Um Nome Aqui

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Miguel de Unamuno: aquele que não queria querer morrer
Introdução
Inicio com uma afirmação provocativa: Miguel de Unamuno1 é um ilustre
desconhecido. Se perguntarmos para um recém formado em filosofia ou teologia,
áreas em que Unamuno transita com desenvoltura, além da poesia e literatura,
que supostamente deveriam ter ouvido pelo menos mencionado o seu nome,
constataremos que Unamuno não faz parte do “cardápio” dos acadêmicos. E se
desse fato tentarmos uma explicação, forçosamente teremos que nos defrontar
com a realidade de que a predominância de pensadores que alimentam o nosso
imaginário filosófico e teológico fala sotaque alemão, francês ou inglês. Unamuno
é espanhol, e a Espanha sempre foi considerada periférica culturalmente dentro
da Europa e por isso seus expoentes raramente adquirem a visibilidade e
reconhecimento merecido.
Mas talvez a causa de seu pouco conhecimento e reconhecimento seja
outra. Talvez a causa seja uma visão estreita do que seja filosofia ou até teologia.
Predominou no ocidente, e ainda anda em voga, a visão de que filosofia é sistema
que partindo de princípios racionais ordena o conhecimento e ação. A permanecer
essa concepção de fato Unamuno não merece crédito no rol dos filósofos. O
mesmo se pode dizer da teologia. Se por teologia compreendemos a
racionalização da fé, então Unamuno não merece estar no pantheon dos teólogos.
Porém não seria isso um reducionismo empobrecedor para o próprio
1
Miguel de Unamuno foi filósofo, escritor novelista, poeta, autor teatral e crítico literário, nascido em Bilbao
em 1864, na Espanha. Estudou na Universidade de Madrid onde obteve o título de doutor em filosofia e
letras com a tese Crítica do problema sobre a origem e pré-história da raça vasca (1884). Foi catedrático de
grego na Universidade de Salamanca de 1891 a 1901, ano este em que foi nomeado reitor da Universidade
e nele permaneceu até 1914 quando foi destituído apesar dos protestos por parte dos acadêmicos. Em
1924 Unamuno foi exilado, na ilha de Fuerteventura, no Arquipélago das Canárias, por determinação do
General Primo de Rivera. O seu indulto virá logo depois, mas Unamuno prolongará voluntariamente seu
exílio, agora na França, até a destituição do ditador em 1930. Com o triunfo da República em 1931,
recuperará o cargo de reitor da Universidade de Salamanca, vindo a perder o cargo novamente em 1935
devido às críticas que processa contra a República. No ano de 1936 dá apoio ao golpe militar de Franco e
será recompensado com a volta à reitoria da Universidade. Mas por pouco tempo. A sua oposição ao
regime militar de Franco faz com que este o destitua e lhe imponha uma prisão domiciliar até a sua morte
pensamento?
Seja como for, o certo é que para se aproximar de Unamuno é preciso
desarmar o espírito dos pré-conceitos e deixá-lo falar, nem que a sua fala faça
retorcer nossos brios intelectuais. Seria imprudente lê-lo a partir de algum rótulo
que freqüentemente lhe é atribuído, tipo: irracional, anti-intelectualista, ateu,
pessismista, irresponsável etc. O rótulo diz tudo, menos o essencial. O rótulo só
serve para justificar a posição do próprio intérprete. E não queremos nos justificar,
mas justificar, isto é, fazer justiça ao próprio interpretado, quanto seja possível.
1- A obra, método e temática central de Unamuno
A minha pretensão é modesta. Pretendo apenas uma introdução ao
pensamento de Unamuno focalizando a questão da imortalidade e dentro desta a
fé em luta. Para isso me parece essencial iniciar com uma aproximação à sua
obra, bem como ao seu método e temática recorrente no seu pensar.
A obra2 de Unamuno nos causa perplexidade. Somos acostumados a
classificar para entender. Os editores devem ficar confusos quando se defrontam
com sua obra. Seria ela literatura? Poesia? Filosofia? Religião? Se dermos a
palavra ao próprio autor a confusão não se dissolve, afinal ele mesmo parece
vacilar sobre si: “Não quero enganar ninguém, nem fazer passar por filosofia o que
talvez não seja mais que poesia ou fantasmagoria, mitologia enfim” 3. Num
pequeno ensaio intitulado Minha Religião encontramos, no meu entendimento,
uma possível chave que abre as portas para compreender a sua obra. Perguntado
sobre qual seria a sua religião, Unamuno responde dizendo que a sua religião não
é um dogma que enclausura, cataloga. Não responde dizendo ser católico,
luterano, ateu, místico ou qualquer outro rótulo. O rótulo faz o espírito descansar
em uma solução fácil dispensando o pensar mais. O rótulo enquadra o
pensamento e Unamuno não quer ser enquadrado: “Eu não quero deixar-me
em 31 de dezembro de 1936.
2
Unamuno escreveu muito e em vários gêneros, desde a ficção, passando pela poesia, ensaios e cartas. O conjunto de sua
obra excede aos 60 títulos. A tradução para o português é quase inexistente. A Martins Fontes traduziu Do sentimento
trágica da vida, considerada uma das mais importantes do autor e que será o nossa referência constante e principal.
enquadrar, porque eu, Miguel de Unamuno, como qualquer outro homem que
aspire a consciência plena, sou espécie única”4.
Dizer ser “espécie única” e afirmar que o que importa mesmo é o “pensar
mais”, faz com que seja inútil tentar estabelecer limites classificatórios para a sua
obra. Ele é um intrometido que não se resigna a escrever como se deve, isto é,
exclusivamente. Então, dizer que a obra de Unamuno é filosófica só pode ser dito
com reservas. Da mesma forma dizer que é literatura, poesia ou religião. Ela é
tudo isso, mas não de forma estanque como faz um especialista, mas de uma
forma em que a poesia reclama a filosofia, a filosofia reclama a poesia, a literatura
reclama a ambas e todas reclamam a vida. É evidente que isso cria um problema
para a nossa mania classificatória, mas isso é um problema nosso e não do nosso
autor. E o leitor que assim não o ler poderá ser um bom professor universitário,
mas não um bom leitor seu. De qualquer forma a “espécie única” que Unamuno
reclama para si, não é tão única quanto parece, pois pode-se encontrar uma linha
de pensadores que circularam livremente nos diversos campos do saber,
sobretudo Agostinho, Pascal, Bergson e Kierkegaard. Pensadores estes, aliás, de
grande influência tanto na forma de pensar quanto na centralidade da temática
abordada.
Frustrado o caminho da classificação geral, no âmbito dos domínios do
saber, resta-nos tentar perceber a unidade na diversidade da obra. Essa unidade
não se encontra, segundo Julián Marías5, num sistema ordenado de princípios que
articule o particular com o universal num corpo doutrinário harmônico. Unamuno
não é um pensador sistemático. As suas afirmações não se enlaçam entre si e
nem se apóiam uma nas outras para se fundamentarem. Contudo não quer isso
dizer que Unamuno seja um pensador aforístico no sentido de que cada afirmação
se basta a si mesma retendo o pensamento em sua verdade. Não há retenção na
descontinuidade das afirmações. Sua forma de pensar não conhece a quietude,
3
UNAMUNO,M. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 120-121.
4
UNAMUNO, M.Mi Religión y otros ensaios breves. Madrid: Espasa- Calpe, 1968, p. 11.
5
Cf. MARÍAS, Julián. El Exisencialismo en España. Bogotá, 1953, p. 84-85.
pelo contrário, se move constantemente de uma intuição a outra, levado pela
inquietude de suas próprias contradição interiores. Apesar disso é possível
descortinar uma profunda unidade em toda sua obra aparentemente tão dispersa.
Unidade alcançada pela reiteração, pela repetição temática. Um único tema
parece preocupar a Unamuno, qual seja, o tema do homem no seu afã de viver e
permanecer vivo.
Agora, de que homem se trata? Essa questão é respondida na abertura do
livro Do sentimento trágico da vida. Ali Unamuno deixa claro que não se trata da
idéia de homem, o gênero humano, o substantivo abstrato humanidade, mas o
substantivo concreto, o homem. Diz o texto: “O homem de carne e osso, aquele
que nasce, sofre e morre – sobretudo morre -, que come, bebe, joga, dorme,
pensa e ama, o homem que se vê e a quem se ouve, o irmão, o verdadeiro
irmão”6. Essa demarcação lhe parece importante, pois a tradição também tem
tratado do homem, mas o fez abstratamente reduzindo-o a uma série de notas
comuns. Dessa forma de abordagem surge, segundo Unamuno, “um homem que
não é daqui ou dali, desta ou daquela época, que não tem sexo nem pátria – uma
idéia, enfim. Isto é, um não-homem”7. O ponto de partida é, portanto, contra a
visão essencialista da metafísica clássica. Aristóteles, por exemplo, concebia o
homem como sendo um animal político por essência, ou animal racional. Para
Unamuno isso é uma abstração que priva o que é essencial, a saber, a
individualidade, a irrepetibilidade. A posição de Unamuno, nesse particular, é
eminentemente nominalista.
Pois bem, esse homem concreto é tanto o sujeito do pensar quanto o objeto
do próprio pensamento e filosofar. Está em questão aqui uma concepção de
filosofia que precisa ser demarcada.
2- A filosofia a serviço da vida
A filosofia é reflexão da vida. Não é ciência. A ciência cumpre um papel
6
UNAMUNO, Do Sentimento Trágico da Vida (STV), p. 1.
7
UNAMUNO, STV, p. 1.
fundamental objetivo, fora de nós, dispondo-nos de meios para viver. A ciência
serve para algo, a razão da ciência é instrumental. E a filosofia não serve para
nada além de pensar o conjunto de nossos compromissos e sentimentos que
integram as nossas vidas. Nesse aspecto a filosofia, diz Unamuno “se aproxima
mais da poesia que da ciência”. Ambas, filosofia e poesia, brotam dos sentimentos
e representam a aspiração integral do espírito do seu autor e não só do cérebro.
Isso significa para Unamuno duas coisas. Primeiro que a biografia íntima do
pensador explica mais do que o conjunto de suas idéias sistemáticas que
aparentemente se explicam por si só, e segundo que não são as idéias que
explicam a vida, mas a vida que explica as idéias. É como se o coração aluga-se a
cabeça
para
justificar
unitariamente
decisões
prévias,
conscientes
ou
inconscientes. Unamuno explica essa concepção dizendo que “não são nossas
idéias que costumam nos tornar otimistas ou pessimistas, mas sim nosso
otimismo ou nosso pessimismo – de origem fisiológica ou talvez patológica, tanto
um como o outro – que fazem nossas idéias”8. Nesse sentido, ao invés de
dizermos que o homem é um animal racional, melhor seria dizer que somos um
animal afetivo e sentimental.
Essa inversão processada por Unamuno resulta na idéia motriz de que o
que mais nos deve importar num filósofo, ou num pensador qualquer, é a sua vida.
Estranha inversão, pois somos habituados a dar importância ao pensamento do
pensador e não a sua vida. O curioso é que Unamuno não está simplesmente
afirmando que deveria ser assim, mas que de fato é assim. Ao se referir a Kant,
por exemplo, Unamuno diz que ele só pode ser entendido se o lermos a partir do
salto dado entre a Crítica da razão pura para a Crítica da razão prática. Kant
reconstrói nessa o que demoliu naquela. Depois de ter demolido o Deus racional
da tradição metafísica, o deus primeiro motor imóvel, volta a reconstruir Deus, o
Deus da consciência, o autor da ordem moral. Aquele Deus é a projeção no infinito
do não-homem, do homem abstrato, enquanto o outro Deus é a projeção no
infinito do homem de carne e osso, o homem concreto. Kant reconstrói com o
8
UNAMUNO, STV, p.3.
coração o que demoliu com a cabeça. No fim quem venceu foi o sentimento 9.
A pergunta que precisa ser enfrentada é então: qual a origem da filosofia e
por que o homem filosofa? Desde os gregos se afirma que a origem da filosofia é
o espanto, a admiração, a curiosidade. Desde os gregos se diz também que a
filosofia é desejo de conhecer simplesmente por amor ao conhecimento.
Aristóteles formula claramente essa concepção na Metafísica dizendo que os
homens filosofam, depois de possuírem tudo o que precisam para a vida e bem
estar, para libertar-se da ignorância e não por alguma razão prática10. Para
Unamuno essa é apenas uma parte da verdade. A outra parte, a mais
fundamental, é de que filosofamos para viver. De qualquer forma a lógica fica
invertida. Unamuno diz a esse respeito: “Há, pois, primeiro, a necessidade de
conhecer para viver, e dela evolui este outro conhecimento, que poderíamos
chamar de conhecimento de luxo ou de excesso, que por sua vez, pode chegar a
constituir uma nova necessidade”11.
O conhecimento não tem valor em si mesmo, mas somente quando cumpre
um para quê e esse para quê, o propósito, é estar a serviço da vida. Primeiro viver
e depois filosofar, mas filosofar para viver. A vida está sempre em primeiro plano.
Descartes também fica invertido. Sou, logo penso é para Unamuno uma verdade
muito mais essencial do que o penso, logo sou.
Nesse sentido a filosofia, mesmo a mais teórica, corresponde a uma
necessidade vital que é enfrentar o sentido da nossa existência, naquilo que
Unamuno chama de “princípio de unidade e continuidade da consciência”. Em
última instância a filosofia está a serviço da vida cumprindo a finalidade de pensar
vitalmente o nosso destino diante do universo. E pensar o destino de nossas vidas
remete ao sentido da vida diante da morte.
9
Cf. UNAMUNO, STV, p.4.
10
Cf. Aristóteles. Metafísica, A 2, 982 b.
11
UNAMUNO. STV, p. 22.
3- A ânsia de imortalidade
O conhecimento está a serviço da vida, mesmo o mais metafísico possível,
como é o caso de saber de onde vim e para onde vou. O homem se coloca a
pergunta pela origem e destino das coisas não no sentido de querer aplacar o seu
desejo de conhecer, mas porque essas perguntas cumprem uma finalidade
existencial. Nas perguntas: de onde vim e de onde vem o universo e para onde
vou e onde vai todas as coisas, não está primeiramente uma preocupação com o
porquê mas com um para quê. E o para quê indica uma finalidade, mais do que
causa, e a finalidade última é saber se eu vou morrer de todo ou não. Diz
Unamuno sobre isso: “Por que quero saber de onde venho e para onde vou, de
onde vem e para onde vai o que me rodeia, e que significa tudo isso? Porque não
quero morrer de todo, e quero saber se morrerei ou não definitivamente. Se não
morro, que será de mim? E, se morro, já nada tem sentido”12.
Fica evidenciado, então, que o verdadeiro ponto de partida do pensamento,
do filosofar, do conhecimento é a ânsia da imortalidade. E aqui entra o drama de
Unamuno. A questão das questões da razão não pode ser por ela mesma
respondida. Mas como não há possibilidade de prescindir nem da vida e nem da
razão então se estabelece a luta, a agonia e o sentimento trágico da vida. O
trágico e agônico na vida é a ânsia de imortalidade, de perduração. É trágico
porque o instinto de conhecer a nossa destinação esbarra na sua incapacidade,
permanecendo numa tensão irreconciliável. E não há como conter esse instinto e
por isso a luta, a agonia entre razão e vida, e numa dimensão religiosa, entre
razão e fé.
Como Unamuno imposta a questão da imortalidade? A base da
problemática Unamuno a encontra em Spinoza quando este diz em sua Ética:
unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur, ou seja,
cada coisa, enquanto é em si se esforça para perseverar em seu ser.
Há,
segundo Unamuno, uma ânsia natural de imortalidade e seria imprudente não
12
UNAMUNO, STV,p. 32.
enfrentar o fato face a face refugiando num ponto de fuga como aquele do verso:
“Cada vez que considero, que um dia vou morrer, estendo no chão a capa, e
durmo a não mais poder”. Não se pode fugir de algo que não está fora de si. É
exatamente assim que Unamuno encara a questão da imortalidade, ela nos
constitui, queiramos ou não. É preciso então encarar o para quê de nossa
existência, esse para quê que nos corrói a carne e nos angustia, mas ao mesmo
tempo nos proporciona o amor da esperança.
A ânsia natural de imortalidade se manifesta de muitas maneiras, através
de vários recursos, às vezes falaciosos, desde o culto aos mortos das religiões
primitivas, cujos túmulos eram fortemente constituídos de pedra contrastando com
as choças de barro ou cabanas de palha em que os homens viviam, ao simples
fato de querer perpetuar o nome, a fama e a glória, permanecendo na memória
coletiva, se prolongando na obra ou nos filhos e filhas através da paternidade e
maternidade, inclusive espiritual. Disso nem São Francisco de Assis escapou: “até
aquele santo homem, o mais aparentemente desprendido da vaidade terrena, do
pobrezinho de Assis, contam os Três Companheiros que disse: vereis como ainda
sou adorado por todo mundo”13.
Kant, na crítica da razão pura, impôs limites à razão no trato das coisas que
não se pode conhecer sem a experiência. Wittengestein mais tarde dirá que sobre
o que não se pode falar é melhor calar. No meio filosófico o tema da imortalidade
acabou se estabelecendo como sendo um tabu. Há como que um pacto tácito de
não se falar dessas coisas. Os filósofos em geral se comportam como aqueles
atenienses muito curiosos, tolerantes com qualquer doutrina e ansiosos por saber
a última novidade teórica, mas quando a questão é a ressurreição, anunciada por
Paulo, dizem em uníssono: “a respeito disso te ouviremos noutra ocasião” (At, 17,
32). Mas Unamuno quebra o pacto, sabendo que a tolerância dos intelectuais
cessa quando o assunto é a vida além a morte. Faz a defesa da fala sobre a
imortalidade perguntando: “ainda que essa crença fosse absurda, por que se
tolera menos que seja exposta do que outras muito mais absurdas? Por que essa
evidente hostilidade com essa crença? Será medo? Será pesar por não a poder
partilhar”14. Todos dizem que a imortalidade não é um fato da razão, mas
Unamuno não quer se submeter à razão e contra ela faz a defesa do direito de
impostar a questão.
Agora, de quem e de que imortalidade se trata? Primeiramente da própria, e
isso está logicamente articulado com seu pano de fundo que é pensar o homem
de carne e osso. Unamuno quer pensar a si mesmo e só por reflexo está incluída
a humanidade. Quem não quer morrer é o próprio Unamuno e ele o diz
claramente: “Não quero morrer, não; não quero, nem quero querê-lo; quero viver
sempre, sempre, sempre, e viver eu, este pobre eu que sou e me sinto ser agora e
aqui. Por isso tortura-me o problema da duração da minha alma, da minha própria
alma”15. Viver eu, este eu agora e aqui. Unamuno não se consola com uma
imortalidade abstrata de sobrevivência impessoal absorvida num grande todo, na
matéria, na memória coletiva das gerações futuras, ou na força infinita e eterna, e
nem mesmo em Deus, tudo isso são apenas sub-produto da imortalidade. Ele não
quer ser possuído por Deus, ele mesmo quer ser deus, ou melhor “o que desejo,
diz Unamuno, não é ser possuído por Deus, mas possuí-lo, fazer-me Deus sem
deixar de ser eu que agora lhe diz isso”16. Nenhuma tapeação monista lhe
interessa. Unamuno quer continuar sendo ele, em corpo, alma e memória para
todo o sempre. Insiste em dizer que quer continuar vivendo tal como ele é e como
quem é, com seu quinhão psíquico e físico, em carne e osso, sem remissão das
suas misérias e insuficiências numa possível glorificação celeste. A glorificação
seria a morte do eu, e não a sua perduração. A glória seria o fim da luta, da dor.
Sem dor a vida não seria mais sua, mas dos anjos ou dos ressuscitados, e isso
ele abomina. O desejo de Unamuno se aproxima do purgatório, só que não como
passagem, mas como permanência eterna.
13
UNAMUNO, STV, p.51.
14
UNAMUNO, STV, p. 49.
15
UNAMUNO, STV, p.44.
16
UNAMUNO, STV, p. 46.
Para quem vê e acusa essa postura como sendo um individualismo
extremado, uma forma sutil de materialismo, ou um sonho de orgulho, Unamuno
se defende dizendo: “Egoísmo, dirão? Não há nada mais universal do que o
individual, pois o que é de cada um é de todos. Cada homem vale mais do que a
humanidade inteira, não adianta sacrificar cada um a todos, a não ser na medida
em que todos se sacrifiquem a cada um”17. Afinal, pergunta-se Unamuno sobre
isso, não é esse o postulado do mandamento “ama a teu próximo como a ti
mesmo”? Então viver para a Verdade, o Bem, a Beleza, não é mais do que a
suprema hipocrisia. Quanto a dizer que é uma forma de materialismo, Unamuno
não é menos enfático: “Materialismo? Materialismo, dizem? Sem dúvida, mas isso
porque nosso espírito também é alguma espécie de matéria, ou não é nada.
Estremeço com a idéia de ter de me separar da minha carne, estremeço mais
ainda com a idéia de ter de me separar de todo o sensível e material, de toda
substância”18. E por fim o sonho de um orgulhoso: “Eu sonho?...Deixem-me
sonhar. Se esse sonho é minha vida, não me despertem. Creio na origem imortal
desse anseio de imortalidade, que é a própria substância da minha alma. Mas
creio mesmo nisso...? `Para que querer ser imortal?´ – você me pergunta. Para
quê? Não entendo a pergunta, francamente, porque é perguntar a razão da razão,
o fim do fim, o princípio do princípio”19.
4- A fé trágica e quixotesca
Unamuno persegue desesperadamente as possíveis contribuições que a
teologia e a ciência podem dar a sua questão. Em o sentimento trágico da vida faz
primeiramente uma revisitação à teologia tradicional, sobretudo católica, na ânsia
de encontrar nela um ponto de apoio confirmador de sua fome de imortalidade.
Mas a tentativa é em vão. A teologia católica, o catolicismo em geral, ao invés de
proteger a fé na imortalidade pessoal da alma, racionalizou a fé fazendo da
religião teologia. A teologia escolástica é seu produto final e com ela o triunfo da
17
UNAMUNO, STV, p.44.
18
UNAMUNO, STV, p. 46.
19
UNAMUNO, STV, p.47.
razão sobre a fé e a vida. A ciência por sua vez, pelo uso da razão, faz
exatamente o contrário da teologia escolástica, ou seja, destrona completamente a
possibilidade de provar a crença na imortalidade da alma pessoal. Vejamos isso
mais de perto.
O cristianismo, diz Unamuno, nasceu da confluência de dois grandes
processos espirituais, o judaico e o helênico. Tanto num como noutro há um claro
anseio, se bem que não tão bem definido, de outra vida. Da parte judaica é a fé
em um Deus pessoal, e não numa entidade metafísica, que faz o homem se
colocar a fé na imortalidade pessoal também. O helenismo, por sua vez, retira da
experiência da morte o anseio pela imortalidade, não tanto nos poemas
homéricos, ou na religião oficial, mas na crença popular, ou na religião dos
mistérios marcadamente órfica que se prolongará nos neopitagóricos e
neoplatônicos.
Esses dois processos espirituais serão elaborados limpidamente no
cristianismo primitivo. Coube a Paulo expressar de forma inequívoca a fé na
ressurreição. Talvez porque ele não conheceu o Jesus histórico se interessou
tanto pelo Cristo da fé. E o Cristo é o Cristo ressuscitado, e não o Jesus da obra
moral e pedagógica. O Cristo de Paulo é o Cristo eternizado, o Cristo religioso, e
não Cristo ético. A partir de Paulo, diz Unamuno, só pode merecer ser chamado
de cristão aquele que crê na ressurreição, os demais podem no máximo ser filocristãos. Advém daí toda uma cristologia da redenção do homem na medida que o
próprio Deus se fez homem para nos eternizar, salvando-nos mais da morte do
que do pecado20.
Na mesma direção aponta o Concílio de Nicéia e com ele Santo Atanásio
que é, segundo Unamuno, a encarnação da fé popular cheia de fome de
imortalidade. Atanásio é anti-arianista na medida que não aceita a idéia de que
Cristo seja um mestre de moral, ele é antes de tudo Deus e só assim pode nos
fazer participar da divindade. O Cristo atanasiano, diz Unamuno, “não é o Cristo
20
Cf. UNAMUNO, STV, p. 61.
cosmológico, nem mesmo, a rigor, o Cristo ético: é o eternizador, o deificador, o
religioso”21. Não é o Cristo do racionalismo, das idéias claras e distintas, é o Cristo
da vida e, da vida que não quer morrer. Em Nicéia não venceu o racionalismo,
mas “venceram os idiotas, os ingênuos, os bispos rústicos e voluntariosos,
representantes do genuíno espírito humano, do popular, do que não quer morrer,
diga a razão o que quiser, e busca a garantia mais material possível para seu
desejo”22.
Porém, a aceitação na fé da promessa de outra vida e salvação, que os
primeiros cristãos acolhiam no seu mistério e formularam em dogma no Concílio
de Nicéia, acaba tomando um outro rumo na tradição católica que, por intermédio
de uma corrente de pensamento marcadamente racionalista, buscou desenvolver
um arsenal de provas racionais para aquilo que deveria ser simplesmente aceito
na fé. São Clemente de Alexandria, em sua Stromata, inaugura a virada
intelectualista insistindo na defesa de que é preferível conhecer a Deus do que ser
salvo por ele. São Tomás consuma o desvio na medida que faz da filosofia uma
ancilla theologiae, isto é, põe a razão a serviço da fé. Depois de Tomás a
escolástica constrói uma arquitetônica teologia natural em que todos os dogmas
acabam tendo uma justificação racional. Então, o que era contra a razão acabou
se sobrepondo a razão, sustentada por esta. Ao final e ao cabo venceu no
catolicismo não a corrente nominalista e voluntarista de Scot, que acentuava a
gratuidade e a irracionalidade da fé na transcendência, mas a racionalista de
Tomás de Aquino que queria conciliar fé e a razão. O resultado é que a solução
católica se inclina a “crer com a razão e não com a vida”.
E o que sobrou do “crer com a razão e não com a vida”? Nada. A
modernidade se encarregou de destruir o edifício frágil, ou catedral de adobe
como Unamuno gosta de dizer, que se ancorava sobre a racionalidade da fé.
Tanto os argumentos em favor da imortalidade da alma quanto aqueles em favor
da existência de Deus foram destronados com os ataques potentes da
21
UNAMUNO, STV, p. 63.
modernidade. O que parecia ser a solução, a racionalização da fé na teologia,
acabou sendo o próprio problema para a teologia católica. O caminho da
racionalização da vida não é, portanto, solução alguma para o problema da
imortalidade da alma. Desiludido com a posição teológica tradicional, Unamuno
parte então para a análise da solução racional ou científica do seu problema da
imortalidade.
O que nos ensina a razão sobre a possibilidade de vida perdurável depois
da morte? Com essa pergunta Unamuno revisita Platão, Aristóteles, Tomás,
Hume, Kant, a razão monista e materialista, a psicologia comparada, a
antropologia, a ciência da religião, e por todos os ângulos que se analisa a
questão a resposta é sempre a mesma: “por qualquer lado que se examine a
coisa, sempre resulta que a razão se ergue diante de nosso anseio de
imortalidade pessoal e a contradiz. Porque, a rigor, a razão é inimiga da
vida...Tudo o que é vital é irracional e tudo o que é racional é antivital, porque a
razão é essencialmente cética”23. Mais adiante como conclusão da solução
racional, ou melhor, da dissolução racional, Unamuno sintetiza a que resultado
chega a razão diante do seu problema central. A passagem é longa, mas pela sua
clareza de posição a transcreveremos em sua totalidade. Diz Unamuno: “Portanto,
deve ficar assentado que a razão, a razão humana, dentro de seus limites, não só
não prova racionalmente que a alma é imortal e que a consciência humana será,
na seqüência dos tempos vindouros, indestrutível, como, ao contrário, prova,
dentro de seus limites, repito, que a consciência individual não pode persistir
depois da morte do organismo corporal de que depende. Esses limites, dentro dos
quais digo que a razão humana prova isso, são os limites da racionalidade, do que
conhecemos comprovadamente. Fora deles está o irracional, que tanto faz
chamarmos de sobre-racional, infra-racional ou contra-racional; fora deles está o
absurdo de Tertuliano, o impossível certum est, quia impossibile est. Esse absurdo
22
UNAMUNO, STV, p.64.
23
UNAMUNO, STV, p.87-88.
não pode se apoiar senão na mais absoluta incerteza”
24.
Com isso chega-se ao fundo do abismo como chama Unamuno. O fundo do
abismo é povoado pela incerteza, tanto da razão quanto da fé. Não se trata da
dúvida metódica de Descartes. Não, a incerteza não é método para afirmar uma
certeza posterior. A incerteza é a própria base tanto da razão quanto da vida.
Nessa base é que o homem se encontra. A incerteza faz o racionalista duvidar da
razão e faz do homem de fé ter que crer porque incerto. É a incerteza, aliada ao
desespero, que constitui a própria fé. A incerteza da razão e a incerteza da fé é
que faz com que a imortalidade da alma seja uma questão. O incrédulo total é um
tolo, assim como o é o crente sem dúvidas. Nisso fé e razão não se excluem, mas
se reclamam como um lutador reclama o outro. A arena da luta é a incerteza.
Nessa luta não há vencedor e vencido, a luta é permanente e sem trégua.
Unamuno vive na consciência dessa luta: “Por minha parte, não quero celebrar a
paz entre meu coração e minha cabeça, entre minha fé e minha razão; quero
antes, que combatam entre si”25. A incerteza não é, contudo, uma aufhebung de
tipo hegeliano que supera a tese e antítese elevando a uma síntese mais alta. Não
há síntese possível, mas pura negatividade. A incerteza é, por assim dizer, uma
falta que persiste tanto na razão quanto na fé. Porém, seria um equívoco, no meu
entendimento, pensar que Unamuno proponha algum tipo de irracionalismo que se
reconforta na fé. A fé totalmente desprovida da razão não seria trágica. E a fé
unamuniana é trágica, e é trágica justamente por não abrir mão da razão, mesmo
que seja contra a razão.
Fé trágica? Não seria isso um contra-senso? A fé não é o exato oposto do
trágico? Não é a fé um descansar consolado e confiante nos braços de Deus?
Não a fé que Unamuno alimenta. A fé de Unamuno não conhece solução, ela é
antes o problema mesmo. Ela não se ancora numa certeza, mas numa aporia sem
solução. A fé sem sombras de incertezas é a fé de ingênuos ou de “estúpidos
carvoeiros” como diz Unamuno. E aqui Unamuno recorre a uma passagem bíblica
24
UNAMUNO, STV, p.101.
que é como um leitmotiv nas suas mãos. Trata-se da passagem do evangelista
São Marcos onde é narrada a cura de um menino possesso por um espírito mudo,
que quando o tomava o jogava pelo chão fazendo-o espumar e ranger os dentes.
Jesus se dirige ao pai do menino e lhe pergunta há quanto tempo lhe sucede isso.
O pai responde dizendo ser desde pequenino e solicita a Jesus que, se puder,
tenha compaixão deles. Ao que Jesus responde: “Se tu podes?...Tudo é possível
àquele que crê”. Imediatamente o pai do menino gritou: “Eu creio! Ajude a minha
incredulidade” (Mc 9, 23). Pois essa é a fé humana, diz Unamuno. Uma fé que
repousa sobre o abismo da incerteza. Isso que parece uma contradição é o que dá
o mais profundo valor humano ao grito do pai do possesso. Crer é antes de mais
nada uma necessidade de crer. A vida o obriga a crer, mas no ato de crer não
desaparece a dúvida. A incerteza refratária à fé é o que caracteriza a condição
humana. Assim foi a fé heróica que Sancho Pança teve em seu amo, o cavaleiro
Dom Quixote de la Mancha, uma fé baseada na dúvida, pois só um tolo acreditaria
cegamente nas loucuras do seu amo, e Sancho não era tolo. Tampouco Dom
Quixote acreditava totalmente nas suas loucuras, pois apesar de louco não era
tolo. Dom Quixote é no fundo um desesperado, um herói desesperado e por causa
disso é o eterno modelo de todo homem cuja alma, diz Unamuno, é um campo de
batalha entre a razão e o desejo imortal. Dom Quixote é um vitalista, cuja fé se
baseia na incerteza, e Sancho é um racionalista que duvida da razão 26. Unamuno
é a síntese de Dom Quixote e de Sancho, é um racionalista que não se entrega
cegamente à razão e é um vitalista cuja fé não conhece descanso, pois a fé não é
uma certeza, mas um ter que crer, pois incerta.
25
UNAMUNO, STV, p. 115.
26
Cf. UNAMUNO, STV, p.117.
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