Não se pode aprender nenhuma filosofia, pode-se apenas aprender a filosofar. (Immanuel Kant) I Os pré-socráticos (Heráclito) Por Francisco José Dias de Moraes Os assim chamados “pré-socráticos” representam, na História da filosofia, a primeira forma de pensamento a distanciar-se do pensamento mítico, cujos expoentes gregos foram Homero e Hesíodo. Esses primeiros pensadores não são ainda filósofos, no sentido em que o serão mais tarde Sócrates, Platão e Aristóteles. Quem foram eles, então? Foram os pensadores da phýsis, palavra grega posteriormente traduzida pelo romano Cícero por natura (em latim) e, assim, por natureza. (1) Acredita-se, atualmente, que eles tenham sido uma espécie de proto-cientistas, os quais teriam lançado as primeiras sementes do pensamento científico tal como o conhecemos hoje. Essa suposição, apesar de não estar simplesmente errada, passa por cima, justamente, da singularidade desse pensamento, sendo incapaz de reconhecê-lo como tal. Porém, a dificuldade de reconhecer o seu perfil provém, em primeiro lugar, de sua própria designação. Afinal, chamar toda uma tradição de pensamento, que durou, aproximadamente, dois séculos, de “pré-socrática” significa determiná-la por aquilo que ela ainda não é, ou seja, por Sócrates e por sua maneira de pensar o real. Daí que esse “ainda não” esteja carregado de uma conotação negativa, tal como os termos “préhistórico” e “preconceito”, querendo, no fundo, dizer que pensadores como Tales de Mileto, Anaximandro, Pitágoras, Parmênides, Heráclito, Xenófanes, Anaxágoras e Empédocles não teriam sido senão precursores de um pensamento que posteriormente foi plenamente desenvolvido, e que já teria se distanciado completamente do mito e inaugurado a linguagem conceitual, condição indispensável para a sistematização e a transmissão didática do saber. Um fato histórico, que está longe de ser casual, contribuiu, decisivamente, para fortalecer esse julgamento: a totalidade dos escritos desses pensadores só chegou até nós de forma fragmentária, através da citação de autores que vieram, por vezes, muitos séculos depois. Tais fragmentos foram coligidos e enumerados, modernamente (século XIX), pelos filólogos alemães Diels e Kranz, em uma edição intitulada: “Os fragmentos dos Pré-socráticos”. Heráclito, um dos mais famosos “pré-socráticos”, nasceu e viveu em Éfeso, cidade grega localizada na Ásia menor e cujo território pertence a atual Turquia. Não existe um consenso sobre a data de seu nascimento e de sua morte. Costuma-se, entretanto, fixá-las por volta dos anos de 544 e 474 a.C. Heráclito não teve discípulos e tampouco professou abertamente sua doutrina na forma do ensino. Escreveu um livro intitulado “sobre a natureza”, que foi logo copiado, e do qual nos restaram apenas uns poucos fragmentos. Devido ao seu estilo, Heráclito ficou conhecido, já na Antiguidade, Doutor em Filosofia pela UFRJ; prof. Adjunto da UFRRJ. (1) Aristóteles, no livro I de sua Metafísica, os designará em bloco como “phisiológoi”, quer dizer, como os que discursam acerca da phýsis. pelo epíteto de “o obscuro”. Conta-se que Sócrates, que teria tido em mãos a obra de Heráclito, afirmara, certa vez, que era preciso ser um mergulhador de Delos (2) para penetrar no sentido de suas frases. Fragmentos de textos para discussão: Frag. 18. Se não se espera não se encontra o inesperado, sendo sem caminhos de encontro nem vias de acesso.(3) Frag. 53. De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres. Frag. 54. A harmonia invisível é mais forte do que a visível. Frag. 72. Do Logos com que lidam se afastam, e por isso as coisas que encontram lhes parecem estranhas. Frag. 73. Não é para se falar e agir dormindo. Frag. 89. Os homens acordados têm um mundo só que é comum (enquanto cada um dos que dormem, se voltam para seu mundo particular). Frag. 91. Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Frag. 93. O Autor, de quem é o oráculo de Delfos, não diz nem subtrai nada, assinala o retraimento. Frag. 101. Eu me busco a mim mesmo. Frag. 102. Para o Deus, tudo é belo e bom e justo. Os homens, porém, tomam umas coisas por injustas, outras por justas. Frag. 104. O que é, pois, a inteligência deles senão diafragma? Deixam-se levar pelos cantores populares e ensinar pela multidão, não vendo que a maioria é má e a minoria, boa. Frag. 110. Não é melhor para os homens que lhes aconteça tudo que eles querem. Frag. 116. É dado a todos os homens conhecer-se a si mesmos e pensar. Frag. 123. Surgimento (PHÝSIS) já tende ao encobrimento. Conversando com Heráclito acerca da natureza (Phýsis) (2) Exímios mergulhadores de águas profundas. (3) Os fragmentos citados acima foram traduzidos do grego por Emmanuel Carneiro Leão, na obra: Os Pensadores Originários. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. Devemos começar nossa conversa com Heráclito partindo de uma suposição das mais simples, qual seja: com a suposição de que nós, hoje, não sabemos exatamente o que Heráclito e os demais “pré-socráticos” designavam com a palavra phýsis. Esse não saber, no entanto, não é algo fácil de ser sustentado. De fato, não é apenas a tradução de phýsis por natureza que nos induz a tomar a palavra por algo já conhecido e familiar. Palavras como “física”, “fisiologia” e outras, que conservam a proveniência da palavra grega, levam-nos a pensar que essa palavra fundamental do pensamento dos “présocráticos” seja tão somente um termo filosófico cujo significado rigoroso só teria sido fixado, posteriormente, por Aristóteles (4). Na verdade, porém, a palavra phýsis não contém, entre os “pré-socráticos”, um conteúdo específico, que permitisse precisar a sua diferença em relação a outros termos. Phýsis representava para eles, pura e simplesmente, a totalidade, tudo quanto de alguma maneira é. Pertenciam à phýsis, assim compreendida, tanto os homens quanto os deuses, os acontecimentos políticos e os processos ditos naturais, bem como os produtos da técnica. Quando Aristóteles, por exemplo, sustenta que “a arte imita a natureza”, podese ainda ouvir um eco tardio dessa concepção, pois mesmo promovendo uma diferenciação entre as duas, é desde a phýsis que, para ele, a arte (téchne) chega a ser propriamente o que ela é. Sem que a madeira já estivesse aí disponível, no modo de fazer-se presente da árvore, não haveria jeito de construir uma mesa ou uma cadeira. Da mesma forma, sem que o recém-nascido procurasse, desde si mesmo, o seio materno, seria impossível, para ele, reconhecer os pais e adentrar no mundo dos valores e da cultura. Somente porque já está em vigor um movimento inicial é possível qualquer outro tipo de movimento e iniciativa. Esse movimento inicial, que sempre já se encontra desencadeado, seria, em linhas bem gerais, o que os “pré-socráticos” entendiam como phýsis, ou seja, trata-se, essencialmente, de um movimento doador e possibilitador de todo e qualquer contexto específico, de toda e qualquer conjuntura particular. Graças a esse movimento, os homens são homens e os deuses são deuses, as plantas são plantas e os artefatos são artefatos. Para nós, hoje, é extremamente difícil acompanhar esse pensamento da phýsis, pois sempre tendemos a compartimentar a realidade em esferas autônomas. Por isso, só conseguimos pensar a totalidade como a reunião ou a soma abstrata de partes estanques e independentes, e nunca como um processo doador de diferenças. Para os “présocráticos”, entretanto, a realidade não era nada de estanque e compartimentado, algo que pudesse ser definido, mas já uma dinâmica articuladora de diferenças essenciais, que escapava a toda definição. Podemos ter uma amostra dessa forma de encarar a realidade no fragmento de Heráclito de número 53, que diz: “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres.” O que Heráclito nos convida a pensar nesse fragmento? Em síntese podemos dizer que ele nos convida a pensar as diferenças essenciais entre homens e deuses, entre livres e escravos, a partir de algo que ele chama de “guerra”, do qual afirma ser pai e senhor de todas as coisas. Curiosamente, Heráclito não nos diz em que consistem deuses e homens, livres e escravos a partir de seus próprios conteúdos particulares. Antes disso, o que ele procura fazer é revelar o que cada um desses é propriamente a partir de uma dinâmica de diferenciação privilegiada. Não se trata de realçar simplesmente as diferenças existentes entre eles, as quais seriam facilmente constatáveis, mas de apontar para o ponto em que tais diferenças se originam e... congregam-se. Vistas desde esse (4) No início de sua Física, Aristóteles procede a uma distinção rigorosa entre os “entes naturais” e os “entes técnicos”, que originará a distinção que nos soa tão próxima e evidente entre arte e natureza. Os entes naturais seriam aqueles que têm neles mesmos o princípio de seu movimento. lugar, as diferenças são convergentes; elas não se dispersam em unidades isoladas entre si, as quais, depois, buscar-se-ia reunir. Tudo isso parece muito difícil e complicado, mas na verdade não é! Tudo depende apenas de termos presente o que aqui está sendo chamado de “guerra”. A palavra evoca, de imediato, o significado de conflito militar. Para os gregos, a guerra era uma situação quase que corriqueira, uma experiência bastante familiar. Na Grécia antiga, cada cidade constituía um estado, com legislação, costumes e exército próprios. Essas cidades viviam em permanente conflito entre si, e somente ocasionalmente conseguiam unir-se contra um inimigo comum. Numa situação como essa, ao empregar a palavra “guerra”, Heráclito estava fazendo-se imediatamente entender por seu ouvinte. Afinal, todos sabiam que quem perdesse a guerra tornava-se escravo daquele que saísse vitorioso do conflito. Assim acontecia no mundo antigo e ninguém chegava propriamente a estranhar esse fato. Esse contexto familiar torna sensível, para o grego, o fato de que “ser livre” ou “ser escravo” depende da guerra. É a guerra que, através de seu desfecho, faz de uns livres e de outros escravos. Heráclito, certamente, quer ser entendido dessa maneira, mas somente para provocar um “desentendimento” ainda maior do que tal entendimento, pois não é essa guerra, até certo ponto familiar, que permite entender plenamente aquilo a que ele se refere. Melhor dizendo, a guerra visada por Heráclito “é e não é” a guerra conhecida e familiar. Como assim? Estaria Heráclito querendo nos confundir? Ou estaria ele assinalando, com clareza, à maneira do Oráculo de Delfos (5) referido por ele no fragmento de número 93, algo que não poderia aparecer de outro modo a não ser como enigma? Não, Heráclito não quer nos confundir; ele quer apenas despertar-nos de uma certa sonolência, na qual costumamos guiar todo o nosso entendimento por aquilo que nos é mais corriqueiro e familiar, isto é, por nossas expectativas imediatas de sentido. Com efeito, nos diz ele expressamente no fragmento de número 73, que “não é para se falar e agir dormindo”. Essa maneira de proceder característica de Heráclito fica visível em uma pequena história que nos é narrada por Aristóteles. A história é a seguinte: De Heráclito conta-se ter dito uma palavra a uns estranhos, que desejavam visitá-lo. Tendo-se achegado, pararam quando o viram aquecendo-se junto ao forno. É que a eles, hesitando, ainda os convidou a entrar, com a palavra: também aqui está o extraordinário. (6) Na situação descrita pela história, pode-se perceber a decepção dos visitantes ao encontrarem alguém, de quem se costuma dizer ser um pensador, na atitude extremamente comum e cotidiana de aquecer-se junto a um forno. Heráclito lê em seus rostos a surpresa e a decepção e entende a sua razão de ser: é que a cena por eles encontrada havia contrariado a sua expectativa. Esperavam encontrar uma figura exótica pensando e, ao invés disso, encontraram um homem aquecendo-se, coisa que eles poderiam perfeitamente encontrar em qualquer lugar. A partir dessa decepção, desse estranhamento, os visitantes encontravam-se, porém, em uma disposição mais favorável para ver e ouvir algo realmente importante. Por isso, em vez de ofender-se, Heráclito os convida a entrar dizendo: “aqui também está o extraordinário.” (5) O Oráculo de Delfos era uma instituição de caráter religioso reconhecida mesmo fora da Grécia. Acreditava-se que pela boca da sacerdotisa falasse o próprio deus Apolo. O Oráculo nunca respondia diretamente às perguntas dos visitantes, mas antes jogava com as suas expectativas de modo a fazer com que eles chegassem por si mesmos à verdade. (6) De partibus animalium, A 5, 645 a 17. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Através dessa pequena história, podemos perceber que o propósito de Heráclito é o de pensar o extraordinário no ordinário, naquilo que há de mais cotidiano e familiar. Para que possamos acompanhá-lo, temos primeiro de nos desfazer de nossas expectativas de entendimento imediato. A isso ele nos convida insistentemente à medida que suscita e, ao mesmo tempo, frustra essas expectativas (7). Mas voltemos ao ponto em que estávamos. Segundo dissemos, a “guerra” de Heráclito é e não é a guerra cotidiana e familiar. A “guerra” certamente está na guerra, mas não admite ser reduzida a esta última. De que se trata então? Trata-se de algo que, por já estar vigorando, instaura, de maneira originária, as diferenças entre todas as coisas, e, particularmente, as diferenças fundamentais entre deuses e homens, livres e escravos, de modo que é a “guerra”, e não cada um desses últimos, o responsável pelas diferenças que apresentam. Nem o deus nem o homem chegam a ser eles mesmos unicamente a partir de si, assim como tampouco o livre é livre e o escravo é escravo porque decidiu ser uma coisa ou outra. Precisamente esse poder instaurador de todas as diferenças, o qual as reúne em si, é o que os “pré-socráticos” chamavam de phýsis. O que Heráclito está nomeando como “guerra” seria, portanto, a própria phýsis. Mas o que seria a “guerra” entendida como phýsis? Será que dizer isso não seria apenas trocar uma palavra por outra? Vamos com cautela. Para entendermos o que significa a “guerra” como phýsis, não podemos, simplesmente, visualizá-la de modo direto; temos antes que procurar acompanhar o modo como cada um dos elementos, que foram designados no fragmento, torna-se o que é a partir daquela. O fragmento coloca-nos, primeiramente, diante da diferenciação entre homens e deuses. Por um lado, diz o fragmento, a “guerra” mostrou deuses, por outro lado, mostrou homens. Deuses e homens são diferentes, mas suas diferenças remontam a um mesmo princípio diferenciador, que faz com que ambos se copertençam. Deuses e homens somente se revelam, plenamente, naquilo que essencialmente são, por contraste; um contraste que não se origina de nenhum dos dois, mas antes da “guerra”. Outro fragmento de Heráclito ajuda-nos a pensar essa diferença. Trata-se do fragmento de número 102, que diz: “Para o Deus, tudo é belo e bom e justo. Os homens, porém, tomam umas coisas por injustas outras por justas.” Onde reside, então, a diferença entre homens e deuses? O fragmento diz-nos quem são os deuses e quem são os homens à medida que faz com que ambos remontem a um mesmo ponto de diferenciação, pois enquanto os deuses vivem na e da identidade de tudo quanto há, os homens precisam estabelecer diferenças e distinções. Mas o que seria viver na e da identidade de todas as coisas? Trata-se, seguramente, de um tipo de vida mais forte do que aquela de que o homem é habitualmente capaz. Os deuses estão sempre enxergando em tudo um supremo direito de ser. É como se não importasse se as coisas agradam ou desagradam; contanto que sejam, elas devem ser reconhecidas e admitidas assim como são. Os homens, por seu turno, não suportam viver segundo essa perspectiva e precisam estabelecer fronteiras claras entre aquilo que é bom e o que é ruim, entre o que é justo e o que é injusto, entre o que é belo e o que é feio. Por vezes, porém, experimentamos algo daquela perspectiva divina, quando, por exemplo, somos capazes de suportar a contradição. É o que acontece quando conseguimos rir de algo que antes nos atormentava, ou quando reconhecemos grandeza e experimentamos admiração frente a algo que, por outro lado, nos desperta grande contrariedade; como, por exemplo, quando admiramos alguém que suporta com paciência uma doença incurável. Nesses casos de auto-superação, o homem experimenta algo daquilo que é o deus, sem nunca poder equiparar-se a ele. Seja como for, é graças a esse poder de suportar a contradição que o (7) Esse era o modo se aconselhar característico do Oráculo. homem aparece como homem e o deus como deus. Os deuses suportariam plenamente a contradição; já os homens somente a suportariam esporadicamente. O fragmento coloca, em seguida, a diferença entre “livres” e “escravos”. Tratase, agora, de uma diferenciação que se instaura no próprio seio da humanidade. De acordo com o modo como assume ou não a “guerra”, a própria “guerra” faz do homem livre ou escravo. Mas o que significa assumir ou não assumir a “guerra”? Heráclito não tem em vista a diferença política e social existente entre os que eram livres e escravos de fato, mas uma diferença anterior e bem mais fundamental. Segundo essa perspectiva, era perfeitamente possível estar escravo sem ser escravo. Conta-se, inclusive, que certa vez um filósofo ateniense, famoso por sua audácia e destemor frente às convenções sociais de todo tipo, foi feito prisioneiro de guerra. Como já mencionamos antes, nessa circunstância, o indivíduo tornava-se imediatamente escravo. Assim sendo, na triagem dos prisioneiros, perguntaram a tal filósofo o que este sabia fazer, qual era a sua especialidade; ao que este teria respondido: “sei mandar em homens”.(8) Homem livre, portanto, é aquele que se dispõe voluntariamente a suportar as tensões e o imprevisível da própria vida, assumindo o risco de perder-se ou de ganhar-se nela. Para ele, é precisamente graças a esse fator imprevisível da vida, ao fato de que nada está previamente garantido, que cada um pode buscar realizar-se neste mundo. Livre é aquele que se dirige a si mesmo a partir do vigor próprio de cada situação, aquele que não deseja que a realidade seja conforme as suas expectativas particulares, mas que a aceita tal como ela se apresenta. É o pôr-se de acordo com a realidade, com aquilo que a cada vez se apresenta, que faz dele livre, e não um ideal qualquer de liberdade previamente assumido. Para o homem livre, de fato, a realidade é incontornável, e tudo quanto ele deseja é estar, a cada vez, à sua altura. Por isso, ele se assemelha aos deuses, à medida que um homem pode assemelhar-se a eles. Mas e quanto ao escravo? Quem seria propriamente o escravo referido por Heráclito? Escravo seria, precisamente, aquele que não procura empenhar-se, aquele que prefere deixar-se levar pelas circunstâncias do que apresentar-se às situações. Para a perspectiva do escravo, a realidade nunca é alguma coisa que ele deva ele mesmo procurar assumir, algo pelo qual ele deveria responsabilizar-se. Sempre é possível, para ele, encontrar desculpas que justifiquem os seus erros, fracassos e decepções no mundo. É que ele, propriamente, nunca está presente às situações, fazendo tudo apenas por fazer. A diferença entre “livre” e “escravo” é evocada em outro fragmento de Heráclito, o de número 89: “Os homens acordados têm um mundo só que é comum (enquanto cada um dos que dormem se voltam para o seu mundo particular).” Nesse fragmento, livre é o “homem acordado”, desperto, que possui um único mundo que é comum, enquanto escravo é aquele que escapa desse mundo comum para refugiar-se em seu mundinho particular. Em outras palavras, livre é aquele que está em acordo com o mundo, e escravo aquele que se põe em desacordo com ele. Mas o que é esse “mundo comum” que faz de uns livres e de outros escravos, conforme estes se disponham ou não se disponham a ele? Resposta: esse “mundo comum” é a “guerra” que é também a phýsis, ou seja, é a própria realidade apresentando-se desde si mesma, desafiadora, sem nunca estar ganha, pondo o homem em situação de ter de tornar-se livre, sob pena de arrastar-se, sofregamente, durante toda a sua existência. Aprender a querer essa vida assim mesmo como ela se apresenta, sem alimentar fantasias e utopias, sabendo que não somos livres para ser ou livres ou escravos, é o (8) O filósofo em questão é Diógenes, o cínico, que foi discípulo de Sócrates e viveu no século IV a.C. desafio que nos lança o pensador da phýsis Heráclito, um desafio no qual, na verdade, todos já fomos lançados pela própria realidade. Estaremos à sua altura? Exercícios: 1) Explique o significado da designação coletiva “pré-socráticos” e diga por que ela traria consigo uma conotação negativa. 2) Caracterize o tema preferencial do pensamento dos chamados “pré-socráticos” e diga por que eles não seriam filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. 3) Diferencie o que os “pré-socráticos” entendiam por natureza e o que nós entendemos por ela hoje. 4) Explique o que no fragmento de Heráclito está sendo entendido por “livre” e “escravo”. 5) Comente o que significaria a expressão “aceitar a realidade tal como esta se apresenta”. Bibliografia recomendada: ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES e HERÁCLITO. Os Pensadores Originários. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. BORNHEIM, Gerd A.(org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1993. COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002. REALE, Giovanni. História da filosofia antiga: Das origens a Sócrates. Trad. Marcelo Perine. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002. VIEIRA, Antônio. As lágrimas de Heráclito. São Paulo: Ed. 34, 2001.