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Marcos Bagno: Linguista – Prof. da Universidade de Brasília
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Textos e Artigos para a Revista Caros Amigos
A Astrologia, Alquimia & Gramática: três “ciências” esotéricas
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Marcos Bagno
Revista Caros Amigos – Dez/ 2008
O que as três disciplinas alinhadas no título deste artigo podem ter em comum a ponto de nos permitir reuni-las e
equipará-las? Para começar, são muito antigas – a astrologia tem, no mínimo, cinco mil anos. Além disso, ocuparam, durante
longos séculos, a curiosidade e o empenho de alguns dos espíritos mais brilhantes da história da humanidade. Cada uma
delas, fascinante por si mesma, deu origem a uma verdadeira ciência que, livrando-se do caráter de “seita secreta” de sua
matriz, ampliou os conhecimentos do homem sobre si mesmo e sobre a natureza que o circunda e da qual faz parte. Astrologia
e alquimia são, de alguns séculos para cá, universalmente classificadas como pseudociências, isto é, como doutrinas baseadas
em dados não passíveis de verificação empírica ou inspiradas por concepções da natureza e do homem que distorcem a
realidade ao interpretá-la de modo arbitrário e incoerente. Para a astrologia tradicional, por exemplo, a Terra está no centro do
universo, os astros giram em torno dela, e os planetas conhecidos são em número menor que os doze até o momento
descobertos pela ciência – nada, portanto, do que hoje em dia se aprende na escola (nem mesmo no Brasil, que tem um dos
piores sistemas educacionais do mundo). Com a revolução copernicana do século XVI, a astrologia, que sobrevivera durante
milênios a fio, recebeu seu golpe fatal. Até hoje, porém, ela subsiste na forma de passatempo popular ou de superstição e,
nessa qualidade, tem espaço garantido nos meios de comunicação e na efervescência pseudomística que parece caracterizar
este nosso final de milênio. Se compararmos o estudo do céu a uma moeda, a astrologia – doutrina ocultista, forma
supersticiosa de adivinhação – é uma de suas faces, enquanto a outra é a astronomia – ciência que investiga, mede, analisa e
interpreta com rigor metodológico os dados obtidos na observação cuidadosa dos fenômenos cósmicos.
A alquimia também é uma doutrina esotérica, talvez a mais hermética de todas (aliás, foi nela que surgiu a noção de
“hermetismo”), modelo perfeito de “ciência oculta”. Seus objetivos podem se resumir na palavra transmutação, entendida em
todos os seus sentidos: nas mudanças químicas em que certos elementos se transformam em outros, nas mudanças
fisiológicas como a passagem da doença à saúde, na ansiada mutação da velhice em juventude, e até na passagem de um
estado terreno a uma existência sobrenatural. Em milênios de experimentos secretos, porém, os alquimistas nunca
conseguiram realizar seus intentos de transformar os “quatro elementos” em ouro nem de encontrar a matéria-prima pura e
perfeita de que se compõe tudo o que existe na natureza. A alquimia é a face “oculta” da moeda cuja face exposta é a ciência
química. E assim como a astronomia herdou diversos termos e conceitos da astrologia (por exemplo, o nome das constelações
tradicionais), também a alquimia legou à química uma grande quantidade de termos (elixir, álcool, matéria-prima), inclusive o
próprio nome da ciência: (al-)quimia. Além disso, a alquimia foi responsável pela extração de metais e elementos minerais
como o fósforo, o bismuto, o antimônio, o zinco ou o amoníaco. Afinal, quinze séculos de experimentos práticos em laboratórios
secretos não podiam deixar de fazer algumas descobertas, ainda que por acaso.
E a gramática? Antes de passarmos a falar dela, e justificar sua inclusão nesta trilogia de doutrinas esotéricas, é
necessário explicar o que entendemos com este termo. No estudo lingüístico contemporâneo, gramática é o nome que se dá ao
conjunto de regras que governam o funcionamento de uma língua ou variedade de língua. Mas esse não é o conceito tradicional
nem “popular” de gramática. Para a grande maioria das pessoas, gramática é um livro – uma espécie de Bíblia sagrada ou de
Código penal – que reúne todos os preceitos para o uso “bom”, “bonito” e “correto” de uma língua. De fato, foi assim que a
doutrina gramatical nasceu, no século III antes de Cristo, em Alexandria, importante centro de cultura helênica, quando os
estudiosos da grande herança literária grega, apavorados com a “corrupção” da língua de Homero, formularam regras que
deviam ser seguidas para preservar a “pureza” do idioma. Um processo alquímico, como se vê. Não é de estranhar que em
francês a palavra grimoire, forma arcaica de grammaire (“gramática”) signifique “livro de feitiçaria, de fórmulas misteriosas;
escrito indecifrável”, o mesmo acontecendo em inglês com a palavra gramarye, “magia, bruxaria, ciência oculta”… Durante
quase dois mil anos, portanto, a gramática serviu a essa finalidade: definir o que era “puro” no idioma, receitá-lo como única
forma aceitável de uso da língua, e rejeitar tudo o mais que não se enquadrasse nela. O alvo da gramática tradicional sempre
foi a língua escrita, instrumento de conservação e transmissão da cultura. Aliás, o nome gramática significa, originalmente, “arte
de escrever”. Ora, como bem sabemos, o domínio da escrita tem sido desde sempre privilégio de uma escassa minoria de
pessoas. Até hoje, apesar dos progressos econômicos tão alardeados pelo neoliberalismo, o Brasil ocupa o sétimo lugar em
taxa de analfabetismo na América Latina, à frente apenas de países muito menos desenvolvidos, como o Haiti e a República
Dominicana. E já se sabe que os nossos pobres têm menos escolaridade que os pobres de vários países africanos. Não é
exagero, portanto, dizer que uma doutrina que se aplica a ditar regras para o uso de uma minoria privilegiada é uma “doutrina
esotérica”, reservada aos poucos iniciados que têm acesso a ela. Mas esse não é o único aspecto da gramática tradicional que
faz dela uma “doutrina esotérica”. Tal como a astrologia e a alquimia, ela é um conjunto de ensinamentos que não têm
verificação na realidade concreta. É quase impossível encontrar quem realmente escreva ou fale segundo as suas regras. A
“norma culta” veiculada pela gramática tradicional se apóia exclusivamente no uso escrito, formal e literário da língua, e ainda
por cima num uso literário que despreza os autores modernos e contemporâneos, concentrando-se basicamente nos grandes
literatos do passado. Seria mais adequado, portanto, considerá-la uma “norma oculta”. É claro que é dever da escola ensinar
uma norma padrão, que sirva de instrumento adequado para a manifestação lingüística falada e escrita das pessoas cultas de
um país. O problema está na identificação e na imposição dessa norma padrão. E é aí que aparece o outro lado da moeda: a
ciência lingüística, que surgiu na esteira dos estudos gramaticais clássicos, nos primórdios do século XX. Ao contrário da
gramática tradicional, que só se ocupa da língua escrita e do uso considerado “correto”, a lingüística se interessa por todas as
manifestações da linguagem humana. Em vez de impor arbitrariamente uma norma única baseada em usos anacrônicos do
idioma literário, os lingüistas vão a campo para investigar e descrever cientificamente o uso real, quotidiano, vivo da língua
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falada e escrita. Como qualquer ciência, a Lingüística tem o seu objeto de observação, a língua, que pode ser minuciosamente
descrito, analisado, quantificado, submetido a análises estatísticas, testado em experimentos sob rigoroso controle
metodológico etc. No Brasil, por exemplo, existe o grande projeto da Gramática do Português falado, que se baseia em
milhares de horas de gravação da língua usada pelas camadas cultas da nossa população urbana. Infelizmente, porém, os
grandes avanços da lingüística neste século continuam desprezados pelos autores dos compêndios gramaticais e de boa parte
dos livros didáticos usados nas escolas brasileiras para o ensino do que eles chamam de “português”. Fiéis devotos de uma
doutrina tradicional, limitam-se a repetir as velhas listas bolorentas de coletivos, sinônimos, diminutivos, de formas “irregulares”,
de “vícios de linguagem” etc., dando quase sempre os mesmos exemplos de livros do gênero escritos no início do século. É por
isso que tais obras se mostram cheias de incongruências conceituais, incoerências lógicas e definições absurdas que não
resistem ao mais ligeiro confronto com a verdadeira língua portuguesa falada e escrita pelas pessoas cultas do país. São,
portanto, legítimas grimoires ou gramaryes cabalísticas.Assim como a astrologia continua presente no nosso quotidiano graças
às colunas de jornais e revistas, programas de rádio, páginas na Internet etc.; assim como a alquimia ainda garante a venda de
milhões de exemplares de livros “escritos” por meros compiladores das antigas doutrinas ocultas, assim também a gramática
tradicional prossegue, firme e forte, na televisão, no rádio, em CD-ROM e até em publicidade de fast-food! Aparentemente
“moderna” em seus novos disfarces multimidiáticos, ela leva adiante sua missão de pregar uma norma lingüística fossilizada,
arcaica e, no final das contas, inútil – incapaz de “edireitar” a língua “estropiada”, ela só serve para perpetuar uma série de mitos
negativos sobre a língua falada no Brasil, mitos que compõem a base de justificativas para um tremendo preconceito lingüístico,
profundamente arraigado na cultura brasileira. Não é de admirar que todos achem que “brasileiro não sabe português” ou que
“português é muito difícil”. Afinal, só mesmo uns poucos “iluminados” conseguem assimilar em seu espírito, após dura
“iniciação”, todos os mistérios profundos de uma doutrina esotérica.
Por isso, quem quer saber de fato o que é e como é uma língua humana viva, tem que recorrer à ciência lingüística,
que não despreza a gramática tradicional: apenas quer ir além e ampliar (e democratizar) os horizontes de estudo da linguagem
humana.
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