contextos e inferências: gravidez de sentidos

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE ESTUDOS SUPERIORES DE IMPERATRIZ
CURSO DE LETRAS
SAULO LOPES DE SOUSA
LÍNGUA E TRANSDISCIPLINARIDADE
Resumos
Imperatriz
2011
SAULO LOPES DE SOUSA
LÍNGUA E TRANSDISCIPLINARIDADE
Resumos
Resumos apresentados à Universidade Estadual do Maranhão/ Centro de
Estudos
Superiores
de
Imperatriz,
na
disciplina
Linguística
e
Transdisciplinaridade, ministrada pela Profª Ms. Orleane Santana, para
obtenção da 3ª nota.
Imperatriz
2011
APRESENTAÇÃO
Língua e Transdisciplinaridade
A obra Língua e Transdisciplinaridade, de Claudio Cezar Henrique e Maria Teresa Gonçalves
Pereira apresentam a Linguística enquanto ciência que contribui para o desenvolvimento das demais
disciplinas. Por isso, o estudo da linguagem é tomado numa perspectiva transdisciplinar, cujas conexões e
sentidos perpassam o âmbito teórico para direcionar os rumos do ensino e da pesquisa em Língua
Portuguesa. Os artigos e reflexões apresentados no livro abordam a ideia-chave de que, dominando as
variantes e diversidades do uso da língua, o homem toma posse da mais íntima consciência de sua
capacidade de pensar, comunicar-se, construir sua história pela teia do tempo, alicerçar sua cultura e
perpetuar a todo o espaço terrestre seu estigma civilizatório.
Aquilo que já não apresenta funcionalidade de ser substituído. E mudanças no plano educacional
referem-se a novas atividades, práticas sociais e perspectivas culturais que reflitam novas e diversificadas
visões de mundo. Sendo assim, a transdisciplinaridade é uma nova forma de se estabelecer contato entre as
múltiplas faces do conhecimento, até então fragmentado e fechado em cada área específica de atuação
cognitiva. No processo de aprendizagem, as partes devem estar integradas para constituírem o todo, portanto,
devem interrelacionarem-se e transpassarem-se num eixo central: a educação.
LÍNGUA PORTUGUESA
Impressões pessoais
A autora inicia o texto tecendo reflexões acerca de sua experiência no exílio, fuga da ditadura que
assolava o Brasil, e da vontade que tivera de (des)aprender a língua materna para perder-se na nova língua
aprendida, para não se sentir estranha, estrangeira, forasteira. E, ainda, comenta a episódio de seu segundo
exílio, quando levara o filho consigo. A fala trilinguista do filho, saudando-a ao chegar do trabalho, fora
motivo de dor e resistência por sua parte: “Mummy, vem ver, look and see. Olha só a belle galette que eu fiz
com minha pâte à modeler hoje na school...”. Para despistar as influências idiomáticas, inventava jogos e
brincadeiras para preservar a língua materna de seu filho. Nem mesmo Clarice Lispector escapou das garras
do estrangeiro. A escritora contratara meninos brasileiros para “ensinarem” português aos seus filhos, em
brincadeiras regradas a palavrões e sacanagens.
A língua é um todo organizado (léxico, sintaxe, morfologia), e mais ainda, ela amplia essas esferas
em categorias que se entrelaçam na memória histórica preservada na etimologia, nos usos variados da língua,
na tradição oral e na fixação literária de todo um universo sócio-cultural. Por outro lado, no início dos
tempos, o que imperava era o verbo, não como classe gramatical, mas tomado enquanto sinônimo de palavra.
A palavra era o sinal do divino que se ecoava na humanidade, que se fez carne e habitou entre nós.
No Evangelho de João, assim se escreve: No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o
Verbo era Deus. Em Gênesis, também se faz referência à palavra no momento da criação: E Deus disse
'Haja a luz!' E a luz se fez. E assim, Deus passa a criar o universo com os seres que o povoam por meio da
palavra, numa espécie de con-sagração pela linguagem. Mais tarde, Deus criaria o homem a sua imagem e
semelhança, e dele faria a mulher (mito adâmico). O homem passa, então, a nomear os seres existentes na
Terra, bem como a dar à mulher um nome: Eva. A linguagem, na perspectiva bíblica, precede à própria
constituição da humanidade. Primeiro, o divino se alia ao humano pela língua, no ato de nomear e dar
sentido às coisas, depois homem e mulher aliam-se na procriação e transmissão de sua espécie. Mas a
prepotência do homem em chegar perto de Deus levou à construção da Torre de Babel. E Deus, então, decide
confundir-lhe a linguagem, pois toda a terra tinha uma só língua e servia-se das mesmas palavras. Por outro
lado, o episódio da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, em línguas de fogo, vem resgatar o caráter
divinatório e inquestionável da palavra. Se Babel dispersara a incompreensão entre os homens, o Espírito
Santo resgata o entendimento pela linguagem. Já no Novo Testamento, Cristo assim ordena a seus
discípulos: Ide ao mundo inteiro anunciar a toda criatura a boa nova. Levar a palavra de Cristo aos outros
povos seria a forma de semear a benção do Cristo ressuscitado e congregar a humanidade num mesmo
sentimento de união.
A questão divina da palavra é relevante para se determinar que a espécie humana é pré-determinada
à linguagem. De forma mais precisa, ela é biologicamente programada à língua. Através de estudos
científicos do projeto Genoma Humano, cientistas da universidade de Oxford descobriram, em 2001, o gene
responsável pela determinação da linguagem, no homem. O FOXP2, assim chamado, era uma gene
associado a um caractere restritamente humano, a linguagem oral. Essa descoberta veio confirmar as
hipóteses pré-anunciadas pelo linguista Noam Chomsky e pelo neurologista Eric Lenneberg. O que se
evidencia nessa questão do gene é a marca do humano conferida à uma espécie animal pelo uso da língua.
Uma segunda questão referente à linguagem diz respeito à língua portuguesa. O brasileiro fala
português, mas o português do Brasil, com sua dinâmica, peculiaridade e expressividade própria do falar do
brasileiro. Porém, o molde da correção gramatical parece subordiná-lo em sua autoridade. A gramática que
rege as construções frasais de Portugal é a mesma que também dita o bom português do Brasil. Não se deva
esquecer, todavia, que aquilo chamado de norma culta, o conjunto sistemático de regras gramaticais que
sustentam uma língua, é indispensável para a comunicação. Se não houver tal obediência às normas da
gramática, a língua se tornará um edifício em ruínas, prestes a desmoronar. Mais uma vez, é preciso achar o
equilíbrio entre escrita e uso da linguagem, neste caso, a língua falada, mais despojada, e a norma da língua
escrita. Em conclusão, é preciso buscar a linguagem brasileira, oralizante quando necessária e, ao mesmo
tempo, correta e exata, nesse inesgotável manancial léxico e sintático deixado por escritores portugueses e
brasileiros. A dinâmica gramatical do português brasileiro é o fascínio da autora, ao examinar determinadas
expressões frequentes na fala cotidiana.
Forma Correta – Gramática Normativa
Eu a vi ontem na rua, mas ela não me cumprimentou
Eu lhe amo.
Iremos ao Maracanã onde torceremos pelo nosso time
Comemoraremos.
Não assisto a filme, não comento livro de que gosto, não acho a que lei deva ser obedecida.
Para eu fazer.
Posso ter pegado alguma coisa.
Variantes do Português Brasileiro
Eu vi ela...
Eu te vi, mas você não me cumprimentou.
Ontem passei por você, que não me deu a mínima.
Vi Maria, mas ela nem me ligou.
Vamos ao Maracanã torcer pelo nosso time.
Vamos comemorar.
Não assisto filme, não comento livro que gosto, não acho que lei deva ser obedecida.
Pra mim fazer.
Jamais terei pego alguma coisa.
Pela relação entre exilado e língua materna, a autora conclui que não lhe é a certeza da língua
dominada, domesticada e manipulada que permeia, mas a confiança de que só existe uma única língua que
lhe fala quando ela a fala, escapando assim de toda e qualquer manipulação.
A LÍNGUA PORTUGUESA NO NOVO MILÊNIO
A pesquisa como fonte de conhecimento para o ensino
UM EXEMPLO DE PESQUISA COM A SEGMENTAÇÃO DA FRASE
Uma habilidade essencial no entendimento da língua é a competência de segmentação aquilo que é
ouvido ou lido. Em contato com o texto escrito ou falado, tem-se que dividir os períodos em orações, depois
em sintagmas, em palavras, em silabas e, no final, em fonemas ou letras. É somente nessa última divisão
apresenta um termo específico para a representação sonora – o fonema, e outro para a representação gráfica –
a letra. As silabas, palavras e orações, entretanto, participam simultaneamente da fala e da escrita.
A grande dificuldade enfrentada pela escola é ensinar seus alunos a segmentarem essas partículas
maiores e outras menores, sobretudo os maiores, como identificar orações em períodos compostos.
Na frase José virá se amar Maria, percebe-se claramente a presença de duas orações: a principal,
José virá, e a subordinada adverbial condicional, se amar Maria. Disposta dessa forma, qualquer usuário da
língua consegue realizar a segmentação do período. O problema surge quando se altera a posição das
orações, como em Se amar Maria José virá. Assim sem vírgula, a passagem torna-se ambígua. O verbo
amar, nesse caso, pode ser intransitivo (José ama), transitivo direto (José ama Maria) ou mesmo reflexivo
(José se ama). Além disso, não é necessário, no português, explicitar o sujeito gramatical (José virá pode ser
escrito apenas virá). Dessa forma, têm-se três segmentações possíveis:
1.
Se amar / Maria José virá.
2.
Se amar Maria / José virá.
3.
Se amar Maria José / virá.
Percebe-se que, a cada segmentação feita, um sentido diferente surge. Veja-se, em 1, que quem ama
é Maria José; em 2, José ama Maria e, em 3, alguém ama Maria José. Em vista dos exemplos, fica clara a
importância da segmentação e da análise sintática no processo de compreensão da língua. E a escola tem um
papel fundamental no desenvolvimento da capacidade de análise sintática do aluno.
A CONEXÃO DAS PALAVRAS NA FRASE
Em face à segmentação da frase, existe o processo de conexão. O ato de conectar as palavras na frase
acontece por meio de estruturas subjacentes, ressaltando a relevância da sintaxe no entendimento do texto.
1.
Pintou a parede de madeira.
2.
Pintou a parede de vermelho.
3.
O guarda viu a menina de binóculos.
4.
O guarda viu a menina de vestido vermelho.
Em 1, a palavra madeira se conecta à palavra parede, constituindo um sintagma nominal, o objeto
direto do verbo pintou. Já em 2, a palavra vermelho liga-se ao verbo pintou e não à palavra parede, posto que
se trata da forma que se pintou a parede. No exemplo 3, tem-se um caso de ambiguidade, uma vez que a
palavra binóculos pode se referir tanto à palavra menina quanto à palavra guarda, produzindo dois sentidos
diferentes (ou um ou outro usava binóculos). Em 4, a ambiguidade é menos visível, por causa do senso
comum: não se vê, cotidianamente, um guarda trajar vestido vermelho. Porém, a sintaxe evidencia a presença
dessa ambiguidade.
Se a sintaxe identifica as ambiguidades da língua, ela também as elucida, como no exemplo Amo a
ama, mas a ama ama o amo, em que se percebe, claramente, as funções de substantivo e verbos das palavras
ama e amo. Na frase As casas são compradas porque elas oferecem conforto, o pronome elas conecta
diretamente com um termo anteriormente mencionado. O mais provável é que esse antecedente seja a
palavra casas, porque se identifica com a condição gramatical do pronome (substantivo feminino plural).
Mas, se a frase fosse As casas são compradas pelas pessoas porque elas oferecem conforto, ter-se-ia uma
leve complicação de sentido. Agora, as palavras casas e pessoas podem ser o antecedente do pronome elas.
Todavia, fazendo-se uma restrição semântica, percebe-se que a mais cotada a antecedente é casas, pois a
condição de compra das casas é o conforto que estas oferecem e não o conforto oferecido pelas as pessoas
que as compram. Mais claramente, é possível perceber tal relação no período As casas são compradas pelas
pessoas porque elas querem conforto. A mudança de oferecem por querem, nesse caso, sinaliza o
antecedente de elas, que agora é pessoas. Ora, o ato que querer só restritamente ligado a seres animados, ou
seja, às pessoas. O pensamento errôneo de que casas querem conforto justifica, então, a legitimidade da
palavra pessoas ao cargo de antecedente do pronome elas.
Pelos exemplos expostos, conclui-se que não há entendimento sem análise sintático, abordando o
processo de segmentação e de conexão das palavras na frase. É óbvio que o conhecimento de mundo é
indispensável à compreensão do que se lê ou escreve, contudo o processo de análise sintática deve ser
considerado no entendimento do texto.
TECENDO AS MALHAS SINTÁTICAS DA LEITURA
O artigo de Maria Cristina Lírio foi resultado de discussões de uma mesa redonda. A autora confessa
que ao ter conhecimento do tema da mesa, logo lhe veio à mente a imagem das roupas usadas pelos
cavaleiros medievais em batalhas, tecidas com fios de metal. A analogia feita resultou da ideia de que a
sintaxe, juntamente com a fonologia e a morfologia tecem o chamado núcleo duro da gramática. A relação
malha/metal, na visão da autora, também poderia evidenciar a dureza de um ensino de sintaxe, que privilegia
a classificação de construções frasais desconexas, ou ainda um ensino de leitura que encerra o significado no
próprio texto, tal qual um objeto fechado em si mesmo. Por outro lado, a palavra malha, no seu sentido
aureliano, diz respeito à dimensão dos poros de uma peneira ou tecido. Sendo assim, um poema de Manoel
de Barros, na obra Exercícios de Ser Criança, foi ressaltado pela autora.
O menino aprendeu a usar as palavras
viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens
foi capaz de interromper o voo de um pássaro.
(…)
Em seu poema, Manoel de Barros nos revela da importância da sintaxe como conhecimento
internalizado, através da figura de um menino-poeta, que faz peraltagens com as palavras. Dessa forma, a
palavra, para o usuário nativo de uma língua, não se manifesta como um elemento dicionarístico, pelo fato de
que não são palavras o que o menino fala ou escuta, e sim verdades e mentiras, coisas boas ou ruins. Como
bem disse Bakhtin, a língua é intransmissível, que atravessa o tempo num processo contínuo de evolução.
Voltando ao poema de Manoel, vê-se a presença do elemento água, bastante usado para esclarecer o
processo de criação, dados seu curso constante e sua fluidez. Assim, a sintaxe se aproxima da leitura, cujos
sistemas são engrenagens que canalizam as correntezas da linguagem. O texto (textum, tecido), associado ao
caráter de fluidez da água, ativa outro pensamento, agora filosófico: Heráclito, dizia que o homem pode
banhar-se infinitas vezes num mesmo rio, mas nunca banhará nas mesmas águas, porque ele não seria mais o
mesmo, nem o rio no qual banhou-se seria o mesmo. Do mesmo modo, as leituras e releituras, enquanto
mecanismos de descoberta, estão sempre modificando o leitor e, ao mesmo tempo, modificam-se
constantemente.
Em outro poema, agora do autor Bartolomeu Campos Queirós, evidencia-se o enfoque dado ao
encantamento que a palavra proporciona:
Toda palavra é composta.
Se ainda por dizer ou plenamente dita,
toda palavra é contida.
(…)
Toda palavra é composta:
por acordar no já vivido, o mais e mais despercebido.
Nesse poema, o autor revela, por meio da metáfora do despertar no já vivido, o mais e mais
despercebido, a possibilidade do fascínio da palavra se estender ao além-mundo. A língua é capaz de
ultrapassar as fronteiras do espaço-tempo, e o texto, como uma colcha de múltiplos retalhos, vai se tecendo
ao infinito em elos de palavras. Acerca da leitura, existe o encontro de dois sujeitos. O texto, não sendo
objeto, também comporta uma segunda consciência: aquela de quem toma conhecimento dele. Por isso, o
significado não é só daquele que escreve. Quem lê também produz sentido. Os sentidos dos textos não são
exclusividades nem dos textos, muito menos dos leitores, mas de cadeias interpretativas, das quais textos e
leitores fazem parte.
Um último exemplo bastante significativo é o episódio do professor Stanley Fish. Ao ministrar uma
aula no curso literário, sobre poesia religiosa, escrevera no quadro a bibliografia a ser utilizada pela turma.
Jacobs – Rosenbaum
Levin
Thorne
Hayes
Ohman (?)
Antes de iniciar a aula, Fish dissera à turma que aquilo posto no quadro se tratava de um poema
religioso e solicitou que os alunos fizessem a interpretação do mesmo. O primeiro aluno observou que a
disposição do poema parecia formar uma cruz ou altar. Seguindo esse pontapé inicial, os demais alunos
começaram a decifrar o poema, atentando para o conteúdo. No primeiro verso, Jacobs foi lido como sendo
uma alusão à escada de Jacó – símbolo da ascensão dos cristãos ao céu. O meio para conseguir tal intento
não seria uma escada, e sim uma planta, uma roseira ou rosenbaum, referindo-se à Virgem Maria,
caracterizada com frequência por uma rosa sem espinhos, este símbolo da Imaculada Conceição. Diante
disso, a turma percebeu que o poema revelara um mistério: como poderia o homem ascender aos céus através
de uma roseira? A conclusão que se chegou fora a de que a subida seria possível por intermédio do fruto da
roseira, fruto do ventre de Maria, Jesus. Essa visão foi confirmada pela palavra thorne, que quer dizer
espinho, ou seja, a coroa de espinhos do Cristo, símbolo do sofrimento do Jesus e do alto preço que pagou
pela nossa salvação. A palavra Levin foi lida como símbolo da tribo de Levi, cuja função sacerdotal fora
completada pelo Cristo. O último termo do poema ganhou três visões de leitura: seria omen, em inglês
presságio, posto que a maior parte do poema é uma espécie de prenúncio ou profecia; seria, ainda, Oh Man
(Ah, homem), sendo o poema um cruzamento da história humana com a insígnia do divino; e, por fim,
poderia ser, simplesmente, amém, o encerramento perfeito a um poema que exalta o grande amor de Deus
para com os homens, pecadores. Além dessa leitura, um dos alunos contou o número de letras do poema e
descobriu que as mais frequentes eram S, O, N (son, filho em inglês).
A partir dessa vivência, Fish percebeu que existem “olhos para ler poemas”, isto é, as interpretações
são múltiplas não porque o objeto literário se apresente como polissêmico, mas porque o leitor se vale de
diversas estratégias interpretativas que constroem e (des)constroem o texto. Nessa perspectiva, cabe
questionar qual seriam os óculos que a escola oferece aos seus alunos para lerem textos literários e nãoliterários. Sendo fundo-de-garrafa ou óculos escuro, é preciso que os professores tornem seus alunos
verdadeiros cavaleiros da Idade Média, que desbravam as palavras, e tecem, com os fios metálicos da leitura,
histórias e reflexões que atinjam a plenitude da língua.
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Entre a tradição e a enunciação
A Linguística aderiu-se ao ensino universitário brasileiro e integrou-se aos estudos da linguagem.
Sendo pois, grande parte dos professores de língua portuguesa tivera, pelo menos, um contato mínimo com
esse ramo científico. Por outro lado, se se fossem observar as mudanças no ensino de Língua Portuguesa,
ver-se-ia que quase nada de concreto ocorreu. Pode-se dizer que a maior mudança tenha sido a incorporação
de novos termos da Linguística e da Teoria da Comunicação à grade curricular, principalmente do Ensino
Médio, tais como signo, significante, significado, emissor, receptor, funções da linguagem, dentre outros.
Ocorre que, ao formar-se, o profissional de Letras ingressa no mercado de trabalho já ciente da
estrutura de ensino existente, aquela incrustada no tradicionalismo do ensino da língua, bem como do
conservadorismo de práticas fincadas nos preceitos da gramática. Dessa forma, o conhecimento teórico-
linguístico recebido pelo professor na universidade não contribuirá fortemente em sua prática docente,
porque se sentirá intimidade, ou mesmo incapacitado de defrontar-se, sozinho, com uma tradição secular de
ensino de língua, além de levar nas costas o peso das pressões sociais de pais, diretores, exames vestibulares
etc.
Entre as ideologias e pensamentos científicos que circundam o espaço acadêmico, e dada sua
transitoriedade, a escola, obviamente, tenderá a escolher aquilo que já está consagrado pela tradição. No caso
do ensino de língua, o consagrado é a gramática normativa, que retoma a Antiguidade clássica.
Para mudar essa tradição de ensino da língua, muitos estudiosos linguistas de debruçaram em
paradigmas teóricos que rompessem com essa prática. Muitas foram as propostas: desde a abolição total do
ensino de gramática até a adesão ao estudo da linguagem. Outros, por sua vez, questionavam os rigores dos
conceitos gramaticais normativos e a forma que a gramática era trabalhada. Os trabalhos de autores, como
Mário Perini, Maria Helena Moura Neves, Luiz Carlos Travaglia, Carlos Franchi, Esmeralda V. Negrão e
Ana L. Müller, dentre outros, constituem iniciativas de se renovação do ensino de língua portuguesa,
transformando a visão que se tem do objeto de estudo, a língua. A estratégia adotada por grande parte das
escolas e que foi bem aceita pela maioria dos professores de Língua Portuguesa foi a de um ensino
contextualizado da gramática, que se passou a chamar gramática do texto.
A GRAMÁTICA NO TEXTO
Os PCN's de Língua Portuguesa vieram endossar o preceito já apresentado: o de um ensino
contextualidade da gramática, pautado no texto. Ainda que os PCN's considerem o texto um objeto essencial
ao ensino, enquanto unidade de sentido, o que se vê nas escolas é o uso do texto como mero pretexto para se
efetivar o ensino tradicionalista da gramática da frase. Se antes, as frases descontextualizadas serviam de
suporte para atividades e análises gramaticais, agora, o texto “se presta” a oferecer fragmentos para uma
abordagem linguística que não ultrapassa o limite do enunciado. Com isso, o texto, fonte de significado e
informação, perde seu sentido.
Ao se abdicar o texto, deixa-se de lado a chance de se fazer um trabalho reflexivo acerca da
gramática mesclada à leitura, verificando as dimensões pelas quais a língua é utilizada (fonética,
morfossintática, semântica, estilística). Mais ainda, esse trabalho com a língua aproximaria os estudos da
linguagem de textos que fazem parte do cotidiano do aluno, capacitando-o em suas práticas discursivas. E
um aspecto que ampliaria o desenvolvimento desse trabalho é inserir uma dimensão enunciativa.
A PERSPECTIVA ENUNCIATIVA
Nos estudos da Linguística, a tradicional dualidade língua/fala sempre esteve presente. Sendo
transitória e individual, a fala foi deixada em segundo plano por Saussure, para se ater ao estudo da língua,
tomada como um conjunto organizado de signos e normas. A análise dos enunciados servia, basicamente,
como formas de ilustração dos mecanismos existentes na língua (função, construção de sentido).
Por outro lado, os estudos recentes acerca da linguagem indicam que a construção de sentido dos
enunciados não resulta somente da significação isolada de seus elementos. Os constituintes extraverbais da
situação de produção, isto é, da enunciação, também participam de forma decisiva na construção de sentido
dos enunciados. Então, pode-se afirmar que cada enunciado produzido é uma realização concreta, única e
histórica. É preciso considerar os elementos da situação enunciativa.
Considerando os aspectos que participam da enunciação, da situação concreta de produção do
enunciado, percebe-se a impropriedade do conceito de erro gramatical, e a necessária abordagem do
enunciado considerando o conceito de adequação. Sendo os estudos linguísticos baseados em textos um
avanço considerável em relação à gramática normativa, a abordagem enunciativa seria um estágio à frente,
posto que, além de verificar as opções linguísticas responsáveis pela construção de sentido, verifica ainda os
componentes extratextuais, os elementos situacionais de produção que interagem com os elementos
intratextuais, constituindo o todo significado do texto.
Nesse momento transitório no ensino de Língua Portuguesa, os PCN's contribuíram satisfatoriamente
para a renovação desse quadro pedagógico, ao proporem a ênfase enunciativa do ensino de língua. As teorias
linguísticas e a análise do discurso podem oferecer contribuições significativas ao desenvolvimento de um
ensino renovado de língua, na medida em que se conceda espaço e disposição para ambas as partes
(universidade e escola), a fim de se obter transformações concretas.
SAMBA, PALAVRA, DICIONÁRIO
Nei Lopes, nesse artigo, comenta que as palavras vivem. E, ao terem vida, elas, por vezes, gritam,
na súplica por livramento de certos significados que as incomodam. Alega o autor que ouvira isso das
palavras roqueiro, fanqueiro, axé, galera e artista. Ao consultar o dicionário, e comovido com os gritos das
palavras, observou os sentidos das mesmas. Após o conhecer o significado dos termos, resolveu escrever
uma letra de um samba, intitulada DICIONÁRIO.
(…)
Pois é,
É preciso cuidado com o que a gente fala.
(…)
Ao dizer que é preciso cuidado com o que a gente fala, o autor toma como base suas vivências como
estudiosos dos preceitos africanos. Além disso, Nei elenca alguns princípios acerca do poder da palavra.
1.
A palavra falada tem aspecto sagrado, vinculado à sua gênese divina e às forças que nela se encerram;
2.
O conhecimento, associado à atitude humana e comunitária, não é um corpus abstrato, isolado da vida, mas
uma perspectiva singular do mundo e uma presença nele, tomado como um todo onde as coisas se congregam;
3.
A perpetuação oral do conhecimento é o mecanismo de poderio das palavras, inativo num texto escrito.
4.
Assim como a palavra divina de Deus vivificou as forças cósmicas em inércia, a palavra humana anima,
movimenta e vivifica as forças inertes das coisas;
5.
A palavra relaciona-se tanto com a manutenção quanto com a ruptura da harmonia, no ser humano e no mundo
que o rodeia;
6.
Como agente místico e grande perpetuador de poder, a palavra não deve ser usada de forma leviana;
7.
A palavra é sopro de vida e anima o que fala. Cria a quilo que nomeia. O papel criador e destrutivo da palavra
é uma força fundamental que emana do próprio Ser Supremo. O que ele diz é.
A insígnia da palavra é o que singulariza o ser humano dos demais seres. E a linguagem não é mero
instrumento de comunicação e expressão. Ela é ação. Dessa forma, um objeto não significa o que representa
e sim o que ele sugere, o que ele cria.
CONTEXTOS E INFERÊNCIAS: GRAVIDEZ DE SENTIDOS
Os signos entrelaçados constituem um mecanismo de mesclagem cognitiva. Os discursos misturados
processam e recuperam conhecimentos de diversas propriedades e, ao retransmiti-los na linguagem, surgem
sentidos próprios. Ainda que carreguem vestígios dos significados primitivos, os significados do processo de
mesclagem resultam de inferências acerca da opinião dos sujeitos locutores sobre as informações dos
enunciados que produzem. Vejam-se, a seguir, distintas vozes mescladas ao discurso do jornalista.
A manchete de jornal retratada processa, pelo menos nas pessoas mais velhas e politizadas,
significâncias de domínio, imperialismo, exploração dos países ricos sobre os países pobres. Sendo assim, o
sinal linguístico “Tio Sam” revela ideologias, ou seja, percepções de mundo.
Essa mesma reportagem também é uma paráfrase, entendida como um tipo de mesclagem conceitual,
tendo em vista a sua preocupação em valer-se de diversas vozes, enquanto pontos de vistas de seus
emissores. Somada a isso, está a presença das falas, em discurso direto no canto inferior da noticia, que são
os principais domínios acessados para garantir sentido a manchete noticiada.
As partes constituintes do espaço contextual são: as áreas de vegetação e sua imprescindível proteção
para a sobrevivência da espécie humana; as vozes de autoridades, pessoas eminentes no âmbito na política
mundial; a mescla de opiniões de um americano, uma britânica e um russo, três figuras de potências
economicamente influentes no contexto mundial; o resgate da figura da União Soviética, e ativa sentidos de
dominação socialista/comunista, que há pouco tempo na história mundial provocou medo no mundo
ocidental liberal.
Por outro lado, a expressão “do tio Sam” não se identifica com os três políticos, cujas opiniões em
discurso direto constam na manchete. “Tio Sam” é uma pegada semiótica, termo que processa os domínios
para que se construa o sentido do texto. Na verdade, a Amazônia tratada nos discursos diretos selecionados é
uma Amazônia idealizada pelo que o jornalista se permitiu denominar “Tio Sam” (EUA - primeira potência
mundial na atualidade). Apesar de o jornalista não explicitar sua ideologia no corpo da reportagem, esta pode
ser perceptível na mesclagem dos discursos diretos para a elaboração do título (ao dizer que a Amazônia
citada é a idealizada pelo “Tio Sam”, o jornalista deixa transparecer sua perspectiva a respeito do fato – Tio
Sam sinônimo de dominação). A manchete apresenta-se como uma síntese das vozes contidas no texto do
jornalista, que selecionou um léxico próprio para compor o título. Sendo assim, a manchete caracteriza a
paráfrase das vozes mescladas, ou seja, ela é um discurso indireto-livre pois mescla as vozes alheias com seu
enunciado e com seu enquadre (sob sua perspectiva). Os signos que ativam o caráter político da matéria,
aludindo percepções de dominação e poder, são rastros entrelaçados que possibilitam inferir que o boato
corrente na internet quer, na verdade, que os brasileiros tenham cautela e vigilância, alertando-os sobe o
cuidado com questões de soberania nacional. Evitar não só a ocupação das áreas identificadas na manchete,
como também “lutar contra o inimigo interno e combater a desinformação” (O Dia, 19.11.2000, p. 20).
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