Abuabara e Hoepfner Atendimento Odontológico ao Hipertenso Ponto de Vista Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):11-13 janeiro/fevereiro Desmistificando o Atendimento Odontológico ao Paciente Hipertenso Ponto de Vista 1 Demystifying the Management of Hypertensive Dental Patients Allan Abuabara1, Clovis Hoepfner2 Resumo Abstract A hipertensão arterial é um problema de saúde pública e a literatura carece de um posicionamento direcionado ao tratamento odontológico ambulatorial do paciente hipertenso. O objetivo deste trabalho é verificar se existem limites pressóricos estabelecidos para a realização de procedimentos médicos e odontológicos ambulatoriais, mediante a revisão das Diretrizes de Hipertensão e de Avaliação Perioperatória. Como resultado, não foram encontradas evidências em cardiologia que fundamentem estabelecer limites pressóricos aos procedimentos médicos e odontológicos ambulatoriais e, portanto, inexistem motivos para implementar restrições baseadas na pressão arterial para a realização desses procedimentos. Hypertension is a public health problem and the literature lacks an approach focused on the outpatient dental treatment of hypertensive patients. The purpose of this study is to ascertain whether blood pressure limits have been set for medical and dental outpatient procedures, through a review of the Hypertension and Perioperative Cardiovascular Guidelines. As no evidence was found in cardiology that underpins the establishment of blood pressure limits for medical and dental outpatient procedures, there are thus no reasons to implement limits for these procedures, based on blood pressure. Palavras-chave: Hipertensão; Odontologia; Saúde pública; Assistência odontológica para doentes crônicos Keywords: Hypertension; dentistry; Public health; Dental care for the chronically ill. Introdução Os valores da pressão arterial indicados para diagnóstico, classificação, início de tratamento, controle e de risco para procedimentos vêm mudando constantemente. Há algumas décadas predominavam as opiniões de alguns especialistas e eram raras as pesquisas acerca do tema. Nos últimos anos atitudes agressivas na presença dos níveis elevados da pressão arterial (PA) têm sido revisadas, como o uso de medicação intensiva ou parenteral, visando ao rápido descenso da PA2,3. Atualmente, considera-se adequado o tratamento ambulatorial, medicamentoso e não medicamentoso, com fármacos orais, objetivando o controle em médio e longo prazo. A hipertensão arterial afeta aproximadamente 20% da população mundial e este percentual aumenta com a idade1. Na faixa etária >60 anos, metade da população está hipertensa1. No Brasil, mais da metade dos hipertensos desconhece a presença da doença ou não faz o tratamento. Em 2007, entre os hipertensos adultos em tratamento na Secretaria Municipal da Saúde de Joinville, apenas 36,6% apresentavam níveis de pressão arterial dentro dos valores de referência2. É plausível suspeitar que muitos pacientes tenham sido submetidos a procedimentos odontológicos com a pressão arterial acima dos valores de referência. 1 2 Núcleo de Apoio Técnico (NAT) - Gerência da Unidade de Atenção Básica (GUAB) - Secretaria Municipal da Saúde - Joinville, SC - Brasil Hospital Municipal São José - Universidade da Região de Joinville (Univille) - Joinville, SC - Brasil Correspondência: Dr. Allan Abuabara E-mail: [email protected] Secretaria Municipal de Saúde de Joinville, Gerência da Unidade de Atenção Básica, Núcleo de Apoio Técnico (GUAB/NAT) Rua Araranguá, 397 - América - 89204-310 - Joinville, SC - Brasil Recebido em: 15/08/2012 | Aceito em: 01/12/2012 11 Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):11-13 janeiro/fevereiro Abuabara e Hoepfner Atendimento Odontológico ao Hipertenso Ponto de Vista As complicações da hipertensão arterial, cardíacas, renais, cerebrovasculares e outras surgem somente após anos ou décadas de evolução com inadequado controle da PA. A presença de hipertensão de valores elevados não traz risco imediato à vida do paciente. Em clássico estudo realizado na década de 19604 – época em que não havia restrição ética para tal modelo de estudo – 107 pacientes com PA acima de 1 8 0 x 11 0 m m H g r e c e b e r a m p l a c e b o e n ã o apresentaram desenvolvimento de lesão aguda de órgão-alvo em intervalo de seguimento superior a três meses. orais, em nível ambulatorial. Nos ambulatórios e consultórios de cardiologia, os especialistas prescrevem medicamentos orais e revisões após duas ou mais semanas para os portadores de hipertensão arterial com níveis pressóricos no estágio 3 (PA >180x110 mmHg). Submeter-se a um tratamento odontológico é fator estressor e pode ser acompanhado de elevação casual da pressão arterial5. Trabalhos braçais, exercícios físicos, competições, cirurgias e outros procedimentos médicos, situações de risco de lesões físicas, emoções, também aumentam a PA. As Diretrizes do American College of Cardiology/ American Heart Association7 sugerem que elevações leves a moderadas da pressão arterial sistólica ou diastólica até 180x110 mmHg são riscos aceitáveis para tratamento odontológico, admitindo que inexistem evidências científicas para respaldar tal sugestão; portanto trata-se apenas de opinião de especialistas. Observações pertinentes A hipertensão arterial é um fator de risco para doença cardiovascular e tem curso assintomático, não sendo possível identificar os níveis da PA por sinais ou sintomas. Os supostos sintomas referidos como consequência da elevação da PA tais como cefaleia, dor na nuca, tonturas e outros, costumam ser fatores estressores e causa da PA elevada, desaparecendo com o tratamento sintomático. Os exames de mapeamento ambulatorial ou residencial da pressão arterial (MAPA e MRPA) confirmam a inexistência de sintomas diretamente ligados aos níveis da pressão arterial. O sangramento que ocorre em procedimentos odontológicos costuma ter origem em capilares ou veias, portanto sem relação com a PA. A II Diretriz de Avaliação Perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)6 não faz referências à aferição da pressão arterial nem expressa preocupações com a hipertensão arterial durante procedimentos odontológicos5. O Departamento de Ergometria e Reabilitação Cardíaca (DERC) da Sociedade Brasileira de Cardiologia8 admite que um teste ergométrico pode ser iniciado com valores pressóricos de até 260x120 mmHg para indivíduos sem hipertensão prévia e até 260x140 mmHg para hipertensos conhecidos e em tratamento, sem riscos 8 . Brito 9 , respaldado na experiência de mais de 800 exames de ergometria realizados em hipertensos estágio 3, sem nenhuma complicação, defende a inexistência de limites pressóricos para tal procedimento. Essas conclusões podem ser extrapoladas para a realização de atividades físicas ou para a realização de procedimentos médicos e odontológicos ambulatoriais. Evidências Portanto, considerando não ter sido encontrada literatura científica fundamentada em evidências na área da odontologia; considerando a inexistência de evidências em cardiologia que fundamentem estabelecer limites pressóricos aos procedimentos médicos e odontológicos ambulatoriais; considerando que procedimentos de igual ou maior risco cardio e cerebrovascular, como o teste ergométrico e os exercícios físicos, têm demonstrado segurança com valores de PA ≥260x140 mmHg, inexistem motivos para implementar restrições baseadas na PA para a realização de procedimentos odontológicos. As VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial1 não contemplam preocupações com a aferição da pressão arterial em procedimentos odontológicos e médicos ambulatoriais. No curto parágrafo dedicado às pseudourgências hipertensivas, essas Diretrizes recomendam o tratamento com fármacos Na II Diretriz de Avaliação Perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)6 existe a preocupação, entre outras considerações, com o uso dos anestésicos locais. O uso de dois a três tubetes de lidocaína a 2,0% com 1:100.000 de epinefrina (36-54 μg de epinefrina) parece ser bem tolerado na A experiência deste grupo no consultório, no serviço de emergência e na unidade de terapia intensiva, nos últimos trinta anos, mostra que, até então, é inexistente a complicação hipertensiva de pacientes em consultório odontológico. As raras ocorrências vinculadas à cardiologia foram: síncopes de origem vasovagal e hemorragias decorrentes do uso de anticoagulantes orais. 12 Abuabara e Hoepfner Atendimento Odontológico ao Hipertenso Ponto de Vista maioria dos pacientes, inclusive em indivíduos com hipertensão ou outras doenças cardiovasculares, sendo que a utilização deste vasoconstritor possui mais benefícios do que riscos6. Concluindo, não há um valor pressórico máximo que contraindique qualquer procedimento médico e odontológico ambulatorial. Assim, inexistem motivos para implementar restrições baseadas na pressão arterial para a realização de procedimentos médico e odontológicos ambulatoriais. Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica O presente estudo não está vinculado a qualquer programa de pós-graduação. Ponto de vista As opiniões apresentadas neste artigo são somente as dos autores. A Revista Brasileira de Cardiologia acolhe pontos de vista diferentes a fim de estimular discussões com o intuito de melhorar os diagnósticos e os tratamentos dos pacientes. Referências 1. Sociedade Brasileira de Cardiologia; Sociedade Brasileira de Hipertensão; Sociedade Brasileira de Nefrologia. VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão. Arq Bras Cardiol. 2010;95(1 supl. 1):1-51. Erratum in: Arq Bras Cardiol. 2010;95(4):553. 2. Hoepfner C, Franco SC. Inércia clínica e controle da hipertensão arterial nas unidades de Atenção Primária à Saúde. Arq Bras Cardiol. 2010;95(2):223-9. Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):11-13 janeiro/fevereiro 3. Mancia G, De Backer G, Dominiczak A, Cifkova R, Fagard R, Germano G, et al; Management of Arterial Hypertension of the European Society of Hypertension; European Society of Cardiology. 2007 Guidelines for the Management of Arterial Hypertension. The Task Force for the Management of Arterial Hypertension of the European Society of Hypertension (ESH) and of the European Society of Cardiology (ESC). J Hypertension. 2007;25(6):1105-87. Erratum in: J Hypertens. 2007;25(8):1749. 4. Effects of treatment on morbidity in hypertension. Results in patients with diastolic blood pressures a v e r a g i n g 11 5 t h r o u g h 1 2 9 m m H g . J A M A . 1967;202(11):1028-34. 5. Bronzo AL, Cardoso CG Jr, Ortega KC, Mion D Jr. Felypressin increases blood pressure during dental procedures in hypertensive patients. Arq Bras Cardiol. 2012;99(2):724-31. 6. Gualandro DM, Yu PC, Calderaro D, Marques AC, Pinho C, Caramelli B, et al. II Diretriz de Avaliação Perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Arq Bras Cardiol. 2011;96(3 supl.1):1-68. 7. Eagle KA, Berger PB, Calkins H, Chaitman BR, Ewy GA, Fleischmann KE, et al; American College of Cardiology/ American Heart Association Task Force on Practice Guidelines (Committee to Update the 1996 Guidelines on Perioperative Cardiovascular Evaluation for Noncardiac Surgery). ACC/AHA guideline update for perioperative cardiovascular evaluation for noncardiac surgery - executive summary a report of the American College of Cardiology/ American Heart Association Task Force on Practice Guidelines (Committee to Update the 1996 Guidelines on Perioperative Cardiovascular Evaluation for Noncardiac Surgery). Circulation. 2002;105(10):1257-67. Erratum in: Circulation. 2006;113(22):e846. 8. Brito AHX. Fatos e Opiniões. Rev DERC. 2011;17(3):88. [acesso em 2012 jul. 14]. Disponível em: <http:// departamentos.cardiol.br/sbc-derc/revista/2011/17-3/ pdf/Rev17-3-pag88.pdf> 9. Brito AHX. O teste ergométrico no paciente hipertenso: proposta para elaboração do laudo do teste ergométrico. Rio de Janeiro: Rubio; 2011. 13