ÉTICA E MORAL DE PROJETOS: Elementos para uma crítica ao universalismo cultural da sociedade contemporânea Ethics and Moral of the Projects: Elements for a critique of the cultural universalism of the contemporary society. Sávio Carlos Desan Scopinho * RESUMO: Este artigo propõe uma compreensão do significado da ética e da moral, estabelecendo suas distinções, numa perspectiva histórica e cultural, priorizando a complexidade teórica e prática da questão na sociedade atual. Apresenta ainda a visão de Gianni Vattimo – filósofo italiano – e de Juan Luis Segundo – teólogo uruguaio – sobre a temática, refletindo sobre o que eles chamam de “ética fraca” e“moral de projetos”, respectivamente, como possibilidades de pensar a ética e a moral diante dos desafios individuais e sociais na contemporaneidade. A conclusão será um conjunto de questões para suscitar o debate e abrir novas perspectivas para pensar criticamente a temática proposta. PALAVRAS CHAVE: Ética, Moral, Projetos, Sociedade Contemporânea. ABSTRACT: This article proposes a comprehension of the meaning of ethics and moral, establishing their distinctions in a historical and cultural perspective, prioritizing the theoretical and practical complexity of the issue in the society nowadays. It also presents a view from Gianni Vattimo - an Italian philosopher - and Juan Luis Segundo - an Uruguayan theologian - about this issue, which they reflect about what they call “poor ethics” and “moral of projects” respectively- as possibilities of thinking about ethics and moral facing individual and social challenges in the contemporary times. The conclusion will be a set of questions in order to encourage the debate and open new perspectives to think critically about the proposed thematic. KEYWORDS: Ethics, Moral, Project, Contemporary Society. * Diretor Acadêmico e Professor das Faculdades Integradas Claretianas de Rio Claro (SP). Tem Doutorado em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma – Itália, Mestrado em Filosofia Social pela PUC de Campinas – SP e MBA em Administração Acadêmica & Universitária pelas Faculdades Integradas São Leopoldo, de Belo Horizonte – MG. 69 I) INTRODUÇÃO A ética se apresenta como uma área da filosofia prática, presente em toda a história da humanidade e necessária diante dos grandes desafios e problemas da atualidade. Desde que se entende o ser humano como ser de cultura, e essa é uma dimensão específica da condição antropológica, a ética faz parte da consciência humana, sendo um elemento que questiona sua existência e sua ação no mundo. O problema é que, devido à pluralidade de culturas e de formas diferenciadas de manifestação simbólica dos seres humanos, fica difícil entender a ética como uma reflexão de valores permanentes e universais. Ela não está pautada em leis necessárias e universais, mas em leis históricas e sociais, como toda característica cultural, fazendo-se presente de maneira plural e situada, dependendo do contexto em que está inserida. 70 Sendo assim, refletir sobre a ética como dimensão antropológica exige pensar a possibilidade de diferentes éticas, tantas quantas forem as formas de manifestação cultural dos povos e das suas relações entre si. Mas, nesse caso, a discussão não é propriamente da ética, mas da moral, que se apresenta com características próprias, pois depende da cultura, do grupo, do povo, da religião, entre outras formas de manifestação do ser humano. Desde já cabe ressaltar que neste artigo não se sustentará a ideia de que ética e moral são sinônimas, como entende Peter Singer, no seu excelente livro que trata da ética prática (2002, p. 09). A questão que permanece, portanto, é: como reconhecer a pluralidade cultural contemporânea e como apresentar uma visão ética e moral que questione os padrões culturais de pretensões universalizantes? Pretende-se discutir essa questão, definindo ética e moral e, ao mesmo tempo, propondo a elaboração de uma ética de projetos como tentativa de resposta aos grandes desafios econômicos, políticos, sociais e culturais presentes na sociedade. Depois de estabelecer a distinção entre ética e moral, serão apresentadas duas abordagens distintas que se interagem quando se pensa a questão diante do mundo atual. A primeira se pauta no “pensamento fraco”, proposto por Gianni Vattimo, filósofo italiano, conhecido por suas reflexões sobre a sociedade pósmoderna, entendida como ruptura da sociedade moderna e industrial. Para ele, somente uma “ética fraca” seria capaz de responder aos desafios enfrentados pelo ser humano no atual contexto marcado pelo processo de globalização. A segunda abordagem é de Juan Luis Segundo, teólogo uruguaio, que trouxe uma rica contribuição quando se pensa a questão da ética na perspectiva filosófico-teológica contemporânea. J.L. Segundo sustenta a ideia de que apenas uma moral de projetos seria capaz de apresentar propostas razoáveis para definir a posição do cristianismo na sociedade moderna. Como teólogo, ele parte de uma análise do cristianismo, mas sua abordagem filosófico-teológica pode ser entendida numa perspectiva mais ampla e numa concepção alternativa que questiona os valores universalizantes da cultura moderna, ultrapassando os limites do próprio cristianismo. Essas duas visões, guardadas as devidas proporções e contextos, são uma rica contribuição para entender as grandes questões éticas que perpassam a história da humanidade e que se fazem cada vez mais atuais diante das transformações e vicissitudes da práxis existencial e social da atualidade. II) CONCEITUAÇÃO E DISTINÇÃO ENTRE ÉTICA E MORAL Existe uma tendência, tanto na ciência como no senso comum, de identificar a ética com a moral. Assim, deve-se pensar em estabelecer uma definição e distinção entre elas, para se delinear, dentro de uma possível clareza, o objetivo que se pretende desenvolver que é a realização de uma ética de projetos. 2.1. O campo específico da moral A moral se refere à regulação dos valores e comportamentos considerados legítimos por uma determinada sociedade, um povo, uma religião, uma tradição cultural etc. Trata-se, portanto, de um fenômeno histórico-social particular, sem o compromisso com a universalidade. Isso significa dizer que existem tantas morais quantas forem as formas de convivência e de estrutura social entre os povos. Por exemplo, a moral católica tem sua importância dentro do contexto cultural de tradição católica. O mesmo acontece com a moral islâmica, que se apresenta como uma forma de comportamento dentro de um contexto religioso de tradição muçulmana. Assim, cada tradição religiosa tem suas formas próprias de manifestação e expressão, embora todas elas apresentem uma característica comum, que é fazer parte de uma determinada cultura, apresentando-se, portanto, com características eminentemente antropológicas. Mesmo no interior das diversas formas de manifestação religiosa, ocorrem várias possibilidades de interpretação, dependendo do contexto e da situação em que se encontram, estabelecendo critérios morais diferenciados. O catolicismo é um exemplo paradigmático quando, por exemplo, em algumas de suas vertentes, sustenta a ideia de que a religião não tem nada a ver com as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais da sociedade. Ou, ao contrário, quando em outra vertente, mostra exatamente que o projeto cristão implica num compromisso de transformação da sociedade. Neste segundo caso é o que 71 apresenta a Teologia da Libertação, que entende “a fé não como um instrumento mágico de salvação, mas um instrumento histórico de humanização”. (MURAD, 1994, p. 85). Na perspectiva da Teologia da Libertação, o catolicismo, assim como outras tradições religiosas - cristãs ou não -, contribui para que realmente se efetive o processo de transformação da sociedade, tornando-a cada vez mais humana e eticamente sustentável. Já para muitos movimentos apostólicos, definidos como conservadores e neo-conservadores, embora não se omita a existência da dimensão política, econômica, social e cultural, a preocupação está voltada para a dimensão espiritual, ocorrendo a valorização do aspecto religioso em detrimento do social. Essa mesma análise pode ser usada também para interpretar o Islamismo, entre outras formas de manifestação religiosa, pois é possível encontrar uma situação similar ao Catolicismo. São apenas dois exemplos, provenientes da tradição religiosa católica e islâmica, que contribuem para entender o problema que está presente também em outras áreas da atuação humana, como a educação, a ecologia, a política, entre outras. 72 2.2. A ética como julgamento da moral A ética deve ser entendida como julgamento da validade das morais ou como uma reflexão crítica sobre a moralidade. Nesse caso, todo comportamento moral passa pelo juízo ético. O caso abaixo, citado por Ferreira Gullar, apresenta um exemplo de comportamento moral que contribui para entender a distinção que será demonstrada entre a ética e a moral. (...) E li também que RukhsanaNaz, de 19 anos, grávida de sete meses de seu namorado de infância, foi morta pelo irmão – estrangulada com um fio de náilon – enquanto a mãe lhe segurava as pernas para que ela não se debatesse. Em defesa da honra. A mãe, enquanto ajudava o filho na sua macabra tarefa, chorava desesperadamente, mas nem por isso desistiu da decisão homicida. Gostaria de não ter que fazer aquilo, mas não podia deixar de fazê-lo. Um poder maior que seu amor de mãe a obrigava. Que poder é esse? O poder das ideias, dos valores culturais – sejam eles, religiosos, morais ou ideológicos – que regem a vida das pessoas. Por isso, creio não haver exagero em dizer que o homem, filho da natureza, é de fato um ser cultural que vive num mundo por ele inventado. (GULLAR, 2005, p. E 10) O ser humano, como ser de cultura, se distingue dos demais seres da natureza exatamente pela capacidade de transformar o meio. Mas essa capacidade pode levar a procedimentos, como os demonstrados por Ferreira Gullar, que coloca a necessidade de um posicionamento ético. Por outro lado, a ética não deve ser entendida apenas e puramente como teoria, como se fosse uma forma abstrata e universal de conhecimento e julgamento do mundo. Ela tem que ser percebida como um conjunto de princípios e disposições voltados para a ação, histórica e socialmente produzida, cujo objetivo é balizar as ações humanas. A ética existe, portanto, como uma referência para os seres humanos em sociedade, de tal modo que os próprios seres humanos possam se tornar cada vez mais humanos, estabelecendo critérios para a análise do comportamento moral. Diante do exemplo apresentado por F. Gullar, caberia a seguinte pergunta: qual deve ser o posicionamento ético diante da moral assumida pela família de RukhsanaNaz? O problema é que tanto a moral quanto a ética não são um conjunto de verdades fixas e imutáveis, mas apresentam um caráter histórico e cultural. Elas expressam várias formas de manifestação que podem variar de lugar para lugar, assim como de tempos em tempos. O que é moral e ético num determinado momento da sociedade pode deixar de ser em outro contexto histórico e social específico, embora não se pode perder de vista que a ética se apresenta como um julgamento da moral. Por isso que, no campo da ética, torna-se necessário especificar as suas tarefas, a fim de entender melhor a razão de sua existência. Talvez, a principal delas seja de se apresentar como principal regulador do desenvolvimento histórico e social da humanidade. Pois, sem a ética, ou seja, sem a referência a princípios humanitários fundamentais, comuns a todos os povos, nações, religiões etc, a humanidade já teria se despedaçado até a sua auto-destruição. A palavra ética se origina do termo grego ethos, que designa a morada humana. Pode-se dizer que a ética, nesse sentido, significa tudo aquilo que ajuda a tornar melhor o ambiente para que seja uma morada saudável. Para que se tenha uma morada saudável é preciso realizar a tríade desafiadora e necessária da experiência humana, que é ter uma existência materialmente sustentável, uma personalidade psicologicamente integrada e uma vida espiritualmente fecunda. Um exemplo de princípios éticos pode ser a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, promulgado pela ONU, no ano de 1948, entendido como: (...) o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente essa Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento 73 e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. (DUDH, 2010, s/p) A “Declaração Universal dos Direitos Humanos” apresenta trinta artigos que sustentam o que deveria ser uma vivência social que reconheça e valorize a experiência humana na sua totalidade. Depois de apresentar o artigo primeiro – “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (DUDH, 2010, s/p) –, a Declaração explicita, no artigo segundo, dois itens que contribuem para entender a questão ética e o respeito pela pluralidade cultural. 74 I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. II) Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. (DUDH, 2010, s/p) Secadaserhumanoforcapazdeincorporaressesprincípios, expresso neste artigo segundo, assim como em todos os 30 artigos da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, como uma atitude prática e teórica diante da vida cotidiana, de modo a pautar e orientar o comportamento humano, com certeza o mundo seria melhor e a morada humana seria mais sustentável. Os direitos humanos, sendo efetivamente respeitados, trariam uma consequência ética inevitável, quando confrontados com a moralidade vigente, muitas vezes exercida sob pressão de interesses religiosos, políticos e econômicos culturalmente determinados. A moral vigente está sujeita a frequentes e graves degenerações e distorções quando não se considera a importância da ética, pautada nos direitos humanos e no pleno exercício da cidadania. 2.3. Os campos de atuação da ética Quando a questão é a ética, surge sempre a indagação sobre os seus campos de atuação. Num primeiro momento, deve-se considerar que sua presença se efetiva em todos os campos de atuação dos seres humanos. O primeiro deles é o espaço da convivência humana, isso porque o ser humano tem o outro ser humano como ser de relação. A atitude ética, nesse caso, seria de uma atitude de amor à humanidade. O segundo campo de atuação da ética é a justiça social. Quando um sistema econômico, político e jurídico produz estruturalmente desigualdades, injustiças, discriminações, exclusões de direitos, pode ser considerado como um sistema eticamente mau, por mais que seja moralmente constituído e legalmente legitimado. A justiça social, que envolve diretamente o sistema econômico, se apresenta como um fator determinante de toda a ordem, ou até mesmo, a desordem social. Quando existe uma reprodução da miséria estrutural, a ética afirma que são necessárias transformações radicais e globais na estrutura do sistema econômico. Outro campo de atuação da ética, que precisa ser cada vez mais efetivado, é o meio ambiente. Isso porque, pelo trabalho, o ser humano, quando transforma a natureza, cumpre a finalidade de sustentar e humanizar o próprio ser humano. Mas, essa sustentação e humanização devem considerar a preservação da natureza e não sua destruição, como está ocorrendo em muitos países no contexto atual. Mais do que nunca, preservar e cuidar do meio ambiente é uma responsabilidade ética diante da existência humana. E, finalmente, outro campo importantíssimo de atuação da ética é a educação, exatamente porque ela se apresenta como uma ação interativa, mediante informações, comunicação e diálogo entre os seres humanos. Em toda educação há um outro ser em relação. E bastaria isso para justificar o quanto a ética está intrinsecamente implicada. Além desses campos, existem aqueles que se referem mais especificamente à cidadania, à política e à corrupção. São campos de atuação que merecem um maior aprofundamento e detalhamento. No que diz respeito à cidadania, é preciso ponderar que nem sempre é uma realidade efetiva, muito menos para todos. A sua realização e respectiva consciência coletiva dessa condição são indicadores do desenvolvimento moral e ético de uma sociedade. Diante da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, fica sempre a questão: o que é ser cidadão? Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais. (PINSKY, p. 09). 75 Nesse caso, a cidadania implica numa ação que caracteriza a dimensão antropológica e social do ser humano que é a ação política. Esta deve ser entendida na perspectiva grega, como ação na pólis, cujo objetivo é a realização plena dos direitos públicos e privados. Um projeto político, qualquer que seja ele, não pode se efetivar sem a realização da ética, pois somente pautado em critérios éticos que se concretizará a vontade coletiva dos cidadãos e o reconhecimento do interesse público. Tal situação não se constata na política quando esta está envolvida pela corrupção. Seja ela ativa ou passiva, a corrupção acaba se tornando uma força contrária, o contrafluxo destruidor de toda ordem social. A corrupção torna, assim, uma negação radical da ética, porque destrói na raiz as instituições criadas para realizar os plenos direitos da cidadania. Assim, pode-se chegar à conclusão que a corrupção é anti-ética, exigindo indignação, resistência e combate; portanto, se apresentando como um dos principais desafios éticos na política. 76 Diante do exposto, a ética se apresenta, portanto, como um princípio regulador da sociedade, cuja finalidade é possibilitar o exercício da cidadania e o reconhecimento dos plenos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Mas, ainda permanece a questão: é possível, de fato, concretizar uma ética e respectiva ação moral que respeitem a condição humana na sua totalidade? Diante desta indagação, se colocam como extremamente pertinentes as propostas éticas de dois pensadores que são, respectivamente, Gianni Vattimo e Juan Luis Segundo. III) A ÉTICA E A MORAL NUMA PERSPECTIVA FILOSÓFICA E TEOLÓGICA A Modernidade e a Pós-Modernidade têm sido objetos de discussão e debate em várias áreas do conhecimento, desde a sociologia passando pela antropologia, pela psicologia, entre outras. Duas áreas que também apresentam uma inquietação sobre a questão é a filosofia e a teologia, ainda mais quando se pensa a relação entre ética e moral. Por isso que, diante dessa preocupação, serão expostas duas interpretações que, embora com visões diferentes a respeito da modernidade e da pós-modernidade, pensam de maneira semelhante, pelo menos na compreensão de que a moral deve ser entendida como moral de projetos e de que a ética tem que ser apresentada não como valor absoluto de uma concepção metafísica tradicional, ou pautado numa possível neutralidade da ciência moderna, mas como valor relativo que interfere diretamente nas relações entre os seres humanos. As duas visões serão discutidas, acreditando que ajudarão a encontrar caminhos diante da desafiadora situação que se encontra o mundo atual, quando se depara com as questões provenientes da ética e da moral. 3.1. A Ética Fraca da Filosofia Pós-Moderna Segundo GianniVattimoépossívelpensarumaéticaalternativaaomodelo inflexível da metafísica tradicional e do método natural das ciências modernas. Seria uma ética que se apresenta sob o signo da pietas em sua dimensão humana e histórica, sem a afirmação de valores previamente estabelecidos (VATTIMO, 1991, pp. 164-179). No mundo contemporâneo constata-se o renascer dos fundamentalismos de tendências tanto secularizantes como religiosas, que representam a pretensão de legitimar uma autoridade moral baseada na natureza e na essência humana. Tais posturas fundamentalistas sustentam-se na ideia de uma natureza humana e universal, legitimando os valores tradicionais presentes, por exemplo, na estrutura familiar patriarcal. Essa concepção surge no contexto de uma mentalidade metafísica, fundamentada em princípios últimos e reconhecida por autoridades que se sentem suas portadoras. Quando os interlocutores da metafísica ocidental e os defensores das ciências modernas afirmam a existência de um princípio último e estruturante, seja ele religioso ou científico, sem a possibilidade de questionamentos, fazem um discurso autoritário. Defendendo a importância dessa mentalidade tradicional, e partindo do fato de que o mundo é bom por natureza, os metafísicos e os naturalistas afirmam que apenas uma determinada noção de cultura e de sociedade pode ser aceita como verdadeira. No campo da ciência, essa ideia se expressa mais diretamente na concepção positivista da cultura, quando sustenta que as leis naturais são modelos perfeitos para compreensão das leis humanas e sociais. Questionando essa posição pretensamente científica, e outras de conotação metafísica, a filosofia pós-moderna apresenta uma nova proposta ética, não mais fundamentada nos valores últimos e naturais. Para G. Vattimo é preciso pensar uma ética a partir de uma relação de valores que possibilitem o diálogo entre as diferentes culturas, através de uma partilha de ideias e da vivência de experiências diversificadas. Pensa-se, portanto, na elaboração de uma ética de projeto e não numa ética como reflexo da ordem natural, como pretende as ciências pautadas numa fundamentação positivista. Os direitos das ciências devem estar relacionados com a consciência comum da sociedade, exercitando uma orientação ética sobre o uso e o desenvolvimento dos resultados obtidos. Os cientistas das mais diferentes áreas de atuação deveriam colocar em questão os valores morais e éticos de suas pesquisas e, ao mesmo tempo, se deixar orientar por esses mesmos valores. Encaminhar os resultados das ciências à consciência comum da sociedade deveria ser uma preocupação da linguagem científica, apresentando-se acima de tudo como um fato ético. 77 No geral, a verdade da ciência é transportada para a consciência comum em termos essencialmente retóricos e até mesmo abstratos ou por demais herméticos. As teorias científicas são provadas em base nas observações possíveis, dentro de um determinado contexto específico, e têm sentido somente no interior das mesmas teorias ou de seus respectivos paradigmas. Mas a história das ciências não se apresenta apenas como um puro jogo de forças ou de progresso no conhecimento objetivo da realidade previamente estabelecida. Assim, a filosofia pós-moderna, de matriz hermenêutica, propõe uma operação de radicalização com respeito à aceitação – geral e genérica – da natureza retórica da ciência, insistindo na sua historicização. (VATTIMO, 1985, p. 146) 78 Para os filósofos da hermenêutica contemporânea pós-moderna existe uma estreita ligação entre ética e crítica anti-metafísica, exigindo a reivindicação de uma nova ética acompanhada de uma desconstrução do saber instituído. Nas raízes da violência metafísica e das ciências modernas se encontra uma relação autoritária que se estabelece entre o fundamento e o fundado, entre o ser verdadeiro e a aparência efêmera. G. Vattimo critica essa visão metafísica, entendida como demonstração racional da existência de Deus e como um saber epistêmico e demonstrativo. A proposta vattimiana coloca em discussão o valor mesmo da racionalidade enquanto tal, na medida em que se apresenta como força e potencialidade do logos na sua relação cognoscitiva com o mundo. A negação do saber metafísico e de sua lógica surge substancialmente de uma exigência ética. Ocorre, assim, uma atitude de indignação diante da violência da razão (logos) ocidental, enquanto esta é apresentada como única possibilidade de vivência e interpretação do real. A razão se legitima por uma ação violenta, que ocorre de maneira dramaticamente concreta na história. Sob a forma de um saber forte, a cultura ocidental exerce uma ação autoritária sobre as concepções culturais que não se enquadram no modelo dominante. A violência se manifesta por intermédio da interrupção arbitrária do diálogo, caracterizando a atitude do pensamento metafísico e de toda filosofia com pretensões de ultimidade. O acolhimento da razão ocidental, como expressão de uma visão metafísica e científica do mundo, conduz a uma verdade opressiva e despótica, encaminhando apenas para a aceitação da própria razão vigente. A exigência ética da pós-modernidade nasce da instância crítica do questionamento da metafísica tradicional e da ciência moderna. Para a hermenêutica pós-moderna, uma interpretação ontológica coerente do ser humano seria compreendê-lo como linguagem e expressão da racionalidade do real. A linguagem é a sede e o lugar de atuação concreta do ser. É no uso e na interpretação da linguagem que se identifica o ethos comum de uma determinada sociedade histórica. Enfim, a linguagem se apresenta como mediação da experiência total do mundo. (VATTIMO, 1985, p. 140) Portanto, torna-se necessário recuperar o valor do diálogo e a aceitação do diferente, confrontando cada experiência particular com as diversas maneiras de compreensão da existência, expressas nas diferentes formas de linguagem. Uma atitude diferente dessa fecha-se num pensamento autoritário, surdo às exigências e às inquietudes do ser humano, como ser jogado no mundo, para usar uma expressão do filósofo alemão, Martin Heidegger. O fato é que não se pode mais aceitar uma visão totalitária e violenta do mundo, ainda presente na filosofia ocidental, marcadamente sustentada por um saber absoluto de conotações racionais e universalizantes. É o caso, por exemplo, do sistema filosófico elaborado por G.W.F. Hegel, entendido como racionalismo historicista e muito criticado por G. Vattimo, quando comenta a proposta filosófica de S. Kierkegaard, exatamente pelo seu fundamento de pretensões metafísicas e científicas totalizantes. (VATTIMO, 1997, p. 26) O pensamento metafísico tradicional e a ciência moderna acabam impondo regras que limitam e cerceiam qualquer exercício de liberdade e de diálogo inter-subjetivo. Quando o saber metafísico é imposto como saber absoluto, com pretensões de totalidade, elimina-se a individualidade e a diferença; e esse processo ocorre também com a ciência. No discurso epistêmico da metafísica tradicional e da cientificidade moderna, apresenta-se um saber depositário de uma verdade última e definitiva, fazendo com que a palavra seja cedida apenas à racionalidade ocidental. Para o modelo metafísico, de conotações essencialistas, e para a ciência, de fundamentação naturalista, o outro deve ter apenas uma silenciosa atitude de contemplação da verdade, previamente apresentada e estabelecida. Nesse contexto, a violência está exatamente na proibição de questionar e aceitar o posicionamento do outro em nome de princípios primeiros e fundamentais. Nessa concepção da filosofia ocidental ocorre uma verdadeira violência da razão, que se impõe sem conceder a possibilidade de réplica ou de resposta. Tal situação gera sérios problemas para a compreensão dos valores humanos, principalmente ligados à discussão ética. Para G. Vattimo, diante dos desafios morais colocados pela modernidade, estruturada numa concepção metafísica e científica, torna-se necessário o resgate da reflexão filosófica de F. Nietzsche. Para a filosofia nietzschiana, a história da moral se apresenta como estratégia dos fracos para legitimar a felicidade dos fortes, descarregando neles a responsabilidade e a culpa pela condição de infelicidade em que se encontram. Nessa interpretação, os fracos se sentem divididos e não reconciliados. (VATTIMO, 1999 b, p. 61) Na legitimação dos fracos 79 pelos fortes se estabelece uma crise dos valores, das verdades fortes e da lógica metafísica, todos sustentados por uma comum vontade de potência e por uma mentira que se apresenta como verdade. Efetivamente, acontece uma situação de violência que se manifesta numa verdade abstrata e nos primeiros princípios, fazendo da ética uma afirmação radical de uma pretensa lógica de domínio. Segundo G. Vattimo, interpretando F. Nietzsche, o pensamento forte – metafísico, totalitário e totalizador – conduziu para uma ação violenta, expressa na negação de qualquer posição contrária ou questionadora. Torna-se necessária uma reversão desse quadro, propondo uma nova interpretação ética da humanidade. 80 Assim, o pensamento fraco da filosofia vattimiana se apresenta como uma reflexão que surge da experiência pós-moderna, definida como «nihilismo consumado», para usar uma expressão nietzschiana. O nihilismo tem sua razão de ser na proposta ética da pós-modernidade, quando possibilita a liberação de valores supremos, sustentando que nenhum valor pode ser imposto pela força e que todo valor absoluto é algo mítico e potencialmente violento. Para a filosofia pós-moderna há a necessidade de se assumir uma experiência menos intensa e mais difusa do valor, relativizando a contraposição entre valor e aparência, e viabilizando a eliminação da violência, a partir da ética. A ética fraca, exatamente pela sua condição de fraqueza, defende a liberdade e a igualdade, negando uma fundamentação última que controle a vida dos seres humanos. Na pós-modernidade deve-se refletir sobre uma ética da dissolução do ser, que chega a transcender a lógica da luta pela vida e pela simples sobrevivência. A solidariedade para com todo o ser vivente se dá no caminho da eliminação de todo valor forte e superior, possibilitando a igualdade e o respeito pelo diferente e suas diferentes formas de manifestação. A racionalidade moderna perde, assim, a sua força e liberta o ser humano para uma nova visão da realidade. A ética que surge do pensamento fraco questiona todo valor que se apresenta como absoluto. Assim, o mais expressivo e original da proposta pós-moderna de G. Vattimo é a condução para uma vivência mais «experimental» e «aventureira» do cotidiano, com maiores possibilidades de escolha, quando comparada com outras épocas, tendo a ética de projeto como referência de toda ação e reflexão. A filosofia pós-moderna seria a resposta mais adequada para a compreensão do pluralismo tardo-moderno, embora não necessariamente a mais verdadeira. Pois, se fosse apresentada como verdade única e absoluta, assumiria também uma visão totalitária, negando a sua condição hermenêutica e acabaria legitimando exatamente o que se propõe a questionar. Por outro lado, não se pode negar a possibilidade de discutir princípios racionais e éticos no contexto pós-moderno. Mas os termos devem ser bem definidos e delimitados, para não assumir uma postura unitária e totalizadora que tanto se critica na metafísica tradicional e nas ciências modernas. Para G. Vattimo, a ética fraca se estrutura nas reações aos absolutismos e às certezas metafísicas, assumindo traços de finitude, precariedade e incerteza. A perspectiva da ética de projeto, pautada no pensamento fraco, possibilita uma abertura ao outro e à necessidade da tolerância como valor fundamental da experiência humana. Faz-se necessária uma práxis filosófica que privilegie a comunicação através do diálogo nas suas formas mais diversas e múltiplas, respeitando a pluralidade e a diversidade das culturas. A filosofia pós-moderna propõe, portanto, uma interpretação nãometafísica do ser, interpretação esta entendida como teoria do enfraquecimento e característica constitutiva do próprio ser como evento no fim da modernidade. (VATTIMO, 1999 a, pp. 25-26) O pensamento fraco privilegia uma lógica hermenêutica, através de uma aproximação cética com as categorias metafísicas, negando radicalmente toda ultimidade. A proposta do pensamento fraco é fazer oposição à violência de um logos que sempre se julgou no direito de ter a última palavra, impedindo qualquer possibilidade de diálogo. O conceito de verdade passa, assim, por uma modificação, enfraquecendo-se e negando a existência de um mundo pretensamente objetivo. Para a postura filosófica pós-moderna não existem fatos, metafísica e cientificamente comprovados, mas um universo de símbolos que precisam ser decifrados e interpretados dentro de cada contexto cultural em que estão inseridos. O ser humano, como ser-no-mundo, é jogado nesse mesmo mundo, inserido num horizonte e numa rede de significados que manifesta a sua finitude. O que se apresenta como imutável, transcendente e infinito na metafísica tradicional e nas ciências modernas nada mais é que uma forma violenta da vontade de potência de se impor sobre o ser humano, negando sua irredutível historicidade. O pensamento fraco na ótica pós-moderna de G. Vattimo está consciente do fato de que também a sua proposta não é nada mais do que uma leitura parcial e provisória da sociedade humana. Isso porque não existe superioridade de uma interpretação filosófica sobre a outra, como querem os teóricos da metafísica e das ciências. Mas, o pensamento pós-moderno se apresenta como uma tentativa de resposta, talvez a mais adequada às interrogações e às exigências do contexto contemporâneo, sem pretensões universalizantes. A visão da realidade, na ótica vattimiana e, portanto, pós-moderna, apresenta várias possibilidades de interpretação, sendo a ética uma dessas possibilidades com diversas formas de manifestação. Assim, podem-se usar 81 diferentes adjetivos para identificar as diversas possibilidades da ética, tais como: pensar uma ética do finito, que elimina a violência e toda forma de saber estável, pretensamente verdadeiro e totalitário; uma ética do fragmento, que acolhe a singularidade da existência em sua dimensão histórica, inserido no interior de uma determinada tradição cultural; uma ética que se centra sobre o princípio da caridade (pietas) no confronto das tradições e dos «monumentos»; uma ética do acolhimento, da tolerância e do diálogo, contrária a toda forma de ultimidade que inviabiliza o encontro inter-subjetivo; e, enfim, uma ética da liberdade, como capacidade do ser humano de mover-se na rede de questões e tradições nas quais se encontra com os outros e com o mundo. Nesse caso, a liberdade é apresentada como a melhor maneira de corresponder à abertura histórico-destinal na qual o ser humano é jogado. O mundo apresenta-se como uma realidade múltipla, fazendo com que se viva a experiência da liberdade como oscilação contínua entre pertença e estranhamento. (VATTIMO, 2000, p. 19) 82 Conclui-se, portanto, que o pensamento pós-moderno, na proposta filosófica de G. Vattimo, não se apresenta como um conjunto de regras objetivas e estáveis no campo da ética e da moral, mas a partir do binômio caritas-pietas. Sua crítica anti-metafísica quer ser uma defesa da singular individualidade e especificidade das diversas culturas. A ética fraca contraria um modo de argumentação que privilegia o abstrato em detrimento do concreto, a totalidade diante do fragmento e a transcendência em relação à história. Ocorre assim uma racionalidade fraca, reconhecendo diversas verdades de acordo com cada universo cultural determinado, não existindo uma verdade única e válida universalmente. O pensamento fraco fundamenta, portanto, o que se chamou de ética fraca; e esta, por sua vez, possibilita a realização de uma ética de projetos. Assim, entende-se que o projeto ético de G. Vattimo oferece uma rica contribuição para compreender, enfrentar e superar os desafios econômicos, sociais, políticos e culturais da sociedade contemporânea. Basta ter discernimento, senso de responsabilidade e respeito pelo diferente. 3.2. A Moral de Projetos Juan Luis Segundo, teólogo uruguaio, foi outro pensador que sistematizou uma reflexão sobre a ética e a moral, sustentando a ideia de uma moral de projetos. Sem refletir sobre a mudança da modernidade para a pós-modernidade, o autor apresenta uma crítica à modernidade a partir dos valores presentes na própria sociedade moderna. Nesse sentido, seu pensamento difere de G. Vattimo que, à luz de F. Nietzsche e M. Heidegger, decreta o fim da modernidade. J.L. Segundo faz a crítica à modernidade a partir de algumas áreas do conhecimento presentes na própria modernidade, tais como o marxismo, a psicanálise, a física quântica e a teoria da evolução. Sem a pretensão de entrar no universo conceitual - teológico e filosófico - do pensador uruguaio, pretende-se apresentar sua visão sobre a moral de projetos, dentro dos referenciais propostos por ele. Para realização do projeto cristão, temática central em todas as obras de J.L. Segundo, torna-se necessária a concretização do amor, que ocorre pelo reconhecimento da liberdade. Só que esse projeto se realiza na história e nunca fora dela. Na crítica feita pelo teólogo uruguaio à Igreja Católica, palco constante de suas inquietações, surge a preocupação com a santidade do cristão. O autor procura mostrar que na história da espiritualidade católica, a santidade, quase sempre, apresentou um ideal sem preocupações históricas concretas. Até pelo contrário, a santidade se entendia como negação da própria história. Assim resulta, por uma parte explicável e, por outra, até certo ponto incoerente, que a Igreja, na prática, só continue canonizando casos “excepcionais” com respeito a esta sua tarefa principal: o dos mártires da fé (em geral vítimas da falta de diálogo Igreja-mundo) e o dos religiosos, frequentemente fundadores de ordens e congregações religiosas. (SEGUNDO, 1983, I, p. 303) A Igreja, diante desse posicionamento, se torna incoerente exatamente por não mostrar uma imagem pública de santidade, de acordo com sua missão no mundo e na história. Tal situação é contrária ao que propõe J.L. Segundo, quando apresenta sua concepção pautada na moral de projetos. Para ele, os projetos surgem da própria condição humana e implicam na utilização de instrumentos históricos que podem ajudar ou impedir a realização de projetos criativos. A desgraça está em que todo projeto que sai de nós, tem que se realizar com instrumentos “emprestados”, dotados de vida própria e de iniciativa ou dinamismos que ignoram ironicamente nossas pretensões de utilizá-los. E estes instrumentos emprestados não só são coisas fora de mim: são também meu próprio corpo e minha própria mente e meus próprios afetos e as estruturas físicas e sociais nas que estou inscrito. (SEGUNDO, 1983, I, p. 230) Todo projeto é condicionado por estruturas que limitam o campo de possibilidades. Essas estruturas fazem parte da realidade que cerca inevitavelmente o ser humano, possibilitando ou não suas ações. E mais. Tais ações se realizam a partir de dualidades que se manifestam, por exemplo, através 83 de mesclas de amor e egoísmo. Assim: “Todos os nossos projetos são uma mescla de omissão, cumplicidade e pecado, por um lado; e de amor, por outro (cf. Rm. 7, 25).” (SEGUNDO, 1995, p. 233) O projeto cristão implica na busca de superação das estruturas ou ainda das leis que impedem a realização do amor. E assim vai aparecendo uma preocupação de ordem moral, que pode ser percebida, por exemplo, na prática de Jesus, quando apresenta um critério básico para o julgamento da moral. 84 O critério básico da moralidade cristã estará dado, portanto, pelas características do projeto humano, por aquilo que o coração do homem lhe dita antes das necessidades de seus semelhantes. João escreverá mais tarde, não sem razão, e em estreita lógica com o que acabamos de ver, que o único mandamento que Jesus deixa a seus discípulos é, de maneira paradoxal, não religioso: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei.” Claro, este é o mandamento de Deus, esta é a “religião” pura e sem mancha: aquela que não aparece como religião nem se justifica como tal, aquela que radica em valores que um observador estranho chamaria simplesmente “humanos”. (SEGUNDO, 1985, I, p. 58) Tomando como referência esse único mandamento do amor, torna-se imprescindível a reflexão moral do apóstolo Paulo, autor de várias cartas do início do cristianismo. A visão de Paulo, interpretada por J.L. Segundo, irá enfatizar que tanto a ética quanto a moral jamais podem ser definidas “a priori”, onde seus elementos já seriam elaborados antes mesmo da constatação de um fato concreto. A ética e a moral se fazem na história, condição que as tornam capazes de detectar as suas próprias limitações e, ao mesmo tempo, enfatizar suas possibilidades. Nesse sentido, pode-se dizer que a proposta moral de Paulo ajuda a compreender os desafios da sociedade atual, como constata o teólogo uruguaio, quando afirma que “a moral que nos ensina Paulo, como consequência da mensagem de Cristo, não é apenas criadora e progressiva: é também social”. (SEGUNDO, I, 1976, p. 135) Nessa perspectiva moral, o ser humano é entendido como co-criador das obras de Deus; portanto, como “dono do mundo”. Assim, a proposta para a moral não é a discussão sobre a licitude ou não dos atos humanos; a questão que se coloca é sobre sua conveniência ou não. “Ser ´dono de tudo` (= libertado da Lei mosaica, natural e eclesiástica) supõe que, sobre tudo o que possui, não é razoável perguntar pela licitude ou ilicitude.” (SEGUNDO, 1995, p. 342) E, assim, se coloca uma preocupação para a Igreja, que na história, sempre julgou ter critérios para definir o que é lícito e o que é ilícito. Nessa perspectiva, a moral de Paulo vem trazer uma proposta diferente para compreensão da questão. No plano da ética ou, se se prefere, da moral, o cristão até pouco tempo atrás estava acostumado a perguntar à autoridade magisterial a clássica pergunta: é lícito fazer isto? A lei de Deus o permite? Pois bem, não apenas o Vaticano II assumiu, nessas questões, uma explícita e clara ‘direção antropocêntrica’. Também ao ler passagens centrais de Paulo - o que ele chama ‘seu’ evangelho -, essas passagens lhe dizem que, como filho de Deus, é o homem, enquanto herdeiro maior de idade, ‘dono de tudo’ (Gl. 4,1;1Cor.3,21) e que, em consequência, suas questões morais estão em função de seus projetos de amor (Gl.5,1.13c-14), como colaborador (= synergos) criativo do projeto do próprio Deus (1Cor. 3,9). Não se trata, então, de perguntar pelo permitido ou pelo proibido em sua própria casa, mas pelo conveniente para seu projeto (1Cor.6,12;10,23-29) que é tão único e irrepetível como sua pessoa e seu contexto.» (SEGUNDO, 1995, pp. 143-144) A forma de apresentação da temática traduz, de forma sintética e profunda, toda a interpretação que J.L. Segundo sugere a respeito da perspectiva moral de Paulo. Assim, a moral de projetos, na perspectiva paulina, suscita uma séria reflexão com relação à postura moral da Igreja em relação aos problemas e questões colocados pela realidade social e pela própria vida interna da Igreja. Por outro lado, ampliando sua compreensão, tal abordagem pode ser entendida também não apenas a uma determinada Instituição, no caso a Igreja Católica, mas à sociedade como um todo, quando o que está em questão se refere à presença e atuação do ser humano, respeitados os seus direitos, individuais e sociais, assim como os direitos da própria natureza. IV) PERSPECTIVAS PRÁTICAS E TEÓRICAS DA ÉTICA FRACA E DA MORAL DE PROJETOS Qual é a conclusão que pode ser proposta diante do tema desenvolvido? Em princípio, nenhuma. Isso pelo fato de que não se pretende apresentar conclusões, mas deixar espaço para um conjunto de indagações diante das questões levantadas. Por outro lado, antes de sistematizar tais indagações, faz-se necessário um rápido resumo crítico do que foi sugerido até aqui. A primeira temática versou sobre a distinção entre ética e moral. Embora ambas – ética e moral – dizem respeito a uma determinada realidade histórica, a moral sempre se refere a um grupo cultural específico. A ética, por sua vez, diz respeito a uma reflexão crítica sobre a moral, não deixando de ser também uma dimensão humana, sujeita a alterações diante dos novos paradigmas que são presenciados na evolução – ou involução? – da humanidade. Na tentativa de sistematizar a discussão, deparou-se com várias questões no decorrer da 85 exposição, principalmente com relação às tarefas da ética e seu campo de atuação. Um segundo momento procurou apresentar a abordagem de Gianni Vattimo sobre o que se convencionou chamar de “ética fraca”. Numa sociedade marcadamente pós-moderna, entendida como ruptura da modernidade, é preciso questionar os valores essencialistas de uma visão metafísica ou científico-positivista. Somente uma ética a partir do relativo da história será capaz de apresentar caminhos – não necessariamente soluções – diante dos grandes desafios sociais, políticos, econômicos e culturais da sociedade contemporânea. 86 O terceiro momento constituiu-se de uma rápida exposição da concepção de Juan Luis Segundo sobre a visão cristã a partir do que ele define como “moral de projetos”. Sem fazer uma ruptura com a modernidade, o teólogo uruguaio se pauta em pensadores oriundos da própria modernidade para sustentar sua postura ética e sua reflexão sobre a moral de projetos. Sua interpretação a respeito da ética e da moral, embora esteja preocupada com uma instituição religiosa em particular – a Igreja Católica –, tem uma amplitude que ultrapassa os limites do próprio catolicismo, fazendo-se valer também para outras instituições nas quais o ser humano está diretamente envolvido. Assim, diante dessas rápidas considerações, permanecem várias indagações que demandam uma atenção de todos que querem encontrar possíveis soluções para os problemas éticos e morais da sociedade contemporânea. Para finalizar, serão propostas várias perguntas que deixarão os temas abertos para novas questões e, ao mesmo tempo, novas tentativas de respostas. 1. Faz sentido pensar uma ética capaz de estabelecer um juízo sobre a moral, quando a própria ética também se refere a valores históricos e sociais? Por outro lado, como no caso “RukhsanaNaz, de 19 anos, grávida de sete meses de seu namorado de infância”, é possível negligenciar a necessidade de buscar um valor universal que estabeleça uma ação crítica diante de tamanha atrocidade? Ou será que, em nome de uma determinada cultura, deve-se reconhecer a legitimidade de tal ação, entendendo que se justifica no contexto em que foi realizada? Qual seria o papel dos direitos humanos nesse contexto apresentado? 2. A “ética fraca” proposta por G. Vattimo é capaz de oferecer elementos para alterar os valores de uma sociedade cada vez mais individualista, onde prevalecem os interesses de uma minoria política, econômica, social e cultural? Tal posicionamento ético não poderia também justificar uma postura autoritária, exatamente por saber que as ideias que dominam uma determinada sociedade são sempre as ideias de uma classe dominante? Por outro lado, até que ponto é possível o reconhecimento de várias éticas, quando se entende que todas elas não passam de uma interpretação? Como entender a liberdade enquanto reconhecimento da individualidade sem deixar de desrespeitar a liberdade do outro? 3. É possível propor uma moral de projetos, segundo a concepção segundiana, fundamentada num autor cristão – no caso de Paulo – quando ele mesmo foi relido, muitas vezes, numa ótica legitimadora de um universalismo cultural, fundamentado na doutrina cristã? Caso essa possibilidade seja razoável, e na presente reflexão isto é considerado como possível, não se corre o risco de legitimar os mesmos problemas que foram apresentados na ética vattimiana? Há condições de repensar as instituições humanas numa perspectiva ética e moral, quando se sabe que elas adquirem uma inteligibilidade própria que ultrapassa os limites das liberdades individuais? 4. Portanto, pode-se perguntar sobre qual é, de fato, a contribuição dos dois pensadores, um atuando especificamente no campo da filosofia e outro no campo da teologia. A pretensão destas páginas não foi estabelecer uma comparação entre os dois, o que seria uma tarefa interessante e necessária. A intenção foi mostrar que ambos têm uma concepção comum quando se trata de refletir sobre a questão da ética e da moral no contexto da sociedade contemporânea. Afinal, os questionamentos apresentados por eles partem do princípio de que não é possível pensar uma cultura, muito menos uma ética e uma moral, que se proponham universalizantes e totalizadoras. Deve-se levar em conta a historicidade e, portanto, a relatividade dos valores humanos, sejam eles morais, éticos, políticos, religiosos, científicos, entre outros. Somente uma “moral de projetos”, na perspectiva segundiana, e uma “ética fraca”, na perspectiva vattimiana, contribuiriam para propor alternativas diante dos impasses que se encontra o ser humano, num momento que exige cada vez mais discernimento, espírito crítico e atuação consciente e cidadã. Assim, as indagações permanecem diante do desafio de se pensar a questão da ética e da moral na sociedade contemporânea. O debate, de origem “aporética”, apresenta uma conclusão que jamais será conclusiva, isso devido a uma razão muito simples: enquanto o ser humano está vivo e tem capacidade de perguntar, a ética e a moral sempre serão dimensões antropológicas que questionarão todo e qualquer tipo de linguagem, seja ela política, religiosa, jurídica, entre outras. Cabe ao próprio ser humano estar sempre atento a essa situação, tão presente como o ar que se respira e a comida que alimenta. 87 V) BIBLIOGRAFIA BOFF, Leonardo. Ethos mundial. Um consenso mínimo entre os humanos. 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