Câncer oral: cenário atual, desafios e perspectivas

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Câncer oral: cenário atual, desafios e
perspectivas
Categoria: Atualização Científica
Publicado em 26 Julho 2015
Escrito por Luiz Paulo Kowalski
Em artigo exclusivo, Luiz Paulo Kowalski (foto), diretor do Departamento de
Cirurgia de Cabeça e Pescoço do AC Camargo Cancer Center, aborda a
questão do câncer oral, que persiste como importante problema de saúde
pública. Globalmente, está entre os 10 tipos de câncer mais incidentes em
populações de países em desenvolvimento e em minorias de países
desenvolvidos.
Hispânicos e afro americanos nos Estados Unidos apresentam não só maiores
taxas de incidência, como também maiores taxas de morte por câncer oral
quando comparados à média da população americana. A exposição crônica ao
tabagismo, consumo de álcool e deficiências nutricionais está ligada à maioria
dos tumores da cavidade oral, mas cresce o papel do papilomavírus humano
(HPV) como fator de risco. O diagnóstico precoce ainda é um desafio. Nos
países desenvolvidos, 50% dos pacientes apresentam doença avançada ao
diagnóstico, proporção que atinge 90% nos países pobres e em
desenvolvimento. Na fase inicial, o câncer oral pode ser tratado com sucesso
através de cirurgia ou radioterapia. Na fase avançada, a combinação de
cirurgia, radioterapia e quimioterapia se estabelece como tratamento padrão,
promovendo bom controle da doença. A abordagem multidisciplinar resulta em
maiores taxas de cura e melhor controle dos sintomas, com melhor qualidade
de vida para o paciente e preservação de funções.
EPIDEMIOLOGIA E FATORES DE RISCO
Em 2012, o Globocan estimou 300.373 casos de câncer oral, com 145.353
mortes no mundo (97.940 mortes entre homens e 47.413 entre mulheres). A
maioria dos casos novos diagnosticados e das mortes ocorrem em países em
desenvolvimento e vários estudos apontam maior risco em indivíduos de perfil
socioeconômico e educacional mais baixos.
As maiores taxas de incidência são reportadas na Ásia (Paquistão e índia),
Europa (França) e América do Sul (Brasil) e ocorrem em estratos populacionais
específicos. A cidade de São Paulo apresenta a mais elevada incidência de
câncer oral no Brasil e na América Latina, e no período de 1969 a 1998
experimentou uma variação positiva de 30% na incidência em homens e de
179% em mulheres. Não é possível ignorar as variações demográficas, assim
como o impacto de fatores socioeconômicos e culturais. Metanálise liderada
por David Conway e colegas considerou 41 estudos (15.344 pacientes e
33.852 controles) e concluiu que o risco para câncer oral aumentou em estratos
de menor instrução (OR=1.9), ocupação (OR = 1.8) e renda (OR = 2.4).
O consumo de tabaco e álcool aparece como o maior fator de risco evitável,
além da infecção por HPV. Sabe-se, no entanto, que o desenvolvimento do
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câncer oral é multifatorial, proveniente da interação de fatores ambientais químicos, físicos, biológicos - e fatores individuais, como idade, gênero e
herança genética.
A transição epidemiológica avança. O paciente do sexo masculino, tabagista,
acima de 45 -50 anos, que costumava representar o maior número de casos de
câncer oral, não representa mais o perfil “clássico”. Hoje, o aumento de
mulheres fumantes praticamente eliminou as diferenças entre os gêneros. A
elevação da incidência em pacientes jovens, não fumantes e não etilistas,
evidencia a presença de outro agente causador, o papilomavírus humano, em
especial o HPV 16 e o HPV 18, vírus oncogênicos que também levam ao
desenvolvimento do câncer oral. O contágio se dá por transmissão sexual
orogenital, mas a transmissão vertical (mãe-filho) também ocorre.
O tabaco é sabidamente fator de risco para diferentes tipos de câncer, com
mais de 4.700 substâncias tóxicas, e também está associado ao
desenvolvimento do câncer oral, como largamente descrito na literatura.
Uma revisão sistemática avaliou 216 estudos observacionais com fumantes e
concluiu que o risco relativo (RR) para câncer oral foi significativamente maior
nessa população (RR=3.4). Em relação à maconha, os dados disponíveis são
mais restritos. Estudos recentes com 4.028 casos de câncer de cabeça e
pescoço e 5.015 casos de cinco estudos de controle mostraram que não houve
risco ampliado para o desenvolvimento de câncer de cabeça e pescoço entre
os usuários de maconha (OR 0.9). Também não foi identificado risco
aumentado em razão da frequência, duração ou consumo cumulativo de
maconha. No entanto, o resultado precisa ser visto com cautela, porque a
prevalência de fumantes de maconha foi baixa na maioria dos estudos
avaliados.
O consumo de álcool aumenta o risco de câncer oral, e quando associado ao
tabagismo traz um efeito sinérgico que eleva ainda mais a taxa de risco. O
etanol aumenta a permeabilidade da mucosa oral, facilitando a ação de
diversos agentes cancerígenos (nitrosaminas, hidrocarbonetos e acetaldeídos).
O risco ampliado foi descrito por diferentes autores (Rothman e Keller; Schlecht
et al), que demonstraram a deletéria associação entre tabaco e consumo de
álcool.
A história familiar de câncer é sabidamente outro fator de risco para o câncer
oral. Várias evidências corroboram o papel da predisposição genética, não só
na anemia Fanconi, mas também na síndrome de Li-Fraumeni.
A imunossupressão é ainda conhecido fator de risco. Estudo de coorte com
8.162 pacientes de transplante renal dos registros da Austrália e Nova Zelândia
entre 1982 e 2003 identificou 203 casos de câncer oral.
A relação entre o papel da dieta e o risco de câncer de cabeça e pescoço
(CCP) foi investigada por Chuang e colaboradores, a partir de dados de um
consórcio internacional (INHANCE) que incluiu 22 estudos de caso-controle,
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com 14.520 casos e 22.737 controles. Uma associação inversa para o risco de
câncer oral foi observada para maior ingestão fruta (OR = 0,52, 95% CI = 0,430,62, p <0,01) e vegetais (OR = 0,66, 95% CI = 0,49-0,90, p = 0,01). A ingestão
de carnes vermelhas (OR = 1,40 IC 95% = 1,13-1,74, p = 0,13) e carne
processada (OR = 1,37 IC 95% = 1,14-1,65, p <0,01) foi positivamente
associada com o risco de CCP.
Em relação ao papel do chá e do café no risco de câncer oral, vários estudos
têm apresentado resultados controversos. Enquanto a erva-mate é associada
ao risco de câncer oral (OR 2,1), estudos de controle têm sugerido uma
associação inversa entre o consumo de café e o risco de câncer oral.
Propriedades anticancerígenas do café têm sido atribuídas à presença de
polifenóis, terpenos, ácido cafeico e outros.
Características relacionadas à saúde bucal, como trauma crônico devido à má
dentição, dentes quebrados ou baixa frequência de higiene bucal foram durante
muito tempo associadas ao câncer bucal. Em 1998, Velly e colaboradores
relataram os resultados de um estudo de caso-controle (717 casos e 1.434
controles) e a menor frequência da escovação diária foi um fator de risco
significativo para câncer de língua (OR 2,1) ou para outros tumores da
cavidade oral (OR 2,4).O uso de próteses não foi associado com o risco de
câncer oral, mas feridas bucais crônicas secundárias ao uso de dentaduras mal
ajustadas foram um fator de risco significativo (OR = 2,7) e o risco foi maior
para o câncer de língua (OR = 9,1).
Pacientes com HIV têm risco ampliado para o câncer da cavidade oral. A
prevalência de infecção por HPV é maior entre indivíduos HIV positivo (34%).
SINAIS DE ALERTA
O diagnóstico tardio do câncer de cavidade oral ainda é uma realidade com
impacto fundamental no prognóstico do tratamento, contribuindo para elevadas
taxas de morbi-mortalidade.
A maior parte dos casos de câncer oral evolui a partir de lesões do epitélio de
revestimento da boca e/ou faringe (leucoplasia e eritroplasia), mas outras
condições têm potencial de malignização (VAN DER WAAL, 2009), como
fibrose submucosa oral, queratose actínica, queratose palatal, líquen plano, e
lúpus eritematoso discóide.
Leucoplasia é um termo genérico, empregado para descrever uma lesão
predominantemente esbranquiçada ou placa não removível à raspagem, que
não pode ser caracterizada clinicamente ou patologicamente como associada a
outras doenças. A prevalência na população varia de 0,2%-12,9%. As taxas
notificadas de transformação maligna variam entre 0,1%-17,5%, dependendo
do tempo de seguimento, tipo de leucoplasia (alto risco se não homogênea),
presença e grau de displasia e localização (risco superior em lesões de língua
e assoalho da boca).
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Eritroplasia é uma lesão macular ou em placa, com superfície lisa ou granular,
que não pode ser caracterizada clinicamente ou patologicamente como outra
doença definível. A prevalência na população varia de 0,02% a 0,8%, mas em
até 90% dos casos existem displasia, carcinoma in situ ou carcinoma invasivo.
Mais comuns em homens caucasianos, a queratose actínica é uma condição
crônica associada à exposição ao sol e sua transformação maligna está
documentada em 10% dos casos, prevalente em 0,2% dos casos.
O líquen plano é uma doença auto-imune inflamatória crônica de etiologia
desconhecida. A prevalência na população varia de 0,5% a 2,0%, mais comum
em mulheres. As taxas de transformação maligna variam de 0,3% a 5,0%. A
aparência clínica do líquen plano pode ser reticular, atrófico ou eritematoso e
erosivo.
DIAGNÓSTICO E ESTADIAMENTO
Diante de uma única lesão oral, especialmente em indivíduos de alto risco
(tabagista, etilista, acima de 45 anos), deve-se considerar o diagnóstico de
câncer. No entanto, a elevação do HPV em nosso meio impõe reconhecer que
nem todo câncer oral ocorre em indivíduos que classicamente compunham o
perfil de alto risco.
A avaliação clínica envolve exame cervical bilateral (palpação) para avaliação
de todos os linfonodos cervicais. Linfonodos metastáticos são clinicamente
aqueles localizados nas áreas de drenagem regional, com superfície
endurecida e irregular, com tendência a diminuir de mobilidade em relação aos
planos adjacentes.
A biópsia é o único método de diagnóstico definitivo e é mandatória antes de se
iniciar o tratamento. Exames de imagem são complementares para concluir o
estadiamento e embasar o planejamento terapêutico. A tomografia
computadorizada (TC) é o exame mais utilizado para avaliar a extensão locoregional do câncer oral, porque alia disponibilidade, baixo custo e precisão. A
ressonância magnética (MRI) é excelente para discriminar tecidos moles, mas
é menos sensível para avaliar estruturas ósseas. A tomografia
computadorizada (plano axial e coronal) ou ressonância magnética com
contraste podem contribuir de forma significativa para identificar os limites da
lesão, sendo particularmente úteis em tumores avançados de qualquer subsítio
e em todos os casos de tumores do palato e gengiva superior, para identificar
invasão da cavidade nasal e antro maxilar.
O estadiamento clínico se completa com radiografia de tórax, para o
diagnóstico de possível metástase pulmonar.
A classificação clínica TNM (cTNM ou TNM) é baseada no exame clínico prétratamento e exames de imagem não-invasivos. Por outro lado, a classificação
TNM patológica (pTNM) é derivada do exame patológico pós-cirúrgico do
espécime de tumor.
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TRATAMENTO
Tumores diagnosticados em estadios clínicos I e II são normalmente tratados
com cirurgia ou radioterapia, que mostram taxas semelhantes de sobrevida a
longo prazo. No entanto, a radioterapia não é o tratamento de escolha,
geralmente mais cara, mais prolongada e de maior morbidade que a cirurgia.
Outra vantagem da abordagem cirúrgica é poupar a radioterapia para o
tratamento de recidivas ou segundos tumores primários.
Para tumores em estadio II a IV, a cirurgia combinada e a radioterapia pósoperatória, associada ou não à quimioterapia, é o tratamento de escolha. Não
há nenhuma indicação para cirurgia curativa nos casos de doença muito
avançada.
A decisão final deve levar em conta o sítio do tumor, estadio e histologia, além
de fatores relacionados ao paciente, como o performance status e a presença
de comorbidades, preferências individuais e expectativas.
O carcinoma de células escamosas da cavidade oral é um tumor
radiorresistente, cabendo a indicação do tratamento radioterápico exclusivo ou
combinado com quimioterapia apenas para pacientes com tumores
irressecáveis e com elevado risco cirúrgico, ou para aqueles que se recusam
ao tratamento cirúrgico. Nesses casos, a radioterapia de intensidade modulada
(IMRT) é a técnica mais utilizada, com dose de 70 Gy em frações diárias de 1,8
a 2.0Gy, durante 7 semanas.
Meta-análise de 63 estudos randomizados com 10.741 pacientes com estágio
avançado (geralmente inoperável) de carcinoma espinocelular de cabeça e
pescoço (3231 da cavidade oral) demonstrou que a quimiorradioterapia
concomitante resultou em 8% de benefício de sobrevida em 5 anos (razão de
risco = 0,81), quando comparada com a radioterapia isoladamente. Uma
atualização da meta-análise com 87 estudos randomizados (16.847 pacientes)
confirmou o benefício da quimiorradioterapia no controle loco-regional e
sobrevida.
Como demonstrado por Vandenbrouck et al, o esquema quimioterápico
baseado na adição de docetaxel à cisplatina e 5-fluorouracil neoadjuvante
melhorou as taxas de sobrevida global, sobrevida livre de progressão e tempo
para falha ao tratamento.
A cirurgia aberta ou transoral continua a ser o tratamento padrão na maioria
das instituições. A cirurgia a laser não é a primeira opção terapêutica para o
câncer oral, mas sua indicação em lesões iniciais aumenta de forma
progressiva na maioria dos centros.
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ESVAZIAMENTO CERVICAL
A indicação de esvaziamento cervical continua controversa. Numerosos
estudos têm sido realizados na tentativa de predizer o risco de metástase
linfonodal em pacientes com câncer oral com pescoço clinicamente negativo
(cN0). Em pacientes de alto risco, diminui o risco de recidiva regional. Por outro
lado, se a probabilidade de metástases ocultas é muito baixa, um
esvaziamento cervical eletivo se traduz em tratamento excessivo, podendo ter
impacto negativo, tanto do ponto de vista funcional quanto na qualidade de
vida.
A técnica de biópsia do linfonodo sentinela baseia-se nos padrões de
drenagem linfática de câncer oral e parece reduzir a morbidade associada à
dissecção cervical. No entanto, inovações técnicas e evidências mais robustas
são necessárias para validar o procedimento.
Vandenbrouck et al relataram o resultado de um estudo randomizado
comparando esvaziamento cervical profilático versus observação
(watchandwait) seguida de esvaziamento terapêutico. A taxa de linfonodos
patologicamente positivos foi de 49% no grupo de dissecção versus 47% no
grupo de observação. Houve diferença estatisticamente significativa na
sobrevida. Fakih et al mostraram que os benefícios de esvaziamento cervical
profilático foram mais evidentes em pacientes com tumores com espessura
maior do que 4 mm. Yuen et al. relataram os resultados finais do estudo
prospectivo randomizado multicêntrico realizado em Hong Kong comparando
esvaziamento eletivo seletivo versus a observação em carcinoma oral de língua
em fase inicial. Os grupos de esvaziamento cervical eletivo tiveram resultados
semelhantes aos pacientes que foram acompanhados de perto por observação.
Até recentemente, somente o trabalho de Kligerman et al mostrava dados
favoráveis ao esvaziamento cervical eletivo. Os autores publicaram os
resultados finais de um estudo randomizado com 67 pacientes comparando
esvaziamento eletivo e observação. A taxa de recorrência no pescoço foi de
42% no grupo em observação contra 72% no grupo submetido ao
esvaziamento cervical. Somente neste ano, D’Cruz et al. publicaram os
resultados de um estudo prospectivo com maior número de pacientes,
confirmando a eficácia do esvaziamento cervical eletivo em casos de tumores
T2 e todos os com espessura superior a 4mm.
Na prática, a maioria dos cirurgiões de cabeça e pescoço indica esvaziamento
cervical eletivo para pacientes N0 com risco de linfonodo comprometido por
metástase oculta superior a 20% (4,99).
QUALIDADE DE VIDA
Ressecções de câncer da cavidade oral frequentemente causam morbidade
funcional e estética significativa que podem afetar a qualidade de vida. Nesse
contexto, é evidente a importância da reconstrução, que além de otimizar a
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função de reabilitação, cumpre o papel de oferecer a melhor aparência estética
possível.
O tratamento de câncer da cavidade oral exige a perícia de uma equipe
multidisciplinar, na qual a presença do cirurgião de cabeça e pescoço soma-se
à participação do cirurgião plástico, oncologista, patologista, neuroradiologista,
anestesiologista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, enfermeiro, assistente social,
psicólogo, psiquiatra e nutricionista. A avaliação e o atendimento odontológico
também integram o tratamento, não apenas com o objetivo de prevenir
infecções e complicações pós-cirúrgicas ou após a radiação, mas também para
a preparação de implantes de próteses dentárias, quando indicado. Sequelas
emocionais e físicas merecem atenção.
Luiz Paulo Kowalski é cirurgião oncológico
e diretor do Departamento de Cirurgia de
Cabeça e Pescoço do AC Camargo Cancer
Center.
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