Territórios em disputa na formação da sesmaria do Alto

Propaganda
Anais do VI EPOG – Encontro de Pós-Graduandos da FFLCH/USP
Outubro de 2011
Territórios em disputa na formação da sesmaria do Alto Sertão: o bandeirantismo quinhentista e a
Guerra dos Bárbaros no contexto da instauração dos pressupostos da acumulação de capital no
processo de formação territorial brasileira.
Ana Carolina Gonçalves Leite
Estimulada pela exitosa exploração mineral conduzida pela Espanha em suas colônias, por “vagas,
mas insistentes” informações acerca da existência de riquezas em seu território colonial 1, além de
pressionada pela própria condição econômica em que se encontrava seu reino2, a Coroa portuguesa
alterou os rumos nos quais vinha conduzindo a colonização, “inicialmente deixada aos corsários
franceses para a extração de pau-brasil” (Renger, 2007: 106), estimulando, desde a primeira metade
do século XVI, iniciativas que ficaram conhecidas como entradas e bandeiras. A finalidade dessas
empresas era a de realizar a territorialização dos sertões, criando as condições para iniciar, se a
fortuna dos descobrimentos assim o permitisse, a exploração mineral naquelas paragens. A criação
dessas condições se referia tanto à pesquisa e à identificação das riquezas minerais passiveis de
serem exploradas, como a submissão de grupos nativos à condição de trabalhadores forçados e à
tomada dos territórios a esses mesmos grupos.
A estratégia adotada pela Coroa para a promoção das entradas consistiu em transferir para os
particulares os custos e riscos desses empreendimentos3, ainda que em troca de ampla cessão de
privilégios, manifestos na forma de concessão de títulos nobiliárquicos e sesmarias. Essa estratégia,
no entanto, não permitia aos colonos prescindirem do controle real para a realização das empresas:
era a Coroa que normatizava a realização das expedições e especialmente averiguava seus
resultados. Isso porque o sucesso dessas empresas, na medida em que pudessem conduzir à
exploração mineral rentável, era de máximo interesse português, sendo sua transferência para a
iniciativa privada realizada apenas como garantia de sua execução, num contexto de insuficiência
de condições para que a Coroa as realizasse exclusivamente com esforço próprio 4.
1
“Notícias vagas, mas insistentes, começavam então a girar, de grandes riquezas minerais, jacentes no sertão, a
sudoeste da Bahia, 200 léguas a dentro; onde, posto que difícil, seria possível penetrar; e tais boatos tanto mais vinham
para crer, quanto o exemplo das maravilhosas jazidas do Peru os animava” (Vasconcelos, 1999: 43).
2
“Não dispunha, entretanto, o pequeno Reino de forças, nem de cabedais ao nível do próprio heroísmo; e por isso caiu
logo em tanta penúria financeira, que seu Rei, Dom João III, tendo tudo gasto, e tudo empenhado, para sustentar as
armadas, foi considerado na conta de soberano o mais pobre da Europa. „Portugal – advertia a Cúria Romana ao núncio
de Lisboa – tem chegado a tal limitação, que é de pouquíssimas forças; e seu Rei, além de pobríssimo, com grandes
dívidas dentro e fora do Reino, e pesadíssimos juros, que tem de satisfazer, é mal visto do povo, e mais ainda da
nobreza‟. Foi nessas circunstâncias que o Brasil entrou a figurar no equilíbrio da Metrópole” (Vasconcelos, 1999: 43).
3
Como afirma Raymundo Faoro, o colono “seria o agente de uma imensa obra semipública, pública no desígnio e
particular na execução” (1991: 125).
4
“O governo português não punha no negócio o seu capital, ao tempo escasso e comprometido em outras aventuras.
Servia-se dos particulares – nobres e ricos, com suas clientelas e parentes sem cabedal acenando-lhes com a opulência e
o lucro fácil. [...] [Persistia, no entanto,] a presença, ao lado do tráfico, da autoridade real, vinculada, entrelaçada,
1
Anais do VI EPOG – Encontro de Pós-Graduandos da FFLCH/USP
Outubro de 2011
Existe concordância na historiografia em indicar como a primeira das entradas, a conduzida por
Martim Afonso de Souza, em 1531. Desta expedição, há pouca informação sobre o roteiro, ainda
que se estime que, tendo sido percorridos, durante dois meses, 115 léguas (cerca de 700 km), a
expedição possa ter chegado ao centro da atual Minas Gerais, como sugere Derby ou até o rio das
Mortes, como sugere Calógeras (Renger, 2007: 106). As entradas realizadas no século XVI
partiram, em geral, do litoral de Porto Seguro, por onde alcançavam os rios que conduziam ao
sertão. Assim foram as conduzidas por Francisco Bruza de Espinosa e Aspilcueta Navarro em 1554,
por Sebastião Fernandes Tourinho em 1573 e por Antônio Dias Adorno em 1574. De acordo com os
registros de Vasconcelos (1974: 15), a expedição Espinosa-Navarro, partindo de Porto Seguro,
dirigiu-se ao rio Jequitinhonha, seguindo então para a serra que hoje é conhecida como do GrãoMogol e depois para Magaí, de onde retorna pelas impossibilidades de se sustentar “em pleno
coração do país bárbaro”, por não dispor “de pessoal de confiança, [contando] com doze
companheiros europeus somente”.
Nem a expedição Espinosa-Navarro, nem qualquer das entradas quinhentistas lograram realizar
descobertas minerais, alcançadas somente na segunda metade do século XVII. Contudo, frente a
aparente ineficácia das mesmas, podemos contestar que foi não apenas o conhecimento acumulado
por essas primeiras expedições que viabilizou o desenvolvimento da empresa bandeirante5; mas
também o progresso da territorialização do sertão, presidido pelas entradas com a abertura de
caminhos, roças e arraiais6 e, fundamentalmente, pela a tomada do território aos grupos nativos,
que, como veremos adiante, viabilizou que outras formas de acumulação do capital viessem a se
estabelecer no interior da colônia, antes mesmo do início da exploração mineral.
No breve comentário apresentado sobre expedição Espinosa-Navarro, notamos ainda a referência de
Vasconcelos (1974) a “um país bárbaro”, que serviu provavelmente para sugerir a presença de
“botocudos” nos sertões adentrados por aqueles bandeirantes. Essa nomenclatura fora utilizada para
abraçada aos ganhos da colônia. Onde a riqueza aflora, aí está o rei. [...] [Com] olhos vigilantes, desconfiados [que]
cuidavam para que o mundo americano não esquecesse o cordão umbilical que lhe transmitia a força de trabalho e lhe
absorvia a riqueza. O rei estava atento ao seu negócio” (Faoro, 1991: 133).
5
Esse conhecimento acumulado foi pensado pelos cronistas e estudiosos do período por nós estudados pelo menos a
partir de dois pontos de vista. Vasconcelos, ao dizer que “[...] não se deve pôr em dúvida que das informações e
amostras colhidas por Spinosa se aproveitaram os aventureiros que subiram mais tarde” (1974: 15), contribui para
caracterizar essa acumulação, ainda que a forma social por meio da qual esse conhecimento foi compartilhado não
apareça tematizada. Nelly Jardim, por sua vez, assinala justamente essa forma, ao dizer que “os experientes que
escapavam dessas aventurosas incursões nas selvas negociavam seus conhecimentos, seus roteiros e mapas” (1998: 42).
6
“[segundo uma recomendação real, a expedição, da qual o cronista Gabriel Soares deixou relatos, deveria] fundar de
50 em 50 léguas um arraial que servisse de suporte a outras expedições que demandassem o sertão” (Jardim, 1998: 48).
“[...] porque conseguiu o chegar-se, com a bandeira à paragem que se determinou, e para a maior segurança do bom
sucesso, e se poderem continuar os descobrimentos, deu providência de se derrubarem pelos caminhos alguns matos, e
se plantarem mantimentos para o sustento de pessoas [...] condição precisamente necessária em razão das muitas
distâncias e perigos e alguns assaltos que se fizessem aos mantimentos conduzidos para aquela conquista” (Carta de
Manoel Caetano Lopes de Lavre ao rei de Portugal. Revista do Arquivo Público Mineiro, 1934: 703, apud Anastasia,
1994: 14 in Vasconcelos, 1994).
2
Anais do VI EPOG – Encontro de Pós-Graduandos da FFLCH/USP
Outubro de 2011
se referir às tribos tapuia, especialmente aimoré, rebeladas e fugitivas, que por muito permaneceram
“aquarteladas” nos sertões do rio Jequitinhonha e que foram reiteradamente apresentadas por
cronistas do período como uma das mais perigosas tribos enfrentadas pelos bandeirantes na
colonização, uma vez que resistiram em guerra ao colonizador7.
O debate que insistiu em classificar certos grupos originários como sendo mais ou menos bravios,
em comparação com outros, oculta, contudo, a dinâmica de ocupação territorial conduzida sob a
colonização que condicionou distintas possibilidades de reação dos indígenas à investida colonial8.
Ao concentrar as populações indígenas que se refugiaram dos primeiros confrontos com o
colonizador na costa, o interior da colônia representou, durante o período em que a investida
territorial restringia-se ainda ao litoral, uma área em que o branco não podia exercer dominação
efetiva. Nesse contexto, o deslocamento de grupos indígenas para o sertão significou a possibilidade
da preservação da autonomia tribal por meios passivos. Contudo, a discutida mudança nos rumos da
colonização teve como desígnio a territorialização dos sertões, submetendo-os como áreas nas quais
o colonizador desejava estabelecer dominação efetiva. A partir desse momento, a preservação da
autonomia tribal tem de passar a se estabelecer por meios violentos.
Os assim chamados “botocudos”, em toda a variedade de subgrupos que a denominação
comportava, tinham sido alvos de perseguições e guerras no eixo Ilhéus-Porto Seguro, como afirma
Machado (2000), o que teria levado essas tribos a se refugiarem nos sertões correspondentes à
futura capitania de Minas Gerais, que ainda não havia se estabelecido 9. Afora dos confrontos com
outros grupos indígenas que esse deslocamento forçado provocou, na medida em que obrigou
grupos foragidos a se refugiarem em zonas nas quais outras populações indígenas já se encontravam
estabelecidas10, podemos caracterizar os conflitos promovidos pela investida colonial sobre os
territórios dos indígenas refugiados ou originários do sertão em dois momentos.
No primeiro, a Guerra dos Bárbaros (Puntoni, 2002) foi conduzida por meio de expedições que
buscavam, além de riquezas minerais, indígenas para serem escravizados. Assim, o juízo de que a
7
Boris Fausto reafirma o preconceito presente, “em maior ou menor grau”, nos relatos coloniais de cronistas, viajantes
e padres. De acordo com o autor, “existe nesses relatos uma diferenciação entre índios com qualidades positivas e
índios com qualidades negativas, de acordo com o maior ou menor grau de resistência oposto aos portugueses”. Os
aimoré, também conhecidos como “botocudos”, “que se destacaram pela eficiência militar e rebeldia, foram sempre
apresentados de forma desfavorável” (2002: 39).
8
Florestan Fernandes apresentou essas possibilidades no seguinte esquema: “a) de preservação da autonomia tribal por
meios violentos, a qual teria de tender, nas novas condições, para a expulsão do lavrador branco; b) a submissão nas
duas condições indicadas, de „aliados‟ e de „escravos‟; c) de preservação da autonomia tribal por meios passivos, a qual
teria de assumir a feição de migrações para as áreas em que o branco não pudesse exercer dominação efetiva” (1975:
11-32).
9
Mais precisamente, a ficarem “confinadas aos vales dos rios Doce, Mucuri, Jequitinhonha e São Mateus” (Machado,
2000: 24).
10
“No início do século XVII, tais deslocamentos [referindo-se ao deslocamento dos aimoré para o interior da colônia]
eram suficientemente intensos a ponto de gerar conflitos com os grupos maxakali, que ocupavam o território mineiro”
(Metraux, 1946: 541 apud Venâncio, 2007: 92).
3
Anais do VI EPOG – Encontro de Pós-Graduandos da FFLCH/USP
Outubro de 2011
“pacificação” dos nativos era necessidade apenas para que o processo colonial se desenrolasse sem
confrontos, presente, por exemplo, no texto de Vasconcelos (1994: 75, 76, 157), pode ocultar o fato
de que o apresamento dos nativos veio a cumprir um importante papel para o abastecimento de
trabalhadores escravizados, especialmente para os paulistas11.
Convém lembrar, inclusive, que as proibições que incidiram sobre a escravização dos indígenas
foram burladas com facilidade, especialmente nos contextos em que o comércio desses
trabalhadores forçados tornava-se rentável. Além disso, as próprias leis apresentavam uma série de
ressalvas: na primeira lei em que se proibia a escravização dos índios (1570), os aimoré foram
excluídos da interdição; a legislação continha ainda mecanismos que possibilitavam a escravização
por resgate, isto é, a compra de indígenas prisioneiros de outros grupos, o que criava as condições
para que as próprias tribos fossem incorporadas pelo tráfico; e, especialmente, estas leis
incentivavam a promoção de “guerras justas”, movidas para reprimir grupos que ofereciam forte
resistência à territorialização colonial e para punir grupos que sustentavam a prática da
antropofagia. Os aimoré foram grandes alvos da escravização de indígenas no século XVI 12 e a
guerra contra os “botocudos” refugiados no sertão foi sempre legitimada como uma “guerra justa”.
O segundo momento da Guerra dos Bárbaros pode ser demarcado a partir da segunda metade do
século XVII, quando “as expedições escravistas já não eram mais importantes” (Venâncio, 2007:
97). Nesse momento, a guerra se aprofunda nos sertões, pois a forma de apropriação territorial em
questão não é mais a entrada, mas a ocupação permanente da área. O que marca o período é a
necessidade de alargar o empossamento das terras, do território conquistado aos nativos 13. Essa
nova dinâmica da territorialização colonial resulta especialmente da importância que a acumulação
de capital fundada na expansão da fazenda pecuária passa a assumir no sertão. Nesse contexto, em
que o capital aumenta onde aumentam as criações, ou seja, em que o gado é a forma potencial de
existência do capital no sertão, tornou-se um imperativo da acumulação impedir que as terras se
mantivessem “infestadas de gentios” 14.
11
“Os paulistas, [por exemplo], não conseguiam concorrer com os senhores de engenho do Nordeste na aquisição de
africanos, ficando assim, por muito tempo, marginalizados com relação ao tráfico internacional de escravos. A resposta
diante de tal situação foi o desenvolvimento, na capitania paulista, de um mercado de trabalhadores forçados indígenas”
(Venâncio, 2007: 96).
12
“[...] não tardou muito para que os aimoré também fossem alvo de entradas, como aquela liderada por Antônio Dias
Adorno (1574), visando conseguir escravos para „substituir a quase desaparecida mão-de-obra tupiniquim após a revolta
de 1550 e [...] a epidemia de varíola de 1562-3” (Paraíso, 1992: 413 apud Venâncio, 2007: 91).
13
“O fundamental não era mais escravizar índios, mas, sim, conquistar terras” (Venâncio, 2007: 97). Por isso, de acordo
com Pedro Puntoni: “[...] por razões estruturais da forma de evolução dessa economia e do processo colonizador, longe
de serem guerras de conquista e submissão de novos trabalhadores aptos ao manejo do gado, eram tendencialmente
guerras de extermínio” (2002: 45-46).
14
Essa necessidade fica explicitada num inventário estudado por Erivaldo Neves, no qual Matias João da Costa declara
“„terras na „outra banda do rio Pardo‟, às quais não se atribuíam valor por serem „infestadas de gentios‟ e „morrerem as
criações que lá se botam‟” (1998: 95).
4
Anais do VI EPOG – Encontro de Pós-Graduandos da FFLCH/USP
Outubro de 2011
Contudo, o que estava em jogo nesse contexto não era apenas a criação das condições para que o
gado pudesse se reproduzir nas fazendas instauradas no sertão, mas o fato de o próprio incentivo à
guerra contra os indígenas, promovido pela Coroa portuguesa, ter mobilizado a concessão do
controle de terras como um privilégio conferido aos participantes na Guerra dos Bárbaros; como
podemos discutir, a partir da narrativa de Vasconcelos (1974), sobre a formação da sesmaria do
Alto Sertão, atribuída ao coronel Antônio Guedes de Brito.
“Anarquizando por este modo o país, os clamores chegaram a comover o Governador-geral,
cujo dever principal consistia em reprimir os selvagens. Para isto, o meio único então
possível foi restaurar o antigo sistema das bandeiras sertanejas, serviço para o qual chamou
ele o Coronel Antônio Guedes de Brito, potentado residente no Morro do Chapéu, onde já
tinha um corpo de armas em defensiva e que facilmente podia com este marchar à conquista
do rio. Era também o homem de confiança, que podia levantar forças no sertão. Contratado,
pois, o serviço, deu-lhe o Governador a patente de Mestre-de-campo, e a provisão de
Regente do S. Francisco, ajuntando-lhe a doação de cento e sessenta léguas, que mediriam
do Morro do Chapéu até onde se completavam, em rumo às nascenças do Rio das Velhas.
Concebeu o Governador este meio de pacificar a zona do grande rio, combinando na
mesma pessoa o próprio interesse e o poder da autoridade. Uma espécie de senhorio feudal.
O Regente defenderia sua própria terra e com esta se pagaria das despesas e trabalhos feitos
a bem da ordem” (1974: 21).
Assim, a Guerra dos Bárbaros não serviu somente como pressuposto para a reprodução da fazenda
pecuária no sertão na medida em que a perseguição e o aniquilamento dos indígenas permitiam
evitar a investida dos mesmos contra as criações; mas também na medida em que, tendo servido
como mecanismo de concessão de terras e títulos como privilégios para os combatentes, a
participação no confronto unia laços de reciprocidade entre os mesmos e a Coroa: o interesse em
garantir e expandir a reprodução do empreendimento pecuário nas terras recebidas do rei atava-se
ao poder da autoridade outorgado pela Coroa para conduzir a territorialização colonial. As pressões
da Coroa sobre o desempenho do regente nessa tarefa se coagulavam em resultados que eram, ao
mesmo tempo, frutos do interesse do sesmeiro.
Disso se pode depreender, paradoxalmente, que a concessão de títulos e patentes, ao descentralizar
o poder da Coroa nos particulares, também concentrava poder em um Estado que somente podia se
estabelecer através deles. Isso porque o Estado absolutista metropolitano dependia dos particulares
para garantir o exercício da violência, especialmente porque, para tanto, dependia do capital
personificado pelos mesmos. Essa relação de reciprocidade explicita, por um lado, que as condições
para que o Estado possa exercer sua autoridade não estão separadas do financiamento particular e,
por outro lado, que a territorialização dos capitais particulares também não podiam prescindir do
laço que atava seu investimento a rentabilidade da colonização organizada como negócio da Coroa.
Se os desdobramentos históricos do processo de modernização caminharam para a consolidação do
Estado nacional como a esfera que detêm o monopólio da produção das leis e da capacidade de
fazê-las valer pelo emprego da violência; os mesmos conduziram também a um apagamento da
5
Anais do VI EPOG – Encontro de Pós-Graduandos da FFLCH/USP
Outubro de 2011
dependência estrutural que o exercício do papel de regulação política da sociedade possui com
relação à forma universal de mediação social que é a mercadoria. Até porque o Estado moderno não
pode prescindir do dinheiro, a forma desdobrada dessa mediação, para o financiamento de suas
atividades. A separação histórica entre “Estado” e “capital” consolidou, deste modo, o fetiche de
que a sociedade moderna se estabelece sobre duas bases autônomas – a “política” e a “economia” –
cujo nexo, fornecido pela determinação inescapável da forma-mercadoria como forma de
reprodução social, fica apagado. Vale dizer, contudo, ainda que não possamos discutir esse processo
de maneira mais detalhada, que o desenvolvimento histórico da separação entre tais campos da
reprodução social não se processa senão de maneira a sustentar a aparência de que seus produtos
são coisas autônomas.
Partindo do debate de que, desse modo, a autonomia da política com relação à economia, quando se
realiza, o faz apenas como realização de mera aparência, a análise da atuação metropolitana na
colônia cumpre aqui o papel de revelar o “segredo” das relações entre Estado e capital, quando
ambos guardam entre si a aparência de autonomia. Isso porque, a atuação metropolitana na
colonização explicita a dependência estrutural do dinheiro que a intervenção estatal possui,
justamente porque, no caso do Estado absolutista, uma parte do financiamento de suas funções é
proveniente dos particulares. Nesse caso em que o Estado ainda não internalizou totalmente sua
estrutura de financiamento, a dependência aparece claramente. Essa circunstância na qual
encontramos os particulares participando diretamente da reprodução e realização do Estado poderia
sugerir a interpretação de que a subjetividade dos particulares é que dá a tônica da organização do
processo social. Contudo, quando estes poderes locais organizam o território somente o podem
fazer segundo um padrão socialmente estabelecido, o que evidencia que essa organização não é
mero exercício de subjetividade dos poderosos. Ao contrário, esse padrão encontra-se estabelecido
na própria dinâmica de acumulação do capital comercial, desencadeada por um Estado cujo
centralismo absolutista fez prevalecer à lógica mercantilista, além de extrapolá-la com a
colonização. Assim, a opulência e o lucro fácil com que o rei acenava para os particulares
determinava-lhes o compasso. Eram móveis de ação tipicamente capitalistas que deveriam servir,
primeiramente, à própria acumulação metropolitana.
Por fim, podemos considerar que a relação entre a Guerra dos Bárbaros e a formação da sesmaria do
Alto Sertão revela não apenas a dinâmica de territorialização movida pelos particulares em todas as
suas dimensões concretas de produção e apropriação territorial: a acumulação de conhecimentos
sobre as condições de sobrevivência no sertão, a construção de infra-estruturas que se acumulassem
viabilizando as próximas entradas e a tomada territorial que garantisse que o investimento
capitalista não fosse colocado em risco pela disputa com os indígenas; mas também a própria
6
Anais do VI EPOG – Encontro de Pós-Graduandos da FFLCH/USP
Outubro de 2011
relação entre esses particulares e a Coroa e, assim, também as condições mais gerais que
determinaram o desenvolvimento dessas relações. Ou seja, o que aparece e se realiza como obra do
interesse particular do sertanista, do bandeirante e do sesmeiro participa das atribuições que lhes
foram dadas pela Coroa, de modo a reproduzir o Estado que pressupõe, contudo, como sua
necessidade, a participação do interesse desses privados para a realização dos seus desígnios:
interesses e desígnios definidos ambos no campo do sentido da colonização (Prado Jr., 1979).
Bibliografia
ANASTASIA, Carla Maria Junho. “Estudo crítico”. In: VASCONCELOS, Diogo Pereira Ribeiro
de. Breve descrição geográfica, física e política da capitania de Minas Gerais. Coleção
Mineiriana, Série Clássicos, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 1994.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 9ª. Ed. Editora
Globo, Rio de Janeiro, 1991 [1958].
FAUSTO, Boris. História do Brasil. Ed. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002
[1994].
FERNANDES, Florestan. “Os Tupi e a reação tribal à conquista”. In: FERNANDES, Florestan.
Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Vozes, Petrópolis, 1975.
JARDIM, Maria Nelly Lages. O Vale e a vida: história do Jequitinhonha. Armazém de idéias, Belo
Horizonte, 1998.
MACHADO, José Carlos. Senhora da graça da Capelinha. Edição do autor, Capelinha, 2000.
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja da sesmaria ao minifúndio (Um estudo
de história regional e local). EDUEBA, Salvador, 1998.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. Editora Brasiliense, São
Paulo, 1979 [1942].
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão nordestino
do Brasil. 1650-1720. Hucitec/Edusp, São Paulo, 2002 [1998].
RENGER, Friedrich. “Primórdios da cartografia das Minas Gerais (1585-1735): dos mitos
aos fatos”. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.).
História de Minas Gerais: As minas setecentistas, 1, Autêntica, Companhia do tempo,
2007.
VASCONCELOS, Diogo Pereira Ribeiro de. História média de Minas Gerais. Editora Itatiaia,
Belo Horizonte, 1974 [1918].
___________________________________. Breve descrição geográfica, física e política da
capitania de Minas Gerais. Coleção Mineiriana, Série Clássicos, Fundação João
Pinheiro, Belo Horizonte, 1994 [1901].
___________________________________. História antiga das Minas Gerais. Editora
Itatiaia, Belo Horizonte, 1999 [1904].
VENÂNCIO, Renato Pinto. “Antes de Minas: fronteiras coloniais e populações indígenas”.
In: RESENDE, Maria Efigênia Lage e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de
Minas Gerais: As minas setecentistas, 1, Autêntica, Companhia do tempo, 2007.
7
Download