ëO banho do Menino Jesus ë Em criança havia uma palavra que me acompanhava desde que acordava até que me deitava: porquê? Esta palavra trazia-me toda a espécie de dificuldades. Primeiro, por mais que me esforçasse, não era capaz de dizer o R. Por mais que treinasse e torcesse a língua, porquê saía sempre polquê. Obviamente que ninguém levava a sério a minha pergunta “Mas polquê?” Sorriam quando a fazia, mas sorriam de uma forma que me aborrecia. E, ainda por cima, como todas as crianças, eu costumava fazer exatamente aquelas perguntas às quais os adultos não sabiam responder, ou perguntas que eram embaraçosas. Impacientavam-se e explicavam: – Ainda não percebes, ainda és muito pequena. Ou: – Desculpa, mas agora não tenho tempo. Por vezes até diziam: – Arruma o teu quarto. Olha como isto está! Aprendi, portanto, como todas as crianças, que não se recebe resposta às perguntas mais importantes e que temos de ser nós a procurá-la. Entretanto, cresci e sei que por detrás de cada pergunta se esconde outra pergunta, uma enorme montanha atrás de outra, e que as respostas geralmente são poucas e mal se veem. ♣♣♣♣ Quando era pequena, tínhamos um presépio com um Menino Jesus de cera, um presente das irmãs do Lar S. José onde o meu pai era médico. Com os anos, a figurinha tinha ficado cheia de pó e estava escura, sobretudo entre os dedos das mãos e dos pés. Decidi por isso, um Natal, dar-lhe banho. Levantei cuidadosamente o Menino Jesus da palha, e deitei-o em cima da cama enquanto limpava convenientemente o pó do presépio, todas as juntas e cantos que havia. Peguei em cada uma das palhas em separado e soprei-as, antes de voltar a colocá-las no presépio. Lavei a fralda que estava em cima das palhinhas com uma escova das unhas e sabonete, e estiquei-a contra o rebordo da banheira, até ficar sem vincos. Via a minha avó fazer isto com os lenços que, depois de secos, pareciam acabados de passar a ferro. Enchi o lavatório com água, verifiquei com a mão se estava quente, mas não demasiado, e depois fui buscar o Menino Jesus. Não era possível retirar a fralda que estava colada nas costas. Com a mão esquerda, segurei a cabeça de caracóis fora da água e com a direita comecei a ensaboar. Primeiro as mãozinhas, depois os pés, com muita cautela. E será que podia lavar o rabinho de cera? Enquanto refletia, senti de repente algo na minha mão esquerda, como se um dedo tivesse batido de mansinho nas costas da mão. Dei um grito, mas não estava ninguém em casa para me ouvir. O meu coração começou a bater desenfreadamente e os joelhos tremiam-me. Quase deixava cair o Menino Jesus! Tirei-o logo da água e deitei-o num pano. Lá estava ele como dantes, em cera, a perna esquerda dobrada, a direita esticada, como se quisesse espernear. Mas, onde antes havia cinco delicados dedos, existia agora uma “coisa” disforme. O nosso Menino Jesus tinha um pé aleijado. Demorou algum tempo até eu perceber que a cera amolecera na água quente. — Foi sem querer, a sério! Só queria pôr-te bonito para o Natal — disse eu. — Não fiques zangado. Por favor, não te zangues! O Menino Jesus continuava a sorrir tão amavelmente como dantes. Assaltou-me então o medo do que os meus pais iriam dizer. Não me atrevi a secar o Menino Jesus. Por isso, soprei até desaparecerem todas as gotas de água. A fralda na beira da banheira entretanto secara e parecia mesmo acabada de passar a ferro. Estendi a fralda na palha e deitei em cima o Menino Jesus. — Olha, como o presépio agora está bonito! — disse eu. O pé aleijado, no entanto, parecia acusar-me. Todos iriam vê-lo. Deitei algumas palhas por cima, embora não tivesse esperança alguma de que o meu delito passasse despercebido. Voltei a levar o presépio para a sala e coloquei-o no aparador. O Menino Jesus continuava a sorrir. Ao virar-me, vi-o a piscar-me um olho. Vi mesmo! E a prova é que ninguém reparou no pé aleijado. Nem sequer a minha avó que, aliás, repara sempre em tudo. Renate Welsh Brita Groiß; Gudrun Likar Weihnachten ganz Wunderbar: ein literarischer Adventskalender Wien: Ueberreuter, 2001 (Tradução e adaptação)