Resenhas 127 Resenhas CASSIN, Barbara. O efeito sofístico. São Paulo: Ed. 34, 2005. 448 p. Dos intelectuais europeus mais respeitados, Barbara Cassin alia como poucos erudição, rigor filosófico e ousadia de interpretação. Pesquisadora do Centre National de la Recherce Scientifique, é autora de uma vasta produção filosófica, em boa parte traduzida e publicada no Brasil, como Aristóteles e o logos , Ensaios sofísticos sofísticos, Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros, etc. Recentemente organizou em França o chamado Dicionário ocabulaire européen des dos Intraduzíveis (V (Vocabulaire philosophies), considerado naquele país o livro do ano em 2004. Em O efeito sofístico sofístico, podemos encontrar um dos melhores estudos sobre os sofistas já feitos. Chamando para o debate pensadores como Parmênides e Aristóteles, Heidegger e os filósofos da linguagem, Cassin apresenta um panorama no mínimo completo e uma interpretação, ousada ou inovadora mas certamente brilhante, do movimento sofístico. A leitura não é fácil. Requer mais do que atenção e dedicação redobradas. Exige uma disposição de se envolver com um tempo, um pensamento e uma análise que se articulam e se impõem aos leitores de modo grandioso e, é verdade, complexo. A obra deve ser vista como essencialmente constituída por textos e análise de textos que pressupõem uma boa familiaridade do estudioso com os temas em questão. A questão que se coloca é: toda filosofia não passaria de um “mero” discurso entre outros, sem a posse de uma verdade, ou de qualquer verdade? Em outros termos, filosofia não seria simplesmente retórica, atividade sofística? Desde o fundador Tratado do não-ser de Górgias, e apesar das réplicas de Platão e Aristóteles, o movimento sofístico fica sempre às margens da filosofia mas o eco de sua acusação jamais deixara de perturbar o sono dos amantes da sabedoria: o conhecimento, qualquer conhecimento é impossível! Em tempos de uma filosofia que ou é da linguagem (filosofia analítica) ou da interpretação (Escola Hermenêutica), aquele eco é mais que ensurdecedor. O trabalho de Cassin é aberto com uma proposta interessante: “a ontologia como obra-prima sofística”. Cassin demonstra primorosamente como as questões em torno do significado, do discurso, do outro, do signo, estão efetivamente tratados na Antigüidade e abrem espaço para a constituição do ser e não sua simples descoberta: efeito sofístico! Em “como a política é uma questão de logos”, a autora passeia por Nietzsche, Heidegger, Hannah Arendt e explica a passagem do ontos-logos para a política, em particular em seus dois maiores pensadores: Platão e Aristóteles. “Das plantas que falam” é um belo capítulo em que Cassin apresenta com maestria a resposta de Aristóteles a Górgias e sua crítica a Parmênides. Encontramos uma ampla e excelente explicação (apesar de inovadora, para contrariar os conservadores) do princípio de não-contradição aristotélico. Denso e desafiador, obrigatório aos aristotélicos. O capítulo quarto, “de uma sofística a outra: boas e más retóricas”, parte do problema do sentido sem referência, um dos fios condutores da obra, para apresentar detalhadamente a sofística anti-socrática e a sofística pós-aristotélica. Atenção para as interpreReflexão, Campinas, 30(88), p. 127-134, jul./dez., 2005 Resenhas 128 tações da autora da retórica contemporânea de Chaïn Perelman. A sofística vive... jamais morreu! O último capítulo, “descompartimentar os gêneros” principia de forma... aterrorizadora: “Atualmente, só se pode ser incompleto e alusivo; no melhor dos casos, programático. Com o triunfo da sofística, entramos, de fato, em literatura”. Vivemos o império do simulacro, para não dizer do caos. A obra termina com uma série de documentos antigos, alguns traduzidos pela primeira vez ao português, para ilustrar as reflexões de Barbara Cassin sobre o que ela chamou de efeito sofístico: textos de Górgias, Sexto Empírico, Antifonte, Élio Aristides, Platão, Aristóteles, Filóstrato e Luciano. Uma preciosidade. Aos que se interessam por um conhecimento mais profundo da sofística, por uma interpretação inovadora e inusitada dela, têm aqui um material indispensável. A erudição de B. Cassin pode desencorajar os neófitos, a facilidade com que cita pensadores distantes mais de dois mil anos no mesmo parágrafo é incrível, a presença heideggeriana de Aristóteles e o jogo de palavras nem sempre sutil e quase sempre confuso são obstáculos que, em pequenas quantidades, nem esforço nem dedicação podem nos ajudar a superá-los. Fabiano Stein COVAL Faculdade de Filosofia – PUC-Campinas CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 177 p. Raramente ocorre com obras de não-ficção. É mais comum com romances. Aquele desejo de que a obra não acabe, que a última folha não chegue. Pois é exatamente isto que ocorre com este pequeno tratado de Anne Cauquelin. Artista plástica, redatora da Revue d’esthétique , romancista, professora emérita de Reflexão, Campinas, 30(88), p. 127-134, jul./dez., 2005 filosofia da Université de Picardie, autora de um sem número de artigos sobre arte e filosofia, de estudos sobre a arte contemporânea e a estética de Aristóteles, incansável estudiosa da arte. Esse é o perfil de Anne Cauquelin, o que certamente a torna uma voz respeitável no rol dos debates estéticos contemporâneos. Em Teorias da arte arte, Cauquelin não esconde seu esforço em mostrar sua (nossa) “inabalável crença na arte” e que a forte sensação pós-moderna de que a arte é o território do vale-tudo, do deleite, precisa ser refletida e a especulação em torno da arte não se faz sem o auxílio de categorias de pensamento e teorias estéticas fundadoras na história do pensamento humano. Após apresentar, em um modelo de admirável clareza, o que entende por teoria da arte e qual a diferença entre os empregos dos termos estética e teoria da arte, a primeira parte da obra aborda as chamadas “teorias de fundação”. A reflexão extética nasce efetivamente com Platão. Não há quem o negue. Cauquelin, em debate com pensadores contemporâneos, em particular Nietzsche, investiga as idéias platônicas, a idéia de beleza, o alcance e a importância da estética em Platão. Dedica-se, na seqüência, à estética de Hegel. Por que Platão e Hegel juntos? Porque, segundo Cauquelin, ambos seriam exemplos de teorias ambientais, ou seja, teorias que se disseminam “em direção à arte e pelo viés de uma reflexão, não sobre a arte, mas sobre o belo” (p. 33). E não apenas Platão e Hegel. Depois de ensinar como, em Hegel, a arte é um momento do processo de desenvolvimento dialético do espírito em direção ao espírito absoluto, Cauquelin explora os pensadores da arte como vida: Nietzsche e Schopenhauer. No capítulo dois, “as teorias injuntivas”, a autora enfoca as teorias que, ao contrário das ambientais, oferecerão regras, limites, processos específicos, instrumentos e operações próprios ao exercício da arte (que a autora chamará teorias injuntivas, posto que as ambientais criam uma espécie de paisagem na qual a arte tem seu lugar). O primeiro filósofo abordado no campo das teorias injuntivas não Resenhas poderia deixar de ser Aristóteles. A taxonomia aristotélica é a primeira grande elaboração teórica sobre as regras da arte na Antigüidade e que conserva sua força até nossos dias. Passa a I. Kant e o “sítio da estética”, revelando como o conhecimento da arte pode ser um conhecimento autônomo. São no mínimo brilhantes as reflexões de Cauquelin sobre o problema da subjetividade, o juízo estético e a idealidade kantianas. Finalmente, Cauquelin estudará Adorno e a negação da crítica a partir de poucos mas relevantes conceitos da teoria crítica do frankfurtiano. A segunda parte do livro é chamada de “as teorias de acompanhamento”. Em poucas páginas, a autora revela seu domínio, no capítulo primeiro, das teorias que ela considerou secundárias: as de Gadamer (e os hermeneutas de um modo geral), Freud, Heidegger e Wittgenstein. A capacidade de síntese da autora requer bons conhecimentos prévios e fôlego por parte do leitor. No segundo e último capítulo da parte dois, Cauquelin trata das “práticas teorizadas”. Riquíssimo: são investigados as teorias criadas por artistas em função de suas obras, o papel da crítica de arte e as relações nem sempre pacíficas entre estética e crítica de arte e a criação artística propriamente dita nas duas últimas centenas de anos. Uma jornada e tanto. Filósofos, estetas, críticos de arte, artistas, curiosos, intelectuais, interessados em arte, leitores de um modo geral: a obra de Anne Cauquelin é indispensável. Infelizmente, como já dito, muito breve. As recomendações bibliográficas finais se tornam uma obrigação. Fabiano Stein COVAL Faculdade de Filosofia – PUC-Campinas STEVENSON, Leslie; HABERMAN, David L. Dez teorias da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 342 p. Há tempos carecíamos de uma obra tal qual esta. De forma didática e envolvente, leitores de um 129 modo geral poderão ter um amplo espectro do que já se pensou sobre a natureza humana. Dada a vastidão e complexidade do assunto, evidentemente foi preciso fazer escolhas: Stevenson e Haberman fizeram-nas com sabedoria. Certamente, reside nas formações e atividades de ambos o cuidado em tratar o assunto de acordo com a religião, a filosofia e a ciência. Leslie Stevenson é lector de lógica e metafísica na University of St. Andrews, na Escócia, e já publicou As muitas faces da ciência e A metafísica da experiência experiência. Já David Haberman é professor de estudos religiosos na Indiana University e autor de Jornada através das doze florestas e Ação como um caminho para a salvação salvação. A primeira edição original do livro (1974) foi resultado de um curso de Introdução à Filosofia ministrado por Stevenson na University of St. Andrews a alunos das mais diferentes áreas (era exigência da Universidade que todos os seus alunos estudassem introdução à filosofia). O sucesso da obra, representado pela tradução para diversos idiomas, várias edições e pela adoção do livro em muitos cursos de diversos países, associado aos avanços da ciência, às novas teorias filosóficas e às exigências do próprio autor em aprimorar a sua obra, levou Stevenson a convidar Haberman para colaborar na redação dos capítulos referentes ao confucionismo e o hinduísmo e a acrescentar novos capítulos ou reescrever algumas partes com base em novas concepções científicas e filosóficas. O resultado é uma obra significativamente revista e ampliada A excelente introdução, parte primeira da obra, é uma relativamente longa discussão a respeito do que significa a expressão “natureza humana” e, evidentemente, quais as implicações de se adotar esta ou aquela concepção de natureza humana. Os autores não nos deixam esquecer que, efetivamente, a questão que está por base é a fundamental “que é o homem?” Ao longo da história, não se pode contar o número de crenças a respeito da natureza humana. Dos mitos, das grandes tradições religiosas, das ciências, das filosofias “crenças rivais” pululam e se personificam em modos de vida individuais, organizações Reflexão, Campinas, 30(88), p. 127-134, jul./dez., 2005 Resenhas 130 sócio-político-econômicas, movimentos artísticos e sociais, julgamentos de condutas, etc. Particular importância em nossas crenças e debates sobre a natureza humana têm o existencialismo, o marxismo e o cristianismo. O primeiro enquanto negação extrema de uma natureza humana e a afirmação radical da liberdade (é sempre bom lembrar que natureza humana e liberdade são tão difíceis de conciliar harmonicamente quanto o são a onisciência e onipotência de Deus e a mesma liberdade do homem!). Por outro lado, as ciências humanas de um modo geral e a filosofia possuem uma grande dívida com relação à tese marxiana de que, em última análise, há uma natureza humana e ela é compreendida histórica e economicamente. A visão cristã, mais poderosa, porque não influenciou apenas a filosofia mas faz parte de todo um conjunto de crenças e costumes, nem sempre conscientes, de toda civilização ocidental, igualmente difunde a idéia de que a natureza humana existe pois o homem, enquanto criatura, não poderia ser desprovido de uma essência que revela o próprio projeto divino para nós: bem viver e alcançar a salvação. É absolutamente inviável pensar, hoje, o tema da natureza humana sem levar em consideração tais doutrinas (para simplificar, entenda-se o existencialismo e o marxismo também como doutrinas). Mas não só. Aqui e ali encontramos ressonâncias, sinais mais ou menos discretos, defensores ardentes e representantes respeitáveis de tantas outras concepções sobre a natureza humana que não poderíamos nos restringir às três supramencionadas. Daí a obra ora resenhada. Obra que, antes de expor as várias teorias da natureza humana, ainda na introdução, faz importante e esclarecedora distinção entre as formas de declarar uma concepção acerca da natureza humana: como juízos de valor, como declarações analíticas, como declarações empíricas ou científicas ou como declarações metafísicas. Na parte dois da obra começam a aparecer as teorias da natureza humana, em particular as de três tradições religiosas: o confucionismo, o hinduismo e o cristianismo. No confucionismo, encontramos um belo Reflexão, Campinas, 30(88), p. 127-134, jul./dez., 2005 exemplo de doutrina religiosa sem metafísica. Os Analectos enfatizam a vida humana, o bem-estar humano e não os problemas da natureza íntima do mundo. É bem verdade que se fosse apenas isso, o confucionismo não seria uma religião: o é porque, em um determinado momento, precisou introduzir as noções de “decreto celeste” e “destino”. Há uma moralidade celeste que precisa ser realizada pelos homens na terra e para isso o céu é o autor de nossas virtudes. Nisto reside nossa natureza. O hinduismo, tratado na segunda seção da parte dois, mostra como é impossível qualquer espécie de generalização a respeito desta religião tendo-se em vista o fato de suas origens perderem-se no tempo, não haver um texto fundador central, além de possuir inúmeras (muitas desconhecidas) crenças, costumes e rituais, todos entendidos como expressão do hinduismo. Apesar disso, Haberman realiza um esforço hercúleo no sentido de esclarecer algumas noções centrais (ou mais famosas) do hinduismo e que relacionam-se com uma idéia de natureza humana, como brahman, da qual podemos concluir que, para o hinduismo, “em síntese”, a natureza humana possui algo de inexprimível, compreende uma conexão absoluta entre todas as formas de vida, todos os seres. A segunda parte conclui com uma exposição da doutrina da natureza humana segundo a visão bíblica ou, mais precisamente, judaico-cristã, com ênfase no cristianismo. Stevenson também alerta para os problemas de generalização. A bíblia é entendida tanto como texto sagrado (orientação para vida) quanto como produto histórico-social de um povo, sem contar os avanços dos conhecimentos na área de línguas antigas, o que revela que uma mesma palavra, uma mesma crença podem ter significados radicalmente diferentes neste ou naquele livro. Considere-se, ainda, a pluralidade de versões do cristianismo (catolicismo romano, catolicismo ortodoxo, protestantismo, etc.) Tudo isso só faz ver que, a rigor não se pode falar de uma teoria cristã da natureza humana... talvez sequer se possa falar de teoria. De todo modo, visto que o cristianismo conta com um livro base, é possível encontrar um fundamento metafísico da natureza Resenhas humana (que é a visão judaico-cristão de Deus) e por sua vez definir a natureza humana a partir das noções de criação, imago Dei, divisão corpo e alma, pecado (e purificação) e salvação. A impossibilidade confessa de construir uma teoria, no sentido estrito do termo, da natureza humana segundo as referidas tradições religiosas faz da parte dois do livro uma leitura meramente informativa. A despeito de algumas reflexões esclarecedoras e provocativas dos autores ao término de cada seção, em particular a dedicada ao cristianismo, fica a sensação, infelizmente, de que a parte dois é dispensável. Enfatizo a exceção feita ao cristianismo. Complexo, por tantas razões às vezes confuso, mas um dos pilares da cultura e da história ocidentais. A parte terceira pode ser considerada o eixo do livro. Intitulada “cinco pensadores filosóficos”, Stevenson aborda com precisão os pensamentos de Platão, Kant, Marx, Freud e Sartre. Segundo Platão, ensina o autor, somente uma compreensão da natureza humana pode resolver os problemas individuais sociais. Apresentando sucintamente o contexto e o panorama das idéias de Platão, Stevenson prepara o leitor para o célebre dualismo platônico e, especialmente, para o papel da razão, a autêntica natureza humana. O autor expõe ainda as implicações morais e políticas da teoria platônica da natureza humana. Após confessar (e não explicar) o seu salto por tantos importantes filósofos, de Aristóteles a David Hume, esta que é sem dúvida a maior deficiência do livro (deficiência que não faz sombra à grandeza da obra), Stevenson ocupa-se com o pensamento de Immanuel Kant. Diz do filósofo de Königsberg que “ele alimentou a esperança de relacionar a natureza humana numa única descrição global”, considerando e conciliando as alegações da moralidade e da religião bem como a faculdade cognoscitiva do ser humano. Stevenson não só explora como Kant procurou fazê-lo mas detecta as sutilezas desta conciliação em diversas obras do mestre alemão. Karl Marx é o pensador estudado na seção sete (ainda terceira parte). O autor retoma algumas 131 considerações mais gerais feitas sobre o marxismo na introdução e as aprofunda, lembrando-nos da relevância de desvincular Marx do fracasso que foi o comunismo no leste europeu e na ex-URSS. Temos nesta seção uma boa apresentação da teoria marxiana da história, base de sua teoria da natureza humana, sobre a qual afirma: “Afora a existência de fatores biológicos óbvios como a necessidade de comer e de se reproduzir, Marx acreditava que não existe uma natureza humana fixa, individual, que o que se aplica a pessoas de uma sociedade ou um período pode não se aplicar a essas pessoas em outro lugar ou em outra época” (p. 201) e que a verdadeira natureza do homem é a soma total das relações sociais. Dos mais instigantes capítulos da obra é o sobre Sigmund Freud. Responsável pela maior revolução acerca de nossa compreensão da natureza humana no século XX, é importante destacar que Freud passou cinqüenta anos desenvolvendo e modificando suas teorias, o que exige um estudo assaz cuidadoso para não cairmos em contradições ou superficialidades que a popularização da obra de Freud acabou por produzir. O autor, consciente disto, concentra-se em alguns poucos pontos fundamentais, como os de inconsciente, pulsões, superego, Eros e Thanatos, para descrever a teoria freudiana da natureza humana, marcada pelo materialismo e pelo determinismo. O quinto e último pensador estudado na terceira parte, seção nona, é Jean-Paul Sartre. Esclarece que para Sartre, e os existencialistas de um modo geral, as teorias sobre a natureza humana devem ceder lugar a uma preocupação com a vida individual, o significado da vida e a liberdade. São estes os pilares sobre os quais se edifica(m) o(s) existencialismo(s). Assim, a natureza humana consiste na negação ou ausência da natureza humana. O indivíduo precede a humanidade (como a existência precede a essência), o sentido da vida é construído por cada um a partir de suas próprias escolhas, pois o traço que efetivamente marca o homem é sua liberdade e ser livre pressupõe a ausência de qualquer determinação que inevitavelmente decorre da noção de natureza humana. Reflexão, Campinas, 30(88), p. 127-134, jul./dez., 2005 Resenhas 132 A quarta parte, composta pelas seções dez e onze, descreve dois exemplos de “teorização científica” sobre a natureza humana, a saber: a teoria de Skinner (e a questão do condicionamento) e a psicologia evolutiva, na figura do importante Konrad Lorenz. A conclusão, que aparece sob o número de seção doze, é uma sumária apresentação de nove tipos de psicologia visando a uma possível unificação, ao menos na esfera de nosso entendimento, da natureza humana. São nove respostas à pergunta “o que é a psicologia?” e assim o leitor se vê diante de quão titânica é a tarefa de pensar quem é o homem. Fabiano Stein COVAL Faculdade de Filosofia – PUC-Campinas ENKVIST, Inger. Pensadores españoles del siglo XX: una introducción. Rosario: Ovejero-Martín, 2005. 190 p. 21 x 15 cm. (Col. Las Cuatro Estaciones). ISBN 987-22115-0-7. Inger Enkvist é doutora em Letras pela Universidade de Gotemburgo, e atualmente leciona Língua Espanhola na Universidade de Lund (Suécia). Autora de vasta obra, é reconhecida pelas contribuições para o pensamento pedagógico na Europa, e agora nos brinda com uma introdução à filosofia espanhola contemporânea, que oportunamente é lançada no ano do cinquentenário de morte do filósofo José Ortega y Gasset. A obra tem o escopo de apresentar um panorama do pensamento de autores espanhóis do século XX, considerados pela autora como exponenciais, de forma sistemática, ou seja: situandoos em seus contextos históricos, assinalando suas influências, apresentando uma sinopse das principais obras e expondo seus principais conceitos. Não obstante, a originalidade da obra está na exposição de argumentos dos principais críticos de cada autor Reflexão, Campinas, 30(88), p. 127-134, jul./dez., 2005 estudado. Não é, portanto, uma defesa sectária de modelos de reflexão filosófica, mas um exame estimativo apreciado à luz de avaliações competentes, realizado de forma didática, sobretudo aos não especialistas. A obra é dividida em sete capítulos e traz uma bibliografia bastante atualizada dos autores trabalhados na obra, bem como dos seus comentadores em língua espanhola. O primeiro capítulo é dedicado a Miguel de Unamuno (1864-1936), figura emblemática da Geração de 98, considerado o “Sócrates espanhol”. Detentor de grande erudição, Unamuno além de professor universitário em Salamanca, exerceu atividades de oposição ao monarquismo, construindo uma imagem pública do intelectual à altura de seu tempo. Foi considerado um pensador “midiático”, e percorreu vários gêneros, como o conto, a novela, a filosofia e o periódico, inaugurando uma forma moderna de ser intelectual. Também figura como dramaturgo, poeta e crítico literário, além de catedrático, pesquisador e político. De todos os temas abordados, é a cultura espanhola que mais lhe ocupa, em particular a necessidade de proclamar uma Espanha enraizada nas tradições. Seu nome ainda representa um marco na crítica à teologia cristã, como bem mostra o fato de ter duas de suas principais obras apontadas como heréticas pela igreja católica: “Del sentimiento trágico de la vida” e “La agonía del cristianismo”. Essa primeira, a mais importante de sua biografia, é marcada pela influência da filosofia de Kirkegaard, o projeta como pensador além da Espanha, e que influencia a geração do início do século XX na península ibérica. O segundo capítulo aborda a vida e o pensamento de José Ortega y Gasset (1883-1955), considerado pela autora o intelectual mais importante da Espanha. Madrilenho, estudou filosofia na Universidade Central de Madrid (atual Complutense), instituição em que se tornou catedrático de Metafísica em 1910, e posteriormente em Marburgo com os neokantistas Cohen e Natorp. Ortega é acusado pelos críticos de irracionalista, em particular após a publicação de sua obra “El tema de nuestro tiempo”, de 1923, o que justificou em uma obra posterior, Resenhas intitulada “Ni vitalismo, ni racionalismo”. Instituiu um ambiente cultural na Espanha de forma mais concreta que Unamuno, através de conferências fora da universidade, da participação política, e sobretudo pelas atividades no periodismo. Foi o único pensador hispânico capaz de constituir uma referência de pensamento, a chamada Escola de Madri, que tem como denominador comum o raciovitalismo orteguiano, e norteia a filosofia de discípulos como: Julián Marías, Xavier Zubiri, José Gaos, Recaséns Siches, María Zambrano, Manuel Granell, García Morente e Paulino Garagorri. Ao comparar Unamuno e Ortega, a autora destaca que ambos são responsáveis pela “desprovincialização” da Espanha ao introduzir autores estrageiros; ambos inserem-se no panorama cultural utilizando-se do ensaio e do periódico; versam sobre assuntos relacionados a cultura espanhola; bem como, ambos manifestam-se anti-monarquistas e ajudam a construir a República. Ainda neste capítulo, a autora apresenta os argumentos dos principais críticos do pensamento de Ortega, tais como: Grondona, Dobson, Gray, Orringer, Morán e Osés Gorraiz. A única pensadora escolhida pela autora é María Zambrano, apresentada no terceiro capítulo. María Zambrano (1904-1991) de Vélez Málaga, tem sua filosofia mormente inspirada no raciovitalismo de Ortega y Gasset, seu professor juntamente com Zubiri na Universidade Central de Madrid, ainda que o mescle com o intuicionismo bergsoniano e o vitalismo de Unamuno. Seu projeto intelectual propõe-se a superar as crises geradas pelo racionalismo cartesiano através de uma teoria do conhecimento reformulada no sentido de buscar um “saber inaugural” e criador para apreensão da realidade, não pelas categorias do entendimento racional-discursivo, mas através do próprio argumento da “vida poética”. Fundamentada sobre este princípio teórico é que Zambrano dirige sua crítica à cultura do ocidente e assinala para a desintelectualização do modelo de razão consagrado na modernidade. Neste sentido destacam-se as influências da Geração de 98, em particular as de Unamuno e Ganivet, bem como a do primeiro Ortega. 133 Eugenio Trías é o autor apresentado no quarto capítulo. Nascido em 1942, em Barcelona, representa uma geração que começou a produzir seu pensamento na última fase do governo franquista. Formado em arquitetura, foi catedrático de Estética na Escola de Arquitetura de Barcelona e atualmente leciona na Universidade Pompeu Fabra. Durante a juventude, nos finais dos anos 60, integrou movimentos de esquerda, a chamada “gauche divine”. Seu pensamento é influenciado pelo marxismo, estruturalismo e pela psicanálise. Das suas obras, destacam-se: “El árbol de la vida” (2003); “Teoría de las ideologías” (1970); “La filosofía y su sombra” (1969); “La dispersión” (1971); “Meditación sobre el poder” (1977); “Ética y condición humana” (2000); “Los limites del mundo” (1985). Sua mais original contribuição está na noção de Filosofia do Limite, na qual postula a idéia de uma realidade metafísica como uma zona intermediária entre os deuses e os animais, em que o humano vive, e pode intuir outro mundo através dos sonhos e da criação. O autor contemplado no quinto capítulo é Fernando Savater, o mais divulgado fora da Espanha. Nascido em 1947, com mais de cinquenta livros publicados, é professor de Ética na Universidade Complutense de Madri, e se auto-intitula filósofo com “f” minúsculo. Volta-se para as questões da filosofia prática: Ética, Estética e Política, contribuindo também para a área da Educação, ao propo-la com a finalidade última de converter o homem em homem. São conhecidos seus argumentos políticos contra o grupo separatista E.T.A., bem como sua concepção Ética como sendo a arte do viver. É sobre este último tema que se tornou reconhecido para o grande público, com obras como: “Ética para amador” (1991), “Ética como amor próprio” (1991). Crítico do modelo pedagógico progressista, e dos pós modernistas de um modo geral, defende uma proposta humanista, formulado particularmente na obra “Humanismo impenitente” (1990). Em estética faz críticas ao cinema norte americano, escreve sobre os clássicos franceses, bem como demonstra interesse pela literatura de língua castelhana. Segundo Enkvist, Savater pode ser classificado como crítico da cultura Reflexão, Campinas, 30(88), p. 127-134, jul./dez., 2005 Resenhas 134 Ocidental, tal como o foi Ortega em seu tempo, assim como se assemelham quanto ao estilo de escrita objetiva avizinhada com a literatura, e com demasiado espírito de compromisso social. No penúltimo capítulo, que objetiva ser o ponto fulcral da obra, a autora retoma temas transversais nos autores estudados, fazendo uma comparação entre os seguintes assuntos: estética, ética, religião, política, regionalismo espanhol, Europa, socialismo, feminismo, terceiromundismo e ecologismo. Reapresenta conclusões já demonstradas no decorrer do trabalho, sem tornar a leitura repetitiva, mas explicitando de forma sintética e com brilhantismo os denominadores comuns entre os diferentes modelos. Aborda uma questão chave na problemática de classificação dos autores estudados: são eles filósofos? Sua resposta não é clara, demonstrando apenas, uma certa propensão a considerar destacada a figura de Ortega y Gasset. No capítulo final são mencionados autores menos conhecidos, como também algumas condições históricas para a produção do pensamento na Espanha. Tendo o franquismo como pano de fundo para atividade intelectual do pensamento hispânico no século XX, a autora menciona as atividades daqueles que foram exilados, na América Latina, América Central, México e Estados Unidos, bem como assinala alguns dos intelectuais de destaque cuja produção está em desenvolvimento: Amando de Miguel, Félix Reflexão, Campinas, 30(88), p. 127-134, jul./dez., 2005 Ortega, Manuel castells, Eduardo Subirats, Sánchez Ferlosio, Gabás Anadón, e em particular José Antonio Marina. A obra tem o mérito de ser uma introdução à filosofia hispânica contemporânea, bem articulada com o panorama histórico em que se desenvolve. Apresenta as vantagens dos manuais em oferecer ao leitor um roteiro de estudos sobre cada um dos pensadores, complementando com as argumentações dos principais críticos e com uma análise comparativa entre as correntes teóricas. Incorre, porém, em certo comprometimento reducionista a seleção dos autores estudados. A autora se esforça em justificar como representativas as escolhas pelos pensadores expostos; ainda assim, notamos certa preferência por aqueles que, de alguma forma, discorreram sobre estética. O que em certo sentido demonstra que suas inclinações estão relacionadas com sua própria formação, e deste modo não se pode contemplar o pensamento filosófico de modo mais estrito, deixando ausentes importantes tendências, como: a filosofia analítica, a neo-escolástica, o espiritualismo personalista, e os vários ramos do ontologismo. Arlindo F. GONÇALVES JR. Faculdade de Filosofia – PUC-Campinas