De Castela casamento: festa e política no teatro de Gil Vicente

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De Castela ... casamento:
festa e política no teatro de Gil Vicente1
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Univ. Estadual de Feira de Santana
Para o Tobias, sempre grato pela amizade.
1.
O teatro de Gil Vicente, como se sabe, nasceu dentro da Corte de D. Manuel I, gozou
durante muitos anos dos favores da Rainha Velha, D. Leonor2, teve no nascimento do
príncipe herdeiro, o futuro D. João III, o elemento motivador da primeira representação, e,
no reinado deste último, recebeu grande estímulo para seu desenvolvimento, tendo Vicente
escrito e encenado mais da metade dos autos sob égide deste rei3. Teatro de Corte, escrito
para esta e tendo como mecenas as principais personagens que a compunham4, a obra
vicentina não podia e não pôde negligenciar as características e as expectativas desta.
1
Este texto foi publicado em: BRADENBERGER, Tobias; THORAU, Henry. (Org.). Portugal und Spanien:
Probleme (k) einer Beziehung (Portugal e Espanha: Encontros e Desencontros). Frankfurt: PeterLang, 2005,
v. 45, p. 79-91, ISBN: 3631538413.
2
D. Leonor foi figura importantíssima para a história política de Portugal no final do séc. XV e início do séc.
XVI, e também para a afirmação do valor do teatro de Vicente. Denominada a Rainha Velha, D. Leonor era
irmã de D. Manuel I e esposa do antecessor deste, D. João II, e uma das pessoas responsáveis pela ascensão
do irmão à coroa. Considerando os prováveis mecenas da obra vicentina, significativo destaque deve ser dado
a esta rainha que, tendo apreciado muito o Auto da visitação, ou o Monólogo do vaqueiro – primeira
representação teatral feita por Vicente - incentivou futuras produções do poeta. Sob sua égide e orientação,
Gil Vicente escreveu durante quase duas décadas. A profunda religiosidade da Rainha Velha marcou as fases
iniciais do teatro vicentino, caracterizadas pela produção de autos de teor religioso e moralista. D. Manuel I
concorre com D. Leonor para o desenvolvimento dessas fases iniciais. Juntos, foram responsáveis pelo
mecenato de quase duas dezenas de peças. [Ao referir-me às peças de Gil Vicente, por motivo de concisão,
usarei, sempre que possível, a “abreviação” dos títulos tomada da coleção de estudos dirigida por Osório
Mateus, publicados pela Quimera.]
3
Homenageado na primeira encenação do autor, D. João III – rei desde 1521 - parece ter escolhido nosso
teatrólogo como “mestre de cerimônias” predileto de sua Corte. Durante uma década e meia de convívio,
foram aproximadamente duas dezenas e meia de autos. De 1521 a 1536 – ano da última encenação vicentina
de que se tem notícia -, somente no ano de 1535 não foi representado um auto vicentino. Em compensação,
mais de três encenações foram feitas em cada um dos anos de 1523, 1524 e 1527. De modo geral, a média foi
de dois autos a cada ano. Se considerarmos as precárias condições da época e o fato de ser o teatro uma arte
sem longa tradição em Portugal, percebe-se o privilégio dado a Vicente por este rei.
4
Entendo por Corte não apenas a capital de um reino, mas todo e qualquer lugar em que se encontre o rei
acompanhado de seus súditos. Sendo assim, ainda quando aconteceram fora do espaço físico da Corte, os
autos foram, de modo geral, representados para ou a pedido de uma das três personagens reais, D. Manuel I,
D. Leonor e D. João III. Uma única exceção em relação aos mecenas é a encenação de Cananéia, em 1534,
feita a pedido de D. Violante, Abadessa do Mosteiro de S. Dionísio de Odivelas. Porém, como era costume
1
Dentre as características das Cortes manuelina e joanina que Vicente teve de ter em
conta estava a de ser essencialmente bilingüe, em que a presença do castelhano se impunha
- quando não pela força e importância política do vizinho - pelo fato de as três esposas de
D. Manuel I e a de D. João III provirem de Castela5. Não ao acaso, das quase cinco dezenas
de peças de Gil Vicente, 12 estão em castelhano e 19 são bilingües, sendo que apenas 15
estão exclusivamente em português. Se se reflete nesta divisão o prestígio da língua de
Castela à época - língua de cultura, privilegiada pelo dramaturgo nas moralidades, de
assuntos elevados, e no denominado teatro hierático [comédias, tragicomédias e fantasias
alegóricas6], particularmente quando versavam sobre temas cavalheirescos, e nas
personagens de rasgo mais culto e aristocrático -, grande influência teve a presença das
rainhas e do séquito que as acompanhava, o que certamente tornaria grande o número de
castelhanos a habitar a Corte e a assistir as representações vicentinas.
No que diz respeito às expectativas do público cortesão relativas às encenações de
nosso dramaturgo, está claro que a Corte esperava ver-se refletida no espelho teatral. Gil
Vicente, tudo leva a crer, foi uma espécie de “Mestre de Cerimônia” tanto no reinado de D.
Manuel I quanto no de seu filho (MIGUEL 1986). Os serviços do poeta eram requisitados
para comemorar nascimentos dos infantes, entradas dos reis em diversas cidades,
importantes datas religiosas e casamentos7. Nestes momentos, ou melhor, nestes autos
filhos de famílias nobres assumirem altos cargos eclesiásticos, a exceção insere-se dentro do campo da alta
nobreza para quem Vicente sempre trabalhou.
5
D. Manuel I casou-se primeiramente com D. Isabel e, depois, com D. Maria de Aragão, filhas dos Reis
Católicos. Morta a última, contraiu núpcias, já bastante idoso, com D. Leonor da Áustria, filha de Felipe, o
Belo, de França, e de Joana, a Louca, de Castela. D. João III casou-se com D. Catarina da Áustria, irmã de sua
madastra.
6
Há grande variedade de classificações da obra vicentina. Neste trabalho, guiei-me pela de António José Saraiva
por acreditar que é, dentre todas, a mais abrangente e coerente (SARAIVA 1981, 1942: 71 e ss). Para a
discussão da problemática dos gêneros em Vicente, cf. MENDES 1990 e MUNIZ 2003.
7
Num levantamento não sistemático dos elementos motivadores da encenação vicentina encontro o seguinte
quadro: dentre os atos religiosos, os festejos natalinos foram propiciadores do maior número de autos
vicentinos, ao todo oito peças: Pastoril Castelhano, Fé, Tempos, Cassandra, Pastoril Português, Feira,
Mofina Mendes e Purgatório. Já as comemorações em torno da Semana Santa foram contextos de cinco
encenações: Inferno, Alma, Glória, História de Deus, Ressurreição de Cristo. Apenas três peças tiveram
outras datas religiosas como elemento motivador de criação: Reis, representada no dia de Reis; Martinho, em
Corpus Christi; e Cananéia, durante a Quaresma. Por sua vez, muitas representações se deram por motivos
seculares. Um texto foi escrito para comemorar a ascensão ao trono, Aclamação de João III; dois para as
entradas dos reis nas cidades, Divisa e Nau; três para festejar casamentos reais, Cortes, Templo e Frágua; e
nove para saudar nascimentos de príncipes, Visitação, Pregação, Serra, Inverno e Verão, Romagem, Floresta,
Juiz, Clérigo e Lusitânia. Um total de quinze encenações atenderam a esses objetivos. Não se deve pensar, no
entanto, que o teatro vicentino foi criado exclusivamente em torno de motivações religiosas ou de
acontecimentos “oficiais” palacianos. Um grande número de peças foi encenada com a função de ser “apenas
2
esperava-se que ao festejar os grandes acontecimentos o poeta louvasse os valores e as
personagens que compunham o mundo da Corte, entre os quais estava o ramo castelhano da
família real.
2.
Dentro da gama variada de gêneros de que se compõe o teatro vicentino, as fantasias
alegóricas foram as que melhor serviram ao processo laudatório cortesão. Exatamente
nesses autos se sobressaíram a divulgação e a defesa dos ideais dos mecenas vicentinos.
Mais que as outras, essas obras possuíam uma estrutura altamente espetacular. Recorrer a
fórmulas próprias dos momos medievais, assim como utilizar técnicas teatrais que
traduzissem o fausto e que representassem cenicamente o poder dos monarcas, nas quais o
que interessava eram a beleza plástica e a alegorização do que se queria representar, parece
ter sido comum nessas encenações (SLETSJÖE 1965). Didascálias e rubricas deixaram
registrado e/ou sugerido o espetacular das criações. Castelos, naus, templos e fráguas foram
recursos que a máquina do teatro se utilizou para saudar e festejar os acontecimentos que
envolviam em particular a família real.
Para o tema que proponho aqui tratar - a imagem de Castela e dos castelhanos no
teatro de Vicente -, algumas dessas peças são altamente reveladoras da perspicácia e ao
mesmo tempo do comprometimento do poeta para com a ideologia da Corte. Quando põe
em cena o teatro para comemorar os casamentos reais, o discurso laudatório marca o ritmo
do espetáculo, embora a farsa “chocarreira” também sempre esteja presente para distender
o fio do elogio.
Em estudo relativamente recente, apresentado em um encontro semelhante ao que
motivou este texto, ou seja, que se propunha discutir o diálogo entre as culturas castelhana
e portuguesa, Adrien Roig analisa algumas das peças espetaculares e também as
pertencentes ao gênero da farsa, e conclui por uma imagem verdadeiramente negativa da
figura do castelhano no teatro vicentino (ROIG 1992). Segundo Roig, para Gil Vicente,
proveniente de Castela, além de maus ventos, como diz o provérbio, só selvajaria, maldade,
teatro”, ou seja, entreter a Corte durante os chamados “serões reais”. Um total de dezessete autos parecem ter
sido encenados por/para ser teatro. Os autos não circunstanciais foram: Rubena, Viúvo, Duardos, Amadis,
Farelos, Índia, Fama, Velho da Horta, Fadas, Maria Parda, Inês Pereira, Juiz, Ciganas, Almocreves,
Clérigo, Físicos e Festa.
3
luxúria, adultério, entre outros maus acontecimentos. Tudo isto vindo de personagens como
o selvagem Monderigón, da Comédia sobre a divisa de Coimbra, caracterizado por seu
aspecto de “drago”, por seu nome de consonância espanhola e por seu dizer castelhano; ou
um outro selvagem, de Triunfo do Inverno e do Verão, significativamente chamado Juan de
la Greña, alusão ao seu parecer físico; ou um outro Juan Cavaleiro, taberneiro que nega
vinho a Maria Parda, no Pranto dito por esta; ou os almocreves que, se dermos crédito a
Vicente, o atacaram e o roubaram, dos quais se queixa numa carta a D. João III; ou, por
fim, à série de castelhanos sedutores, como o “Hermitaño de Cupido”, também de fala
castelhana, embora numa farsa predominantemente em português, que colabora para que
Inês Pereira leve a cabo seus planos adúlteros de fazer de seu segundo marido um asno; e
ainda outro Juan, desta vez, leonês de Zamora (ROIG 1992: 133), que muito rapidamente
se candidata a ocupar o espaço vago pelo ingênuo marinheiro embarcado, triste marido de
sua mulher Constança, no Auto da Índia.
Em seu levantamento, acima resumido, Adrien Roig, a meu ver, poderia ter
relativizado algumas de suas conclusões levando em conta que, por exemplo, em Inverno e
Verão, antes de caracterizar o selvagem Juan de la Greña como castelhano, o poeta indica o
motivo porque o faz:
e porque milhor se sinta
o inverno vem salvagem
castellano en su dezir
porque quem quiser fingir
na castelhana lingoagem
achara quanto pedir8.
Ora, a selvajaria do Inverno não diz respeito à sua origem castelhana, mas sim à
preocupação de Vicente para com seus espectadores, para que o “sintam melhor”, ou seja,
como se trata de teatro, de encenação, a dureza do Inverno é melhor traduzida
plasticamente pela figura do selvagem, que conta à altura, vale lembrar, com larga tradição
8
VICENTE, Gil (1928): Obras completas de Gil Vicente (reimpressão fac-similada da edição de 1562), Lisboa:
Biblioteca Nacional, p. CLXXV, f.. Todas as citações dos textos vicentinos serão feitos segundo a edição em
fac-símile da Copilaçam de 1562, acima citada, praticando convenções ortográficas atuais. Por motivo de
concisão, a seguir à citação, apenas indicarei a página correspondente entre parênteses, sempre em numeração
romana e com indicação de frente (f.) e verso (v.), conforme a edição de 1562.
4
vinda da Idade Média, particularmente desenvolvida nos livros de cavalaria, tão íntimos do
poeta, como se sabe.
Por outro lado, a opção pela língua castelhana tem a ver, não com a selvajaria da
personagem e, por associação lingüística, com a dos castelhanos, mas sim, ao contrário,
com o prestígio de que gozava a língua de Castela, nos versos vicentino elogiada: “...quem
quiser fingir/ na castelhana lingoagem/ achara quanto pedir”. Não fosse isso, o Verão (o
Estio ou Primavera) que se segue em triunfo ao Inverno deveria falar em outra língua,
preferencialmente em português, mas não é o que acontece, o Verão entra em cena para
cantar seu triunfo em castelhano:
Afuera afuera ñublados
ñeblinas y ventisqueros
reverdeen los oteros
los vales, priscos y prados
sea el frio rebentado
salgan los frescos vapores
píntese el campo de flores
alégrese lo sembrado
(...)
Vuélvase la hermosura
a cada cosa en su grado
a las flores su blancura
a la tierra su verdura
quel bravo tiempo ha robado
Bendito el triunfo mio
que dá claridad al cielo
y no es menos mi zelo
de lo que es mi señorio (p. CLXXXI, f.).
Já na Comédia sobre a divisa de Coimbra, mais uma vez a opção pela selvajaria de
uma das personagens, Monderigón, tem mais a ver com as peripécias necessárias ao
desenvolvimento da comédia do que com o fato de este falar ou ser caracterizado como
castelhano. Estamos perante uma peça de teor cavalheiresco, em que princesas, nobres
cavaleiros e o amor compõem personagens e enredo do texto. Monderigón, embora
mantenha presa uma princesa, Colimena, apaixonar-se-á pela bela Liberata, cujo irmão,
Celipôncio, por sua vez, enamorar-se-á pela nobre, cativa do selvagem. Está claro que na
5
luta do gigante com o cavaleiro Celipôncio, aquele será derrotado, mas o amor e a bravura
irão redimi-lo ética e cavalheirescamente frente ao público. Do mesmo modo, o uso do
castelhano deve-se muito provavelmente ao gênero da peça, pois como se sabe, autos de
temas cavalheirescos encontrarão no castelhano o seu “melhor dizer” – lembre-se, por
exemplo, da Tragicomédia de Dom Duardos ou da Tragicomédia de Amadis de Gaula ou
ainda da Comédia do Viúvo, todas escritas na língua de Castela.
Se atentarmos para as outras personagens de que fala Adrien Roig, os homens maus
ou sedutores, temos de ter em conta que o espaço por onde transitam é predominantemente
o da farsa, e ali estão acompanhados de personagens de estatura ética semelhante. Pense-se,
para o caso dos dois sedutores citados – Juan Zamora, do Auto da Índia, e o “Hermitaño de
Cupido”, da Farsa de Inês Pereira -, que eles contracenam com Inês Pereira e Constança,
ambas personificação da “inconstância” amorosa, como sugere o jogo lingüístico proposto
por Vicente para o nome desta última. Para além disso, em Índia, Juan de Zamora é
seguido, nas tentativas de obter o amor da volúvel Constança, pelo português Lemos,
revelando que o caráter sedutor não é privilégio dos castelhanos, ao menos na visão de Gil
Vicente.
Porém, para não seguir apontando as possibilidades de relativizações que, a meu ver,
poderiam ter sido levadas a cabo por Adrien Roig em suas conclusões, passo ao
comentário de duas peças nas quais motivações de ordem ideológica dirigem positivamente
o olhar vicentino na direção de Castela, contradizendo o provérbio9 e comprovando que de
lá pode vir também “bons casamentos”.
3.
O casamento no seio da nobreza foi, durante toda a Idade Média e até bem pouco,
instrumento de apaziguamento de conflitos, de manutenção de riqueza de uma família, de
possibilidade de ascensão social de homens nobres desprovidos de bens ou herança, ou
seja, um ato ou acontecimento político, cuja função e sentido muito se distanciava de nossa
visão romântica-moderna de comunhão de seres que se amam. Tornado sacramento da
Igreja Católica por volta do século XIII, que com isso buscava deter algum poder ou
influência sobre os novos núcleos familiares, o casamento desempenhou papel fundamental
9
Sobre as origens e significados deste provérbio, cf. SARAIVA 2002.
6
na organização política, social e econômica das sociedades cristãs desde então
(ROUGEMONT 1988; GUERREAU-JALABERT 2003).
Se se atenta para as famílias reais, mais do que nenhuma outra, dá-se conta do quão
fundamental era o casamento no jogo político interno e externo das monarquias. Não ao
acaso, o aparato criado para comemorar um enlace matrimonial entre figuras da realeza
provocou não raro espanto dos cronistas e inspirou monumentais obras artísticas
(MACHADO 2003). Ao teatro, com o espetacular que o caracteriza, quase sempre se
recorreu para traduzir plasticamente a importância desses acontecimentos. Como afirma
Ana Maria Alves, “os casamentos eram considerados [na Idade Média e no Renascimento]
as festas políticas mais sumptuosas promovidas pela monarquia e parte fundamental da
encenação do teatro do poder”(ALVES, apud FIRMINO, 1989).
No teatro de Gil Vicente o casamento é em doze autos, de forma mais ou menos
central, assunto do que se encena10. Destas doze peças, três foram criadas especificamente
para comemorar casamentos no interior da família real: as Fantasias Alegóricas das Cortes
de Júpiter (D. Beatriz, filha de D. Manuel I, com o Duque de Sabóia, em 1521), da Frágua
de Amor (D. João III com D. Catarina, em 1524) e do Templo de Apolo (D. Isabel, irmã de
D. João III, com Carlos V, em 1526). Nove, no entanto, tiveram outras motivações, mas
ainda assim o matrimônio foi assunto nelas tratado.
As perspectivas abordadas variavam de acordo com o gênero a que as peças
pertenciam. No teatro de teor romanesco se fazia o elogio do casamento, inclusive com
realce para a necessidade da “sinceridade amorosa” dos amantes, como nas Tragicomédias
de Dom Duardos e de Amadis de Gaula11. Já nas farsas ou mesmo nas moralidades, o
matrimônio foi alvo de crítica, principalmente pelo aprisionamento em que resultava, pelo
desejo de ascensão social que o motivava e pelo adultério, sempre presente - pense-se, por
exemplo, nas duas aqui já referidas, Inês Pereira e Índia. Nas fantasias alegóricas, para
além do casamento, são os nubentes os principais alvos do discurso laudatório. Criados
10
O casamento é assunto tratado em Cassandra, Feira, Mofina Mendes, Rubena, Viúvo, Frágua, Templo,
Cortes, Índia, Inês Pereira, Ciganas e Lusitânia.
11
Em minha Dissertação de Mestrado, A educação pelo amor: uma leitura da “Tragicomédia de Amadis de
Gaula”, de Gil Vicente, demonstrei de que forma a adaptação vicentina de uma parte da novela de Garci
Rodrigues de Montalvo possibilita ao dramaturgo, por meio da defesa de ideais como o da “sinceridade
amorosa”, alinhar seu texto a um tipo de literatura preocupada com a formação do homem da Corte, como
foram os Espelhos de príncipe. Cf. MUNIZ 1997.
7
para comemorar desposórios reais, estas peças encenam elogiosamente os valores de reis e
rainhas, imperador e imperatrizes e, por meio deles, da Corte que os cerca. Como os dois
textos que comentarei - Frágua e Templo – comemoram casamentos entre monarcas
portugueses e castelhanos, está claro que o discurso encomiástico atingirá ambas as coroas
e mandatários.
A rubrica inicial de Frágua diz que a peça foi “representada na festa do desposório do
muito poderoso e católico rei de gloriosa memória, dom João o terceiro deste nome, com a
sereníssima rainha dona Caterina”. E assim o confirma Braamcamp Freira, corrigindo
apenas a data, não 1525, como está na didascália, mas 1524, como sugere o termo
“desposório”, da mesma (FREIRE 1919, 1944: 184).
Frágua, enquanto encenação, divide-se em duas partes claramente distintas,
inclusive, poder-se-ía acrescentar, recorrendo a gêneros distintos do discurso teatral. Uma
primeira parte constrói-se em forma de uma fantasia alegórica; na segunda, encena-se um
episódio farsesco. Dentro da fantasia alegórica, num diálogo entre um Romeiro e um
Peregrino, fala-se do desposório dos reis, exaltando D. Catarina, futura rainha, como um
castelo castelhano – perdoem a expressão rebarbativa – conquistado por Portugal,
metonímia de seu rei, D. João III, com ajuda do deus Cupido.
Peregrino:
Un castillo me han loado
alto y muy esclarecido
por los césares fundado
torreado y nobrecido
en buen sino edificado
de siete cercas murado
fé caridad las primeras
esperanza y sus parceras
virtudes de que es cercado
lo guardan de mil maneras
diz que tiene y bien hermosas
cuatro torres muy derechas
fuertes, lindas, tan graciosas
que sobran todas las cosas
que en el mundo fueron hechas.
estas cuatros muy perhechas
torres con cubos y almenas
8
y todas cuatro tan buenas
que no pueden ser deshechas
la una es genelosía
y la otra gravedad
otra liberalidad,
la otra sabidoría
la más alta es la bondad
las puertas de honestidad
las llaves de devoción
los petrechos de razón
las armas de santidad
dicen que es tan bien fundada
su torre del homenaje
tan noblemente labrada
con piedra de tal linaje
que primero fue sagrada.
y que de dentro es forrada
de muy santos pensamientos
y que tiene los cimientos
para siempre ser loada
por muchos merecimientos
la cava es suma grandeza
y profunda en discreción
y dicen que a Salomón
ni Dios ni la natureza
no le dio más perfección
castillo sin división
gracioso fuerte terrible
hermoso cuando es posible,
dichoso cuanto es razón
cuando vi andar volando
su fama por las montañas
per palacios y cabañas
estas cosas pregonando
con alegrías tamañas
engendróse en mis entrañas
deseo sin detener
de ir á Castilla por ver
esta flor de las Españas. (p. CLI, f. e v.)
9
Futura rainha portuguesa e elo fundamental das boas relações deste reino com o
vizinho castelhano, D. Catarina é louvada com todos os adjetivos dignos de um soberano.
Para além da três virtudes teologais, as primeiras apontadas, como cabe a uma rainha
católica, aduzem-se as qualidades desejadas para os monarcas: sabedoria, bondade,
liberalidade, gravidade, honestidade etc. Virtudes próprias de uma rainha não lhe faltam:
beleza, graça e discrição. Interessante é a comparação e até mesmo superação do modelo
veterotestamentário de Salomão (“y dicen que a Salomón/ ni Dios ni la natureza/ no le dio
más perfección”). Foi muito comum na Idade Média, particularmente nos escritos políticos
dos Espelhos de príncipes, o recorrer a Salomão como exemplo de perfeição monárquica.
Em Gil Vicente este tópico é renovado para se dizer dos valores de uma mulher, de uma
rainha.
Por trás do discurso laudatório à rainha, atente-se, levanta-se um maior, dirigido à
linhagem a que D. Catarina pertence. Neste, é óbvio, está o próprio louvor aos castelhanos
e ao seu monarca, irmão da futura rainha portuguesa, Carlos V: “dicen que es tan bien
fundada/ su torre del homenaje,/ tan noblemente labrada, / con piedra de tal linaje, / que
primero fue sagrada”.
O discurso encomiástico dirigido às origens da futura rainha segue, na primeira parte
da encenação alegórica, com referência concreta ao monarca castelhano, reconhecido como
imperador. Ao descer à Terra em busca de seu filho, Vênus encontra-se com o Peregrino
que volta da Espanha, onde teve notícias de Cupido e as transmite para a mãe aflita:
Peregrino para Vênus:
El dios d’amor decendió
a España según suena
y él per sí se demovió
porque nunca cosa buena
sin amor se concertó
entró en un castillo tal
cual hizo Júpiter solo
con los rayos de Apolo
por su mano divinal
entró con paz general
nel castillo y con razón
la asentó en perfección
10
las armas de Portugal
en medio del corazón
corazón alcaide mayor
del castillo alto y grave
y al niño dios de amor
entregó luego la llave
como a su superior.
Y obrado este labor,
por parte de Portugal
visitó el emperador
él fue el correo mayor
y embajador principal. (p. CLII, v.)
O discurso encomiástico fundamenta a encenação e espelha positivamente, como se
espera, as famílias reais que se unem. A farsa que lhe segue cumpre o papel da distensão
comum ao cômico e, por meio dela, o teatro se encaminha ou retorna ao seu papel de pura
diversão12.
Semelhante discurso laudatório encontramos na fantasia alegórica do Templo de
Apolo, encenado aproximadamente dois anos depois de Frágua. Texto também criado para
a comemoração de um casamento real, desta vez Gil Vicente recorrerá à mitologia grega
para melhor ilustrar a grandeza dos homenageados, a Infanta D. Isabel, irmã de D. João III,
e o monarca castelhano Carlos V. O que se finge em cena é o estabelecimento, por parte de
Apolo, a mando de Deus, de um Templo, no qual receberá aqueles que vêm cultuar os
futuros nubentes. O deus Apolo é trazido à cena para nela construir o seu “templo”, ao qual
se dirige uma série de pares de personagens alegóricos representantes das virtudes dos
esposos. Desta forma, desfilam frente a Apolo: Mundo e Flor de Gentileza, Poderoso
Vencimento e Virtuosa Fama, Cetro Onipotente e Prudente Gravidade, Tempo Glorioso e
Honesta Sabedoria.
Cada uma dessas personagens alegóricas tece em suas orações, frente ao templo de
Apolo, o elogio das mais perfeitas qualidades de D. Isabel e de Carlos V. O auto é puro
panegírico destas figuras reais. Apenas para ilustrar o discurso encomiástico, veja-se o que
diz o Mundo, cujo senhorio pertence ao Imperador Carlos V:
12
Como o episódio farsesco que se segue à fantasia alegórica comentada nada muda ou acrescenta em termos
do discurso laudatório, distanciando-se, portanto, dos objetivos deste texto, furto-me em comentá-lo.
11
Mundo a Apolo:
Yo soy el Mundo señor
mas hállome descontento
vengo a que me hagáis mayor
que el César emperador
merece mundos un ciento
y pues es tan trasposante
no es razón que se contente
bien lo dice claramente
su devisa: más avante
como varón excelente
y por cuanto yo esto veo
á ti véngo en romería
pedir a tu señoría
que pues tal señor poseo
me hagas como querría
pídote que acrecientes
sus vitorias, señoríos
y corran todos sus ríos
bálsamo porque las gentes
adoren sus poderíos.
y sus árboles salvages
crien perlas orientales
y sus silvestres jarales
den fruitas de mil prumages,
y también los robledales.
sus campos sin los sembrar
crien celestes licores
y los fructos y las flores
que cuenten sin acabar
su grandeza a los pastores.
y manda a cualquiera montaña
portuguesa y castellana
por do pasare a España
la Emperatriz soberana
que sea muy fresca y llana
y que hagas convertidos
los caminos en cristales
y las estradas reales
sean lirios floridos
que le vengan naturales.
Y esto luego señor. (p. CLXI, v. – CLII, f.)
12
As restantes falas das personagens mantêm o tom alto do discurso laudatório e, mais
uma vez, o episódio farsesco que o vem distendê-lo em nenhum momento o contradiz. A
tônica é o elogio.
Outro dado a ressaltar em autos, como os dois aqui comentados, que foram encenados
para comemorar acontecimentos seculares é a relação que o teatro estabelece com o público
que o assiste13. Quase todos os textos escritos trazem referências aos nobres que
provavelmente estavam presentes à representação. Tanto figuras da família real quanto da
alta nobreza tinham seus nomes citados e suas virtudes exaltadas através da fala das
personagens. Viam-se, desta maneira, homenageados pelo teatro que, de certa forma,
financiavam.
O reverso desta medalha estava no desfile de personagens, normalmente alegóricas,
modelos de comportamento e virtudes que eram constantemente reiterados pelo teatro com
claro intuito de moldar hábitos, valores e moral, inclusive aqueles concernentes à nobreza.
Era o teatro cumprindo seu papel didático-moralizante, a serviço dos ideais monárquicos.
Como se vê, festa e política se mesclam no teatro de Gil Vicente. A despeito da
possível liberdade, propiciada pelo prestígio de que gozava junto à Corte, e do fingimento
poético que a palavra teatral lhe emprestava, não podemos esquecer que o teatro vicentino
foi teatro de Corte. Com ela comprometido em duplo sentido: para a defesa de seus ideais,
por um lado; para a correção de seus vícios, por outro.
Festa política, casamento é, como o teatro, representação. Nos textos analisados,
representação do poder que se conquista e/ou se comparte por meio da união nupcial dos
monarcas. Portanto, há que se elogiar, há que se comemorar. De Castela... bons casamentos
castelhanos!
13
Os textos nos quais encontramos referências ao público que assiste aos autos são: Visitação, Fé, História de
Deus, Martinho, Morte de Manuel I, Aclamação de João III, Rubena, Divisa, Nau, Frágua, Exortação,
Templo, Cortes, Serra, Inverno e Verão, Romagem, Farelos, Índia, Velho da Horta, Fadas, Inês Pereira, Juiz,
Ciganas, Almocreves, Clérigo e Físicos.
Referências bibliográficas:
FIRMINO, Cristina (1989): Templo, Lisboa: Quimera.
FREIRE, A. B. (1919, 1944): Gil Vicente, Trovador Mestre da Balança, Lisboa: Ocidente.
GUERREAU-JALABERT, Anita (2002): “Parentesco”, in: LE GOFF, Jacques; SCHMITT,
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