relações entre roma e germanos a partir da germania de tácito

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Júlio César de Paula
RELAÇÕES ENTRE ROMA E GERMANOS A
PARTIR DA GERMANIA DE TÁCITO
Trabalho de monografia
apresentado à disciplina de
Estágio Supervisionado em
Pesquisa Histórica do curso
de História. Setor de
Ciências Humanas, Letras e
Artes
da
Universidade
Federal do Paraná.
Orientador:
Prof. Dr. Renan Frighetto
CURITIBA
2007
1
SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................................01
Capítulo I........................................................................................................................03
Capítulo II......................................................................................................................12
Capítulo III.....................................................................................................................18
Conclusão.......................................................................................................................31
Referências bibliográficas.............................................................................................33
2
INTRODUÇÃO
A partir do período do Renascimento, começou-se a construir uma visão
estereotipada dos povos “bárbaros”, em especial, dos germânicos, que, em maior
intensidade, migraram para regiões do Império romano. O movimento iluminista
reforçou o estereótipo do “bárbaro” enquanto destrutor do Império, dando fim à época
clássica, período considerado por esses dois movimentos filosóficos como o auge da
História. O que se seguiu às “invasões bárbaras” teria sido um período de decadência,
onde a religião cristã ocupou um espaço importante na sociedade européia.
Renascentistas e iluministas concordavam que a época medieval representaria um
retrocesso em relação à Antigüidade greco-romana. O próprio termo “invasões”
utilizado por eles dá uma idéia de agressividade, de violência.
Uma mudança no olhar sobre os “bárbaros” aconteceu no século XVIII, com o
movimento romântico, que procurou valorizar, ao seu modo, a Idade Média. Ainda nos
séculos XX e XXI, o estereótipo do “invasor bárbaro” continua forte no imaginário
popular, ao contrário do que acontecia na historiografia, que passou a rejeitar as antigas
maneiras de compreender esta matéria. Contudo, a visão ideológica construída pelo
Renascimento e pelo Iluminismo permanece, muitas vezes fazendo-se uma associação
entre “bárbaros” germanos e uma idéia negativa e preconceituosa sobre a Idade Média.
Os conceitos sobre a relação entre romanos e germanos também mudaram. Não se
considera mais, como ainda faziam alguns historiadores do século XIX, que os
germanos destruíram o Império. A historiografia contemporânea, representada
principalmente por Riché e Lot (citados por Maria Sonsoles Guerras), entende que o que
aconteceu de fato foi uma progressiva tentativa de integração entre os germanos e o
Império romano, tornando-se um processo violento à medida que a pressão dos hunos
obrigava os germanos a emigrar para o oeste. Antes disso, ao longo dos séculos,
indivíduos germânicos vinham se estabelecendo nas áreas limítrofes do Império através
de federações, além, é claro, dos que serviam no exército romano. Igualmente o
3
professor Fergus Millar admite essa teoria de aproximação mútua e convergência de
interesses. 1
Para o período da Antigüidade clássica, temos poucas fontes para o estudo dos
povos germânicos, sendo que as escritas são gregas ou latinas – os germanos não
registravam a sua história no papel, tendo o canto um papel importante na manutenção
de sua tradição. O auxílio vem da arqueologia, que confirma ou não o escrito nas fontes
greco-latinas, além de complementá-las, o que é uma novidade do século XX. Uma
visão germânica vinda deles mesmos fica, então, difícil de se obter. Utiliza-se, assim,
dentre outras, a Germania de Tácito. 2
O que chama a atenção na referida obra não é somente a quantidade abundante de
informações sobre as tribos germânicas, mas também o modo como ele escrevia,
revelando certa admiração pelo seu objeto de estudo. Sua visão sobre esses “bárbaros”
contrastava com a ideologia romana. Segundo Paul Veyne, a noção de barbárie tinha
sentido de selvageria e incultura, em oposição à de humanitas, que designava o grupo
dos homens que eram instruídos e que tinham conceitos avançados de justiça. Maria
Helena da Rocha Pereira concorda com tal definição e acrescenta o papel de Cícero para
a condensação do termo, sendo o famoso orador e filósofo latino importante fonte para
o estudo deste vocábulo. 3
Tácito foi (e ainda é) a principal fonte escrita para o estudo da civilização germânica
na época clássica, como também para o século I d.C., em geral. Rostovtzeff, por
exemplo, julga que Tácito tenha sido o último grande escritor latino. 4 O seu conhecido
estudo Germania é fundamental para conhecermos muitos elementos da história desses
povos, e é este que analisaremos na presente monografia, colocando-o em seu contexto.
1
MILLAR, Fergus. El Imperio Romano y sus Pueblos Limítrofes. Madrid: Siglo XXI de España
Editores S.A., 1973.
2
GUERRAS, Maria Sonsoles. Os Povos Bárbaros. São Paulo: Editora Ática, 1987, pp. 5-8.
3
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. II Volume – Cultura
Romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2002, p. 425; VEYNE, Paul. Humanitas: Romanos e
Não Romanos in GIARDINA, Andrea (org.). O Homem Romano. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p.
283.
4
ROSTOVZEFF, M. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1961, p. 202.
4
CAPÍTULO I
A partir do século II a.C., foi possível se notar uma crise na República romana, que
se iniciou com a morte dos irmãos Graco5 e cujas conseqüências foram instabilidade
política e social, levando a República a recorrer às ditaduras com mais freqüência. No
entanto, no século I a.C., essa situação tornou-se mais crítica, resultando em mais casos
de ditaduras, que se tornaram pessoais, principalmente com Sila e César.
6
As grandes
guerras civis apareceram no cenário de Roma: César contra Pompeu e depois Otávio
contra Antônio. A instabilidade era reinante e a República via-se ameaçada por homens
que tendiam ao poder pessoal do tipo monárquico. César demonstrou certa inclinação
para esse tipo de governo, o que foi suficiente para que um grupo de senadores liderados
por Cássio e Bruto executasse seu assassinato, que seria, segundo esses aristocratas, um
tiranicídio.
Com a morte de César, seu sobrinho-neto Otávio reclamou para si a herança política
do conquistador das Galliae. O mesmo o fez Antônio, que tinha no Egito uma aliança
com Cleópatra. Otávio acabou aglutinando as forças mais conservadoras da sociedade
romana: estavam ao seu lado os mais fervorosos republicanos, do partido dos
Optimates, entre eles, Cícero, o opositor de César, que agora não via alternativa a não
ser ficar ao lado do filho adotivo de seu antigo rival, já que as forças antonianas
representavam um perigo muito maior à tradição republicana romana. Antônio, por sua
vez, reunia forças que tendiam muito a um tipo de monarquia helenística, cujo modelo
político-administrativo era fortemente repudiado pela aristocracia romana, que não
aceitava um governo onde um homem detivesse poderes absolutos. De uma forma ou de
5
MENDES, Norma Musco. O Sistema Político no Principado in SILVA, Gilvan Ventura e MENDES,
Norma Musco (org.). Repensando o Império Romano – Perspectiva Socioeconômica, Política e
Cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória, ES: EDUFES, 2005, p. 22.
6
Frighetto explica como no século I a.C. as ditaduras, quem eram magistraturas excepcionais, concedidas
pelo Senado, se tornaram pessoais. FRIGHETTO, Renan. Algumas considerações sobre o poder
político na Antigüidade Clássica e na Antigüidade Tardia, in Stylos 13, Buenos Aires, pp. 38-39.
5
outra, a República tradicionalmente conhecida pelos romanos estava com seus dias
contados. 7
Antônio representava o Oriente – helenizado, próspero e civilizado –; Augusto o
Ocidente – bárbaro aos olhos de muitos gregos, e com províncias que nem sequer
podiam ser consideradas civilizadas, a exemplo da Hispania e das Galiae. Os dois
representavam também duas concepções diferentes de poder: ao primeiro, interessava
um poder monárquico de caráter divino, seguindo a tradição faraônica do Egito de sua
concubina, a rainha helenística Cleópatra VII; ao segundo, o importante era respeitar o
mos maiorum – a tradição dos ancestrais, fundadores da Res Publica – ao mesmo tempo
em que sabia que deveria aperfeiçoar o sistema político, que já não era capaz de garantir
a paz interna do Res Publica.
Os exércitos de Otávio conseguiram, enfim, a vitória sobre os de Antônio, na
Batalha de Ácio, em 31 a.C., o que representou, para o momento, o fim do perigo da
monarquia oriental, em que se inspirava Antônio, o que transformaria os cidadãos
romanos em simples súditos do monarca. 8 O triunfo de Otávio foi, ao mesmo tempo, o
triunfo de uma concepção mais moderada de poder pessoal e da continuação, sob outra
forma, da Res Publica.
Após ter vencido aqueles que ameaçavam a integridade do território romano, Otávio
saiu como o único a ter uma aparência de legalidade dentro da lógica do poder pessoal.
A República precisava de um protetor, e este era legitimado na figura de Otávio. O
Senado e o populus sabiam disso e acabaram por aceitar esse novo tipo de organização
política.
Assim, começava a haver uma reorganização do poder em Roma, com a formação
do modelo do Principado, transformação esta que nos ajuda a compreender os fatos
ocorridos nos séculos I e II d.C..
Uma mudança substancial ocorrida na transição da República clássica romana para
o Principado foi o fato de que agora a liderança de Roma não se manifestava naquelas
pessoas que atuavam politicamente como cônsules ou senadores (como Cipião
Emiliano, Pompeu ou Cícero). Agora, a partir de Otávio, a liderança era confundida
7
Na opinião de Grimal, “desde Sila, era evidente que la ciudad romana no podía prescindir de un
‘protector’”. GRIMAL, Pierre. La Formación del Imperio Romano. Madrid: Siglo XXI de España
Editores S.A., 1973, p. 169.
8
GRIMAL, Pierre. Ib, ibid., p. 207.
6
com a própria figura do princeps, que deveria honrar essa posição, sob pena de ser
desacreditado perante o Senado e as legiões.
O princeps não se definia a si mesmo como monarca, pois governava com o aval do
Senado – e este funcionava com o aval do princeps, Otávio, que foi aclamado Augustus
(divino) pelos senadores. Ele se via a si mesmo como o “primeiro”, o que queria dizer
que era o primeiro acima de um grupo (o Senado): o primus super pares. 9 Enfim, era o
“primeiro dos cidadãos”, não propriamente um monarca.
O governo de Augusto foi marcado pela paz interna e por uma reduzida expansão
externa. A reorganização do poder, com a progressiva partilha com os membros da
classe eqüestre e com as aristocracias provinciais, propiciou, senão o fim das grandes
rivalidades, um enfraquecimento das mesmas. Sobre os cavaleiros, em especial, é
preciso dizer que ascenderam ao poder em Roma a partir do governo de Augusto e
desempenharão, a partir daqui, um papel importante na administração. A eles era
concedido o ingresso no cursus honorum e até no Senado, desde que tivessem o censo
mínimo de 400 mil sestércios.
10
Scullard cita o período entre 18 a.C. e 4 d.C. para
demonstrar que, até este momento, a maioria dos cônsules era de origem nobre, sendo
que, a partir deste período, existe um aumento de noui homines (“homens novos”).
11
Como veremos no próximo capítulo, o próprio Cornélio Tácito, de quem utilizei as
fontes, era um “homem novo”, pois provinha da classe eqüestre, sendo originário da
província Narbonensis.
No plano externo, fora os territórios readquiridos com a vitória sobre Antônio e
Cleópatra, não houve grandes avanços. Mas havia, contudo, quatro situações que
precisavam ser resolvidas: as fronteiras com a Germania, as com a Dacia, as com os
citas e as com os partos.12 Trataremos especificamente do problema germânico para a
política externa romana.
A região denominada pelos antigos como Germania não era de interesse romano até
então. Era um país frio, de muitas florestas e de terreno pantanoso, de difícil acesso, e
que provavelmente não esconderia nenhuma grande riqueza, pois os seus habitantes não
davam demonstração de civilização. Mas a agitação que as populações dessa terra
9
MILLAR, Fergus. Op. cit., p. 31.
10
MENDES, Norma Musco. Op. cit., p. 28.
11
SCULLARD, H.H. From the Gracchi to Nero – A History of Rome 133 BC to AD 68. London:
Routledge, 1982., p. 225.
12
GRIMAL, P. Op. cit., p. 230.
7
provocavam fez com que a atenção dos romanos se voltasse para lá. Alguns episódios,
como a incursão dos cimbros e dos teutões sobre território romano entre os anos de 113
e 105 a.C. – quando foram derrotados por Caio Mário – ou a expedição do Suevo
Ariovisto na Gallia em 58 a.C. – sendo derrotado por Júlio César –, mostraram a Roma
que a mera permanência desses povos belicosos e não-romanizados próximos à sua zona
de hegemonia poderia causar problemas (assim como havia sido com os celtas durante
séculos). 13
Sob o governo de Augusto foram organizadas com mais freqüência expedições para
a região do norte da Itália, assim como nas imediações dos rios Reno e Danúbio.14 O
objetivo inicial ali era pacificar os povos dos Alpes e os que viviam mais ao norte, para
assim proteger a Península Itálica. O ano de 15 a.C. marcou o início da pacificação
definitiva da região alpina; as tropas romanas comandadas por Druso obtiveram vitória
decisiva sobre as tribos montanhesas da Vindelitia (região da atual Bavária). Foram
criadas, então, as províncias de Noricum e de Rhaetia, que protegeriam a Italia das
incursões germânicas.
15
Em 14 a.C., foi criada a província dos Alpes Maritimae. A
pacificação estaria concluída no ano 6 a.C.. Um pouco mais a leste, entre os anos 13 e 9,
Tibério e Agripa conquistariam a parte de terra entre o Danúbio e a costa da Dalmatia.
Com esta última conquista criar-se-ia a província da Pannonia e encerrar-se-ia o ciclo
de expedições que visavam formar um cinturão em volta da Italia, com a finalidade de
não permitir a expansão germânica para o sul. 16
A política de Augusto para o limes setentrional era a seguinte: os legionários, em
tempos de paz, realizavam construções, como estradas, fortificações, pontes, aquedutos
e canais. Esses acampamentos, nos quais os soldados ficavam permanentemente,
funcionavam, ao mesmo tempo, como postos de troca comercial com os povos
germânicos e como meio de difusão da cultura romana. Também serviam para que os
romanos tomassem conhecimentos do que se encontrava mais adiante. Essas
informações eram trazidas, em grande parte, pelos comerciantes. Estes, por sua vez, se
estabeleciam mais adiante, dentro de território não-romano. Ainda no governo de
13
LOUTH, Patrick. A Civilização dos Germanos e dos Vikings. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores,
1979, pp. 23-26; GUERRAS. Op. cit., pp. 25-26.
14
GUERRAS, Maria Sonsoles. Ib., ibid., p. 28.
15
GRIMAL, P., Op. cit., p. 299.
16
GRIMAL, P., Op. cit., p. 300.
8
Augusto, começaram a ser utilizadas frotas fluviais para patrulhar os rios, o que, durante
o período republicano, não era uma prática corrente. 17
Uma relativa paz havia sido conseguida por Augusto em 13 a.C., o que o incentivou
a realizar incursões em terras germânicas, onde queria talvez avançar o limes do Reno
para o Elba, o que representaria a conquista de quase toda a Germania. Esse projeto
audacioso foi confiado a seu enteado, Druso, filho de sua mulher Lívia. Ele realizou
diversas expedições, ano após ano. Em uma delas, trouxe uma frota pelo do Reno até o
mar do Norte, atravessando a Frísia, através de um canal que mandou construir. Druso
conseguiu a aliança das tribos dos batavos e dos frísios, os quais passaram a ser aliados,
servindo como auxilia nas tropas romanas.
Nenhum grande êxito pôde ser obtido no sentido de conquista de territórios e de
pacificação geral da Germania. Não há que se destacar nenhuma campanha vitoriosa,
mas, ao contrário, uma desastrosa, que acabou por ser lembrada como a que foi talvez a
derrota mais vergonhosa que Roma sofreu. A batalha se deu em 9 d.C., quando
Quintílio Varo, em território germânico, retirava suas tropas para o Reno, sendo
surpreendido pelos ataques dos queruscos, comandados por Hermann. Este havia
servido no exército de Roma e atendia também pelo nome latino Arminius. As tropas
romanas estavam na região pantanosa e de vegetação densa, conhecida como floresta de
Teutoburgo (que fica próxima à nascente do rio Ems, na Baixa Saxônia). Sendo
apanhados de surpresa, os soldados romanos ficaram impossibilitados de se
movimentarem, sendo derrotados. Tal tragédia levou o comandante romano ao suicídio,
além de ter frustrado os planos de expansão hegemônica de Roma.
18
No episódio,
foram perdidas três legiões, sendo que, à época, o total de legiões era de 28. O limes
norte era o mais guarnecido: oito legiões para a região do rio Reno e sete para o rio
Danúbio.
19
A perda de três legiões representou, portanto, uma baixa muito grande ao
poderio de Roma. O já velho Otaviano Augusto entendeu o recado e não se preocupou
mais em estender a hegemonia romana sobre terras germânicas além-Reno. 20
Durante o governo de Tibério (14 d.C. – 37), não houve grandes mudanças nem nas
políticas que eram adotadas em relação às fronteiras nem em relação às próprias
17
SCULLARD, H.H. Op. cit., pp. 245-246; CHAPOT, Victor. El mundo romano. Union Tipográfica
Editorial Hispano-Americana, México D. F., 1957, p. 36.
18
LOUTH, Patrick. Op. cit., pp. 31-32.
19
SCULLARD, H.H. Op. cit., p. 244.
20
SCULLARD, H.H. Op. cit., p. 259; CHAPOT, Victor, Op. cit., p. 41.
9
fronteiras, que se mantiveram inertes. O seu governo foi uma continuação do de
Augusto, procurando manter a paz interna. Tibério esmagou revoltas nas províncias de
Illyricum e Pannonia, o que era de vital importância na estratégia de manter um
cinturão de províncias para a proteção da Itália. Ele também manteve controle sobre as
terras da região renana, que, no momento, poderia entrar em grande convulsão se as
tribos germânicas se motivassem depois do episódio de Teutoburgo. 21
Quem era encarregado da defesa dessa região era Germânico, governador das três
Galliae (Aquitania, Lugdunensis e Belgica) e comandante das legiões do Reno. Ele era
filho de Druso, o irmão de Tibério, e queria levar adiante o projeto de seu pai de
conquistar a Germania até o Elba. Para isso, realizou diversas incursões, sem a
autorização de Tibério, conseguindo resgatar o sogro de Armínio, que era pró-Roma, e
atacando o próprio Armínio, em batalhas nas quais não houve êxito para nenhum dos
lados. Esteve na floresta de Teutoburgo, onde enterrou os corpos dos soldados romanos
que encontrou e resgatou os estandartes perdidos por Varo. Germânico, pela segunda
vez, se enfrentou com Hermann, em batalha que, segundo Victor Chapot, venceu.
22
Germânico acabou sendo chamado por Tibério para retornar de suas campanhas, que,
apesar de não conseguirem conquistar efetivamente o território entre o Reno e o Elba,
ajudou Roma a reconquistar seu prestígio na região e a reforçar a fronteira renana. O
princeps considerava desnecessário submeter essa região, já que pensava que as lutas
entre as tribos germânicas faria com que estas se enfraquecessem. Isto se mostrou
correto, pois os catos e os queruscos continuaram a se enfrentar, a ponto de Hermann
ser assassinado em 21. 23
Em 28, os frísios iniciaram uma revolta em oposição à cobrança excessiva de
impostos, contra a qual Tibério nada fez. Germânico estava desautorizado a agir e
também nada fez. O princeps tratou de reforçar a fronteira do Danúbio, na região dos
atuais países República Tcheca e Eslováquia. Ele assentou suevos e marcomanos na
área, como meio de proteger o Império de ataques de outras tribos, mais hostis.
Também fundiu as províncias senatoriais de Aquea e Macedonia com a província
imperial da Moesia, sob o governo de Sabino, que era governador desta última. 24
21
SCULLARD, H.H. Op. cit., p. 269.
22
CHAPOT, Victor, Op. cit., p. 43.
23
SCULLARD, H.H. Op. cit., pp. 270-272
24
SCULLARD, H.H. Op. cit., p. 279.
10
O próximo imperador, Calígula (37-41), realizou, ele mesmo, incursões em território
germânico, a partir do Reno. Essas incursões não tiveram grandes conseqüências, tanto
que o imperador teve que recuar para a Gallia. 25
O seu tio Cláudio foi seu sucessor e governou de 41 a 54. A tentativa de conquista
da Germania foi definitivamente abandonada durante seu principado. Os fracassos de
seus antecessores nessa empreitada o fizeram direcionar sua atenção para a Britannia,
que já era conhecida pelos romanos por conta da ocupação de César, há quase cem anos
atrás. A Britannia acabou por ser conquistada e organizada como província, em 43. A
fronteira do Império no rio Reno continuou a mesma, sem haver nenhuma tentativa de
avanço além dela. O que Cláudio fez de considerável foi estabelecer uma importante
colônia às margens do rio – que levou o nome de sua mulher, Agripina – a Colonia
Agrippinensis (a moderna cidade de Colônia, chamada de Köln, em alemão), além de
dar esse status a Augusta Treverorum (atualmente Trier, na Alemanha). 26
Nero, filho de Agripina, mulher de Cláudio, ascendeu ao poder com a morte de seu
padrasto, em 54 e governaria até 68. A morte de Cláudio esteve envolta em suspeitas e
foi creditada à sua mulher Agripina, que fez Cláudio declarar Nero como seu sucessor
político, em detrimento do seu filho legítimo, Britânico. Agripina pretendia governar
através de seu filho, sobre o qual exerceu pressão durante certo tempo, até ser morta a
mando dele. O governo de Nero foi marcado por muitas suspeitas e perseguições. Isto,
combinado com sua predileção pelos gregos, criou descontentamento nas legiões
estacionadas nas Galliae e na Germania, que se levantaram contra aquele que
chamavam de tirano. A pressão das tropas e a falta de apoio do Senado obrigaram Nero
a se suicidar, dando fim à dinastia Júlio-Claudiana. 27
À morte de Nero seguiu-se um problema sucessório. Galba havia sido proclamado
imperador pelas legiões da Hispania, mas foi impedido de assumir o trono pela guarda
pretoriana, que elegeu Oto, que, por sua vez, sofreu oposição das legiões da Germania,
que apoiaram Vitélio. Este último teve que enfrentar um outro aspirante ao poder:
Flávio Vespasiano, cujas forças de apoio se concentravam nos exércitos do Oriente.
Vespasiano acabou por vencer e estabeleceu uma nova dinastia: a dos Flávios. O ano de
69 ficou conhecido na história como o “ano dos quatros imperadores”.
25
SCULLARD, H.H. Op. cit., pp. 285-286.
26
SCULLARD, H.H. Op. cit., p. 296; CHAPOT, V., Op. cit., p. 44.
27
ROSTOVZEFF, M. Op. cit., pp. 197-198.
11
A dinastia Flávia foi composta por três imperadores: Vespasiano (69-79) e seus
filhos Tito (79-81) e Domiciano (81-96). Os dois primeiros foram moderados em seus
governos, seguindo a tradição iniciada por Augusto, diferentemente do terceiro, como
veremos a seguir. No que diz respeito ao limes setentrional, Vespasiano estabeleceu
gauleses em colônias fortificadas um pouco mais adiante das anteriores, que ficaram
conhecidas como Agri Decumates (Campos Decumates). Na Britannia, nomeou
governadores – entre eles, Júlio Agrícola – que conseguiram expandir o território da
província a oeste e a norte.
Sobre Domiciano, em particular, é necessário mencionar que seu governo foi
autoritário, com tentativas de estabelecer um poder monárquico do tipo helenístico, a
exemplo de Calígula. Como veremos no próximo capítulo, Tácito, um nome relevante
da literatura no momento, teve que publicar seus escritos somente após a morte do
imperador, em 96, pois no momento em que governava era impossível devido à
repressão. 28
O governo de Nerva (96-98) restabeleceu a liberdade que havia sido tolhida por
Domiciano e inaugurou a dinastia dos Antoninos, que foi considerada a de maior
estabilidade dentre as dinastias. Após o breve governo de Nerva, sucedeu-lhe o de
Trajano
29
(97-117), celebrado como o melhor imperador desde Augusto, pois trouxe
paz interna e conquistas territoriais. Novas províncias foram criadas: Dacia (106),
Arabia (106), Armenia (116) e Mesopotamia (116). A audácia do imperadorconquistador era tanta que planejava ir à Índia, sendo impedido, no entanto, por conta
das revoltas que aconteceram nas áreas orientais recém conquistadas. Mas se na parte
oriental o limes avança, na ocidental ele continuava praticamente na mesma situação de
um século atrás. O que Trajano fez na região renana foi tão-somente reforçar os Agri
Decumates, sem pretender conquistar a Germania. Mas esta política teve um resultado
importante: uma maior segurança para a região. 30
A morte de Trajano significou para a história romana o fim da época de conquistas;
ele foi o último grande conquistador. Após ele, o que se fez foi apenas manter as
províncias já estabelecidas, sendo que sob Adriano (117-138) chegou-se a perder o
controle sobre a Armenia e a Mesopotamia.
28
ROSTOVZEFF, M. Op. cit., p. 206.
29
Trajano era nascido na Hispania e foi o primeiro imperador de origem provincial.
30
CHAPOT, Victor. Op. cit., pp. 47-49.
12
Como vimos neste capítulo, a Roma imperial manteve uma política cautelosa na
parte ocidental do Império, primeiramente criando um círculo de proteção para
Península Itálica para, em seguida, pretender a conquista da Germania. Tendo
fracassado neste empreendimento, mantiveram uma posição defensiva e prudente.
Sabendo deste contexto, procuraremos entender como Cornélio Tácito, uma importante
personalidade política e intelectual de fins do século I d.C., reagiu a essa situação,
escrevendo um importante trabalho sobre o assunto. O capítulo segundo tratará do
autor, sua biografia e obras gerais, para servir como introdução ao terceiro, que será
específico sobre a questão germânica na obra do autor.
13
CAPÍTULO II
As origens de Tácito não são conhecidas com exatidão, tanto quanto ao seu local
como à sua data de nascimento. Nem mesmo a respeito de sua carreira política pode-se
falar com grande segurança, já que ele falava pouco de si, tendo os estudiosos a
necessidade de confrontar as poucas datas que lhe são apresentadas nos textos taciteanos
com informações de outros autores contemporâneos a ele, como, por exemplo, Plínio, o
Velho e seu sobrinho Plínio, o Jovem.
Quanto ao seu ano de nascimento de Tácito, há estudos que apresentam a
possibilidade de que seja alguma data entre 54 e 57 d.C. Mas tanto Requejo quanto
Ettore Paratore acreditam que se pode definir como data mais precisa ou o ano de 54 ou
o de 55. Ambos se utilizam do relato de Plínio, o Jovem, que diz ser orgulhoso de ser
condiscípulo de Tácito e de ser sete ou oito anos mais jovem que ele. E se Plínio, o
Jovem nasceu em 61 ou 62, Tácito deveria ter nascido em 54 ou 55. 31
A respeito de seu local de procedência, pode-se questionar se era romano, itálico ou
provincial.
32
Deduzir-se-ia que Tácito era de origem romana baseando-se em uma
passagem dos Annales (livro VI, capítulo III), onde ele inferioriza Seiano, de origem
provincial. Porém, essa prática de zombar de indivíduos itálicos ou provincianos foi
também observada em passagens de Catulo e Salústio – este em relação a Cícero –, eles
mesmos não nascidos em Roma. Portanto, não é possível concluir que Tácito fosse
romano a partir do referido trecho de sua obra.
É Plínio, o Jovem que oferece, em uma carta, um relato que nos ajuda a elucidar esta
questão. Diz ele que Tácito, em um espetáculo circense, havia sido interrogado por um
sujeito a respeito de sua terra natal, e este havia concluído que Tácito seria de
procedência itálica ou provincial, como denunciado pelo seu sotaque.
33
Agora, então,
rechaçada a primeira hipótese, a dúvida pairaria sobre as duas últimas.
O dado que poderia reforçar a hipótese itálica é sustentado pelo documento Historia
Augusta, onde se diz que o imperador Tácito – pretenso descendente do escritor, que
31
REQUEJO, J.M. Introdución General in TÁCITO, Cornelio. Agrícola · Germania · Diálogo sobre
los Oradores. Madrid: Editorial Gredos, 1981, p. 10; PARATORE, Ettore. História da Literatura
Latina. Lisboa: Fundação Calouste Golbenkian, 1983, p. 722.
32
Esta última hipótese é aceitável para o momento, quando começa a haver uma participação maior de
provinciais (da classe dos eqüestres) na política da Urbe, como referido no capítulo anterior.
33
PARATORE. Op. cit., p. 721.
14
governou em 275-276 – seria de Terni (cidade pouco ao norte de Roma). Logo,
concluíram alguns, o escritor também seria. Porém, o documento não é digno de crédito.
34
A suposição de que o nosso escritor era proveniente de alguma província é a que
tem mais aceitação: a sua pátria seria ou a Gallia Cisalpina, ou a Gallia Narbonensis,
pois são nessas regiões onde mais aparece o cognome Tacitus. Mas se levarmos em
conta que seu futuro sogro, Júlio Agrícola, era de Frejus (ou Forum Iulii
35
), cidade
próxima à Massilia (atual Marselha, França), podemos acreditar que Tácito era da
Gallia Narbonensis. 36
A origem sócio-econômica de Tácito não poderia ser outra senão a de uma família
abastada. Primeiro porque a sociedade romana de então não permitia uma grande
mobilidade social: as famílias tradicionais mantinham-se no topo da pirâmide social
com o aproveitamento de suas muitas propriedades e através das suas boas relações
políticas; alguns poucos enriqueciam com o comércio. E segundo que o acesso às
magistraturas era restrito a esses grupos afortunados, que conseguiam bancar os estudos
de seus filhos e ter o censo exigido para acesso às magistraturas.
Aquele que se acredita que fosse o pai de Cornélio Tácito – de mesmo nome que o
filho – era um membro da classe eqüestre, que exercera um cargo na Gallia Belgica,
conforme nos relata Plínio, o Velho.
37
Os membros dessa classe eram indivíduos de
muitas posses, mas que até o fim do período republicano não tinham acesso aos altos
cargos. Com a reforma de Augusto, os cavaleiros se viram com possibilidades de
ascensão política. Isto explicaria a possibilidade de Tácito de poder se instruir e
ingressar no cursus honorum, a carreira magistratorial que, desde a época republicana, o
homem público deveria percorrer antes de chegar ao consulado e ao Senado.
Assim como se sucedia com os mais destacados políticos de sua época, a oratória foi
o elemento fundamental de sua educação. Nela pode ter participado Quintiliano, de
quem Plínio, o Jovem foi discípulo – se for verdade que ele e Tácito foram colegas de
estudos –, e Nicetas de Esmirna.
34
REQUEJO, J.M. Introdución General in Op. cit., p. 11; PARATORE, Op. cit , p. 721.
35
Fundada por Júlio César, em 46 a.C.
36
REQUEJO, J.M. Introdución General in Op. cit., p. 11.
37
REQUEJO, J.M. Introdución General in Op. cit., p. 11.
15
Como o próprio Tácito afirma (Historiae, I, 1) 38, sua carreira pública começou sob
o governo de Vespasiano, talvez um pouco antes do ano de 78, com o exercício de uma
magistratura chamada vigintivirato, que havia sido incluída no cursus honorum durante
a reforma administrativa de Otaviano Augusto. Provavelmente no ano de 78, casou-se
com a filha de uma figura de relevo da sociedade, Júlio Agrícola, que havia sido cônsul
e no momento estava para assumir o governo da província de Britannia. Seu casamento
lhe deu um grande impulso na carreira, por dois motivos principais: tratava-se da filha
de um homem de projeção na política romana, que era membro da gens Iulia, à qual
fizeram parte nomes importantes da história recente e que ainda tinha alguma
influência; depois porque havia uma lei em vigor (lei Papia Poppea) que dava o direito
de se adiantar em um ano em cada magistratura para cada filho vivo que se tivesse em
casamento. 39
Ainda sob o governo de Vespasiano (que morreu em 79), talvez, cumpriu as funções
de questor. Dois ou três anos depois, foi tribuno da plebe ou edil, sob o principado de
Tito. No ano de 88, durante o governo de Domiciano, foi pretor e qüindecínviro. Após
isso 40, passou uns quatro anos longe de Roma, não se sabe exatamente onde, talvez até
junto de seu sogro, na Britannia (Júlio Agrícola ficou lá até a sua morte, em 93
41
), ou
exercendo a função de propretor na Gallia Belgica – o que é mais provável, já que
explicaria a quantidade de informações de que ele dispunha para escrever Germania.
Quando retornou a Roma, em 92, assumiu uma vaga no Senado, o que nos levaria a
pensar que era cúmplice de Domiciano, o que se revela como falso: era uma questão de
sobrevivência, não só política, mas também física. Mesmo sendo anti-tirânico,
permaneceu calado. Após a morte de Domiciano, em 96, este seria duramente criticado
por Tácito, o que poderia afastar a idéia de que o então senador apoiava de livre vontade
o autoritário imperador.
Tácito teria completado o cursus honorum com o consulado, em 97, sob o
principado de Nerva. Não se sabe o que fez desse ano até 112, quando teria assumido o
38
“E del resto non voglio negare che è stato Vespasiano a far iniziare la mia carriera politica, e che Tito
l’há portata al suo apice”
39
40
REQUEJO, J.M. Introdución General in Op. cit., p. 12.
Talvez sua partida para uma província tenha sido motivada pelas perseguições promovidas por
Domiciano.
41
Júlio Agrícola poderia ter morrido envenenado a mando de Domiciano, segundo PARATORE. Op. cit ,
p. 726.
16
proconculado na província da Ásia, durante o principado de Trajano. De 112 a 120 –
ano mais aceito para a sua morte – também se sabe pouco a respeito, com exceção de
que teria escrito os livros que compõem os Annales. 42
Suas obras são classificadas em dois tipos: as obras maiores e as obras menores. As
obras maiores são as obras históricas – Annales e Historiae –, enquanto que as obras
menores são de tema variado – Germania (etno-geográfica),
Dialogus de Oratoribus (tratado de retórica).
43
Agricola (biográfica), e
Os Annales cobrem o período de
Otaviano Augusto a Nero, enquanto que as Historiae começam após a morte de Nero
até a morte de Domiciano. A Germania (cujo título original é De origine et situ
Germanorum) é uma obra descritiva sobre os costumes e instituições de algumas tribos
germânicas, ao mesmo tempo que uma explanação sobre a geografia das terras
germânicas. O trabalho Agricola (De vita et moribus Iulii Agricolae) é um panegírico a
seu sogro, Cneu Júlio Agrícola, governador da Britannia, usado também como um meio
de ele, Tácito, tentar ser incluído na trajetória bem-sucedida de seu sogro, talvez se
apresentar como herdeiro dela, além, claro, de ter a finalidade de denunciar os abusos
dos anos recentes. Já os Dialogus de Oratoribus trazem uma comparação entre a poesia
e a oratória, lamentando a decadência da última.
A maioria dos trabalhos de Tácito foi escrita após 98, 44 e não é por acaso. O ano de
96 é uma data referência para o nosso estudo, já que representa o fim do governo
repressor de Domiciano e o início de uma época de liberdades. Tácito também se
aproveitou dessa liberdade para externar suas opiniões, nem sempre favoráveis ao
antigo princeps. Também se acredita que seja nesse período porque, a essa época, o
nosso autor já tinha passado dos quarenta anos, idade em que já tinha maturidade
intelectual para escrever.
45
Sobre o Dialogus de Oratoribus, a discussão é grande.
Supõe-se o ano de 75, quando Tácito tinha perto de vinte anos de idade, mas H. Bardon
pensa que seja em alguma data entre 93 e 96, talvez 97. Já R. Syme propõe alguma data
42
43
REQUEJO, J.M. Introdución General in Op. cit.,p. 13.
Segundo Momigliano, em MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia
Moderna. Bauru: EDUSC, 1990, p. 163, a Germânia de Tácito é “etnografia acompanhada de uma
mensagem política”. O próximo capítulo alargará essa discussão.
44
Essa é a opinião de Paratore, que me parece ser mais plausível. PARATORE. Op. cit., p. 726.
45
Boissier não concorda com isso e afirma que a obra foi escrita antes de Tácito completar quarenta anos.
BOISSIER, Gaston. La Oposicion bajo los Cesares. Buenos Aires: Librería y Editorial El Ateneo, 1944,
p. 251.
17
entre 101 e 102, enquanto que há quem pense que seja mais tarde do que isso, em 107.
Bornecque situa a obra no ano de 81, enquanto que Requejo finaliza dizendo que, em
sua opinião, deve ter sido escrita entre 98 (ano de conclusão da Germania) e 106 (ano
de conclusão das Historiae).
97 e começo de 98,
47
46
A obra Agricola foi escrita provavelmente entre fins de
enquanto que os Annales, como já foi dito anteriormente, entre
112 e 120.
O estilo de registrar a História que Tácito adotou se aproxima do estilo de
Tucídides, que não levava em conta os relatos míticos, tendo certo rigor na separação
entre realidade e fantasia. Como muitos outros seus contemporâneos, Tácito encarava a
escrita da História como um exercício de retórica, arte na qual o autor era mestre
(Plínio, o Jovem conta que a casa de Tácito era repleta de jovens procurando seus
ensinamentos).
48
Ainda assim, acreditava (ou queria fazer acreditar) que escrevia com
neutralidade, sine ira et studio. Para ele, a História devia ter uma função pedagógica,
moralizante. Não queria ser inovador, ter um estilo próprio; o que fez dele único foi o
fato de ter narrado a história do século I d.C. de um ponto de vista privilegiado, tendo
presenciado muitos dos fatos sobre os quais escreveu. 49
O pensamento político do nosso autor foi tema de estudos por parte de muitos
historiadores, a partir, principalmente, do século XIX, quando, na Europa, as pesquisas
históricas mais rigorosas começaram a ser elaboradas. A sua obra, no entanto, havia
sido redescoberta no século XV, quando passou a ser referência para o debate sobre as
formas de governo, ora sendo invocado pelos defensores do absolutismo, ora invocado
pelos contrários a esse sistema. O autor, contudo, sempre se posicionou contra a tirania,
mesmo que nas ações possa ter se omitido, por prudência. Os defensores da tirania no
século XV encontraram em Tácito muitas lições sobre a arte de governar, talvez pelo
modo factual com que ele apresentava o seu relato histórico. Quando a leitura de
Maquiavel foi condenada pela Igreja, Tácito passou a ser o seu substituto, com uma
46
REQUEJO, J.M. Introdución a Germania in TÁCITO, Cornelio. Agrícola · Germania · Diálogo
sobre los Oradores. Madrid: Editorial Gredos, 1981, pp. 160-162.
47
REQUEJO, J.M. Introdución a Agrícola in TÁCITO, Cornelio. Agrícola · Germania · Diálogo sobre
los Oradores. Madrid: Editorial Gredos, 1981, p. 43.
48
BOISSIER. Op. cit., p. 251.
49
MOMIGLIANO. Op. cit., p. 162.
18
vantagem: a alguma objeção a sua obra, poder-se-ia dizer que se devia ao fato de ele ser
pagão. 50
Ainda a respeito de sua ideologia, é importante registrar a sua postura cautelosa
quanto ao sistema de governo. Por um lado, tinha ojeriza aos governos de forte presença
popular, pois sabia que as massas eram facilmente manipuladas e poderiam assumir
formas furiosas, resultando em revoluções; por outro, não lhe simpatiza os governos
aristocráticos, pois o domínio de poucos poderia resultar em uma tirania. É bem
provável que essa sua posição se deve ao fato de ele ter surgido de uma camada não
favorecida durante a República – os cavaleiros –, mas que estava longe de pertencer à
plebe, pois era instruída e tinha recursos financeiros. Da mesma forma, a experiência
recente de guerras civis e ditaduras deve tê-lo levado a refletir sobre os perigos de
ambos os tipos de governo e feito desacreditar em um modelo perfeito. Para a época em
que vivia, defendia o Principado, desde que fosse moderado. 51
Adiante, daremos continuação ao estudo do pensamento de Tácito, vendo como ele
se punha diante da questão dos “bárbaros”, em especial, como os povos germânicos
eram vistos por ele e qual seria o papel deles no Império. Procuraremos também
compreender quais eram as linhas separatórias entre a civilização e a barbárie no
pensamento romano antigo, para assim podermos melhor examinar a obra Germania de
Tácito.
50
MOMIGLIANO. Op. cit., p.175.
51
BOISSIER. Op. cit., p. 254.
19
CAPÍTULO III
Neste capítulo final, trataremos da visão do “bárbaro” em Tácito, partindo de sua
obra clássica sobre os povos germânicos: De Origine et Situ Germanorum ou
Germania. O capítulo será dividido em três partes: Primeiro, veremos qual é a data de
redação mais aceita para a obra e quais foram as fontes utilizadas por Tácito; após,
faremos uma breve análise do conceito de “bárbaro” para os antigos, em oposição ao de
“civilizado” e quais as implicações práticas no mundo helênico e, principalmente, no
mundo romano; e, finalmente, procuraremos compreender quais eram as intenções do
nosso autor ao produzir esse trabalho.
Comecemos, então, com o estudo da composição da obra Germania.
A data de redação de Germania está situada entre os anos 98 e 100 d.C. Requejo
não tira conclusões, apenas cita outros autores: Maurice Hutton define o ano 98,
enquanto que Ettore Paratore, em seu estudo Tacito, de 1962, diz que pode ser o ano 99
ou 100. 52 Porém, o mesmo Paratore afirma categoricamente em outro estudo seu que o
ano de composição é 98. 53 Todavia, para não ficarmos nessa discussão complexa e que
foge aos objetivos da monografia, fiquemos com a data de 98, que já está amparada por
Hutton e por Paratore, este num estudo mais tardio.
A fim de escrever Germania, Tácito obteve informações de diversas fontes, escritas
e orais. Das escritas, ele utilizou-se de Posidônio, Aufídio Basso – que guerreou com os
germanos –, as Historiae de Salústio, o livro 104 de Tito Lívio, o De Bello Gallico de
Júlio César
54
e – a mais importante – Historia Naturalis de Plínio, o Velho. Sobre as
fontes orais, é bem provável que Tácito as tivesse obtido diretamente com comerciantes
e militares romanos. Acredita-se mesmo que ele esteve na Gallia Belgica talvez
exercendo algum cargo, quando conseguiu diretamente muitas das informações contidas
na obra. 55
52
REQUEJO, J. M. Introdución a Germania in TÁCITO, Cornelio. Agrícola · Germania · Diálogo
sobre los Oradores. Madrid: Editorial Gredos, 1981, pp. 107-108.
53
54
PARATORE, Ettore. Op. Cit., p. 726.
O primeiro parágrafo de Germania, descrevendo a região homônima, lembra muito o primeiro
parágrafo de De Bello Gallico, onde Júlio César descreve as Galliae.
55
REQUEJO, J. M. Introdución a Germania in Op. cit., p. 108; GUERRAS. Op. cit., p. 14.
20
Passemos agora à segunda etapa: uma breve análise do conceito de “bárbaro”, para,
em seguida, confrontar com as informações extraídas da fonte.
Para os gregos, o bárbaro era sempre o outro, ou seja, aquele que não pertencia ao
seu povo, portanto, não falava a sua língua e não tinha os mesmos costumes. Era mais
um conceito etnocêntrico do que de superioridade – os gregos não se achavam de uma
raça superior. Não queria dizer também que o bárbaro fosse necessariamente rude por
não pertencer ao povo helênico, orgulhoso de sua cultura; havia povos bárbaros que
mereciam respeito por sua sabedoria e tradição religiosa, como os egípcios, os indianos
ou os hebreus.
56
Também os persas eram tratados com certo respeito, cabendo o
adjetivo “bárbaro” a eles, além da situação comum de estrangeiro, a de opressor, pois
eram tidos como perigosos à liberdade dos gregos.
Os romanos igualmente consideravam bárbaros aqueles que não eram seus
compatriotas, com exceção dos gregos, de quem eram culturalmente tributários, e a
quem as lendas – reforçadas pelos poetas, historiadores e filósofos – fazia remeter as
origens da civilização romana. Apesar de seu etnocentrismo, os romanos reconheciam
que havia civilizações igualmente grandiosas, como a dos chineses, mas que estavam
tão longe que não poderiam oferecer qualquer perigo. Roma era o “centro do mundo”,
mas não de todo o mundo conhecido; Roma era o centro do mundo mediterrânico e de
suas proximidades, onde reinava soberana sobre as nações “bárbaras”.
O pensamento romano em relação aos bárbaros determinava o tratamento que eles
mereciam ter, tanto na guerra quanto na paz. Tanto os romanos quanto os gregos
reconheciam a unidade do gênero humano, mas isso não queria dizer que, se vencidos,
os bárbaros seriam tratados de igual para igual. Os princípios da guerra antiga
estabeleciam que o vencedor tinha poder de vida e morte sobre o vencido, sendo a
escravidão uma das situações possíveis. Mas se a humanidade era uma só, poder-se-ia
perguntar por que a escravidão era permitida... Isso nos remontaria aos pensamentos de
Platão e Aristóteles acerca da desigualdade natural. Segundo este último, as pessoas
nasciam com certas características que determinavam que tipo de função que
exerceriam na sociedade. Observando as feições de um escravo, Aristóteles teria
concluído que seu fenótipo robusto era o mais adequado ao trabalho manual, enquanto
que um homem de sua categoria não era naturalmente apto para esse tipo de serviço. 57
56
VEYNE, Paul. Op. cit,. p. 284; GUERRAS. Op. cit., pp. 5-6.
57
VEYNE, Paul. Op. cit , pp. 286-287.
21
Assim, por regra, se justificaria a escravidão no mundo antigo. Os romanos aplicariam
este pensamento em sua doutrina imperialista.
Um outro conceito para o mundo romano que é importante para o nosso estudo é o
de humanitas. Esta palavra latina corresponde à palavra grega philanthropia, que
designa uma graça concedida por um soberano helenístico ou um julgamento mais
brando por parte de um juiz. Para os romanos, a humanitas representaria uma atitude de
clemência diante de um vencido, por exemplo. Mas, num conceito mais amplo,
humanitas designava o conjunto das pessoas cultas, civilizadas, dignas de serem
chamadas de humanos, em oposição à barbárie, que representa a rudeza, a rusticidade,
enfim, a falta de cultura. Isso porque os “bárbaros” seriam mais ou menos como os
animais, já que não seriam capazes de desenvolver uma cultura literária e artística.
58
Essa definição romana se aplicava aos “bárbaros” ocidentais, já que no Oriente havia
muitos exemplos de povos avançados tanto na literatura como nas artes.
Ao longo de sua expansão no Ocidente, Roma se deparou com povos pouco
civilizados, à exceção de Cartago, que, na verdade era de origem oriental (fenícia). As
tribos celtas da Gallia, que tanto incômodo deram aos romanos durante séculos, se
tornaram menos belicosas à medida que iam se civilizando, ou seja, entrando em
contato com o comércio mediterrânico e com a cultura greco-romana, o que facilitou a
aliança de César com algumas dessas tribos na campanha militar de meados do século I
a.C., já que alguns interesses convergiam. A progressiva romanização dos “bárbaros”
ocidentais foi acompanhada por um processo de urbanização e de um comércio de
artigos de luxo, vindo principalmente do Oriente. O estilo de vida campestre ia dando
espaço a um estilo urbano, mais requintado e pouco afeito à guerra. A organização tribal
dava lugar a formas mais complexas de organização político-jurídica.
O exposto acima se refere às regiões a oeste do Reno, pois a leste, na Germania, a
penetração cultural e comercial dos romanos era menor, e a distância do Mediterrâneo
era maior. O modo de vida dos povos germânicos tinha sido pouco alterado ao longo
dos séculos, e, mesmo durante o período de Augusto, a romanização era pequena, sendo
que na região de contato das proximidades dos rios Reno e Danúbio havia pequenas
mudanças no modo de vida germânico. Nessa área, o que acontecia era mais um
processo de celtização, com os germanos ribeirinhos adotando costumes celtas. Tácito
mesmo aponta este fato, remetendo-se aos relatos de Júlio César (XXVIII, 1):
58
Id., ibid., p. 283; PEREIRA. Op. cit. , p. 425
22
“El divino Julio, la máxima autoridad, nos transmite que los galos fueron más
fuertes em outra época, y por ello se puede creer que penetraron incluso em Germania,
pues ¡cuán poco era um río para impedir que qualquer nación, si se encontraba com
fuerzas, ocupase y cambiase de unos assentamientos hasta entonces comunes y sin
separar por ningún poder soberano!”
Também os costumes e a economia dos que estavam próximos ao Reno e ao
Danúbio se diferenciavam, devido ao comércio (ainda que o fluxo comercial dessa
região estivesse longe de se equiparar com o do Mediterrâneo) e o contato com celtas e
romanos. Os ribeirinhos faziam uso da moeda, enquanto que os do interior praticavam o
escambo (V, 4-5):
“Aunque los más cercanos a nosotros, y debido al tráfico comercial, tienen aprecio
al oro y la plata, y conocen y prefieren ciertos tipos de nuestra moneda, los del interior
utilizan el sistema más sencillo y antiguo de la permuta de mercancias. Les gusta la
moneda vieja y ya conocida, como nusteros denarios dentados y los que llevan grabada
uma biga. Por outra parte, prefieren la plata al oro, no porque les atraiga, sino porque
su mayor abundancia la hace más práctica para comprar mercancias corrientes y de
poco valor”.
As vestimentas dos ribeirinhos eram mais sofisticadas que as usadas pelos povos do
interior. Estes utilizavam basicamente peles de animais, enquanto que aqueles tinham
acesso a outros adornos (XVII, 1-2):
“Llevan también pieles de animales, sin cuidado los ribereños, com más esmero los
del interior, porque la falta de relaciones comerciales no les da outra possibilidade de
atavío”.
Igualmente acontecia com as bebidas. O grosso da população germânica costumava
ingerir uma bebida feita de cevada ou trigo, talvez uma espécie de cerveja, enquanto que
os ribeirinhos, além disso, tinham na sua alimentação o vinho, adquirido do exterior
(XXIII, 1):
23
“Beben um líquido que obtienen de la cebada o del trigo y que, al fermentar,
adquiere cierta cemejanza com el vino. Los ribereños compran también vino”.
As passagens de Tácito acima citadas comprovam a relação que existia entre alguns
germânicos com o exterior, principalmente com romanos e celtas nas zonas próximas
aos rios Reno e Danúbio. É algo lógico supor que existisse tal contato, já que um rio é
um obstáculo muito pequeno para impedir a mobilidade e a troca entre as populações
dos dois lados. Apesar de existir pequenas diferenças entre os germânicos ribeirinhos e
os do interior, Tácito não julgava que isto provocasse uma mudança geral no
comportamento desses povos em relação à política e à guerra. Não é possível falar de
um processo de romanização dos germanos para a época em que Tácito escreve (98
d.C..). O modo rústico de vida dos germanos e seu pouco apreço por objetos de luxo
comprovam que o sistema social estava pouco alterado. Temos aqui alguns trechos do
texto taciteano onde ele relata o modo de vida do germânico.
Sobre os presentes em metais preciosos dados às autoridades germânicas (IV, 4):
“Su posesión y uso no les afecta como a otros: es cosa de ver el que las vasijas de
plata dadas como regalo a sus embajadores y jefes, son tenidas em la misma poca
estimación que las hechas de tierra”.
Os presentes que trocavam entre si eram, na maioria, de artigos que podiam ser
utilizados na guerra ou de produtos agrícolas (XV, 3):
“Las comunidades tienen la costumbre de llevar a sus jefes, voluntaria e
individualmente, algún animal o producto del campo, lo que, recibido como homenaje,
ayuda de paso a sus necessidades. Sobre todo les gustan los regalos de los pueblos
vecinos, que les son enviados no solo por cada individuo, sino incluso a título oficial:
caballos escogidos, excelentes armas, jaeces y collares. Actualmente les hemos
enseñado también a recibir dinero”.
A exceção era o dinheiro, que havia entrado no mundo germânico num período mais
recente a Tácito, mas que era ainda pouco utilizado, como vimos anteriormente. Só
tinha serventia para os que praticavam o comércio exterior.
24
Já vimos que as vestimentas dos ribeirinhos eram um pouco mais requintadas, mas a
fonte não nos deixa saber se esses adornos adquiridos do comércio eram de feitio
simples, que serviam apenas para diferenciá-los dos outros germanos, ou se eram
realmente objetos de luxo – levando em conta as outras passagens, é de se acreditar que
não.
Os funerais germânicos eram realizados de modo simples, demonstrando, mais uma
vez, o desprezo que eles tinham pela ostentação (XXVII, 1-2):
“Ninguna pompa em sus funerales: procuran sólo que los cuerpos de los hombres
ilustres se quemen com leña de uma determinada clase. No hacinan vestidos ni
perfumes sobre el montón de la pira; cada cadáver conserva sus armas; a las llamas de
algunos se lê añade también su caballo. Um cúmulo de césped forma el sepulcro.
Rechazan el adorno laboriosamente trabajado de los monumentos, por considerarlo
uma carga pesada para el difunto”.
Até o final do século I d.C., portanto, a penetração romana ainda era pequena. A
influência política sobre os germanos era pouco expressiva, com duas exceções
apresentadas pela fonte: os que trabalhavam nos Agri Decumates (que Tácito não
incluía entre os germanos) (XXIX, 4) e os marcomanos, que tinham reis próprios mas
que recebiam de apoio econômico e, por vezes, militar. Tal apoio não implicava em
dependência, já que os marcomanos eram soberanos (XLII, 2):
“Los marcomanos han conservado hasta nuestra época reyes de su propria nación,
noble linaje de Maroboduo y Tudro (ahora suportan monarcas extranjeros), pero la
fuerza y el poder de sus reyes proviene de la autoridad de Roma; raras veces reciben
nuestro apoyo militar; más frecuentemente de tipo econômico, aunque no por ello son
menos poderosos”.
Como vimos acima nos trechos selecionados, o mundo germânico estava à parte do
mundo mediterrânico, centrado em Roma. O contato que havia não tinha possibilitado
uma inclusão dos germanos na civilização. Eram, portanto, “bárbaros”, no sentido que
os romanos davam para o termo.
As instituições germânicas diferiam muito das romanas. No caso romano, o
exercício do poder estava nas mãos de uma oligarquia, enquanto que entre os germanos
25
era necessário que o rei ou o chefe provasse o seu valor guerreiro para merecer seu
cargo. Os reis e os chefes exerciam um poder moderado, e sua autoridade era legitimada
pela sua valentia. A eles não era permitido o exercício da justiça, reservado aos
sacerdotes, que supostamente cumpriam a vontade dos deuses (VII, 1-3):
“Eligen a los reyes de entre la nobleza y a los jefes por su valor. El poder para los
reyes no es limitado ni arbitrário; los jefes, más com el ejemplo que com autoridad, si
actúan prestos, se dejan notar y van em vanguardia, ejercen el mandado por la
admiración que producen. Pero no está permitido castigar, ni atar, ni golpear; sólo
pueden hacerlo los sacerdotes, y no como castigo, no por mandato del jefe, sino porque
lo manda la divindad, que, aí lo cren, les asiste cuando combaten”.
A assembléia ocupava lugar importante na sociedade germânica. Lá eram decididos
os assuntos concernentes à paz e à guerra, além de ser ocasião para eleger o chefe (XI,
1-6):
“Los jefes deciden sobre los asuntos de menor entidad y todo lo publeo sobre los de
mayor trascendencia, aunque los jefes deben tratar com antelación incluso lo que es
competência de la plebe. (...)
Cuando el pueblo quiere, se congregan com sus armas. El sacerdote, que entonces
tiene también poder coercitivo, impone silencio. A continuación, el rey o el príncipe, de
acordo com su edad, nobleza, prestigio guerrero y elocuencia, se hace oír, más por su
ascendiente para persuadir que por su poder para mandar. Si sus palabras no agradan,
las rechazan com gritos. Si agradan, agitan sus ‘frameas’: el elogio com las armas es
su mejor consenso”.
Também na assembléia se decidia sobre os castigos aplicados aos faltosos, além da
eleição de outras autoridades (XII, 1-3):
“En la assemblea pueden también acusar y promover juicios sobre delitos
capitales. (...) La diversidad del suplicio tiene por mira la conveniência de mostrar a
todos los crímenes mientras son expiados y de ocultar, em cambio, ciertos actos
vergonzosos. (...)
26
Em las mismas assembleas se eligen ciertos dignatarios, que imparte justicia por
distritos y aldeas; a cada uno de ellos les assisten com su consejo y prestigio cien
hombres del peublos”.
Tácito fez questão de ressaltar que na sociedade germânica havia uma participação
mais ampla nas decisões políticas: todo homem livre, armado e bom guerreiro tinha
assento na assembléia. Aquele considerado covarde – abandonar o escudo era
considerado uma desonra humilhante – não podia participar da assembléia nem das
cerimônias religiosas (VI):
“El haber abandonado el escudo es la principal vergüenza, y al que há cometido tal
afrenta no se le permite aistir a los actos religiosos ni participar em las assembleas:
muchos supervivientes de las guerras pusieron fin a su infamia ahorcándose”.
A guerra, como pôde se ver até aqui, fazia parte da sociedade germânica. Eram as
qualidades guerreiras de um homem que davam a ele certos direitos na sociedade. Os
atos considerados de covardia faziam perder esses direitos. Há outras passagens que
evidenciam esse fato, mas ficaria demasiado extenso citá-las todas. O importante aqui é
perceber o quanto Tácito se estendeu nesses relatos, possivelmente para mostrar aos
leitores romanos o quanto a vida do germano era simples, sem luxo e dedicada às
atividades bélicas, diferentemente da dos romanos, agora já acomodados com a pax
augusta. Talvez Tácito quisesse fazer lembrar aos romanos que, no passado, eles já
foram como os germanos, pois até meados do século II a.C., Roma era mais rústica,
mais guerreira. Houve uma crescente sofisticação da sociedade com a descoberta do
luxo oriental combinado com o enriquecimento das elites. Após as guerras civis,
Augusto trouxe estabilidade e com ela o desinteresse pelos assuntos da guerra entre os
jovens bem-nascidos, o que se tornou um fator preocupante para alguns pensadores,
entre eles, Tácito. Igualmente a instabilidade política e o autoritarismo dos anos recentes
devem ter preocupado o nosso autor. Somado a isto, o fato que uma parcela cada vez
mais considerável da força militar romana era composta por estrangeiros: os auxilia, em
grande parte, provindos das tribos germânicas. Ou seja, a defesa do Império Romano era
realizada, muitas vezes, por soldados suja origem era de povos inimigos ou potenciais
inimigos: poucas eram as tribos aliadas de Roma; o grosso dos germânicos permanecia
insubmisso.
27
Antes de passarmos à conclusão, retomemos a fonte, agora a respeito da moral
germânica.
Segundo Tácito nos relata, os germanos tinham um comportamento sexual
moderado: os jovens despertavam o seu desejo sexual tardiamente; eram, em regra,
monogâmicos; o adultério era raro, sendo que a mulher adúltera era repudiada e não
poderia encontrar outro marido, tamanha a vergonha que tal comportamento causava à
sociedade.
Sobre o casamento (XVIII):
“El matrimonio es allí muy respetado y no podría alabarse más outro aspecto de
sus costumbres. Em efecto, son casi los únicos bárbaros que se contentan com uma sola
mujer, excepto unos poços, quienes, no por su ardor amoroso, se vem solicitados para
muchas uniones por su condición de nobles”.
Sobre o adultério, Tácito nos diz (XIX, 2-3):
“Para ser um pueblo tan numeroso, los adultério son escasos; su castigo es
inmediato y queda em manos de los maridos: em presencia de los perientes, expulsan
del hogar a la culpable, desnuda y com el cabello cortado, y la conducen a latigazos
por todo el poblado. No hay ningún perdón para la honestidade corrompida; no podrá
encontrar marido ni valiéndose de su hermosura, juventud y riqueza. Nadie ríe allí los
vícios, y al corromper o ser corrompido no se lê llama ‘vivir con los tiempos’. Miejores
aún son aquellas tribus en las solo las vírgenes se casan y se cumple de uma vez por
todas com la esperanza y el deseo de ser esposa”.
Muito interessante notar, nas citações acima, que Tácito considerava melhor as
tribos onde a mulher se casava virgem. É possível perceber neste, e em outros trechos, o
quanto o nosso autor dava importância aos chamados “bons costumes”. Não há uma
passagem explícita onde ele afirma isso, mas é bem capaz que ele quisesse mostrar ao
seu público leitor a relação que existe entre costumes moderados e qualidades
guerreiras, pois a luxúria não combina com o heroísmo; este combina com abstinência e
sacrifícios, aquela combina mais com o comodismo e covardia.
Ainda sobre os jovens, o trecho abaixo (XX, 3):
28
“El deseo sexual es tardio en los jóvenes, y de ahí que su primera virilidade quede
intacta. Tampoco es muy precoz em las doncellas; la misma lozanía y semejante
desarollo. De la misma edad y vigor que el hombre com el que se casan”.
A família constituída era grande, diferentemente do caso romano, onde as famílias
eram cada vez menores e em menor quantidade. Tácito inclusive faz referência a esse
fato, sendo que na sociedade romana precisou-se criar uma lei (Pappia Popea) para
incentivar o casamento e a geração de filhos (XIX, 5):
“Limitar el número de hijos o matar a um agnado se considera um oprobio, y más
fuerza tienen allí las buenas costumbres que en otros lugares las buenas leyes”.
Aqui, mais uma mensagem clara que Tácito mandava a seus leitores
contemporâneos: mais valia a força dos bons costumes que a força das leis. E mais:
dizia também que alguns “bárbaros” eram capazes de ter virtudes que os romanos, que
se julgavam civilizados, não tinham, sendo preciso criar estímulos através de leis a fim
de difundir certos comportamentos. Tácito aqui coloca em xeque os conceitos
tradicionais dos romanos acerca dos “bárbaros”. Ora, os germanos podiam não ter a
cultura literária e artística que tinham os romanos, mas eram capazes de possuir
qualidades superiores. Se não tinham palácios confortáveis (XVI, 2), se não se vestiam
de maneira suntuosa (XVII, 1-3) ou se não comiam comidas exóticas ou bem preparadas
(XXIII, 1-2) não queria dizer que fossem inferiores. Assim pensa Tácito, que, aliás, não
considera avanço possuir tudo que a civilização fornece; pelo contrário, considera
escravidão. Isto está dito de modo categórico, não nesta obra, mas em seu Agricola,
quando se refere à romanização dos bretões (XXI, 2):
“Además, iniciaba a los hijos de los jefes en las artes liberales; preferia el talento
natural de los britanos a las técnicas aprendidas de los galos, con los que quienes poco
antes rechazaban la lengua romana se apasionaban por su elocuencia. Después empezó
a gustarles nuestra vestimenta y el uso de la toga se extendió. Poco a poco se desviaron
hacia los encantos de los vicios, los paseos, los baños y las exquisiteces de los
banquetes. Ellos, ingênuos, llamaban civilización a lo que constituía un factor de su
esclavitud”.
29
A inclusão dos “bárbaros” na civilização provocou, no caso bretão, uma dupla
“escravidão”: ao conforto proporcionado pelos bens da civilização e a Roma, já que a
Britannia tornou-se província do Império. O mesmo aconteceria com os germanos, se
adotassem o modo de vida romano; essa é uma lição que Tácito dá em Germania e
também no trecho retirado de Agricola. Sua obra Germania, portanto, tem função
pedagógica, enfatizando a moral germânica, fazendo um alerta a seus leitores sobre o
atual estado de coisas no mundo romano, em contraste com a “barbárie virtuosa”.
Sobre as teorias acerca do caráter e da intencionalidade do trabalho Germania, J. M.
Requejo, citando Ettore Paratore, faz menção às três principais. A primeira delas diz que
seria um esboço das Historiae, mas não é o que nos parece, já que Tácito se ateve mais
ao tempo presente, numa descrição do que via e ouvia sobre os povos germânicos e sua
terra. As Historiae são livros narrativos dos fatos acontecidos desde a morte de Nero até
a morte de Domiciano. A segunda teoria segue a primeira, afirmando que seria uma
digressão de um apêndice das Historiae, agora centrada em Trajano. Também não nos
parece razoável, pelo mesmo motivo que a primeira. Finalmente, a terceira teoria é a
que diz ser a Germania uma obra independente, podendo ser classificada como política,
para fins de divertimento ou etno-geográfica. Como já evidenciamos no parágrafo
anterior, acreditamos ser etno-geográfica. Mas não só. É possível classificá-la também
como política. Paratore declara que a obra serviria como advertência a Trajano a fim de
que se tomassem atitudes concretas para solucionar o “problema germânico” que há
cerca de dois séculos incomodava Roma. 59 O trecho que cito abaixo comprova a tese do
pesquisador italiano. Tácito é enfático ao dizer que a região da Germania tardava a ser
submetida a Roma (XXXVII, 2-6):
“Corria el año 640 de nuestra Ciudad cuando por vez primera se oyeron los hechos
de armas de los cimbros, durante el consulado de Cecilio Metelo y Papirio Carbón. Si
contamos desde entonces hasta el segundo consulado del emperador Trajano, tenemos
un total de casi doscientos diez años: ¡tanto va tardando Germania en ser sometida! En
un período tan extenso se han producido mutuos y abundantes reveses. Ni el Samnio, ni
los cartagineses, ni Hispania o las Galias, ni siquiera los partos, nos han suministrado
tantas lecciones. Sin duda, la libertad de los germanos nos cuesta más cara que el
despotismo de Arsaces. En efecto, ¿qué outro trastorno, a no ser la muerte de Craso,
59
REQUEJO, J. M. Introdución a Germania in Op. cit., pp. 109-110.
30
nos há causado el Oriente, sometido por Ventidio y que perdió, por su parte, a Pároco?
Los germanos, en cambio, además de derrotar o capturar a Carbón, Casio, Escauro
Aurelio, Servilio Cepión y Máximo Manlio, arrebataron al tiempo cinco ejércitos
consulares al pueblo romanos; incluso lo mismo sucedió al César y a Varo y sus tres
legiones. Si bien los derroto Gayo Mario en Italia, el divino Julio en la Gália y Druso,
Nerón y Germánico en su propio territorio, no fue sin sufrir, a su vez, perdidas.
Posteriormente, las grandes amenazas de Gayo César cayeron en el ridículo. Hbo
después paz, hasta que, con ocasión de nuestras disensiones y guerras civiles, trás
asaltar los cuarteles de invierno de las legiones, trataron también de invadir las Galias
y de nuevo rechazado. En los últimos tiempos, más que victorias nos han dado excusa
para que celebremos triunfos”.
Em outra parte, Tácito se felicita ao saber que algumas tribos haviam combatido
entre si e as derrotas haviam feito desaparecer algumas delas (XXXIII, 1-2):
“Junto a los tencteros se hallaban en outro tiempo los brúcteros. Se cuenta que los
carnavos y angrivarios emigraron allí, trás ser explusados los brúcteros y exterminados
de raíz por una coalición de las naciones vecinas, bien por odio a su orgullo, bien por
el incentivo del botín, o bien por una cierta protección de los dioses para con nosotros,
peus ni siquiera nos hurtaron el espectáculo de la batalla. Cayeron más de sesenta mil,
y no por las armas romanas, sino para deleite de nuestros ojos, lo que supone un
triunfo más brillante. ¡Ojalá permanezca y se mantenga en estas naciones, si no el
afecto hacia nosotros, sí, al menos, el odio entre ellas, puesto que a los atormentados
destinos del imperio nada mejor puede proporcionar Fortuna que la discordia entre sus
enemigos!”
Como se pôde ver nas duas citações logo acima, Tácito tinha os povos germânicos
como inimigos, como um problema a ser resolvido, sem, contudo, tratá-los com o
desprezo tradicional aos “bárbaros” – pelo contrário, ressaltava muitas qualidades deles
que eram superiores às dos romanos. Isso confirma a teoria apresentada por Paratore
que a Germania é uma obra política, mas também não exclui – os exemplos
apresentados anteriormente o confirmam – que seja uma obra etno-geográfica com
ênfase no aspecto moral dos germanos. Também é da mesma opinião Arnaldo
31
Momigliano, para quem “Germania é etno-geográfica acompanhada por uma mensagem
política”. 60
60
MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC, 1990, p.
163.
32
CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho, pudemos observar que, durante um período de cerca de
dois séculos, houve uma questão pendente na agenda de Roma: a grande população de
germanos que permanecia próxima a sua área de hegemonia, oferecendo, em algumas
vezes, perigo direto, em outras, tão-somente desafiando a autoridade romana pela sua
simples insubmissão.
Antes de Caio Mário derrotar os cimbros e teutões no norte da Península Itálica, os
romanos não sabiam da existência dos germanos como povos à parte dos gauleses;
pensava-se que os povos que viviam dos dois lados do rio Reno fossem de mesma
origem. As expedições de Júlio César às Galliae ajudaram a corrigir esse erro. O então
cônsul, em seu De Bello Gallico, fez distinção entre gauleses (celtas) e germânicos. No
período de Otávio Augusto, tentou-se a submissão das tribos que se localizavam entre
os rios Reno e Elba, o que se tornou impraticável, devido às dificuldades do terreno
(pantanoso, frio e coberto de bosques e florestas) e às qualidades guerreiras de sua
população. O episódio do massacre das três legiões comandadas por Varo, em
Teutoburgo, foi a lembrança triste que Roma guardou dos germanos. Depois disso,
todos os outros imperadores mantiveram uma posição de cautela. A relação entre Roma
e povos germânicos ficou marcada pelo contato comercial nas regiões ribeirinhas do
Reno e do Danúbio e pelo estabelecimento de colonos romanos nessas regiões. A
romanização dos germanos era lenta, conforme pudemos observar na fonte estudada,
mas muitos deles serviam ao Império como tropas auxilia e outros, alguns aristocratas,
recebiam educação romana, a exemplo de Hermann (Armínio), que depois se revoltou
contra Roma.
Então, passados quase noventa anos do terrível incidente no bosque de Teutoburgo,
período no qual Roma manteve uma posição defensiva no seu limes setentrional, surgia
um pequeno trabalho escrito por um alto dignitário romano: De Origine et Situ
Germanorum, ou simplesmente Germania. Foi escrito por Caio Cornélio Tácito e
publicada em torno do ano 98. Não foi coincidência a obra tratar exclusivamente da
descrição das instituições e dos costumes germânicos, afinal, eram povos que viviam à
margem da civilização romana, fora do domínio da senhora do Mediterrâneo.
33
Essencialmente dois motivos levaram Tácito a elaborar um estudo sobre essas
populações: um era alertar as autoridades romanas, principalmente Trajano, sobre o
perigo germânico, para que assim tomassem medidas práticas; o outro, que não se
separa do primeiro, era mostrar a frouxidão dos costumes em Roma, oferecendo como
contraponto os costumes germânicos, mais rígidos. Em suma, Tácito queria lembrar aos
romanos que eles já foram assim quando ainda estavam em expansão sobre a Península
Itálica e o Mediterrâneo ocidental: foi, entre outras razões, a sua paixão pelos assuntos
da política e da guerra que levou Roma a submeter todas aquelas cidades. Os germanos
eram assim: dedicavam-se com ardor às questões do governo, das quais todo homem
livre e armado poderia participar. As exceções ficavam por conta daqueles considerados
covardes. Ou seja, a participação na política e na guerra eram condições
interdependentes.
A fonte não nos diz nada explicitamente, mas é possível conjeturar sobre qual seria
o procedimento que Tácito gostaria que fosse adotado em relação aos germanos. A
conquista militar da Germania não seria uma opção viável, visto que a capacidade de
defesa dessas populações era reconhecidamente grande, além de habitarem um território
de terreno de difícil locomoção, além do clima frio, o que dificultava o acesso e a
permanência das legiões. Então, seria mais lógico aliar-se com algumas tribos para
atacar outras. É isso o que está indicado na fonte, quando Tácito fala sobre os
marcomanos, onde ele cita a sujeição econômica desses povos em relação a Roma. É
possível que fosse uma sugestão de como agir em relação aos outros germanos: deverse-ia criar relações de dependência ao invés de um conflito bélico direto, pelo menos
inicialmente. Era necessário, pois a aliança com alguns povos contra outros – Hermann
havia sido morto pelas mãos dos marcomanos, em 19. E enquanto os germanos não se
romanizassem, seria necessário dar a eles uma relativa liberdade, tratando-os de igual
para igual, aliando-se a eles, tentando fazer convergir os interesses. A corrupção dos
seus hábitos poderia ser uma alternativa para torná-los menos perigosos: quando eles
começassem a se interessar mais por dinheiro, objetos preciosos e banquetes se
interessariam menos pela guerra, seriam mais afáveis. É mais fácil, sempre, conversar à
mesa com pessoas que se deixam levar pelos prazeres do que com aquelas que não
largam a espada.
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