exercício a elevado nível, e por meios (em duplo sentido) só acessíveis a alguém com a qualidade e o prestígio de Seixas da Costa, da acção de embaixador de Portugal. Designadamente, mas não só, na pronta resposta a posições, afirmações ou insinuações injustas e lesivas da dignidade, do prestígio e dos legítimos interesses do nosso país. Creio, aliás, que essa deve ser uma das ‘tarefas’ dos representantes portugueses no estrangeiro e também neste aspecto FSC se distingue. Desde há muito que o redactor desta nota cursiva tem uma relação intensa com o Brasil, defende o aprofundamento das relações entre os dois países a que não por acaso durante muito tempo se chamou «irmãos»: aprofundamento em todos os domínios, a nível bilateral e no quadro de uma Comunidade de Países e Povos de Língua Portuguesa, como decorrência lógica e imposição da História, devendo constituir em todas as circunstâncias uma primeiríssima prioridade da nossa política externa. E, desde o 25 de Abril de 1974 seguindo de muito perto o que nesse sentido se faz ou não faz, julga poder afirmar que nenhum embaixador em Brasília fez mais e melhor do que Seixas da Costa. Este Tanto Mar?, além de ser um expressivo testemunho disso mesmo, constitui, como comecei por dizer ou sugerir, um assinalável contributo para o bom conhecimento e a adequada avaliação de uma situação e dos problemas que comporta, em ordem a discuti-los e tentar resolvê-los, por parte de um diplomata de invulgar competência e dedicação, que ao mesmo tempo é um homem de cultura e de ideias. «O Brasil é muito mais do que o que Portugal por aqui deixou (….) Quem em Portugal não entender isto, não vai conseguir entender nunca o Brasil. O que não significa que não nos reste muito ainda em comum, a começar pela tolerância que permite esta sã convivência de culturas e pessoas – essa sim uma das duas valiosas heranças que por aqui deixámos. A outra é a língua (…) que liga ambos os países a outros continentes e que se procura agora evitar que se afaste na sua forma escrita, para melhor nos servir na nossa afirmação individual e colectiva pelo mundo», sublinha, por exemplo, Seixas da Costa.NE Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa 293 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 291-293 Vicente Jorge Silva* Todo-o terreno. 4 anos de reflexões 294 TODO-O TERRENO. 4 ANOS DE REFLEXÕES de Ana Gomes Editora: Rui Costa Pinto Edições A MINHA JÁ longa amizade e cumplicidade com a Ana Gomes tem sido acompanhada por uma admiração crescente pelo que ela é e pelo que ela faz. A admiração conforta a amizade – a velha irmandade que nos une. Uma irmandade de ideais, de princípios, de inconformismo, de insubmissão, de recusa do cinismo, de fidelidade a causas e princípios que outros diriam quixotescos no * Jornalista e cineasta. Texto lido no lançamento do livro. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 294-295 mundo em que vivemos. Tudo coisas que têm o seu preço, particularmente em Portugal. Acusam-na de excessiva, demasiado apaixonada, fogosa e pouco diplomática – ou seja, acusam-se de não ser hipócrita ou cúmplice com os jogos de conveniências, mesuras, disfarces, os pequenos cálculos medíocres da diplomacia e, nomeadamente, da diplomacia leve leve e planadora, de caixeiro viajante – como ela diz, e que é, infelizmente, a nossa. Ao contrário de mim, porém, a paixão da Ana pela acção política tem-se revelado muito mais consequente. E este livro é a prova provada disso. Confesso que pessoalmente não resisti ao confronto com os constrangimentos da actividade política em que estive envolvido efemeramente como deputado à Assembleia da República. Talvez por não ter jeito para isso, porque as regras e costumes da política ‘real’ eram adversos à minha maneira de ser e porque me senti estrangeiro e inútil nesse espaço de que continuo a ser observador, espectador comprometido, mas não actor. Mas a Ana continuou, continua a bater-se e viaja até aos quatro cantos do mundo para demonstrar que vale a pena, depois de ter sido ela quem protagonizou em Portugal a causa de Timor. Ela esteve em quase toda a parte onde a dor humana e os conflitos mais Além disso, ela teve razão sobre o Iraque e a denúncia do embuste catastrófico a que conduziu a Administração Bush, envolvendo algumas cumplicidades europeias que hoje se procuram disfarçar e a que o Governo de Durão Barroso esteve associado na cimeira das Lajes. Ela tem razão ao denunciar essa outra vergonha que é Guantánamo e ao exigir que se faça luz sobre as cumplicidades e encobrimentos que envolveram os chamados voos da CIA em território português. Não estou de acordo com ela sobre tudo, e ainda bem. Mantenho-me céptico em relação ao Tratado de Lisboa e sobre o destino político da Europa em que ela continua a acreditar contra ventos e marés, apesar de sermos ambos apaixonadamente europeus. E a forma condescendente como se prepara a renovação do mandato de Durão Barroso, lamento dizê-lo, só me parece apontar para a permanência dessa Europa minimalista e inconsequente em que vivemos. Tenho também muitas dúvidas sobre a independência do Kosovo e, já agora, sobre a existência do Sistema Integrado de Segurança Interna dependente do primeiro-ministro, como ela aceita. E discordo dela acerca dos polémicos cartoons dinamarqueses sobre Maomé, o que daria pano para mangas numa dessas longas conversas que temos regularmente com outros amigos. A Ana pediu-me para ser crítico. Lamento não o ser tanto como ela porventura desejaria, porque a verdade é que concordo com ela na grande maioria das questões, e a crítica e a discordância, além de serem fundamentais no debate democrático são também indissociáveis da verdadeira amizade. Pelo menos como ela e eu o entendemos.NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 294-295 295 Todo-o terreno. 4 anos de reflexões tétricos parecem insanáveis: dos Balcãs ao Darfur, passando pelo Iraque, pelo Afeganistão, pela Etiópia, pela Palestina… Para ver, para ouvir, para discutir, para tentar perceber o que se passa, para tentar contribuir para a mudança e combater a fatalidade. Não foi por acaso, percebe-se assim, que tenha sido eleita no Parliament Magazine como a deputada activista de 2008. Acontece que ela tem razão. Yes, we can, como diria Barack Obama. Aliás, a vitória de Obama – que a Ana e eu desejámos e previmos, apesar do cepticismo de tantos amigos comuns – dá-nos hoje um novo motivo para acreditar que o mundo pode ser mudado para melhor apesar de todas as decepções e desilusões que apareçam no horizonte. António Guterres diz no prefácio deste livro que a Ana é uma força da natureza. Eu diria que ela é uma força da natureza porque é, ao mesmo tempo, e sobretudo, uma força de carácter. Todo o Terreno – um título que é todo um programa e que tão bem resume a adrenalina e a energia únicas da Ana – recolhe textos publicados ao longo de quatro anos e uma das coisas que nele mais impressiona é a coerência da reflexão, a insistência na busca da verdade, a recusa das mentiras e mistificações, o optimismo da vontade. Lê-los em perspectiva dá-nos um pensamento em acção e uma acção que não desiste de procurar saídas para os imbróglios e tragédias do mundo. Leiam-se, por exemplo, os seus textos sobre a questão do Irão e da proliferação nuclear e constate-se como, ao contrário das acusações que lhe fazem, ela revela um pragmatismo no melhor sentido, a procura de saídas coerentes e consistentes para um dos problemas mais inquietantes da actualidade. Manuel Duarte de Jesus* António Feijó – diplomata 296 ANTÓNIO FEIJÓ – DIPLOMATA de Fernando de Castro Brandão Editora: Europress, Lda. Fernando de Castro Brandão ANTÓNIO FEIJÓ DIPLOMATA colecção SE ALGUM DIPLOMATA, em Portugal, se tem dedicado com afinco, seriedade e abundância à história da diplomacia portuguesa tem sido o Embaixador Fernando Castro Brandão. Historiador de formação e paixão, diplomata de profissão, Castro Brandão tem-nos presenteado com uma enorme quantidade de livros preciosos para qualquer investigador das relações externas do nosso país, desde a época afonsina. * Embaixador. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 296-297 Enveredou por um género – não em exclusividade – que alguns poderão considerar de menor relevância. Certamente que nenhum historiador ou investigador do domínio das relações externas de Portugal partilha esta opinião. Estas suas obras constituem uma base de dados, um referenciário obrigatório para aqueles que se dedicam à investigação: as cronologias. Mas desta vez, Castro Brandão apresenta-nos um livro, que se lê como um romance, com a diferença de que as personagens e os factos são reais e resultam de uma apurada investigação de fontes: António Feijó – diplomata. O António Feijó que conhecemos – quase intimamente – no seu livro não podia ser mais português – as suas neuras, o quase constante desalento por querer algo sempre de diferente, sem, por vezes, saber identificar o desiderato, as suas depressões. A Secretaria de Estado, com as óbvias diferenças entre os nossos dias e a sua época, continua sempre com um fundo substantivo igual a si próprio – a lentidão nas decisões, os silêncios como respostas, por vezes entrelaçadas com gentilezas pessoais, também tão portuguesas. posta de rastos pela imprensa internacional, independentemente do regime. Feijó viveu os seus últimos dias na amargura e tristeza pelo desaparecimento prematuro de sua mulher, Mercedes Dagmar grande amor de sua vida. Certamente, período que lhe inspirou alguns dos seus poemas do “Sol de Inverno”. Por lá faleceu em 1917, em plena Grande Guerra, tendo-lhe as autoridades suecas manifestado o seu apreço através de invulgares cerimónias fúnebres. Dez anos mais tarde, a Suécia, que não havia esquecido aquele diplomata português, prestou-lhe esta última homenagem: em 1927, o cruzador sueco Fylgria trazia para Lisboa os seus restos mortais. Portugal, pelo seu lado, homenageou-o, então, com uma cerimónia que incluiu o Ministro dos Negócios Estrangeiros da altura e o próprio Chefe de Estado. Este magnífico livro poderia integrar uma série começada, mas infelizmente, interrompida – a dos Diplomatas Portugueses – uma série em boa hora lançada pela AAHD (Associação dos Amigos do Arquivo Histórico-Diplomático) e a APHRI (Associação Portuguesa de História das Relações Internacionais) com o apoio do IDI (Instituto Diplomático).NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 296-297 297 António Feijó – diplomata Mas, para além destes factos, deparamo-nos com um diplomata de grande valor na análise das circunstâncias geopolíticas regionais e mundiais, sempre atento à definição dos interesses nacionais e capaz de ultrapassar etapas difíceis. Depois de uma breve passagem pelo Brasil, que lhe não deixou saudades, passou o resto da sua vida no complexo mundo escandinavo da altura. Castro Brandão descreve, como se de uma reportagem se tratasse, o seu contacto com o aparecimento das grandes e ordeiras manifestações socialistas, as peripécias diplomáticas e políticas ligadas à autonomia da Noruega e o fim do Pacto Uninacional que a unia à Suécia. Afigura-se-me do maior interesse ver como o nosso Cônsul-Geral e depois Ministro Plenipotenciário zelava por uma diplomacia económica activa e quão curioso é verificar como a nossa balança comercial com a Suécia nos era favorável. Das passagens que li com maior interesse dizem respeito à sua experiência única de ter assistido à entrega do primeiro Prémio Nobel e das peripécias tão portuguesas com os qui-pro-quos, atrasos e erros administrativos que enfermaram as candidaturas de Antero de Quental. Feijó, como bem descreve o autor, passa pelos difíceis períodos do regicídio e depois, da implantação da República. A sua prudente habilidade foi notável. Naquela altura uma, se não a sua principal preocupação foi o que hoje se chamaria de “diplomacia pública”. Como poupar e defender a imagem de Portugal, Filipe Ribeiro de Meneses* Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia 298 GUERRA CIVIL DE ESPANHA: INTERVENÇÃO E NÃO INTERVENÇÃO EUROPEIA de Luís Soares de Oliveira Editora: Prefácio GUERRA CIVIL DE Espanha, de Luís Soares de Oliveira, é uma obra rara na historiografia portuguesa: o estudo de um acontecimento – ou antes, da evolução de um fenómeno diplomático – no qual Portugal participou, mas em que essa participação não se sobrepõe à de outros países. Por outras palavras, estamos perante uma análise da reacção internacional à Guerra Civil de Espanha, * Professor. National University of Ireland, Maynooth. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 298-301 prenúncio, mas não necessariamente causa, da Segunda Guerra Mundial, que levou à formação do Eixo Berlim-Roma, permitiu a Hitler conquistar, sem um só soldado morto, a Áustria e a Checoslováquia, contribuiu para o desprestígio da Sociedade das Nações e, por fim, levou Estaline a desistir de uma coligação antifascista, resolvendo chegar a um acordo com Hitler que desse à União Soviética mais alguns anos de paz. Soares de Oliveira opta por acompanhar o desenrolar cronológico da crise espanhola, criando espaços de reflexão, de quando em quando, para explicar as circunstâncias domésticas que ajudam a compreender as posturas diplomáticas dos vários intervenientes. Fá-lo com excepcional clareza, por exemplo, em relação a França, detalhando as pressões que levaram Léon Blum, líder socialista e primeiro-ministro de um governo de Frente Popular, a optar inicialmente por apoiar o governo republicano espanhol – também ele nascido de uma Frente Popular – e pouco tempo depois a mudar de caminho, instando por uma política de não intervenção. Guerra Civil de Espanha traça a rota desta política de não intervenção, que serviu, na prática, não para impedir a intervenção militar em Espanha, The House as a whole felt sympathy with Mr. Eden. There was not one of them, however ambitious or self-confident, who would like to bear Mr. Eden’s load from day to day – a load which, as anybody could see, had aged him faster than the passage of the years [apoiados]. A não intervenção resultaria, em teoria, na criação de um vácuo em torno do território espanhol, para que os dois lados 1 na contenda resolvessem a sua querela sem interferências estrangeiras. Assim sendo, negou direitos de beligerância quer aos rebeldes militares quer ao governo legítimo de Madrid, a primeira de muitas traições que este iria sofrer ao longo dos próximos três anos. O acordo de não intervenção serviu também para impedir a discussão da questão espanhola da Sociedade das Nações. Quando a política de não intervenção foi proposta, Blum tinha a esperança que a República espanhola, controlando as grandes cidades e a capacidade industrial do país, pudesse ganhar a guerra. Porém, quando ficou demonstrado que a não intervenção não estava a funcionar, aprofundou-se o erro, em vez de o corrigir, criando-se um comité para implementar o “acordo de cavalheiros” (como se tal fosse possível na década de Trinta). Este começou a funcionar em Setembro de 1936, transformando-se rapidamente numa farsa custeada pela população espanhola. Por trás desta farsa estavam a já referida política de apaziguamento e os reflexos financeiros da Grande Depressão. As imprensas alemãs e italiana, totalmente controladas pelos respectivos governos, aplaudiam abertamente o esforço de guerra dos seus voluntários, mas nada de concreto se fez no comité para impedir tais apoios, assim como o da União Soviética a favor dos republicanos. A política de não intervenção atingiu o seu ponto Luís Soares de Oliveira exagera o impacte do bombardeamento de Guernica, e do quadro de Picasso, a este respeito. A noção de que a próxima guerra seria “apocalíptica”, graças ao bombardeamento aéreo das grandes cidades, tinha-se popularizado em toda a Europa antes da Guerra Civil de Espanha. Mesmo em Portugal esta ideia se tinha espalhado; ver, por exemplo, A Grande Ameaça: A Guerra de Amanhã, um “romance documentário” de Adolfo Coelho, publicado em 1934. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 298-301 299 Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia mas, sobretudo, para a regular e negociar, de forma a não permitir que ela provocasse uma conflagração generalizada. Tendo a Grã-Bretanha decidido apadrinhar a não intervenção, a figura central desta política, e por isso mesmo da obra de Soares de Oliveira, é Anthony Eden. O autor é extremamente crítico de Eden, homem privado, segundo Soares de Oliveira, da imaginação necessária para ser um grande líder, o que se viria a confirmar, supostamente, durante a crise do Canal do Suez. Eden, porém, estava numa posição impossível, devido à vontade popular, manifestada na Grã-Bretanha e em França, de apaziguamento e às consequências políticas deste desejo de paz,1 o que Winston Churchill reconheceu num discurso na Câmara dos Comuns em Dezembro de 1937: Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia 300 mais baixo em 1937, quando submarinos italianos começaram a torpedear tudo o que navegasse no Mediterrâneo a caminho de portos republicanos, sendo tais actos de guerra atribuídos a submarinos piratas, de forma a não provocar um confronto entre as três potências navais daquele mar: Grã-Bretanha, França e Itália. Quando Londres e Paris se puseram de acordo, fora do comité, para pôr fim a esses ataques, graças a um patrulhamento activo do Mediterrâneo, Mussolini reclamou para a Itália, e obteve, o direito de se juntar a esse patrulhamento. No seu já citado discurso, afirmou Churchill, I must pay my tribute to Signor Mussolini, who joined in the common exertions of the Mediterranean Powers [risos] – and whose prestige and authority by the mere terror of his name quelled the wicked depredations of those pirates [muitos risos]. Since the days of Caesar himself there had been no more salutary clearance of pirates from the Mediterranean [risos]. Dada a natureza absurda de todo o processo de não intervenção, quase todos os autores que sobre ele escrevem – no contexto, por exemplo, de narrativas da Guerra Civil de Espanha – limitam-se a descrever em algum detalhe o início dos trabalhos, referindo-se depois a alguns pontos de viragem: a colocação de observadores nas fronteiras terrestres de Espanha, o bloqueio naval e a retirada de voluntários em 1938. Soares de Oliveira, porém, revela grande persistência, acompanhando de perto os trabalhos do NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 298-301 comité de não intervenção e demonstrando, pelo exame das suas regras e das ambições dos vários intervenientes, porque se manteve de pé durante todo o conflito. É nesta persistência que reside o mérito do autor e o valor da obra. Podemos, porém, apontar-lhe duas lacunas. A primeira é a surpreendente falta de discussão sobre os motivos que influenciaram a diplomacia portuguesa. Oliveira Salazar, Armindo Monteiro, Pedro Teotónio Pereira e Teixeira de Sampaio – os actores principais da diplomacia portuguesa da época – agem, neste livro, de acordo com princípios que não são discutidos ou suficientemente analisados, apesar de não serem de todo óbvios. Salazar decidiu que uma vitória republicana seria uma ameaça para o Estado Novo e por isso mesmo para Portugal: mas as bases desse juízo eram risíveis e por vários canais lhe chegaram, no início da guerra, indicações de que era possível um entendimento com os republicanos. Nesse sentido, a documentação existente no Arquivo Histórico-Diplomático, incluindo a reunida na série Dez Anos de Política Externa, não chega para explicar o posicionamento de Salazar, porque não é nela que são discutidas as alternativas. Por outras palavras, não está dita a última palavra sobre a diplomacia do Estado Novo, e não se pode escrever sobre o período sem introduzir um elemento de dúvida sobre o que realmente motivava Salazar, explicando as contradições presentes na sua acção. Segundo Soares de Oliveira, “para o estadista português [Salazar], a política tem que conjugar forma e substância e não sendo por isso necessário aguentar até que os dois conflitos se tornassem num só. Havia uma concordância de fins entre Negrín e os comunistas que não implicava a subordinação das outras forças políticas ao Partido Comunista Espanhol. A influência deste partido, e dos seus mentores russos, é sobre-estimada por Soares de Oliveira quando afirma que o PCE “detinha o controlo de todo o aparelho militar e por decorrência, também do aparelho político da República”. Se Franco triunfou em 1939, não foi só por causa do apoio recebido de Berlim, Roma e Lisboa; se Negrín saiu derrotado da contenda, não foi só porque a certa altura Moscovo mudou de opinião quanto à necessidade de apoiar a República Espanhola.NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 298-301 301 Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia pode existir sem uma e outra”; tal afirmação transmite uma imagem de Salazar que se não coaduna com muito do que sabemos hoje sobre a sua forma de governar. A segunda lacuna, mais grave, refere-se à própria Espanha, e ao que nela se passou antes e durante a guerra. A Introdução, ao defender a tese da inevitabilidade da Guerra Civil, devido em parte ao “particularismo” do caso espanhol, diminui a responsabilidade de quem iniciou o conflito; a compressão necessária para explicar com brevidade as causas da guerra pode muito bem estar por trás desta descrição simplista, mas não deixa de causar dúvidas e mal-entendidos (como por exemplo, a afirmação de que Largo Caballero foi ministro da Guerra após as eleições de Fevereiro de 1936 e que enquanto tal “construiu o seu exército com milicianos recrutados nos sindicatos e enquadrados por graduados eleitos”: nada disto aconteceu, já que os ministros da Guerra deste período foram o General Masquelet e, mais tarde, Casares Quiroga). Quanto às principais figuras espanholas do conflito, são apresentadas – sobretudo as do lado republicano – como simples joguetes na mão de interesses estrangeiros; a Guerra Civil, a partir de certo ponto, não é nada mais do que o choque desses interesses. De Juan Negrín, afirma Soares de Oliveira que se submeteu “ao mando de Moscovo”; e tudo o que é eficiente na República é apresentado no livro como sendo enviado de, ou liderado e enquadrado por, Moscovo. Mas Negrín apoiava-se nos comunistas porque queria resistir a Franco, e julgava – correctamente – que uma guerra europeia vinha a caminho, Gonçalo Santa Clara Gomes* Teatro de sombras – Contos 302 Entre Ironia e Cumplicidade TEATRO DE SOMBRAS – CONTOS de António Pinto da França Editora: Prefácio CREIO QUE FOI Horace Walpole que disse que o mundo é uma comédia para os que pensam e uma tragédia para os que sentem. Ao ler Teatro de Sombras, o último livro de António Pinto da França, veio-me a frase à memória acompanhada pela pergunta – como é o mundo para os que simultaneamente sentem e pensam com quase a mesma intensidade? O Teatro de Sombras em que género se situa? * Embaixador. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 302-303 António Pinto da França é, provavelmente, tão sensível como inteligente (ou será vice-versa?). Mas, por inclinação ou por escolha, distancia-se do mundo, e das gentes (e de si mesmo, às vezes) e o pensamento domina – e de tal modo que até pensa com o sentimento. O Autor tem uma curiosidade sôfrega, olha constantemente quem o rodeia, não lhe escapa o ridículo e a estranheza das pessoas, mas sente por elas simpatia e até cumplicidade. Daqui resulta uma ironia tingida por ternura para com os personagens que recria, mesmo os mais caricatos, os mais obnóxios e as mais pernósticas. Essa simpatia é tão grande como o mundo e este é o teatro em que as histórias deste livro se desenrolam. Entre razão e sentimento, quando um não afoga o outro, resulta uma tensão permanente: tudo é sério e nada o é. Não há sistema racional, não há uma visão do mundo que possam abarcar tanta disparidade. Um certo relativismo instala-se e a ordem sofre, perturbada constantemente pela irrupção de elementos excêntricos, esdrúxulos, maníacos. Mas por detrás das aparências ou sombras vislumbra-se uma outra realidade. Os diplomatas, sabem melhor que ninguém que “o diabo está nos detalhes”. que morre gloriosamente livre ao realizar o seu sonho, com “uma expressão beatífica”. E os elos tecidos podem até desenrolar-se em longas cadeias no tempo – no “Anel” passam duzentos anos até um reencontro se dar por interpostas pessoas. E deparamos, por vezes, com a saudade do que podia ter sido, a tristeza de oportunidades perdidas. Pinto da França vem da diplomacia, do serviço público, da escrita oficial, de um esforço de décadas para explicar claramente a gente simples e apressada o que se passa em mundos que eles ignoram. Passou daí para a escrita mais personalizada, mas igualmente didáctica, que são as memórias do que se passou por onde passou. Saltou agora para a ficção; mas não o fez totalmente – há muito de memorialístico ainda nestes contos e, mais frequentemente que Hitchcock nos seus filmes, encontramos a cara sorridente e os olhos penetrantes do António nalgumas esquinas. Perdoa-se-lhe: é a eterna criança deslumbrada, divertida, endiabrada que não resiste a soltar gargalhadas enquanto faz das suas. Na apresentação deste livro, o Pinto da França prometeu – melhor, ameaçou – que não haveria mais livros dele. Era o que faltava: “cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmo”, diz o Livro do Desassossego. O António ainda só viveu três ou quatro vidas e não deve fechar a boca ao ficcionista que desponta. Ele tem muito tempo à frente para amadurecer – pelas minhas contas, pouco mais terá que 70 anos…NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 302-303 303 Teatro de sombras – Contos Não é o verdadeiro diabo, é um diabrete que cria a confusão do mundo e perturba a ordem, ou o que passa por o ser. O ironista encontra as fraquezas, as pretensões e os limites humanos por todo o lado e segue os passos do mafarrico perturbador com minúcia e com delícia. Devo dizer que, neste livro, os contos que mais apreciei são justamente aqueles em que o próprio Autor, benévolo e tolerante, solta o diabrete e aponta o fracasso das tentativas humanas de criar e impor ordem nas vidas e comportamentos. “Os Custódios” é um conto paradigmático disso – além de uma construção narrativa quase perfeita, é difícil imaginar como a luta pela ordem, pela conservação, pela travagem do tempo e do espaço possam ser vistos como tão absurdas, tão deliciosamente sem sentido. Reencontrada a liberdade, Pinto da França não poupa sequer o MNE: um diplomata em Copenhaga, em “Os Elos da Cadeia” tem de justificar habilidosamente a escolha entre a abstenção e o votar com a maioria, única alternativa que Lisboa deixa aos seus enviados. Mas também há coincidências que são mais do que isso – entre pessoas, cenários e factos há teias e laços que não são acaso. Eu diria que há em Pinto da França algo de quase herético: Deus talvez não tenha criado este mundo – pelo menos deixou aos homens o encargo de o completar – mas olha para ele com tolerância benevolente e não resiste a intervir ocasionalmente provocando coincidências, acasos e encontros. Através dessas tangentes e secantes o que parece inevitável deixa de o ser e há quem consiga fugir e escape dos círculos viciosos em que se fechou, ou em que o enredaram. Há fugas e figas ao destino em contos como “Tiago” Elsa Maria Dias Dinis* China – cooperação e conflito na questão de Taiwan 304 CHINA – COOPERAÇÃO E CONFLITO NA QUESTÃO DE TAIWAN de Luís Cunha Editora: Prefácio CHINA – COOPERAÇÃO E Conflito na Questão de Taiwan é uma obra única no contexto nacional da literatura e da investigação académica sobre a República Popular da China (em diante RPC). Luís Cunha – o autor, jornalista e presentemente doutorando em Relações Internacionais – desafia o olhar do leitor sobre as questões chinesas, preocupando-se * Assistente Convidada do ISCSP-UTL. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 304-307 em apresentar uma perspectiva sobre a China que se concentra muito mais na República da China (Taiwan) e na problemática internacional por resolver do reconhecimento da soberania deste estado e da sua independência política em relação à Grande China. Habituados que estamos a um mercado editorial – nacional e internacional – que se concentra em estudos sobre a envolvente política, económica, cultural e social da RPC, não podemos deixar de nos sentir enriquecidos em termos nacionais com este livro que agora nos é apresentado, pela perspectiva inovadora de estudo e reflexão que revela. Importa neste ponto recordar a histórica tradição lusófona de chegar a mares nunca dantes navegados que nos ajuda a enaltecer o feito de termos sido um dos primeiros povos ocidentais a aportar em Taiwan (local que até aos nossos dias também se chama de Formosa, supostamente por baptismo português). Com o seu olhar sobre a China direccionado pela Questão de Taiwan, Luís Cunha faz juz à nossa tradição diferenciadora, trazendo à estampa uma reflexão que se encontra entre uma das muito poucas produzidas em Portugal – e em Português – sobre a actualidade internacional deste tema. 1 destino verbalizado na famosa expressão de campanha de Bill Clinton em 1992 – “It’s the economy stupid!” – se poderá voltar a aplicar com sucesso na resolução de uma questão política, desta feita entre dois Estados1. E se é verdade que a história é fundamental quando a conhecemos, analisamos e aprendemos com as suas lições, o livro China – Cooperação e Conflito na Questão de Taiwan tende a levar-nos a reflectir na ideia de que a RPC terá olhado para o seu passado e retirado aprendizagens relevantes no que respeita à resolução de questões políticas... A leitura deste trabalho projecta-nos para uma perspectiva nova do tema, colocando a forte dependência económica que China e Taiwan têm consolidado no centro da leitura política do facto histórico por resolver do retorno de Taiwan a soberania chinesa. A abordagem ao tema da China e dos equilíbrios de Cooperação e Conflito na resolução da Questão de Taiwan é feita em quatro capítulos distintos e estruturantes. O contexto do tema é dado pela perspectiva histórica da Questão de Taiwan no sistema internacional e as actuais forças motrizes da relação entre os dois Estados são perspectivadas no capítulo sobre as relações económicas entre Taiwan e a RPC James Carville, estratega da campanha política de Bill Clinton à Presidência dos EUA em 1992, é considerado o responsável pela fama desta expressão, usada para explicar que o candidato democrata seria melhor escolha que o seu concorrente republicano George H. W. Bush. Ainda que George W. Bush fosse considerado imbatível em questões de política externa, a campanha democrata pretendeu demonstrar que não são apenas as questões políticas que sustentam a força de uma grande nação, sendo que os EUA em recessão económica não teriam, com toda a certeza, alcançado os mesmos sucessos internacionais. Recordamos que esta campanha política decorreu no contexto de grande popularidade do Presidente George W. Bush pela 1.ª invasão do Iraque em Março de 1991, ano em que os EUA sofreram uma das mais fortes recessões económicas do pós-2.ª Guerra Mundial. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 304-307 305 China – cooperação e conflito na questão de Taiwan Resultado de um trabalho de investigação académica que se materializou em Dissertação de Mestrado, a obra tem o dom de agregar o espírito da escrita jornalística do autor com as suas sólidas reflexões intelectuais enquanto politólogo e internacionalista. Ao longo de mais de 200 páginas de escrita fluída e inovadora sobre o tema, Luís Cunha aborda a questão de Taiwan nos seus prismas de «relação interna» entre a República da China e a RPC, e considerando, em simultâneo, os paradoxos da análise do tema no contexto das relações de poder do sistema internacional (e suas consequências num contexto dominado por uma RPC em sólida ascenção para discussão do lugar de prima potentia do sistema). O autor preocupa -se ainda em enquadrar a sua hipótese de trabalho no contexto de uma das mais interessantes, ciclícas e permanentes dicotomias do sistema internacional – a primazia das relações políticas entre estados versus a relevância dos laços económicos e ponderação de equilíbrios na dependência entre soberanias criada por estes laços, em cada momento de vida do sistema. A investigação que esteve na origem da presente obra prova que o fatídico China – cooperação e conflito na questão de Taiwan 306 e interdepedência que se tem gerado em torno dos crescentes contactos directos entre as duas soberanias. Discute-se num terceiro momento o elemento do nacionalismo em ambas as realidades sociais e a sua relação com as clivagens ideológicas que afastam a RPC e a República da China desde 1949. A obra encerra com um capítulo fundamental de discussão acerca do já famoso conceito de soberania com características chinesas! Para além da riqueza de discussão intelectual que o livro encerra, importa ainda referir a sua relevância enquanto fonte de informação potencial muito completa. Com efeito, o autor recorre a uma incomparável bibliografia e webgrafia, com referências e autores de todas as nacionalidades e quadrantes de conhecimento. Do ponto de vista pedagógico e intelectual, importa-nos aqui referir dois elementos fundamentais a destacar nesta obra: 1. A abordagem à temática do nacionalismo enquanto ideia política dominante na vivência quotidiana da soberania da República Popular da China e na sólida argumentação usada por Taiwan internacionalmente para se defender de um regresso à autoridade de Pequim. Destacamos sobretudo o facto de a reflexão em torno do nacionalismo chinês nos fazer recordar Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray, quando afirmava “De que serve um homem conquistar o mundo e perder a própria 2 alma?”. Luís Cunha recorda-nos sempre e em cada momento que a RPC pode estar em posição de conquistar o mundo, mas não esquece que a alma do Estado está incompleta pelo menos há século e meio quando a intervenção externa de outros poderes deu origem a partições do seu nacionalismo. A Questão de Taiwan é o último reduto deste afastamento que a Grande China pretende ver resolvida até meados do século XXI2. 2. As reflexões em torno do conceito de soberania com características chinesas que nos direccionam, enquanto estudiosos do conceito de Estado e poder na sua vertente interna e externa, a olhar para a sólida evolução que a RPC sofreu neste contexto nos últimos 30 anos. O poder político chinês parece ter evoluído para um comportamento que assegure o cumprimento de um dos seus mais antigos provérbios: A ordem movimenta-se devagar, mas com segurança. A desordem vai sempre apressada. A Questão de Taiwan será resolvida com uma paciência de chinês, no contexto de uma evolução significativa do conceito de soberania na RPC, fundamentada numa ordem que é sustentada no sucesso da soberania com características chinesas! Por outro lado, a Questão de Taiwan – que tende a ser analisada como única no contexto internacional – não pode deixar de ser vista à luz dos tão actuais conceitos de Estado de facto e Estado-ficção, ainda recentemente trazidos a lume pela problemática da Na mesma ordem de ideias, recordamos que os acordos de transferência de soberania de Hong Kong e Macau que a RPC assinou, respectivamente, com o Reino Unido e Portugal, prevêm períodos de transição dos modelos políticos em ambas as Regiões Administrativas Especiais até 2049, sob o signo do conceito “Um país, dois sistemas”. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 304-307 3 UTL há já muitos anos, o fundamental é perceber o que se encontra por detrás da primeira evidência. Tendo assimilado de forma exímia esta máxima da aprendizagem Iscpiana, o Luís Cunha não deixou de nos surpreender com a sua capacidade de análise sobre as múltiplas perspectivas do poder de um Estado na sua relação internacional, na humildade de quem – tendo vivido 14 anos em Macau – acredita ser alguém que não sabe da RPC o suficiente para escrever um livro sobre aquela soberania...NE Entre outros poderemos referir a abertura da China ao mundo e as reformas económicas iniciadas em 1978 que são a base dos sucessos actuais daquele Estado enquanto potência económica. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 304-307 307 China – cooperação e conflito na questão de Taiwan independência do Kosovo. Ao analisar a ideia de soberania com características chinesas e o princípio de Uma Só China, Luís Cunha recorda aos teóricos e académicos que, na prática, o olhar sobre a soberania de facto de um Estado não pode apenas ser orientado para a sua capacidade económica de sobrevivência... Assinalando-se em 2008-2009 alguns marcos históricos de relevância para a RPC3, esta obra será uma importante abordagem nacional a um dos principais desafios que este Estado enfrenta nos nossos dias. Por outro lado, não podemos deixar de mencionar que se assinalam também neste período os 30 anos do restabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e a RPC. A obra que Luís Cunha nos trouxe neste momento de relevância assume um interesse ainda maior para investigadores, políticos e diplomatas, estudantes ou simples leitores, como fundamento para compreensão de parte dos muitos mistérios que aquele país parece encerrar! Por último, enquanto amiga e admiradora, recomendo vivamente a leitura desta obra. As longas conversas que tive oportunidade de ter com o Luís sobre o livro apenas me abriram o apetite para muitas e diferentes leituras. Enquanto docente regresso inúmeras vezes a esta obra para recordar (a mim e aos meus alunos) que nenhum facto ligado ao poder de um Estado tem apenas uma explicação e que, como me ensinou um docente do ISCSP – Nuno Wahnon Martins* Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story 308 INSIDE THE JIHAD – MY LIFE WITH AL-QAEDA, A SPY’S STORY de Omar Nasiri Editora: Basic Books “DEATH COMES TO all, but for him [the Jihadist] there is martyrdom. He will proceed to the Garden, while his conquerors go to the Fire.” Sayyd Qutb Os atentados ocorridos no dia 11 de Setembro de 2001 criaram uma interrogação na população ocidental: Porque é que eles * Research Fellow no Le Cercle. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312 nos odeiam? A resposta comum é a ideia de que nós, o mundo ocidental, não só nos metemos nos assuntos internos dos países muçulmanos bem como humilhamos constantemente as populações desses mesmos países. Esta resposta é aceite, quer dentro do mundo muçulmano, quer dentro de alguns meios ocidentais. Contudo, ela é perigosa porque condena a maturidade dos países muçulmanos, não deixando lugar à progressão política nessas sociedades. Em Inside the Jihad encontramos um relato que nos dá algumas pistas para entendermos o modo de pensar e de funcionar dos fundamentalistas muçulmanos (doravante islamitas). A narrativa contém ainda um misto de romantismo, ficção e ingenuidade. O seu autor, Omar Nasiri (nome fictício), vive no dilema de poder conciliar a sua convicção religiosa, o acreditar nos preceitos religiosos do Islão, com o seu modo de vida ocidental e, em simultâneo, tentar “salvar o Islão dos seus excessos e inovações.” Este é um livro que tem como subtítulo, “A Spy’s Story” e, na verdade, pretende ser um relato das experiências de alguém que decidiu ser espião. Essa decisão não foi tomada por mero acaso, mas por iniciativa própria e o seu relato, enquanto ficção, O lado político da obra oferece-nos uma perspectiva diferente. Ajuda-nos a compreender as lutas políticas dentro do mundo muçulmano, as fraquezas do mundo ocidental, sobretudo no que respeita aos serviços de inteligência e como o sentimento Jihadista é verdadeiramente global. O leitor colocará ao longo do livro a pergunta sobre qual o significado da Jihad. Não havendo uma resposta definitiva, acabamos por perceber que o autor não define o seu significado, bem pelo contrário, atribui sim diversos sentidos que se distinguem consoante o contexto ou a conotação. O relato acaba por reforçar a tese de que o que interessa no Islão é a interpretação do Alcorão. Assim, a Jihad pode então ter vários significados, que se formam independentemente do contexto onde se encontram. Nesta recensão Jihad significa a luta dos islamitas contra o mundo moderno e a sua vontade em introduzir um califado mundial. Este problema de interpretação acaba por abrir todas as possibilidades na utilização de um discurso político-religioso. Sobretudo para os mais radicais, que consideram como traidores aos princípios do Islão, todos aqueles cuja mente tenha sido modificada pelo Ocidente. O único conceito inerente a todos os discursos é o de Oumma ou, por outras palavras, o da comunidade de muçulmanos para lá de qualquer nacionalidade. Este conceito explica por um lado, a Jihad global, ou seja, a união dos muçulmanos islamitas na promoção da implementação de um califado em terras do Islão e, por outro, a inclusão de todo o tipo de muçulmanos NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312 309 Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story tenta ser fiel ao género literário dos contos de espionagem. Como nos livros de Ian Fleming, a personagem principal é cativante, inteligente, esperta, desembaraçada e, extraordinariamente, sortuda. A questão da veracidade da descrição acompanha o leitor em alguns momentos do livro. Obviamente que o optimismo da narrativa traz uma certa panache à narrativa, tornando o narrador num herói. Mas na vida real o herói não tem sete vidas! Daí que, e sem tirar o mérito à sua coragem, parece-nos que haverá algum excesso de confiança do autor. Por outro lado, os relatos geográficos são fabulosos. A história começa em Bruxelas, mas desenrola-se em locais tão distintos como o Senegal, a Turquia ou o Afeganistão. O que mais atrai a atenção do leitor é precisamente o período em que o narrador vai para o Paquistão e daí para um campo de treinos no Afeganistão. Do ponto de vista do relato histórico-geográfico, as descrições são exemplares. O relato da Khyber Pass leva-nos ao mundo do século XIX aquando das Guerras Anglo-Afegãs e sendo certo que esses territórios pouco mudaram desde então, então basta utilizar a nossa imaginação e substituir os personagens e a história é quase a mesma. Neste canto do mundo o modus vivendi das populações continua a ser, no mínimo, exótico. O detalhe da descrição dos campos de treino é importante para conhecermos o dia-a-dia na vida de um potencial terrorista. O autor foca ainda a preparação psicológica dos voluntários. Esta é essencial no caso de captura e demonstra igualmente a importância da ideologia, ou melhor, como esta esvazia a mente humana de tudo o resto. Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story 310 nesse significado, considerando os islamitas e os não crentes em pé de igualdade. A Oumma pode ser ainda considerada de forma distinta: uma conceptual, relacionando todos os fiéis muçulmanos que se designem como tal, e outra imaginativa, todos aqueles que podem ser, em potência muçulmanos. Daí que a deserção ao Islão tenha consequências nefastas, já que todo aquele que deixa de ser muçulmano, acaba por deixar, na verdade, a Oumma. Este é um conceito que acompanha todo o livro e permite explicar simplisticamente dois factos: (i) o medo que os fiéis muçulmanos têm em trair os seus pares e, consequentemente, (ii) a dificuldade que os serviços de espionagem ocidentais têm em arranjar espiões dispostos a fornecer informações sobre os meios terroristas. Podemos ainda considerar duas visões distintas na forma de abordar os interesses nacionais com os interesses globais dentro da Oumma. Para o mundo ocidental, e para a maioria dos governos dos países muçulmanos, a política externa é considerada como a prossecução dos interesses internos. Para os islamitas, pelo contrário, a política externa tem como objectivo a realização de um califado à escala global. Os interesses nacionais, neste caso, não se podem sobrepor aos interesses de um Islão transnacional. Por isso, podemos distinguir dois tipos de atitudes ao longo do livro. No que respeita aos membros dos serviços de inteligência britânicos, franceses ou marroquinos, a sua maior preocupação é a não realização de atentados dentro dos seus respectivos países. Mesmo que haja uma colaboração entre NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312 os vários serviços, esta tem sempre como fim último o impedimento de possíveis atentados dentro da esfera nacional. Mas para o Islamista os diversos campos de batalha têm como objectivo o de promover a união entre todos os países muçulmanos e, em ultima instância, trabalhar em conjunto para o, acima referido, califado. Em resumo, enquanto que a Jihad global é precisamente uma ameaça para todo o mundo, os serviços secretos nacionais viam nessa ameaça um perigo para a segurança nacional. Ora, estas atitudes consubstanciadas em premissas diferentes, apenas beneficiaram o terrorismo global e, em consequência, fragilizaram as seguranças internas dos países ocidentais porque não se souberam adaptar para a ameaça global. A Jihad global é, simultaneamente, uma característica da modernidade e uma ameaça à própria modernidade. No primeiro caso porque os seus ideólogos estudaram no Ocidente, como Saayd Qutb, ou os seus agentes são muitas vezes ocidentais que se converteram ao Islão, assimilando o discurso niilista dos islamitas. Por outro lado, a Jihad global é um conceito que ameaça a modernidade no sentido em que pretende o derrube do modo de vida contemporâneo. Tudo é resumido na submissão ao Islão e todos os conceitos sociológicos e políticos só fazem sentido, para os islamitas, enquanto ligados à teologia muçulmana. Aqui podemos verificar como Omar Nasiri é um muçulmano que adquiriu características ocidentais no seu modo de pensar. O autor não se submete ao Islão, tout court, mas oferece-lhe luta e argumenta contra alguns daquelas, em vez de servir para desenvolver as suas populações, tem sido utilizado sim para o aumento das riquezas pessoais de uma pequena minoria e para apoiar a prática de ataques terroristas. Os recursos naturais não têm sido capitalizados para desenvolver a sociedade civil daí que o autor se sinta “irritado” com a necessidade de aquisição de meios fornecidos pelo Ocidente para poder realizar quase tudo. Contudo, parece-nos que este facto deveria dar força ao autor para criticar ainda mais a fundo o que está a acontecer um pouco por todo o mundo Islâmico. Por último, não podemos deixar de mencionar que Omar Nasiri conheceu e privou com algumas das personagens que vieram mais tarde a tornar-se, tristemente, famosas. Falamos de Ali Touchent, a cabeça do GIA e que ainda hoje não se sabe se se encontra morto ou vivo e Abu Hamza, o famoso imã, com a mão de gancho, da Mesquita Londrina de Finsbury Park. Estas duas sinistras personagens estarão por trás de vários atentados terroristas um pouco por todo o mundo. A descrição feita por Nasiri a respeito do líder religioso Londrino é interessante, pois o autor mostra-nos uma pessoa pouco inteligente e que se move por interesses pessoais, mas que acaba por influenciar os seus ouvintes. Inside Jihad é um livro que se lê facilmente e que demonstra o modo do funcionamento prático das células terroristas e as razões por que estas cativam os seus adeptos por todo o espectro muçulmano. A descrição dos espaços públicos muçulmanos no Ocidente é sintomática da propagação internacional NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312 311 Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story preceitos específicos da teologia islâmica. Um exemplo disso é o facto de o autor apreciar “um bom vinho,” ou seja, ao oferecer ao leitor esta opinião pessoal, Omar Nasiri sai da tradicional submissão Islâmica para com o Corão. A submissão, ao contrário das outras religiões monoteístas, é um elemento primordial na religião muçulmana. Tomando como exemplo o episódio bíblico sobre o sacrifício de Isaac, Abraão, e de acordo com a tradição muçulmana, aceitou livremente a ordem divina para que matasse Isaac. O mesmo não se passa nas outras religiões do Livro, já que nestas, ele segue contrariado a ordem divina de sacrifício do seu filho. Este é um elemento essencial para perceber a disposição terrorista, bem como para distinguir as três religiões monoteístas. Um outro elemento a reter no discurso de Omar Nasiri é o facto de considerar que os países muçulmanos dependem do Ocidente para prosseguir com qualquer dos seus fins. Através de um episódio em que os terroristas adquirem Uzis (armas de fabrico Israelita) para procederem a um ataque propagado pelo GIA (Grupo Islâmico de Salvação), grupo terrorista argelino, em Argel, leva o autor a concluir que a utilização de meios ocidentais é uma triste necessidade que faz com que “o moderno Islão viva numa concha.” Para nós isto constitui um paradoxo do Islão e dos grupos terroristas. Se o que os aflige é a modernidade, então a utilização de meios modernos para atingir os seus fins é uma contradição dos próprios termos. Na verdade, apesar de todas as riquezas naturais existentes nos países árabes, o dinheiro capitalizado pela venda Inside the Jihad – My life with Al-Qaeda, a spy’s Story 312 dos elementos radicais. Torna-se assim difícil encontrar neste contexto os denominados “moderados” do Islão. O nível do detalhe na crítica aos islamitas é importante para perceber o modo de funcionamento dos terroristas. Contudo, se o leitor estiver à espera de encontrar alguém que vai criticar o Islão ou colocar em causa o terrorismo internacional, então sairá frustrado. O autor procura sim ver nos islamitas um grupo que está a denegrir a imagem do verdadeiro Islão, contudo, ele não deixa de ver no Ocidente uma entidade arrogante e imperialista, sem necessitar de distinguir os países uns dos outros, que humilha sistematicamente o mundo muçulmano. Omar Nasiri oferece-nos um bom livro de espionagem, juntando elementos importantes para perceber o que antecedeu os atentados de 11 de Setembro de 2001. Mas para quem vê nas palavras de Qutb “uma linguagem que faz sentido” é porque não está a ser demasiado coerente com a crítica ao Islão radical ou então está a ser demasiado ingénuo!NE NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 308-312 Cadernos de Arquivo 313 José Segismundo de Saldanha* ■ Relação da Embaixada e Entrada Pública que deu nesta Corte o Conde de Valdstein, Embaixador Extraordinário da Alemanha, ao Senhor Rei D. Pedro II, escrita pelo Conde de Assumar D. João de Almeida vedor da Casa Real que por ordem de El-Rei lhe fez a hospedagem DEPOIS DA FELIZ aclamação do Senhor Rei D. João IV de gloriosa memória e da prisão que o Imperador Fernando [....] fez ao Senhor Infante D. Duarte, o qual o entregou depois a El-Rei de Castela Filipe IV, que o mandou meter no Castelo de Milão adonde ultimamente morreu, nunca mais este reino teve trato com o Império, nem depois do Tratado das pazes que El-Rei D. Pedro II, sendo Príncipe Regente fez com a monarquia de Espanha, se mandaram Embaixadores de uma a outra corte e como eram poucos os interesses que entre eles havia, ficou suspenso o comércio até o ano de 1687, em que S. Majestade mandou à Corte de Heidelberg o Conde de Vilar Maior, Manuel Telles da Sylva, depois Marquês de Alegrete, por seu Embaixador Extraordinário, para tratar e concluir o segundo matrimónio com a princesa Maria Sofia de Neubourg, filha segunda do Duque de Neubourg Conde Palatino do Reno Filipe Guilherme, Eleitor do Sacro Império. E como este Príncipe havia dado sua filha primogénita ao Imperador Leopoldo I, que com esta aliança ficava sendo cunhado de El-Rei Nosso Senhor, desejou muito que assim como ficavam unidos pelo sangue o fossem também na amizade e para esse efeito procurou com repetidas diligências persuadir ao nosso Embaixador o grande desejo que o Imperador tinha de ver um Ministro de Portugal na Corte de Viena, segurando que se S. Majestade se resolvesse a mandá-lo se lhe faria todo o bom tratamento e as mesmas honras e prerrogativas que se costumavam conceder ao Embaixador de Espanha. * Doutor em História, investigador. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 Cadernos de Arquivo 315 Cadernos de Arquivo 316 Chegando o Marquês de Alegrete neste Reino e referindo a S. Majestade toda a série da sua Embaixada, lhe fez presente as diligências que com ele havia feito o Eleitor Palatino sobre S. Majestade mandar um Embaixador a Viena. E como lhe pedira que de sua parte lhe rogasse segurando-lhe o grande gosto e contentamento que disso poderia receber, a isto se seguiram as repetidas instâncias da Rainha nossa Senhora que ou por comprazer ao pai ou à irmã ou por desejo particular que tivesse desta nossa [....], depois que chegou a esta corte não cessou de persuadir a El-Rei seu marido, a que mandasse um Embaixador ao Império. E foram tão poderosas as suas instâncias que ultimamente se resolveu S. Majestade no ano de 1696 a nomear por Embaixador Extraordinário ao Imperador ao Príncipe Senescal de Ligne, Marquês de Arronches, que sendo filho terceiro de sua Casa havia vindo da Flandres a casar com a neta herdeira de Henrique de Sousa, Marquês de Arronches, filha de Diogo Lopes de Sousa, Conde de Miranda, o qual, partindo desta Corte em Novembro do mesmo ano se deteve em Paris alguns meses a fazer as suas librés e equipagens com toda a grandeza e luzimento que era possível. E tanto que as teve prontas se pôs a caminho para Viena a donde, depois de estar alguns tempos, fez a sua entrada pública com toda aquela pompa e magnificência que é possível, entregando ao Imperador a carta de crença que de S. Majestade levava e à Imperatriz a da Rainha nossa Senhora, em que lhe significava o gosto que tinha de ver outra vez unidas em boa correspondência as duas Coroas, a Imperial e a Portuguesa. Passado algum tempo, entendendo o Imperador, que era razão mostrar a El-Rei nosso Senhor a grande estimação que fazia da sua pessoa, do seu parentesco e da sua amizade, nomeou por Embaixador Extraordinário a este Reino o Bispo de Passovia, hoje Cardeal Lambert, Príncipe do Sacro Império, para que da sua parte viesse representar a El-Rei a grande satisfação que tinha de ver de todo extintas as antigas inimizades e estabelecida outra vez a boa correspondência entre as duas coroas. Porém sendo-lhe depois preciso valer-se da pessoa e talentos do dito Bispo na Dieta geral que se fazia na Polónia sobre a eleição do novo Rei em que o Império tinha tantos interesses e dando-lhe fim à sua negociação com a eleição que fez do Duque da Saxónia, que era o mesmo que o Imperador queria o ocupou novamente fazendo-o Presidente da Dieta de Ratisbona em que os círculos e mais Príncipes do Império se juntavam para regular as dependências do novo eleitorado que novamente se havia regido na pessoa do Duque de Hanover. E como esta ocupação lhe retardava o poder vir a Portugal, o dispensou desta jornada, nomeando em seu lugar ao Conde de Waldstein, cavaleiro do Tozão de Ouro, do Conselho de Estado NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 317 Cadernos de Arquivo do Imperador, gentil homem da Câmara de El-Rei dos Romanos e filho do seu Camareiro-Mor e do Conselho do Gabinete, o qual separando-se de sua mulher em Paris, a donde também esteve dispondo as suas equipagens para vir por terra a Madrid, donde tinha alguns negócios, a mandou por mar em um navio com a maior parte do seu fato. Logo que ela aqui chegou, lhe mandou S. Majestade falúas para desembarcar para as casa do Visconde de Asseca que lhe tinham tomado e ele mandou dar a boa vinda por D. Manuel de Azevedo, Tenente General da Cavalaria da Província da Estremadura, e poucos dias depois chegou pela posta a Aldeia Galega o Conde seu marido. E fazendo aviso que ali ficava, se lhe mandaram as faluas e mais embarcações que se costumam para o transportarem a esta Corte. E chegando à praia do Cais do Carvão, donde desembarcou, o estava esperando o Conde de Monsanto D. Manuel de Castro, filho primogénito do Marquês de Cascais, nos coches de S. Majestade para o conduzir a sua casa. E depois de entrados no coche, dando-lhe o Conde sempre ao Embaixador a mão direita na cadeira de trás, e de ele dar a boa vinda da parte de S. Majestade, falando-lhe por Excelência lhe respondeu o Embaixador por Senhoria e o Conde lhe tornou a falar por Senhoria também, e assim foram continuando até que o Conde o pôs em casa. E queixando-se o Embaixador do tratamento que o Conde lhe havia dado, lhe respondeu S. Majestade que os Condes de Portugal não davam Excelência senão a quem lha tomava, e o Embaixador se satisfez e deu várias escusas de que não sabia este estilo e que perguntando em Aldeia Galega ao Juíz de Fora e depois a Marco António, o tratamento que os Condes tinham em Portugal, lhe haviam dito ambos, que era de Senhoria. Porém que ele não duvidava em lhe dar Excelência e assim o praticou com todos dali por diante. Foi o Embaixador dispondo os aprestos para a sua entrada pública e antes de os ter de todo findo, faleceu em Madrid ao 1.º de Novembro El-Rei de Castela Carlos II e como tinha tanta aliança com o Imperador seu amo, por ser da mesma Casa, suspendeu as prevenções que tinha feito e ia fazendo até avisar Viena, para saber se havia de fazer a sua entrada de luto ou de gala. Tardou algum tempo a resposta, até que El-Rei nosso Senhor partiu para Salvaterra com toda a família Real em 19 de Janeiro deste presente ano de 1701, com motivo de preservar a seus filhos de uma epidemia de bexigas que havia em Lisboa, e como elas fossem continuando durou a detença de S. Majestade em Salvaterra até 2 de Maio, dia em que se restituiu a esta Corte. Pouco depois pediu o Embaixador audiência pública que se lhe retardou alguns dias por se achar S. Majestade ocupado com a Aliança que fazia com as Duas Coroas de Cadernos de Arquivo 318 França e Espanha, e logo que o Tratado se concluiu e ratificou, mandou S. Majestade dizer ao Embaixador que podia fazer a sua entrada e ter a grande audiência de cerimónia em Quarta-feira 13 de Julho, e em 25 de Junho me mandou encarregar a hospedagem deste Embaixador, por um escrito do Secretário de Estado Mendo Foyos Pereira, em que me dizia o que adiante se verá na cópia dele, ao qual avisei o que contém a minha resposta que também se segue; e mandando S. Majestade consideradas as razões que nela apontava para me haver de escusar de assistir a esta função sem um embargo delas, foi servido resolver que eu tomasse por minha conta, como consta dos dois escritos do Secretário de Estado que ao diante vão trasladados, os quais recebidos, avisei logo ao escrivão da cozinha António Rebelo da Fonseca que mandasse fazer prestes tudo o necessário para esta função e passei a ver das casas de Manuel Lobo da Silva, a Santa Apolónia que estavam escolhidas, e não achando nelas toda a capacidade necessária por ter uma sala muito pequena e incapaz de nela se pôr um aparador, mandei fazer diligências por outras casas. E vendo-se as do Conde da Ponte, se não achavam nelas as oficinas necessárias nem tão pouco na Quinta de D. João de Sousa a S. Bento, nem na do Duque de Cadaval em Palhavã; por ser pouco o tempo para se fazerem nelas as obras necessárias, foi preciso acomodar as que estavam escolhidas, por não se acharem outras capazes. Mandei logo aos mestres das obras do Paço que lhe fizessem os repartimentos que fossem precisos com a maior brevidade e a João de Leiros, guarda das tapeçarias e adereços do Paço, ordenei que as ornasse com toda aquela decência que era costume. O que ele fez, pondo na sala um docel de tela branca com sanefas de tela carmesim e no rescaldo do docel guarnição do mesmo com cortinas de damasco carmesim. Debaixo do docel estava um grande aparador com quatro degraus todos cheios de excelente prata dourada de Bastiões e de Alemanha que chegava quase ao tecto da casa em que estavam vários vasos de diferentes sortes e algumas figuras de animais excelentemente feitas. A casa toda estava rodeada de mesas em que se costumam pôr as iguarias que vêm da cozinha e os triunfos e mais ornatos que se tiram da mesa em que o Embaixador come. Para dentro se seguia uma saleta pequena com sanefas de veludo lavrado carmesim e franjas de ouro e cortinas de damasco e com bancos de encosto para sentarem os criados do Embaixador. A esta se seguia uma casa grande em que o Embaixador havia de comer, com docel e sanefas nas portas e janelas de veludo lavrado carmesim com franjas de ouro, cadeiras e panos de bufete do mesmo. Mais para dentro estava outra casa de bastante grandeza com docel de damasco de ouro muito rico, sanefas, cadeiras e panos de bufete do mesmo, NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 319 Cadernos de Arquivo também com franjas de ouro e cortinas de damasco carmesim. Mais para dentro estava a câmara em que o Embaixador havia de dormir, na qual estava armado um leito de ébano e paramentos de damasco verde de ouro mui rico, com boas franjas do mesmo e as sanefas e cadeiras e panos de bufete do mesmo. Muitas outras casas estavam também adereçadas com cortinas, sanefas, bufetes e leitos, com vários paramentos para nelas comerem e dormirem os seus gentis-homens e pajens e mais família que era tão numerosa como adiante se referirá na ordem das mesas. E porque o Embaixador representou ao Secretário de Estado, que teria mais comodidade em fazer a entrada pública de sua casa a respeito das suas carruagens e família, que teria grande discómodo em vir de tão longe, me avisou o Secretário da parte de S. Majestade o que contém o escrito abaixo, e em virtude dele, mandei que os aprestos que estavam feitos para começarem a hospedagem por ceia se mudassem para jantar. Em Domingo 10 de Junho vieram à minha porta quatro coches da família de S. Majestade em que havia de vir a família do Embaixador e o seu de Respeito em que eu o havia de conduzir. Meti-me nele pelas nove horas da manhã, levando atrás de mim um coche com seis gentis-homens e dez lacaios vestidos de pano alvadio com ferros e bocais nas mangas de pano azul ferrete. Os quatro coches da família iam diante, logo seguia o em que eu ia e em último lugar o dos meus criados. Assim fui pela Cruz de Pau, Calçada do Combro, Poço dos Negros, Esperança, até chegar a casa do Visconde de Asseca, de fronte dos Marianos. Chegando à porta achei nela todos os gentis-homens do Embaixador e pedindo-lhes que o avisassem de que eu ali estava, me disseram que podia subir. Apeei-me do coche acompanhado de todos os seus criados e dos meus e no último lanço da escada junto à lógia achei o Embaixador que tanto que me viu desceu o último degrau e caminhou para mim, que ainda estava a poucos passos do coche. Ali me fez logo o seu cumprimento, dando-me sempre a mão e a porta. Passámos por quatro casas nobres e ricamente adereçadas com docéis, cadeiras, bufetes e espelhos, tudo muito rico e de bom gosto. Na última casa em que parámos, me deu a melhor cadeira e eu em me sentando lhe disse que S. Majestade me havia dado a comissão de o levar para a casa em que mandava hospedá-lo e que eu lhe havia beijado a mão por esta missão de que fazia a maior estimação por ter o gosto de poder assistir-lhe e o oferecer-me a seu serviço com outras semelhantes razões. Ele me respondeu por Excelência, dizendo que ao Secretário de Estado havia já representado que da sua parte quisesse fazer presente a El-Rei o quanto se achava agradecido a S. Majestade por me haver nomeado a mim Cadernos de Arquivo 320 para esta função e a grande estimação que fazia da minha pessoa e com muitos outros cumprimentos. E logo mandou que trouxessem chocolate e entretanto estivemos conversando em várias coisas até que vieram seis pajens seus com vários doces e água e depois com chocolates e biscoitos, que tomámos. E no mesmo tempo se deram na antecâmara aos meus criados várias bebidas. Acabado isto, lhe disse que tanto que S. Excelência achasse que era tempo que podíamos ir, que estava para lhe obedecer. E logo nos levantámos e fomos para os coches, no qual entrou o Embaixador por primeiro e lhe dei a mão direita na cadeira de trás em que também me sentei com ele, e os seus criados se meteram nos coches da família de S. Majestade que para isso haviam ido, e assim fomos caminhando pela Calçada do Combro, Portas de Santa Catarina, Rua Nova de Almada, Rua Nova, Ribeira, Cais do Carvão, Bica do Sapato, até às casas de Santa Apolónia a donde nos estavam esperando à porta quarenta reposteiros, João de Leiros e um Moço da Câmara Francisco da Silveira e o Escrivão da Cozinha António Rebelo da Fonseca. Abriu o coche o meu estribeiro e nos apeámos, e ali pus logo o Embaixador à minha mão direita e lhe fui dando as portas e quando chegámos à última casa que era a câmara em que não havia docel, lhe dei a melhor cadeira e depois de estarmos algum espaço de tempo me veio o moço da câmara perguntar se o Embaixador queria ouvir missa e dizendo que sim, fomos para o oratório a donde estava posto um banco coberto com um pano de damasco de ouro com sua almofada em cima e outra em baixo, no qual nos pusemos a ouvir missa. E acabada ela voltámos para a mesma câmara até que me deram recado de que estava pronto o comer. Fomos para a mesa e antes de chegar a ela chegaram dois reposteiros com duas salvas douradas em que o Embaixador e eu pusemos os nossos chapéus e logo vieram outros com dois pratos e dois gomis também dourados, e apertando muito comigo o Embaixador que lavasse primeiro, não aceitei e cada um de nós lavou as mãos ao mesmo tempo e em seu prato diverso. Chegámos à mesa e dois reposteiros nos chegaram também as cadeiras no mesmo tempo. A mesa teria trinta palmos de comprido e largura ordinária. Estava muito vistosamente ornada com triunfos, várias outras coisas que a faziam mui luzida. O Embaixador se sentou no topo da mesa e eu logo na outra à sua mão direita. Esta primeira coberta era de natas, manteigas, espumas e frutas do princípio, seladas, presuntos, paios e línguas e tudo o mais que se costuma, muito bem consertados com cidra e abóbora em que os copeiros tinham feito vários lavores muito agradáveis. Depois que o Embaixador não quis mais desta primeira coberta NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 321 Cadernos de Arquivo que teria [....] pratos, pediu de beber e logo vieram dois reposteiros com duas salvas douradas e em cada uma três garrafinhas de vidro cristalino e um copo. As duas, uma de vinho tinto outra de branco e a terceira de água, as quais se puseram uma diante do Embaixador, outra de mim, e brindando ele com vinho e água à saúde de S. Majestade fiz eu a razão. Feito isto mandei levantar os triunfos e toda a primeira coberta, ficando só na mesa os talheres dourados e os em que eu e o Embaixador tínhamos o pão, garfo, colher e faca, e logo veio uma coberta de carnes com 24 pratos grandes e 12 pratinhos de diferentes e várias potagens feitas por diferentes sortes de todas as castas de aves, e acepipes com que a mesa ficou toda cheia. Comeu o Embaixador do que melhor lhe pareceu e fez vários brindes na mesma forma do primeiro. E tanto que se me fez aceno de que na copa estava já pronta outra coberta, mandei levantar a que estava na mesa e veio outra de assados do mesmo número de pratos. Depois que o Embaixador não quis mais dela a mandei levantar e veio outra de massas feita em diferentes tortas, pastelões e empadas com vários lavores, que as faziam agradáveis não só ao gosto mas à vista. Levantada esta coberta, outra de doces de toda a sorte assim secos como de ovos, ornados os pratos em várias formas, todas muito agradáveis. O Embaixador e eu comemos dos que mais gostámos e logo dois reposteiros nos trouxeram duas salvas, cada uma com três púcaros, um de água de ginjas, outro de limão e outro de água pura, todas nevadas, para que cada um bebesse da que mais gostasse. Feito isto se levantou a coberta de doces e veio a última de frutas de toda a variedade que o tempo permite, ornados os pratos todos com capelas e triunfos de flores que faziam a mesa formosamente vistosa e depois que Embaixador não quis mais delas se levantaram, ficando a última toalha. É de advertir que em todas as ocasiões que se levantavam as cobertas se tiravam juntamente as toalhas e guardanapos e quando se levantava a toalha ficava debaixo outra e vinham novos talheres com guardanapos, facas e garfos da copa. Feito isto vieram para o Embaixador e para mim várias águas geladas em tigelinhas de vidro cristalino em salvas douradas e em outras pastilhas de boca e de cachundê, e depois que as tomámos, veio água às mãos que lavámos como no princípio da mesa e dando-nos os chapéus que tínhamos no princípio postos em salvas, nos levantámos da mesa e fomos para a câmara do Embaixador com o qual me entretive um bastante espaço e depois dizendo que o queria deixar descansar e não incomodá-lo, ele me veio acompanhar até o topo da escada, e a sua família e a de S. Majestade que ali estava vieram até à minha carruagem. Cadernos de Arquivo 322 Acabada como fica referida a mesa do Embaixador, se entrou logo a servir as de sua família, que eram quatro, a saber, a dos gentis homens que eram dezoito e em que se lhes puseram por várias vezes [....] pratos, a dos pajens que eram dez, uma de ajudas da câmara, porteiros e outras pessoas que por todas eram oito, em que se lhes puseram [.....] pratos. A de quarenta lacaios em que houve [....] pratos. Todas elas foram servidas pelos reposteiros no mesmo tempo sem que o comer de uma servisse para a outra, como também não havia servido para nenhuma o que sobejou da mesa do Embaixador porque se se reparte todo pelos reposteiros, assim como dela sai sem que torne à cozinha. De tarde foi o Embaixador visitado pelo Presidente Rullié Embaixador de França e pelo Residente do Marquês de Brandenbourg e outro do mesmo Príncipe que aqui veio de Madrid para se embarcar para os seus Estados, aos quais mandei que se dessem vários doces e águas nevadas de todas as sortes e quando o Embaixador saiu, mandei que o alumiassem com seis tochas que levaram seis reposteiros e quando me pareceram horas, tornei para a casa da hospedagem a donde me estavam também esperando outros seis reposteiros com seis tochas que me foram alumiando até à casa donde estava o aparador, e a mais família me foi acompanhando até à casa de dentro, donde o Embaixador me veio esperar e entrámos para a câmara a donde estivemos conversando até que me vieram dizer que a ceia estava pronta e indo para a mesa se fez na mesma forma que ao jantar. No segundo dia se fez tudo na mesma forma que no primeiro, sendo sempre o mesmo número das iguarias, porém diferentes todas, de sorte que a que uma vez chegou a ir à mesa se não viu mais nela. Na tarde deste dia o foi visitar Monsenhor Conty Arcebispo de Tarso, Núncio de Sua Santidade, a quem se fez o mesmo que ao Embaixador de França e também foi o Residente de Holanda. No terceiro dia houve os mesmos comeres com as mesmas cerimónias e nele tornaram os Residentes de Brandenbourg a visitar o Embaixador e depois que acabou de cear e toda a sua família, me vieram dar recado que estava tudo pronto, e assim descemos pelas escadas abaixo acompanhados de todos os criados de S. Majestade e dos do Embaixador e os meus, e nos mesmos coches de S. Majestade em que tinha ido para a hospedagem o conduzi até sua casa que era do Visconde de Asseca de fronte dos Padres Marianos a donde me apeei com ele e subi até ao seu quarto e depois de vários cumprimentos me despedi. Ele me veio acompanhando até ao coche e me viu partir e assim me recolhi para minha casa. O dito Embaixador mandou dar várias quantias de dinheiro que se repartiram pelos reposteiros, copeiros e cozinheiros que haviam assistido na hospedagem e ao NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 ANTT, Miscelâneas Manuscritas n.º 1096, fol. 132V-139. NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 315-323 323 Cadernos de Arquivo Escrivão da Cozinha António Rebelo da Fonseca mandou dar uma jóia e ao Moço da Câmara de S. Majestade e Guarde Reposta, outras. No dia seguinte teve audiência pública de S. Majestade no salão do Forte a que foi conduzido pelo Conde de Alvor, Francisco de Távora, do Conselho de Estado de S. Majestade e foi a ela com cinco coches, duas liteiras, e grande número de gentis homens, pajens e lacaios com uma boa libré e tudo com grande magnificência e luzimento.NE 324 LINHAS DE ORIENTAÇÃO Os trabalhos devem ser inéditos e ter entre 10 a 30 páginas e deverão ser entregues no Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, acompanhados dos seguintes elementos: – versão electrónica em Word para Windows; – resumo até 10 linhas em inglês, eventualmente com 4 ou 6 palavras-chave; – versão final pronta a publicar, devidamente revista. À parte, deverá ser entregue a identificação do autor, CV resumido, a instituição a que pertence, morada completa e contacto. Quando os trabalhos incluírem materiais gráficos ou imagens, devem fazer-se acompanhar pelos originais em bom estado, ou ser elaborados em computador e guardados em formato gráfico. Em sistema de peer-review, os trabalhos serão apreciados pelo menos por um avaliador externo anónimo. Quando publicados, responsabilizarão apenas os seus autores. O envio de um trabalho implica compromisso por parte do autor de publicação exclusiva na revista Negócios Estrangeiros, salvo acordo em contrário. Os trabalhos enviados serão apreciados dentro de um prazo razoável e a sua devolução não fica assegurada. GUIDELINES TO CONTRIBUTORS The works to be published shall consist of between 10 and 30 pages and shall be delivered to the Diplomatic Institute of the Ministry of Foreign Affairs accompanied by the following: – electronic version in Word for Windows; – a 10 line abstract, with 4 or 6 key-words; – final version, ready to publish and duly revised for possible typing errors. Identification, full address, resumé, and professional contacts should be given separately. If the work includes graphic material or images it should be accompanied by originals in good condition or be prepared on a computer and saved in graphical format. Articles submitted to Negócios Estrangeiros are read at least by one not identified reviewer, following a peer-review system. The works, when published, will reflect exclusively the authors’ view. Unless otherwise agreed, submission of a work implies a commitment by the author to exclusive publication in Negócios Estrangeiros. Works received will be reviewed within a reasonable delay and won’t be necessarily returned to sender. Número 11.1, 11.2, 11.3 e 11.4 Número 12 – E 10 Número 13 – E 10 Número 14 – E 10 O pagamento deve ser efectuado por cheque à ordem do Ministério dos Negócios Estrangeiros e anexado a este Boletim. Rua das Necessidades, 19 . 1350-218 Lisboa . T 21 393 29 40 . F 21 393 20 49 . [email protected] Número 11.1, 11.2, 11.3 e 11.4 Número 12 – E 10 Número 13 – E 10 Número 14 – E 10 O pagamento deve ser efectuado por cheque à ordem do Ministério dos Negócios Estrangeiros e anexado a este Boletim. Rua das Necessidades, 19 . 1350-218 Lisboa . T 21 393 29 40 . F 21 393 20 49 . [email protected] 326 327 328 A energia do país passa por nós. Fazer chegar a energia onde ela é necessária é uma das nossas missões. Sempre com consciência e preocupação a nível social e ambiental e com altos critérios de qualidade e segurança. Por isso, a REN – Redes Energéticas Nacionais – assegura um canal de transporte eficaz de toda a energia do país, seja ela de muito alta tensão ou de alta pressão tendo em conta os elevados padrões de exigência do mercado. Porque é no futuro de todos nós que dedicamos toda a nossa energia – Electricidade ou Gás - onde é preciso. Em todo o país. www.itu.int www.mota-engil.pt www.ren.pt www.brisa.pt www.acomonta.pt www.ared.eu.com