Vendo aquilo que se vê e sendo aquilo que se é1

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Vendo aquilo que se vê e sendo aquilo que se é1
Monica Aiub – filósofa clínica – e-mail: [email protected]
“Vendo o que não se vê”, tema do Congresso, suscita, imediatamente, a
pergunta: o que se vê e o que não se vê nas questões de interface entre
ciência, ética e filosofia? Para abordar a questão na perspectiva filosófica,
faz-se necessário, primeiramente, apresentar a tarefa da filosofia diante dos
problemas e movimentos da vida cotidiana. Em seu primeiro instante: “o
espanto”, a admiração diante do óbvio, admiração no sentido estético de
maravilhar-se, encantar-se, ser tocado por, sensivelmente afetado, e por
isso querer ir para além do óbvio, compreendendo sua gênese, suas bases,
suas múltiplas interações com o entorno e possibilidades de ser. Mas
também “o espanto”, no sentido estético de horrorizar-se, enojar-se, sendo
tocado por, sensivelmente afetado a ponto de querer ir para além do óbvio,
compreendendo, em sua gênese, se é preciso ser desta forma ou se há
outras possibilidades de existência para além do óbvio.
Este é o primeiro passo para a filosofia, espantar-se, ser provocado, ser
tocado, ser movido à investigação, numa busca pelos fundamentos, pela
gênese. E neste movimento de incessante busca, nos deparamos com as
raízes, as origens de nossas questões. Raízes que se interconectam, que se
misturam, num constante fluxo e movimento, gerando resultados, por
vezes, inesperados. Encontrar raízes e percorrer o histórico da gênese de
nossas questões pode nos levar a “ver o que não se vê”.
Vemos os problemas, mas não vemos, necessariamente, sua gênese. Por
isso, muitas vezes, nos sentimos numa verdadeira armadilha, presos em
problemas sem solução, diante de situações em que não há o que possa ser
feito. Se enxergamos a questão a partir de nossa crença na insolubilidade
do problema, não haverá motivos para nos movimentarmos em busca de
uma solução. Por isso, a postura filosófica de questionamento a nossas
crenças, de revisão da perspectiva a partir da qual lemos os problemas e
seus contextos, de reflexão a nossos modos de ser, pensar e agir, de
investigação poderá revelar elementos fundamentais à construção de novas
possibilidades para lidar com nossas antigas ou novas questões.
Ainda no primeiro instante, o espanto que leva a investigar é acompanhado
de uma insatisfação, uma inquietação, uma perturbação. É próprio do
filósofo ser perturbado, inquieto, insatisfeito, no sentido de não se contentar
com “aquilo que se vê”, com as respostas prontas, com as receitas padrão,
com modos previamente determinados de existência. Especialmente se tais
modos não permitirem ao ser humano a condução de seu próprio existir.
Assim, o surgimento da filosofia é marcado por um ser humano que toma
para si a tarefa de conduzir a própria vida, não aceitando mais a
determinação dos deuses do Olimpo. É preciso, no caminho da filosofia,
antes de aceitar algo, conhecer o que é este algo e que motivos temos para
1 Trabalho apresentado em Natal, no I Congresso Internacional de Ciência, Ética e Educação Integrada: vendo o que não se vê, na mesa
temática Ciência, Ética e Filosofia.
aceitá-lo. Neste instante inicial, os motivos devem ser oriundos de
elementos observados na própria natureza, na realidade circundante.
Por este motivo, seu segundo instante: “o rigor metodológico”. Há quem
pense que filosofia é uma divagação, uma derivação incessante de ideias.
Mas o pensamento filosófico possui métodos, e são estes que nos permitem
ir além do óbvio sem perder os referenciais dos contextos nos quais se
inserem nossas questões. O rigor metodológico, desde as origens, exige a
reflexão racional, lógica, com argumentos construídos de modo a atender os
critérios de verdade e validade.
Instrumentos que permitem ao ser humano tomar para si a tarefa de
conduzir a própria existência, filosofia e ciência surgem como formas de
investigação da natureza, buscando nela as bases para a compreensão de
nossos problemas, assim como as formas para solucioná-los ou,
simplesmente, aprendermos a lidar com eles. Ambas fazem uso da lógica
como método. Rapidamente, a ciência do ethos, ou a reflexão acerca das
formas de condução da vida, surge para provocar o ser humano a refletir
acerca das formas de cuidar de si, considerando – como muito bem lê
Michel Foucault em Hermenêutica do Sujeito – cuidar de si como cuidar da
polis, ou seja, um ser humano que é parte constituinte da natureza e da
sociedade e, portanto, para sua integralidade, precisa conhecer-se para se
harmonizar com elas, encontrando o equilíbrio necessário à felicidade.
Já no primeiro tratado de Ética de nossa história, a Ética a Nicômacos,
Aristóteles apresenta a felicidade como fim último do ser humano. Contudo,
diferentemente do que muitos compreendem atualmente, na concepção
aristotélica não é possível ser feliz sem o equilíbrio mente-corpo, ou vivendo
em uma sociedade desequilibrada, ou ainda, vivendo em um ambiente
natural desequilibrado. Os desequilíbrios são, na perspectiva aristotélica,
geradores de injustiças, de doenças. E não é possível a um cidadão manterse são se a sociedade onde ele habita está doente.
Este cidadão situado em seus contextos, que coabita o mundo, era visto
como um “animal político”, ou seja, um ser pertencente à natureza, e à
sociedade. Desta forma, as mesmas leis que regem a natureza deveriam
reger a organização política e, consequentemente, a condução de sua vida.
Tratava-se, então, de conduzir sua existência de maneira a equilibrar-se com
a natureza e constituir uma sociedade pautada nas mesmas leis naturais.
Daí a importância do conhecimento para a condução da vida, e o papel da
filosofia de promover o conhecimento de si para o cuidado de si, que nada
mais era do que o cuidar da polis.
O transcorrer da história nos traz outras perspectivas, seccionando o ser
humano, que perde a noção de pertencimento à natureza e à sociedade. O
resultado disto é a constituição de modos de vida fragmentados, levando ao
extremo de isolamento e exclusão, a ponto de considerarmos a depressão
como a doença do século XXI. Por outro lado, grandes investimentos em
pesquisas para atingir novos patamares de longevidade, novos tetos de
qualidade de vida. Para onde nos dirigimos? Nossos novos patamares de
longevidade permitem que vivamos mais, mas vivemos melhor? Nossos
novos tetos de qualidade de vida observam o aumento na produção de
bens, serviços e riquezas, mas vivemos melhor? Somos felizes? O que é ser
feliz? Com o imenso e constante desenvolvimento da ciência, nos dirigimos
para atingir o equilíbrio necessário à felicidade?
Na interface entre ciência, ética e filosofia, há muito o que se refletir, o que
se pesquisar. Há muito o que se ver naquilo que não se vê.
Dados os contextos contemporâneos de isolamento e exclusão,
desconfiança, desequilíbrios, distúrbios e transtornos tornam-se eventos
corriqueiros. De um lado, a tentativa de solucionar as questões que nos
afligem modulando nosso cérebro com medicação; de outro, a tentativa de
analgesia para as dores da existência. De um lado, um corpo modelado,
esculpido e formatado segundo um padrão de beleza e de saúde; de outro
um corpo que se movimenta cada vez menos, tendo como possibilidade da
longevidade a incorporação de tecnologia. De um lado, relações cada vez
mais superficiais e à distância, a solidão do isolamento que não nos permite
partilha; de outro lado, depressão e suicídio. De um lado a tecnologia que
incorporamos ao cotidiano; do outro as arcaicas e atuais relações de poder,
de controle dos corpos, de biopoder. Isto é o que se vê? Ou o que não se vê?
Como nos vemos nestes contextos? Como lidamos com nossas questões? A
quem recorremos quando não conseguimos enxergar uma saída àquilo que
nos angustia?
É no contexto do século XXI que a filosofia volta a ser clínica, no sentido de
promover o conhecer para cuidar, e o cuidar de si não como aquele que se
fecha em si, egoisticamente, gerando um processo de idiotização – no
sentido grego de fechar-se em si mesmo; mas como aquele que cuida de si
cuidando das relações, da sociedade, do ambiente, e de todos os elementos
de seu entorno, necessários a uma vida feliz. O que é uma vida feliz? Dizia
Erasmo de Roterdam, no Elogio da Loucura: “A felicidade consiste em ser
aquilo que se é”.
Na busca de nos permitir ser aquilo que somos, a filosofia clínica não parte
de um padrão, de uma teoria explicativa sobre o ser humano e seus modos
de atingir a felicidade. Simplesmente aborda as questões da existência
fazendo uso dos métodos filosóficos, e provocando aquele que busca esta
partilha a refletir sobre os modos como conduz sua vida, assim como sobre
as possibilidades de seu existir. Constitui-se como um espaço de convívio,
de partilha, de movimentações existenciais a partir das constantes
provocações ao pensar, permitindo ver aquilo que não se vê e, por este
motivo, ser aquilo que se é.
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