ÉTICA E MORAL DE PROJETOS: Elementos para uma crítica ao

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ÉTICA E MORAL DE PROJETOS:
Elementos para uma crítica
ao universalismo cultural da
sociedade contemporânea
Ethics and Moral of the Projects: Elements for a critique of the cultural
universalism of the contemporary society.
Sávio Carlos Desan Scopinho *
RESUMO: Este artigo propõe uma compreensão do significado da ética e da moral, estabelecendo
suas distinções, numa perspectiva histórica e cultural, priorizando a complexidade teórica e prática
da questão na sociedade atual. Apresenta ainda a visão de Gianni Vattimo – filósofo italiano – e de
Juan Luis Segundo – teólogo uruguaio – sobre a temática, refletindo sobre o que eles chamam de
“ética fraca” e“moral de projetos”, respectivamente, como possibilidades de pensar a ética e a moral
diante dos desafios individuais e sociais na contemporaneidade. A conclusão será um conjunto
de questões para suscitar o debate e abrir novas perspectivas para pensar criticamente a temática
proposta.
PALAVRAS CHAVE: Ética, Moral, Projetos, Sociedade Contemporânea.
ABSTRACT: This article proposes a comprehension of the meaning of ethics and moral, establishing
their distinctions in a historical and cultural perspective, prioritizing the theoretical and practical
complexity of the issue in the society nowadays. It also presents a view from Gianni Vattimo - an
Italian philosopher - and Juan Luis Segundo - an Uruguayan theologian - about this issue, which
they reflect about what they call “poor ethics” and “moral of projects” respectively- as possibilities
of thinking about ethics and moral facing individual and social challenges in the contemporary
times. The conclusion will be a set of questions in order to encourage the debate and open new
perspectives to think critically about the proposed thematic.
KEYWORDS: Ethics, Moral, Project, Contemporary Society.
* Diretor Acadêmico e Professor das Faculdades Integradas Claretianas de Rio Claro (SP). Tem Doutorado em
Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma – Itália, Mestrado em Filosofia Social pela
PUC de Campinas – SP e MBA em Administração Acadêmica & Universitária pelas Faculdades Integradas São
Leopoldo, de Belo Horizonte – MG.
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I) INTRODUÇÃO
A ética se apresenta como uma área da filosofia prática, presente em toda a
história da humanidade e necessária diante dos grandes desafios e problemas da
atualidade. Desde que se entende o ser humano como ser de cultura, e essa é uma
dimensão específica da condição antropológica, a ética faz parte da consciência
humana, sendo um elemento que questiona sua existência e sua ação no mundo.
O problema é que, devido à pluralidade de culturas e de formas
diferenciadas de manifestação simbólica dos seres humanos, fica difícil entender
a ética como uma reflexão de valores permanentes e universais. Ela não está
pautada em leis necessárias e universais, mas em leis históricas e sociais, como
toda característica cultural, fazendo-se presente de maneira plural e situada,
dependendo do contexto em que está inserida.
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Sendo assim, refletir sobre a ética como dimensão antropológica exige
pensar a possibilidade de diferentes éticas, tantas quantas forem as formas de
manifestação cultural dos povos e das suas relações entre si. Mas, nesse caso,
a discussão não é propriamente da ética, mas da moral, que se apresenta com
características próprias, pois depende da cultura, do grupo, do povo, da religião,
entre outras formas de manifestação do ser humano. Desde já cabe ressaltar que
neste artigo não se sustentará a ideia de que ética e moral são sinônimas, como
entende Peter Singer, no seu excelente livro que trata da ética prática (2002, p. 09).
A questão que permanece, portanto, é: como reconhecer a pluralidade cultural
contemporânea e como apresentar uma visão ética e moral que questione os
padrões culturais de pretensões universalizantes?
Pretende-se discutir essa questão, definindo ética e moral e, ao mesmo
tempo, propondo a elaboração de uma ética de projetos como tentativa de
resposta aos grandes desafios econômicos, políticos, sociais e culturais presentes
na sociedade.
Depois de estabelecer a distinção entre ética e moral, serão apresentadas
duas abordagens distintas que se interagem quando se pensa a questão diante
do mundo atual. A primeira se pauta no “pensamento fraco”, proposto por Gianni
Vattimo, filósofo italiano, conhecido por suas reflexões sobre a sociedade pósmoderna, entendida como ruptura da sociedade moderna e industrial. Para ele,
somente uma “ética fraca” seria capaz de responder aos desafios enfrentados pelo
ser humano no atual contexto marcado pelo processo de globalização.
A segunda abordagem é de Juan Luis Segundo, teólogo uruguaio, que
trouxe uma rica contribuição quando se pensa a questão da ética na perspectiva
filosófico-teológica contemporânea. J.L. Segundo sustenta a ideia de que apenas
uma moral de projetos seria capaz de apresentar propostas razoáveis para definir
a posição do cristianismo na sociedade moderna. Como teólogo, ele parte de
uma análise do cristianismo, mas sua abordagem filosófico-teológica pode ser
entendida numa perspectiva mais ampla e numa concepção alternativa que
questiona os valores universalizantes da cultura moderna, ultrapassando os
limites do próprio cristianismo.
Essas duas visões, guardadas as devidas proporções e contextos, são
uma rica contribuição para entender as grandes questões éticas que perpassam
a história da humanidade e que se fazem cada vez mais atuais diante das
transformações e vicissitudes da práxis existencial e social da atualidade.
II) CONCEITUAÇÃO E DISTINÇÃO ENTRE ÉTICA E MORAL
Existe uma tendência, tanto na ciência como no senso comum, de
identificar a ética com a moral. Assim, deve-se pensar em estabelecer uma
definição e distinção entre elas, para se delinear, dentro de uma possível clareza, o
objetivo que se pretende desenvolver que é a realização de uma ética de projetos.
2.1. O campo específico da moral
A moral se refere à regulação dos valores e comportamentos considerados
legítimos por uma determinada sociedade, um povo, uma religião, uma tradição
cultural etc. Trata-se, portanto, de um fenômeno histórico-social particular, sem
o compromisso com a universalidade. Isso significa dizer que existem tantas
morais quantas forem as formas de convivência e de estrutura social entre os
povos. Por exemplo, a moral católica tem sua importância dentro do contexto
cultural de tradição católica. O mesmo acontece com a moral islâmica, que se
apresenta como uma forma de comportamento dentro de um contexto religioso
de tradição muçulmana. Assim, cada tradição religiosa tem suas formas próprias
de manifestação e expressão, embora todas elas apresentem uma característica
comum, que é fazer parte de uma determinada cultura, apresentando-se,
portanto, com características eminentemente antropológicas.
Mesmo no interior das diversas formas de manifestação religiosa, ocorrem
várias possibilidades de interpretação, dependendo do contexto e da situação em
que se encontram, estabelecendo critérios morais diferenciados. O catolicismo é
um exemplo paradigmático quando, por exemplo, em algumas de suas vertentes,
sustenta a ideia de que a religião não tem nada a ver com as transformações
políticas, econômicas, sociais e culturais da sociedade. Ou, ao contrário, quando
em outra vertente, mostra exatamente que o projeto cristão implica num
compromisso de transformação da sociedade. Neste segundo caso é o que
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apresenta a Teologia da Libertação, que entende “a fé não como um instrumento
mágico de salvação, mas um instrumento histórico de humanização”. (MURAD,
1994, p. 85). Na perspectiva da Teologia da Libertação, o catolicismo, assim como
outras tradições religiosas - cristãs ou não -, contribui para que realmente se
efetive o processo de transformação da sociedade, tornando-a cada vez mais
humana e eticamente sustentável. Já para muitos movimentos apostólicos,
definidos como conservadores e neo-conservadores, embora não se omita a
existência da dimensão política, econômica, social e cultural, a preocupação
está voltada para a dimensão espiritual, ocorrendo a valorização do aspecto
religioso em detrimento do social. Essa mesma análise pode ser usada também
para interpretar o Islamismo, entre outras formas de manifestação religiosa, pois
é possível encontrar uma situação similar ao Catolicismo.
São apenas dois exemplos, provenientes da tradição religiosa católica e
islâmica, que contribuem para entender o problema que está presente também
em outras áreas da atuação humana, como a educação, a ecologia, a política,
entre outras.
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2.2. A ética como julgamento da moral
A ética deve ser entendida como julgamento da validade das morais ou
como uma reflexão crítica sobre a moralidade. Nesse caso, todo comportamento
moral passa pelo juízo ético. O caso abaixo, citado por Ferreira Gullar, apresenta
um exemplo de comportamento moral que contribui para entender a distinção
que será demonstrada entre a ética e a moral.
(...) E li também que RukhsanaNaz, de 19 anos, grávida de sete meses
de seu namorado de infância, foi morta pelo irmão – estrangulada
com um fio de náilon – enquanto a mãe lhe segurava as pernas para
que ela não se debatesse. Em defesa da honra. A mãe, enquanto
ajudava o filho na sua macabra tarefa, chorava desesperadamente,
mas nem por isso desistiu da decisão homicida. Gostaria de não ter
que fazer aquilo, mas não podia deixar de fazê-lo. Um poder maior
que seu amor de mãe a obrigava. Que poder é esse? O poder das
ideias, dos valores culturais – sejam eles, religiosos, morais ou
ideológicos – que regem a vida das pessoas. Por isso, creio não haver
exagero em dizer que o homem, filho da natureza, é de fato um ser
cultural que vive num mundo por ele inventado. (GULLAR, 2005, p.
E 10)
O ser humano, como ser de cultura, se distingue dos demais seres
da natureza exatamente pela capacidade de transformar o meio. Mas essa
capacidade pode levar a procedimentos, como os demonstrados por Ferreira
Gullar, que coloca a necessidade de um posicionamento ético. Por outro lado, a
ética não deve ser entendida apenas e puramente como teoria, como se fosse
uma forma abstrata e universal de conhecimento e julgamento do mundo. Ela
tem que ser percebida como um conjunto de princípios e disposições voltados
para a ação, histórica e socialmente produzida, cujo objetivo é balizar as ações
humanas. A ética existe, portanto, como uma referência para os seres humanos
em sociedade, de tal modo que os próprios seres humanos possam se tornar cada
vez mais humanos, estabelecendo critérios para a análise do comportamento
moral. Diante do exemplo apresentado por F. Gullar, caberia a seguinte pergunta:
qual deve ser o posicionamento ético diante da moral assumida pela família de
RukhsanaNaz?
O problema é que tanto a moral quanto a ética não são um conjunto de
verdades fixas e imutáveis, mas apresentam um caráter histórico e cultural. Elas
expressam várias formas de manifestação que podem variar de lugar para lugar,
assim como de tempos em tempos. O que é moral e ético num determinado
momento da sociedade pode deixar de ser em outro contexto histórico e social
específico, embora não se pode perder de vista que a ética se apresenta como um
julgamento da moral.
Por isso que, no campo da ética, torna-se necessário especificar as suas
tarefas, a fim de entender melhor a razão de sua existência. Talvez, a principal delas
seja de se apresentar como principal regulador do desenvolvimento histórico
e social da humanidade. Pois, sem a ética, ou seja, sem a referência a princípios
humanitários fundamentais, comuns a todos os povos, nações, religiões etc, a
humanidade já teria se despedaçado até a sua auto-destruição.
A palavra ética se origina do termo grego ethos, que designa a morada
humana. Pode-se dizer que a ética, nesse sentido, significa tudo aquilo que ajuda
a tornar melhor o ambiente para que seja uma morada saudável. Para que se
tenha uma morada saudável é preciso realizar a tríade desafiadora e necessária
da experiência humana, que é ter uma existência materialmente sustentável, uma
personalidade psicologicamente integrada e uma vida espiritualmente fecunda.
Um exemplo de princípios éticos pode ser a “Declaração Universal dos Direitos
Humanos”, promulgado pela ONU, no ano de 1948, entendido como:
(...) o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da
sociedade, tendo sempre em mente essa Declaração, se esforcem,
através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses
direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de
caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento
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e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos
próprios Estados Membros, quanto entre os povos dos territórios sob
sua jurisdição. (DUDH, 2010, s/p)
A “Declaração Universal dos Direitos Humanos” apresenta trinta artigos
que sustentam o que deveria ser uma vivência social que reconheça e valorize a
experiência humana na sua totalidade. Depois de apresentar o artigo primeiro –
“Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados
de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade” (DUDH, 2010, s/p) –, a Declaração explicita, no artigo segundo, dois
itens que contribuem para entender a questão ética e o respeito pela pluralidade
cultural.
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I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição.
II) Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição
política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença
uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela,
sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de
soberania. (DUDH, 2010, s/p)
Secadaserhumanoforcapazdeincorporaressesprincípios, expresso neste
artigo segundo, assim como em todos os 30 artigos da “Declaração Universal dos
Direitos Humanos”, como uma atitude prática e teórica diante da vida cotidiana, de
modo a pautar e orientar o comportamento humano, com certeza o mundo seria
melhor e a morada humana seria mais sustentável. Os direitos humanos, sendo
efetivamente respeitados, trariam uma consequência ética inevitável, quando
confrontados com a moralidade vigente, muitas vezes exercida sob pressão de
interesses religiosos, políticos e econômicos culturalmente determinados. A moral
vigente está sujeita a frequentes e graves degenerações e distorções quando não
se considera a importância da ética, pautada nos direitos humanos e no pleno
exercício da cidadania.
2.3. Os campos de atuação da ética
Quando a questão é a ética, surge sempre a indagação sobre os seus
campos de atuação. Num primeiro momento, deve-se considerar que sua
presença se efetiva em todos os campos de atuação dos seres humanos.
O primeiro deles é o espaço da convivência humana, isso porque o ser
humano tem o outro ser humano como ser de relação. A atitude ética, nesse caso,
seria de uma atitude de amor à humanidade. O segundo campo de atuação da
ética é a justiça social. Quando um sistema econômico, político e jurídico produz
estruturalmente desigualdades, injustiças, discriminações, exclusões de direitos,
pode ser considerado como um sistema eticamente mau, por mais que seja
moralmente constituído e legalmente legitimado. A justiça social, que envolve
diretamente o sistema econômico, se apresenta como um fator determinante de
toda a ordem, ou até mesmo, a desordem social. Quando existe uma reprodução
da miséria estrutural, a ética afirma que são necessárias transformações radicais e
globais na estrutura do sistema econômico. Outro campo de atuação da ética, que
precisa ser cada vez mais efetivado, é o meio ambiente. Isso porque, pelo trabalho,
o ser humano, quando transforma a natureza, cumpre a finalidade de sustentar e
humanizar o próprio ser humano. Mas, essa sustentação e humanização devem
considerar a preservação da natureza e não sua destruição, como está ocorrendo
em muitos países no contexto atual. Mais do que nunca, preservar e cuidar do
meio ambiente é uma responsabilidade ética diante da existência humana. E,
finalmente, outro campo importantíssimo de atuação da ética é a educação,
exatamente porque ela se apresenta como uma ação interativa, mediante
informações, comunicação e diálogo entre os seres humanos. Em toda educação
há um outro ser em relação. E bastaria isso para justificar o quanto a ética está
intrinsecamente implicada.
Além desses campos, existem aqueles que se referem mais especificamente
à cidadania, à política e à corrupção. São campos de atuação que merecem um
maior aprofundamento e detalhamento.
No que diz respeito à cidadania, é preciso ponderar que nem sempre é
uma realidade efetiva, muito menos para todos. A sua realização e respectiva
consciência coletiva dessa condição são indicadores do desenvolvimento moral e
ético de uma sociedade. Diante da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”,
fica sempre a questão: o que é ser cidadão?
Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade
perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar
no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os
direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos
sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza
coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde,
a uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis,
políticos e sociais. (PINSKY, p. 09).
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Nesse caso, a cidadania implica numa ação que caracteriza a dimensão
antropológica e social do ser humano que é a ação política. Esta deve ser entendida
na perspectiva grega, como ação na pólis, cujo objetivo é a realização plena dos
direitos públicos e privados. Um projeto político, qualquer que seja ele, não pode
se efetivar sem a realização da ética, pois somente pautado em critérios éticos que
se concretizará a vontade coletiva dos cidadãos e o reconhecimento do interesse
público. Tal situação não se constata na política quando esta está envolvida pela
corrupção. Seja ela ativa ou passiva, a corrupção acaba se tornando uma força
contrária, o contrafluxo destruidor de toda ordem social. A corrupção torna, assim,
uma negação radical da ética, porque destrói na raiz as instituições criadas para
realizar os plenos direitos da cidadania. Assim, pode-se chegar à conclusão que
a corrupção é anti-ética, exigindo indignação, resistência e combate; portanto, se
apresentando como um dos principais desafios éticos na política.
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Diante do exposto, a ética se apresenta, portanto, como um princípio
regulador da sociedade, cuja finalidade é possibilitar o exercício da cidadania
e o reconhecimento dos plenos direitos da pessoa humana, tanto individuais
como sociais. Mas, ainda permanece a questão: é possível, de fato, concretizar
uma ética e respectiva ação moral que respeitem a condição humana na sua
totalidade? Diante desta indagação, se colocam como extremamente pertinentes
as propostas éticas de dois pensadores que são, respectivamente, Gianni Vattimo
e Juan Luis Segundo.
III) A ÉTICA E A MORAL NUMA PERSPECTIVA FILOSÓFICA E
TEOLÓGICA
A Modernidade e a Pós-Modernidade têm sido objetos de discussão
e debate em várias áreas do conhecimento, desde a sociologia passando pela
antropologia, pela psicologia, entre outras. Duas áreas que também apresentam
uma inquietação sobre a questão é a filosofia e a teologia, ainda mais quando
se pensa a relação entre ética e moral. Por isso que, diante dessa preocupação,
serão expostas duas interpretações que, embora com visões diferentes a respeito
da modernidade e da pós-modernidade, pensam de maneira semelhante, pelo
menos na compreensão de que a moral deve ser entendida como moral de
projetos e de que a ética tem que ser apresentada não como valor absoluto de
uma concepção metafísica tradicional, ou pautado numa possível neutralidade
da ciência moderna, mas como valor relativo que interfere diretamente nas
relações entre os seres humanos. As duas visões serão discutidas, acreditando
que ajudarão a encontrar caminhos diante da desafiadora situação que se
encontra o mundo atual, quando se depara com as questões provenientes da
ética e da moral.
3.1. A Ética Fraca da Filosofia Pós-Moderna
Segundo GianniVattimoépossívelpensarumaéticaalternativaaomodelo
inflexível da metafísica tradicional e do método natural das ciências modernas.
Seria uma ética que se apresenta sob o signo da pietas em sua dimensão humana
e histórica, sem a afirmação de valores previamente estabelecidos (VATTIMO,
1991, pp. 164-179). No mundo contemporâneo constata-se o renascer dos
fundamentalismos de tendências tanto secularizantes como religiosas, que
representam a pretensão de legitimar uma autoridade moral baseada na
natureza e na essência humana. Tais posturas fundamentalistas sustentam-se na
ideia de uma natureza humana e universal, legitimando os valores tradicionais
presentes, por exemplo, na estrutura familiar patriarcal. Essa concepção surge
no contexto de uma mentalidade metafísica, fundamentada em princípios
últimos e reconhecida por autoridades que se sentem suas portadoras.
Quando os interlocutores da metafísica ocidental e os defensores das
ciências modernas afirmam a existência de um princípio último e estruturante,
seja ele religioso ou científico, sem a possibilidade de questionamentos,
fazem um discurso autoritário. Defendendo a importância dessa mentalidade
tradicional, e partindo do fato de que o mundo é bom por natureza, os
metafísicos e os naturalistas afirmam que apenas uma determinada noção de
cultura e de sociedade pode ser aceita como verdadeira. No campo da ciência,
essa ideia se expressa mais diretamente na concepção positivista da cultura,
quando sustenta que as leis naturais são modelos perfeitos para compreensão
das leis humanas e sociais. Questionando essa posição pretensamente científica,
e outras de conotação metafísica, a filosofia pós-moderna apresenta uma nova
proposta ética, não mais fundamentada nos valores últimos e naturais. Para
G. Vattimo é preciso pensar uma ética a partir de uma relação de valores que
possibilitem o diálogo entre as diferentes culturas, através de uma partilha
de ideias e da vivência de experiências diversificadas. Pensa-se, portanto, na
elaboração de uma ética de projeto e não numa ética como reflexo da ordem
natural, como pretende as ciências pautadas numa fundamentação positivista.
Os direitos das ciências devem estar relacionados com a consciência
comum da sociedade, exercitando uma orientação ética sobre o uso e o
desenvolvimento dos resultados obtidos. Os cientistas das mais diferentes áreas
de atuação deveriam colocar em questão os valores morais e éticos de suas
pesquisas e, ao mesmo tempo, se deixar orientar por esses mesmos valores.
Encaminhar os resultados das ciências à consciência comum da sociedade
deveria ser uma preocupação da linguagem científica, apresentando-se acima
de tudo como um fato ético.
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No geral, a verdade da ciência é transportada para a consciência comum
em termos essencialmente retóricos e até mesmo abstratos ou por demais
herméticos. As teorias científicas são provadas em base nas observações possíveis,
dentro de um determinado contexto específico, e têm sentido somente no
interior das mesmas teorias ou de seus respectivos paradigmas. Mas a história das
ciências não se apresenta apenas como um puro jogo de forças ou de progresso no
conhecimento objetivo da realidade previamente estabelecida. Assim, a filosofia
pós-moderna, de matriz hermenêutica, propõe uma operação de radicalização
com respeito à aceitação – geral e genérica – da natureza retórica da ciência,
insistindo na sua historicização. (VATTIMO, 1985, p. 146)
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Para os filósofos da hermenêutica contemporânea pós-moderna existe
uma estreita ligação entre ética e crítica anti-metafísica, exigindo a reivindicação
de uma nova ética acompanhada de uma desconstrução do saber instituído.
Nas raízes da violência metafísica e das ciências modernas se encontra uma
relação autoritária que se estabelece entre o fundamento e o fundado, entre o
ser verdadeiro e a aparência efêmera. G. Vattimo critica essa visão metafísica,
entendida como demonstração racional da existência de Deus e como um saber
epistêmico e demonstrativo. A proposta vattimiana coloca em discussão o valor
mesmo da racionalidade enquanto tal, na medida em que se apresenta como
força e potencialidade do logos na sua relação cognoscitiva com o mundo. A
negação do saber metafísico e de sua lógica surge substancialmente de uma
exigência ética.
Ocorre, assim, uma atitude de indignação diante da violência da razão
(logos) ocidental, enquanto esta é apresentada como única possibilidade de
vivência e interpretação do real. A razão se legitima por uma ação violenta, que
ocorre de maneira dramaticamente concreta na história. Sob a forma de um
saber forte, a cultura ocidental exerce uma ação autoritária sobre as concepções
culturais que não se enquadram no modelo dominante. A violência se manifesta
por intermédio da interrupção arbitrária do diálogo, caracterizando a atitude
do pensamento metafísico e de toda filosofia com pretensões de ultimidade.
O acolhimento da razão ocidental, como expressão de uma visão metafísica e
científica do mundo, conduz a uma verdade opressiva e despótica, encaminhando
apenas para a aceitação da própria razão vigente.
A exigência ética da pós-modernidade nasce da instância crítica
do questionamento da metafísica tradicional e da ciência moderna. Para a
hermenêutica pós-moderna, uma interpretação ontológica coerente do ser
humano seria compreendê-lo como linguagem e expressão da racionalidade do
real. A linguagem é a sede e o lugar de atuação concreta do ser. É no uso e na
interpretação da linguagem que se identifica o ethos comum de uma determinada
sociedade histórica. Enfim, a linguagem se apresenta como mediação da
experiência total do mundo. (VATTIMO, 1985, p. 140) Portanto, torna-se necessário
recuperar o valor do diálogo e a aceitação do diferente, confrontando cada
experiência particular com as diversas maneiras de compreensão da existência,
expressas nas diferentes formas de linguagem. Uma atitude diferente dessa
fecha-se num pensamento autoritário, surdo às exigências e às inquietudes do
ser humano, como ser jogado no mundo, para usar uma expressão do filósofo
alemão, Martin Heidegger.
O fato é que não se pode mais aceitar uma visão totalitária e violenta do
mundo, ainda presente na filosofia ocidental, marcadamente sustentada por um
saber absoluto de conotações racionais e universalizantes. É o caso, por exemplo,
do sistema filosófico elaborado por G.W.F. Hegel, entendido como racionalismo
historicista e muito criticado por G. Vattimo, quando comenta a proposta
filosófica de S. Kierkegaard, exatamente pelo seu fundamento de pretensões
metafísicas e científicas totalizantes. (VATTIMO, 1997, p. 26) O pensamento
metafísico tradicional e a ciência moderna acabam impondo regras que limitam
e cerceiam qualquer exercício de liberdade e de diálogo inter-subjetivo. Quando o
saber metafísico é imposto como saber absoluto, com pretensões de totalidade,
elimina-se a individualidade e a diferença; e esse processo ocorre também com a
ciência.
No discurso epistêmico da metafísica tradicional e da cientificidade
moderna, apresenta-se um saber depositário de uma verdade última e definitiva,
fazendo com que a palavra seja cedida apenas à racionalidade ocidental.
Para o modelo metafísico, de conotações essencialistas, e para a ciência, de
fundamentação naturalista, o outro deve ter apenas uma silenciosa atitude de
contemplação da verdade, previamente apresentada e estabelecida. Nesse
contexto, a violência está exatamente na proibição de questionar e aceitar o
posicionamento do outro em nome de princípios primeiros e fundamentais.
Nessa concepção da filosofia ocidental ocorre uma verdadeira violência da razão,
que se impõe sem conceder a possibilidade de réplica ou de resposta. Tal situação
gera sérios problemas para a compreensão dos valores humanos, principalmente
ligados à discussão ética.
Para G. Vattimo, diante dos desafios morais colocados pela modernidade,
estruturada numa concepção metafísica e científica, torna-se necessário o resgate
da reflexão filosófica de F. Nietzsche. Para a filosofia nietzschiana, a história da
moral se apresenta como estratégia dos fracos para legitimar a felicidade dos
fortes, descarregando neles a responsabilidade e a culpa pela condição de
infelicidade em que se encontram. Nessa interpretação, os fracos se sentem
divididos e não reconciliados. (VATTIMO, 1999 b, p. 61) Na legitimação dos fracos
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pelos fortes se estabelece uma crise dos valores, das verdades fortes e da lógica
metafísica, todos sustentados por uma comum vontade de potência e por uma
mentira que se apresenta como verdade.
Efetivamente, acontece uma situação de violência que se manifesta numa
verdade abstrata e nos primeiros princípios, fazendo da ética uma afirmação
radical de uma pretensa lógica de domínio. Segundo G. Vattimo, interpretando
F. Nietzsche, o pensamento forte – metafísico, totalitário e totalizador – conduziu
para uma ação violenta, expressa na negação de qualquer posição contrária ou
questionadora. Torna-se necessária uma reversão desse quadro, propondo uma
nova interpretação ética da humanidade.
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Assim, o pensamento fraco da filosofia vattimiana se apresenta como
uma reflexão que surge da experiência pós-moderna, definida como «nihilismo
consumado», para usar uma expressão nietzschiana. O nihilismo tem sua razão
de ser na proposta ética da pós-modernidade, quando possibilita a liberação de
valores supremos, sustentando que nenhum valor pode ser imposto pela força e
que todo valor absoluto é algo mítico e potencialmente violento. Para a filosofia
pós-moderna há a necessidade de se assumir uma experiência menos intensa
e mais difusa do valor, relativizando a contraposição entre valor e aparência, e
viabilizando a eliminação da violência, a partir da ética.
A ética fraca, exatamente pela sua condição de fraqueza, defende a
liberdade e a igualdade, negando uma fundamentação última que controle a
vida dos seres humanos. Na pós-modernidade deve-se refletir sobre uma ética da
dissolução do ser, que chega a transcender a lógica da luta pela vida e pela simples
sobrevivência. A solidariedade para com todo o ser vivente se dá no caminho da
eliminação de todo valor forte e superior, possibilitando a igualdade e o respeito
pelo diferente e suas diferentes formas de manifestação.
A racionalidade moderna perde, assim, a sua força e liberta o ser humano
para uma nova visão da realidade. A ética que surge do pensamento fraco
questiona todo valor que se apresenta como absoluto. Assim, o mais expressivo e
original da proposta pós-moderna de G. Vattimo é a condução para uma vivência
mais «experimental» e «aventureira» do cotidiano, com maiores possibilidades de
escolha, quando comparada com outras épocas, tendo a ética de projeto como
referência de toda ação e reflexão.
A filosofia pós-moderna seria a resposta mais adequada para a
compreensão do pluralismo tardo-moderno, embora não necessariamente a mais
verdadeira. Pois, se fosse apresentada como verdade única e absoluta, assumiria
também uma visão totalitária, negando a sua condição hermenêutica e acabaria
legitimando exatamente o que se propõe a questionar. Por outro lado, não se
pode negar a possibilidade de discutir princípios racionais e éticos no contexto
pós-moderno. Mas os termos devem ser bem definidos e delimitados, para não
assumir uma postura unitária e totalizadora que tanto se critica na metafísica
tradicional e nas ciências modernas.
Para G. Vattimo, a ética fraca se estrutura nas reações aos absolutismos
e às certezas metafísicas, assumindo traços de finitude, precariedade e incerteza.
A perspectiva da ética de projeto, pautada no pensamento fraco, possibilita
uma abertura ao outro e à necessidade da tolerância como valor fundamental
da experiência humana. Faz-se necessária uma práxis filosófica que privilegie
a comunicação através do diálogo nas suas formas mais diversas e múltiplas,
respeitando a pluralidade e a diversidade das culturas.
A filosofia pós-moderna propõe, portanto, uma interpretação nãometafísica do ser, interpretação esta entendida como teoria do enfraquecimento
e característica constitutiva do próprio ser como evento no fim da modernidade.
(VATTIMO, 1999 a, pp. 25-26) O pensamento fraco privilegia uma lógica
hermenêutica, através de uma aproximação cética com as categorias metafísicas,
negando radicalmente toda ultimidade. A proposta do pensamento fraco é fazer
oposição à violência de um logos que sempre se julgou no direito de ter a última
palavra, impedindo qualquer possibilidade de diálogo. O conceito de verdade
passa, assim, por uma modificação, enfraquecendo-se e negando a existência de
um mundo pretensamente objetivo. Para a postura filosófica pós-moderna não
existem fatos, metafísica e cientificamente comprovados, mas um universo de
símbolos que precisam ser decifrados e interpretados dentro de cada contexto
cultural em que estão inseridos.
O ser humano, como ser-no-mundo, é jogado nesse mesmo mundo,
inserido num horizonte e numa rede de significados que manifesta a sua finitude. O
que se apresenta como imutável, transcendente e infinito na metafísica tradicional
e nas ciências modernas nada mais é que uma forma violenta da vontade de
potência de se impor sobre o ser humano, negando sua irredutível historicidade.
O pensamento fraco na ótica pós-moderna de G. Vattimo está consciente do fato
de que também a sua proposta não é nada mais do que uma leitura parcial e
provisória da sociedade humana. Isso porque não existe superioridade de uma
interpretação filosófica sobre a outra, como querem os teóricos da metafísica e
das ciências. Mas, o pensamento pós-moderno se apresenta como uma tentativa
de resposta, talvez a mais adequada às interrogações e às exigências do contexto
contemporâneo, sem pretensões universalizantes.
A visão da realidade, na ótica vattimiana e, portanto, pós-moderna,
apresenta várias possibilidades de interpretação, sendo a ética uma dessas
possibilidades com diversas formas de manifestação. Assim, podem-se usar
81
diferentes adjetivos para identificar as diversas possibilidades da ética, tais como:
pensar uma ética do finito, que elimina a violência e toda forma de saber estável,
pretensamente verdadeiro e totalitário; uma ética do fragmento, que acolhe a
singularidade da existência em sua dimensão histórica, inserido no interior de
uma determinada tradição cultural; uma ética que se centra sobre o princípio
da caridade (pietas) no confronto das tradições e dos «monumentos»; uma ética
do acolhimento, da tolerância e do diálogo, contrária a toda forma de ultimidade
que inviabiliza o encontro inter-subjetivo; e, enfim, uma ética da liberdade, como
capacidade do ser humano de mover-se na rede de questões e tradições nas quais
se encontra com os outros e com o mundo. Nesse caso, a liberdade é apresentada
como a melhor maneira de corresponder à abertura histórico-destinal na qual
o ser humano é jogado. O mundo apresenta-se como uma realidade múltipla,
fazendo com que se viva a experiência da liberdade como oscilação contínua
entre pertença e estranhamento. (VATTIMO, 2000, p. 19)
82
Conclui-se, portanto, que o pensamento pós-moderno, na proposta
filosófica de G. Vattimo, não se apresenta como um conjunto de regras objetivas
e estáveis no campo da ética e da moral, mas a partir do binômio caritas-pietas.
Sua crítica anti-metafísica quer ser uma defesa da singular individualidade
e especificidade das diversas culturas. A ética fraca contraria um modo de
argumentação que privilegia o abstrato em detrimento do concreto, a totalidade
diante do fragmento e a transcendência em relação à história. Ocorre assim uma
racionalidade fraca, reconhecendo diversas verdades de acordo com cada universo
cultural determinado, não existindo uma verdade única e válida universalmente.
O pensamento fraco fundamenta, portanto, o que se chamou de ética
fraca; e esta, por sua vez, possibilita a realização de uma ética de projetos. Assim,
entende-se que o projeto ético de G. Vattimo oferece uma rica contribuição
para compreender, enfrentar e superar os desafios econômicos, sociais, políticos
e culturais da sociedade contemporânea. Basta ter discernimento, senso de
responsabilidade e respeito pelo diferente.
3.2. A Moral de Projetos
Juan Luis Segundo, teólogo uruguaio, foi outro pensador que sistematizou
uma reflexão sobre a ética e a moral, sustentando a ideia de uma moral de projetos.
Sem refletir sobre a mudança da modernidade para a pós-modernidade, o autor
apresenta uma crítica à modernidade a partir dos valores presentes na própria
sociedade moderna. Nesse sentido, seu pensamento difere de G. Vattimo que, à
luz de F. Nietzsche e M. Heidegger, decreta o fim da modernidade. J.L. Segundo
faz a crítica à modernidade a partir de algumas áreas do conhecimento presentes
na própria modernidade, tais como o marxismo, a psicanálise, a física quântica e a
teoria da evolução. Sem a pretensão de entrar no universo conceitual - teológico e
filosófico - do pensador uruguaio, pretende-se apresentar sua visão sobre a moral
de projetos, dentro dos referenciais propostos por ele.
Para realização do projeto cristão, temática central em todas as obras
de J.L. Segundo, torna-se necessária a concretização do amor, que ocorre pelo
reconhecimento da liberdade. Só que esse projeto se realiza na história e nunca
fora dela. Na crítica feita pelo teólogo uruguaio à Igreja Católica, palco constante
de suas inquietações, surge a preocupação com a santidade do cristão. O autor
procura mostrar que na história da espiritualidade católica, a santidade, quase
sempre, apresentou um ideal sem preocupações históricas concretas. Até pelo
contrário, a santidade se entendia como negação da própria história.
Assim resulta, por uma parte explicável e, por outra, até certo ponto
incoerente, que a Igreja, na prática, só continue canonizando casos
“excepcionais” com respeito a esta sua tarefa principal: o dos mártires
da fé (em geral vítimas da falta de diálogo Igreja-mundo) e o dos
religiosos, frequentemente fundadores de ordens e congregações
religiosas. (SEGUNDO, 1983, I, p. 303)
A Igreja, diante desse posicionamento, se torna incoerente exatamente
por não mostrar uma imagem pública de santidade, de acordo com sua missão no
mundo e na história. Tal situação é contrária ao que propõe J.L. Segundo, quando
apresenta sua concepção pautada na moral de projetos. Para ele, os projetos
surgem da própria condição humana e implicam na utilização de instrumentos
históricos que podem ajudar ou impedir a realização de projetos criativos.
A desgraça está em que todo projeto que sai de nós, tem que se
realizar com instrumentos “emprestados”, dotados de vida própria
e de iniciativa ou dinamismos que ignoram ironicamente nossas
pretensões de utilizá-los. E estes instrumentos emprestados não só
são coisas fora de mim: são também meu próprio corpo e minha
própria mente e meus próprios afetos e as estruturas físicas e sociais
nas que estou inscrito. (SEGUNDO, 1983, I, p. 230)
Todo projeto é condicionado por estruturas que limitam o campo
de possibilidades. Essas estruturas fazem parte da realidade que cerca
inevitavelmente o ser humano, possibilitando ou não suas ações. E mais. Tais
ações se realizam a partir de dualidades que se manifestam, por exemplo, através
83
de mesclas de amor e egoísmo. Assim: “Todos os nossos projetos são uma mescla
de omissão, cumplicidade e pecado, por um lado; e de amor, por outro (cf. Rm. 7,
25).” (SEGUNDO, 1995, p. 233)
O projeto cristão implica na busca de superação das estruturas ou
ainda das leis que impedem a realização do amor. E assim vai aparecendo uma
preocupação de ordem moral, que pode ser percebida, por exemplo, na prática
de Jesus, quando apresenta um critério básico para o julgamento da moral.
84
O critério básico da moralidade cristã estará dado, portanto, pelas
características do projeto humano, por aquilo que o coração do
homem lhe dita antes das necessidades de seus semelhantes. João
escreverá mais tarde, não sem razão, e em estreita lógica com o
que acabamos de ver, que o único mandamento que Jesus deixa
a seus discípulos é, de maneira paradoxal, não religioso: “amai-vos
uns aos outros como eu vos amei.” Claro, este é o mandamento de
Deus, esta é a “religião” pura e sem mancha: aquela que não aparece
como religião nem se justifica como tal, aquela que radica em valores
que um observador estranho chamaria simplesmente “humanos”.
(SEGUNDO, 1985, I, p. 58)
Tomando como referência esse único mandamento do amor, torna-se
imprescindível a reflexão moral do apóstolo Paulo, autor de várias cartas do início
do cristianismo. A visão de Paulo, interpretada por J.L. Segundo, irá enfatizar que
tanto a ética quanto a moral jamais podem ser definidas “a priori”, onde seus
elementos já seriam elaborados antes mesmo da constatação de um fato concreto.
A ética e a moral se fazem na história, condição que as tornam capazes de detectar
as suas próprias limitações e, ao mesmo tempo, enfatizar suas possibilidades.
Nesse sentido, pode-se dizer que a proposta moral de Paulo ajuda a compreender
os desafios da sociedade atual, como constata o teólogo uruguaio, quando afirma
que “a moral que nos ensina Paulo, como consequência da mensagem de Cristo,
não é apenas criadora e progressiva: é também social”. (SEGUNDO, I, 1976, p. 135)
Nessa perspectiva moral, o ser humano é entendido como co-criador
das obras de Deus; portanto, como “dono do mundo”. Assim, a proposta para a
moral não é a discussão sobre a licitude ou não dos atos humanos; a questão
que se coloca é sobre sua conveniência ou não. “Ser ´dono de tudo` (= libertado
da Lei mosaica, natural e eclesiástica) supõe que, sobre tudo o que possui, não é
razoável perguntar pela licitude ou ilicitude.” (SEGUNDO, 1995, p. 342) E, assim, se
coloca uma preocupação para a Igreja, que na história, sempre julgou ter critérios
para definir o que é lícito e o que é ilícito. Nessa perspectiva, a moral de Paulo vem
trazer uma proposta diferente para compreensão da questão.
No plano da ética ou, se se prefere, da moral, o cristão até pouco
tempo atrás estava acostumado a perguntar à autoridade magisterial
a clássica pergunta: é lícito fazer isto? A lei de Deus o permite?
Pois bem, não apenas o Vaticano II assumiu, nessas questões, uma
explícita e clara ‘direção antropocêntrica’. Também ao ler passagens
centrais de Paulo - o que ele chama ‘seu’ evangelho -, essas
passagens lhe dizem que, como filho de Deus, é o homem, enquanto
herdeiro maior de idade, ‘dono de tudo’ (Gl. 4,1;1Cor.3,21) e que,
em consequência, suas questões morais estão em função de seus
projetos de amor (Gl.5,1.13c-14), como colaborador (= synergos)
criativo do projeto do próprio Deus (1Cor. 3,9). Não se trata, então,
de perguntar pelo permitido ou pelo proibido em sua própria casa,
mas pelo conveniente para seu projeto (1Cor.6,12;10,23-29) que é
tão único e irrepetível como sua pessoa e seu contexto.» (SEGUNDO,
1995, pp. 143-144)
A forma de apresentação da temática traduz, de forma sintética e
profunda, toda a interpretação que J.L. Segundo sugere a respeito da perspectiva
moral de Paulo. Assim, a moral de projetos, na perspectiva paulina, suscita uma
séria reflexão com relação à postura moral da Igreja em relação aos problemas
e questões colocados pela realidade social e pela própria vida interna da Igreja.
Por outro lado, ampliando sua compreensão, tal abordagem pode ser entendida
também não apenas a uma determinada Instituição, no caso a Igreja Católica, mas
à sociedade como um todo, quando o que está em questão se refere à presença
e atuação do ser humano, respeitados os seus direitos, individuais e sociais, assim
como os direitos da própria natureza.
IV) PERSPECTIVAS PRÁTICAS E TEÓRICAS DA ÉTICA FRACA E DA
MORAL DE PROJETOS
Qual é a conclusão que pode ser proposta diante do tema desenvolvido?
Em princípio, nenhuma. Isso pelo fato de que não se pretende apresentar
conclusões, mas deixar espaço para um conjunto de indagações diante das
questões levantadas. Por outro lado, antes de sistematizar tais indagações, faz-se
necessário um rápido resumo crítico do que foi sugerido até aqui.
A primeira temática versou sobre a distinção entre ética e moral. Embora
ambas – ética e moral – dizem respeito a uma determinada realidade histórica,
a moral sempre se refere a um grupo cultural específico. A ética, por sua vez,
diz respeito a uma reflexão crítica sobre a moral, não deixando de ser também
uma dimensão humana, sujeita a alterações diante dos novos paradigmas que
são presenciados na evolução – ou involução? – da humanidade. Na tentativa
de sistematizar a discussão, deparou-se com várias questões no decorrer da
85
exposição, principalmente com relação às tarefas da ética e seu campo de
atuação.
Um segundo momento procurou apresentar a abordagem de Gianni
Vattimo sobre o que se convencionou chamar de “ética fraca”. Numa sociedade
marcadamente pós-moderna, entendida como ruptura da modernidade,
é preciso questionar os valores essencialistas de uma visão metafísica ou
científico-positivista. Somente uma ética a partir do relativo da história será
capaz de apresentar caminhos – não necessariamente soluções – diante
dos grandes desafios sociais, políticos, econômicos e culturais da sociedade
contemporânea.
86
O terceiro momento constituiu-se de uma rápida exposição da
concepção de Juan Luis Segundo sobre a visão cristã a partir do que ele define
como “moral de projetos”. Sem fazer uma ruptura com a modernidade, o
teólogo uruguaio se pauta em pensadores oriundos da própria modernidade
para sustentar sua postura ética e sua reflexão sobre a moral de projetos.
Sua interpretação a respeito da ética e da moral, embora esteja preocupada
com uma instituição religiosa em particular – a Igreja Católica –, tem uma
amplitude que ultrapassa os limites do próprio catolicismo, fazendo-se valer
também para outras instituições nas quais o ser humano está diretamente
envolvido.
Assim, diante dessas rápidas considerações, permanecem várias
indagações que demandam uma atenção de todos que querem encontrar
possíveis soluções para os problemas éticos e morais da sociedade
contemporânea. Para finalizar, serão propostas várias perguntas que deixarão
os temas abertos para novas questões e, ao mesmo tempo, novas tentativas
de respostas.
1. Faz sentido pensar uma ética capaz de estabelecer um juízo sobre a
moral, quando a própria ética também se refere a valores históricos e sociais?
Por outro lado, como no caso “RukhsanaNaz, de 19 anos, grávida de sete
meses de seu namorado de infância”, é possível negligenciar a necessidade
de buscar um valor universal que estabeleça uma ação crítica diante de
tamanha atrocidade? Ou será que, em nome de uma determinada cultura,
deve-se reconhecer a legitimidade de tal ação, entendendo que se justifica no
contexto em que foi realizada? Qual seria o papel dos direitos humanos nesse
contexto apresentado?
2. A “ética fraca” proposta por G. Vattimo é capaz de oferecer elementos
para alterar os valores de uma sociedade cada vez mais individualista, onde
prevalecem os interesses de uma minoria política, econômica, social e
cultural? Tal posicionamento ético não poderia também justificar uma postura
autoritária, exatamente por saber que as ideias que dominam uma determinada
sociedade são sempre as ideias de uma classe dominante? Por outro lado, até
que ponto é possível o reconhecimento de várias éticas, quando se entende
que todas elas não passam de uma interpretação? Como entender a liberdade
enquanto reconhecimento da individualidade sem deixar de desrespeitar a
liberdade do outro?
3. É possível propor uma moral de projetos, segundo a concepção
segundiana, fundamentada num autor cristão – no caso de Paulo – quando ele
mesmo foi relido, muitas vezes, numa ótica legitimadora de um universalismo
cultural, fundamentado na doutrina cristã? Caso essa possibilidade seja
razoável, e na presente reflexão isto é considerado como possível, não se
corre o risco de legitimar os mesmos problemas que foram apresentados
na ética vattimiana? Há condições de repensar as instituições humanas
numa perspectiva ética e moral, quando se sabe que elas adquirem uma
inteligibilidade própria que ultrapassa os limites das liberdades individuais?
4. Portanto, pode-se perguntar sobre qual é, de fato, a contribuição
dos dois pensadores, um atuando especificamente no campo da filosofia e
outro no campo da teologia. A pretensão destas páginas não foi estabelecer
uma comparação entre os dois, o que seria uma tarefa interessante e
necessária. A intenção foi mostrar que ambos têm uma concepção comum
quando se trata de refletir sobre a questão da ética e da moral no contexto da
sociedade contemporânea. Afinal, os questionamentos apresentados por eles
partem do princípio de que não é possível pensar uma cultura, muito menos
uma ética e uma moral, que se proponham universalizantes e totalizadoras.
Deve-se levar em conta a historicidade e, portanto, a relatividade dos valores
humanos, sejam eles morais, éticos, políticos, religiosos, científicos, entre
outros. Somente uma “moral de projetos”, na perspectiva segundiana, e uma
“ética fraca”, na perspectiva vattimiana, contribuiriam para propor alternativas
diante dos impasses que se encontra o ser humano, num momento que exige
cada vez mais discernimento, espírito crítico e atuação consciente e cidadã.
Assim, as indagações permanecem diante do desafio de se pensar a
questão da ética e da moral na sociedade contemporânea. O debate, de origem
“aporética”, apresenta uma conclusão que jamais será conclusiva, isso devido a
uma razão muito simples: enquanto o ser humano está vivo e tem capacidade
de perguntar, a ética e a moral sempre serão dimensões antropológicas que
questionarão todo e qualquer tipo de linguagem, seja ela política, religiosa,
jurídica, entre outras. Cabe ao próprio ser humano estar sempre atento a essa
situação, tão presente como o ar que se respira e a comida que alimenta.
87
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