DOSSIER ITÁLIA QUERER OU NÃO QUERER CONTAR DANIEL OLIVEIRA | 2 A DERROTA ITALIANA, A ESQUERDA E O PODER JORGE COSTA | 6 BERTINOTTI PERDEU O COPYRIGHT LUÍS FAZENDA, CARLOS SANTOS E VICTOR FRANCO | 10 A ESQUERDA ITALIANA EM ESTADO DE CHOQUE RICARDO PAES MAMEDE | 14 DOSSIER ITÁLI QUERER OU NÃO QUERER CONTAR DANIEL OLIVEIRA VÍRUS ABR/MAIO 2008 [2] DOSSIER ITÁLIA QUERER OU NÃO QUERER CONTAR DANIEL OLIVEIRA | JORNALISTA. A VERSÃO ORIGINAL DESTE TEXTO FOI PUBLICADA NO BLOGUE ARRASTÃO. É EVIDENTE QUE A HECATOMBE DA ESQUERda Arco-Íris nas últimas eleições em Itália tem muitas explicações. Mas não há volta a dar. Em 2006 a Refundação Comunista teve 5,8%. Agora, coligada aos Verdes, à Esquerda Democrática (uma cisão da DS) e ao Partido dos Comunistas Italianos (uma cisão da Refundação), consegue 3,1% (estes partidos separados conseguiram no total 10,2%). Perderam quase três milhões de votos. A pior notícia desta catástrofe é que ela apanhou a chamada “esquerda radical” num processo de transformação. A Esquerda Arco-Íris era uma experiência de alargamento, que incluía de comunistas mais “duros” até ecologistas mais moderados. Experimentada agora (talvez o momento tenha sido tacticamente errado), morre à nascença. Já morreu. E na Refundação começará a luta fratricida. Antes de referir as razões que têm a ver com as escolhas feitas pela Refundação, vale a pena perder algum tempo com alguns pormenores circunstanciais. Não servem de desculpa. Servem para que não se façam análises apressadas. A verdade é que este desastre foi acentuado pela lei eleitoral italiana. A barreira nacional de 4% para a Câmara e a barreira regional de 8% para o Senado, assim como o favorecimento dos pequenos partidos que concorram em coligações maiores, leva a absurdos políticos. O Movimento para a Autonomia do Sul, com um terço dos votos da Esquerda Arco-Íris (apenas 1,1%), elegeu oito deputados e dois senadores. A coligação liderada pela Refundação não elegeu nenhum. Não cheguei a encontrar nenhuma análise da transferência de votos fiável. Mas parece evidente que a Esquerda Arco-Íris perdeu muitos votos para a coligação entre o novo Partido Democrático (que juntou todo o centro-esquerda italiano) e a Itália dos Valores, do juiz Di Pietro. A confirmação deste facto salta à vista nos números: todos os partidos que concorreram fora das duas coligações foram punidos. A UdC (centristas democrata-cristãos), de Casini, apesar dos seus 5,6% para a Câmara, ficou muito longe do renascimento da outrora pujante Democracia-Cristã italiana. A lista do famoso Giuliano Ferrara, “Aborto, não Obrigado”, ficou-se por uns miseráveis 0,4%. Pelo contrário, os maiores vencedores foram os partidos de segunda linha que se aliaram aos dois gigantes: Liga Norte (mais de 8%) e Itália dos Valores (4,3%). Ou seja, os italianos quiseram dar força a blocos de governo mas dentro deles premiaram as franjas. Junta-se a isto um pormenor talvez menos importante: a Refundação concorreu com um símbolo novo e um novo nome, sem qualquer referência às suas componentes e ao seu líder histórico, ao contrário do que aconteceu com os restantes partidos e do que é hábito em Itália. Ainda assim, o efeito disto será marginal. Para explicar esta perda de votos podem ser feita duas análises: a nova formação promovida pela Refundação foi vítima do voto útil de uma Itália polarizada em VÍRUS ABR/MAIO 2008 [3] DOSSIER ITÁLIA duas forças mais coesas do que o habitual ou foi punida pela sua participação num governo que pouco tinha a ver com ela. Suponho que, com uma descida tão acentuada, as duas serão igualmente verdadeiras e, mesmo que tal pareça paradoxal, se encontam juntas em muitos eleitores. Com esta descida, é evidente que esta esquerda perdeu votos para todos: seguramente para a abstenção (que aumentou um pouco), muitos para o Partido Democrático e parece que também para o PdL, de Berlusconi, e até para a Liga Norte, do xenófobo Bossi. Vale a pena concentrarmo-nos na questão política de fundo, até porque o voto útil não chega para explicar tamanha humilhação. Mais: para o Senado, onde o voto útil faria ainda mais sentido (a barreira em cada região é de 8%, enquanto para a Câmara, a nível nacional, é de 4%), a Esquerda Arco-Íris tem praticamente a mesma votação. Até tem mais um pouco: 3,2%. A Refundação Comunista esteve num governo incaracterístico onde a sua agenda quase não pesou. Demasiadas vezes acabou por se encontrar na esquizofrénica situação de contestar na rua o governo em que participava. Na política externa, na economia e na política social, o governo estava muito longe das opções programáticas da Refundação Comunista e da agenda da base social que a apoia. Pior: sendo um governo sem qualquer coesão conseguia desagradar a todos ao mesmo tempo. Na altura em que a Refundação decidiu entrar no governo defendi que, não sendo politicamente defensável a sua participação, ela era inevitável. Aliás, a decisão da Refundação estava tomada quando decidiu participar na coligação da esquerda na corrida eleitoral. Vale a pena, quando se analisa este resultado, ter a cautela de ter isto em conta. Qual teria sido o resultado da Refundação se, nas eleições anteriores a estas, já com este sistema eleitoral em vigor, decidisse concorrer separada? E, concorrendo coligada, que margem de manobra ou até que autoridade moral tinha para ficar fora do governo? Mas mesmo assim teve outras oportunidades para sair de um governo que se manteve demasiado distante dos mínimos que se tem de exigir à esquerda e perante vários gestos de provocação da ala mais à direita do governo, que testou a cada momento e para lá do razoável, a “lealdade” dos comunistas. Infelizmente, na política, as circunstâncias contam. Seria melhor se a Refundação tivesse saído e feito cair o governo? Não sabemos. Mas pensemos nisto: o partido que fez cair o governo Prodi eclipsou-se nestas eleições. A Refundação seria presa por ter cão (estar no governo) e por não ter (sair dele). É difícil, olhando para os resultados, atribuir ao posicionamento ideológico da Refundação esta queda. A cisão mais à esquerda da Refundação, a Esquerda Crítica, composta pelo ex-senador Luigi Malabarba, senador Franco Turigliatto, e deputados Salvatore Cannavò, Lidia Cirillo e Flavia D’Angeli, para onde podia ter ido algum voto de protesto, ficou-se por uns irrelevantes 0,46%. Se olharmos para os resultados como um sinal dado pelo eleitorado de esquerda italiano, este resultado deve entrar na equação. O protesto contra a escolha de Bertinotti tinha para onde ir. Não foi. Foi para lugares bem mais distantes. A REFUNDAÇÃO NÃO FEZ UMA ESCOLHA. NÃO TINHA ESCOLHA. SE SUPORTASSE ESTE GOVERNO SEM PROGRAMA NEM ALMA SERIA PUNIDA. SE NÃO O APOIASSE E ENTREGASSE O PODER A BERLUSCONI TAMBÉM O SERIA. E O DRAMA É EXACTAMENTE ESTE: TER PARTIDOS POLÍTICOS A TORCER PARA QUE NADA DEPENDA DELES. CONVENHAMOS QUE É POUCO ENTUSIASMANTE. A tese que defendo é outra e um pouco mais dramática. Para muitos eleitores, alguns partidos cumprem hoje a função de tubo de escape do sistema. É para isso que parte dos seus eleitores os querem. E quando se aproximam do poder ficam apenas com o voto convicto, que é bem menor. O resto foge para outros pontos de protesto (aqui foi para a direita, que estava na oposição, e para a abstenção) ou para quem está convictamente no poder e beneficia da chantagem do voto útil. Quem se zanga por alguns partidos participarem no poder não tem qualquer problema em votar em quem está no poder. Mas nesse voto prefere votar em quem realmente determina os governos. Para estes partidos reserva (e não quer mais) um papel de fiscais, de forma de pressão. Ou de voto de protesto que não pretende ser consequente. Convenhamos que nenhum partido que queira ter futuro político e determinar as políticas pode definir as suas estratégias com o objectivo de corresponder a estas expectativas. Porque, na realidade, os que, dentro dos respectivos partidos, reivindicam este papel e apenas têm como programa cumprir este papel até às ultimas consequências, julgando-se mais radicais que os restantes, não o são. Pelo contrário. Este é um papel perverso VÍRUS ABR/MAIO 2008 [4] DOSSIER ITÁLIA e sem futuro. Em vez de tentar mudar seja o que for, serve de almofada para que tudo fique na mesma. Aliás, é por isso que estes partidos são muitas vezes punidos perante a pressão do voto útil. Quando alguma coisa está realmente em risco os eleitores debandam. Claro que Itália não é o melhor exemplo para este debate. Itália tem Berlusconi e um sistema eleitoral surrealista. A Refundação não fez uma escolha. Não tinha escolha. Se suportasse este governo sem programa nem alma seria punida. Se não o apoiasse e entregasse o poder a Berlusconi também o seria. E o drama é exactamente este: ter partidos políticos a torcer para que nada dependa deles. Convenhamos que é pouco entusiasmante. Não podemos por isso fazer a transposição do que se passou em Itália para Portugal. O sistema eleitoral é diferente mas, mais importante, os actores políticos são outros. A esquerda à esquerda do PS está aqui separada e é provável que assim fique por muitos anos. Não há nenhuma diferença substancial entre o PS e o PSD, coisa que não se pode dizer entre a direita xenófoba de Berlusconi e o Partido Democrático (mais por causa do primeiro do que pelo segundo), e o PSD não constitui um risco sério para a democracia. Mas é interessante verificar que mesmo em Portugal as sondagens confirmam a tese que aqui defendo: sem que nada tenha mudado na sua forma de agir, nos seus programas ou nos seus protagonistas, PCP e BE aparecem com acentuadas subidas eleitorais. Tudo leva a crer que se trata de um voto de protesto contra as políticas do PS. É uma boa notícia esta subida eleitoral? Claro que sim. Mas alguém sabe o que fazer com esta boa notícia? O mais provável é que esta tendência continue enquanto o PS estiver no governo e ainda mais se o PSD continuar longe de qualquer ambição governativa. Mas, mal a direita regresse, é de esperar que este voto de protesto volte para os socialistas. Claro que há a possibilidade do PS ficar sem maioria absoluta. Afastando a participação num governo de Sócrates (que seria de todo inaceitável), sabemos que o PS ficará dependente ou de acordos com a direita (que acentuarão ainda mais as piores opções políticas do governo) ou que o BE e o PCP de alguma forma imponham alguma da sua agenda. Mas, se correrem bem as próximas eleições, chegará sempre o momento em que ou BE, ou PCP, ou os dois terão de escolher se fazem cair um governo com o qual não concordam. E esse dilema coloca-os numa posição péssima que merecerá, seja qual for a escolha, uma punição eleitoral. Os “duros” acham que este resultado em Itália prova a sua razão e acredito que até o celebrem. Reconheço que eleitoralmente é provável que tenham razão – apesar de valer a pena fazer uma análise mais fina – só não tiro daí as mesmas conclusões políticas. Porque, do ponto de vista estratégico, só podem levar a esquerda europeia para um beco. Porque não têm alternativa a não ser esperar sempre que tudo corra mal na vida das pessoas e que os governos façam o contrário do que defendemos para crescer momentaneamente. E que o voto útil se encarregue de levar tudo quando estiver em causa quem governa. E que no meio nada dependa realmente deles para não terem de pagar esse preço. E isso não é vida para quem quer melhorar a sua vida e a dos outros. E com isso não se constrói nada nem se cresce para o futuro. O caminho a seguir não é fácil. É construir programa, tentar ter efeitos práticos no destino da governação (seja no poder ou na oposição) e sofrer, quando assim tem que ser, as consequências dessa escolha. Até porque não há alternativa. Estar genuinamente disponível para participar no poder ou condicioná-lo de forma determinante e clara e deixar isso evidente para o eleitorado. O objectivo da esquerda não pode ser crescer à custa da degradação das condições de vida das pessoas. O objectivo da esquerda tem de ser o de crescer porque teve um papel na melhoria das condições de vida das pessoas. E pagar o preço quando e se não o conseguir. Os votos e o apoio popular são fundamentais. Mas são os que se limitam a contar votos para saber se o caminho que se escolhe é o acertado e que, para crescer, não se importam de ficar no inútil lugar de reserva moral da Nação, que se rendem ao jogo eleitoralista. A esquerda não precisa de reservas morais. Precisa de gente que ponha as mãos à obra e prove que é possível fazer diferente. E quem quer determinar o poder perde a pureza e paga o preço disso. Esse é o risco que corre quem quer mudar a vida concreta das pessoas. Ou isso, ou esperar mais um século enquanto se somam derrotas. VÍRUS ABR/MAIO 2008 [5] DOSSIER ITÁLIA OSSIER ITÁLIA A DERROTA ITALIANA, A ESQUERDA E O PODER JORGE COSTA VÍRUS ABR/MAIO 2008 [6] DOSSIER ITÁLIA A DERROTA ITALIANA, A ESQUERDA E O PODER JORGE COSTA | DIRIGENTE DO BLOCO DE ESQUERDA 1. Em política, não se diz “eu bem avisei”. A esquerda italiana está em escombros. Face à pujança social do populismo de direita, exposta desde 2006 pela tangencial vitória de Prodi, o governo do centro-esquerda não teve projecto alternativo. Nas eleições de Abril passado, o Partido Democrático não refez a maioria. Participante no governo, a Esquerda Arco-Íris1 caiu de 11% para 3%. A esquerda radical, saída há pouco da Refundação Comunista, não chegou a afirmar-se2. Já depois, nas eleições municipais em Roma, o candidato do centro-esquerda, Rutelli, conseguiu ter menos votos na segunda volta do que na primeira e perdeu para um dirigente da extrema-direita. Estas ruínas são notícias tristes para a esquerda europeia. Um debate maduro não pode menorizar a crítica, nem anatemizá-la como quinta-coluna que celebra às escondidas: excepto, talvez, na dimensão que teve, esta razia era previsível. 2. Todas as experiências de participação da esquerda em governos com a social-democracia conduziram ao descrédito e ao desgaste eleitoral. No último quarto de século, a contra-reforma liberal tem destruído os compromissos sociais estabelecidos no pós-guerra e, com eles, os movimentos sociais e os virtuais interlocutores do “diálogo social”. A social-democracia conduziu, quando não iniciou, essa demolição. Pior: o seu reformismo sem reformas deixou à direita a bandeira das transformações e a força da acusação contra “privilégios” e “corporativismos”. O liberalismo da “terceira via” social-liberal agravou a crise de referências políticas da nossa época e converteu uma parte da classe trabalhadora de esquerda em eleitorado de populismos de direita. Os partidos à esquerda da social-democracia têm pago cara a sua participação em governos de aliança. O exemplo da “Esquerda Plural” poderia ter feito escola. Integrando o governo de Lionel Jospin, o PCF escolheu submeter-se à política de privatizações, perseguição aos sem-papéis e imposição do Tratado de Amsterdão. Mesmo a reivindicação histórica das 35 horas foi aplicada de tal modo que reuniu a hostilidade do mundo do trabalho. Na sequência desta participação governamental, o PCF definhou até à marginalidade eleitoral em que se encontra sempre que concorre autonomamente do PS. 3. Berlusconi não obrigou a Refundação a governar. Não há qualquer excepção italiana. A perversidade da lei eleitoral – piorada pela direita em Abril de 20063 – não foi, nem podia ser, a razão desta participação governativa da esquerda alternativa. Pelo contrário, esta participação explica-se por uma viragem radical, operada pela direcção da Refundação, face a um período excepcional na história do partido e face aos compromissos políticos que o identificavam perante a sociedade italiana. Essa viragem tem raízes. A Refundação sempre integrou, entre outras, uma cultura política que situou o comunismo italiano como corrente “de luta e de gover- VÍRUS ABR/MAIO 2008 [7] DOSSIER ITÁLIA no”. Essa cultura vem do togliattismo e do “compromisso histórico”4, mas recusou integrar a mutação do PCI, participando na construção da Refundação Comunista como alternativa à conversão social-democrata. No entanto, o governismo esteve no centro das tensões de todo o percurso da Refundação e de duas cisões, em 1995 e 1998. Na segunda, o partido perdeu mesmo a maioria do seu grupo parlamentar5. A divergência situava-se justamente no apoio a governos vinculados ao programa liberal da burguesia europeia. Sob a direcção de Fausto Bertinotti, predominou a autonomia política da Refundação e o desenvolvimento de uma identidade nova na esquerda italiana, “antagonista” e de movimento, alterglobalista e contra a guerra. Depois de derrubar o primeiro governo Prodi, pela retirada de apoio parlamentar em 1998, a Refundação Comunista não cessou de crescer em influência social e número de votos. Chega a 6% (europeias 2004) e é força motriz de grandes mobilizações sociais. Mas a velha herança do PCI, submersa durante os anos 1998 a 2004, reemerge vigorosamente no congresso de 2005, onde a nova orientação de Bertinotti – integrar a coligação União, liderada por Romano Prodi, e participar no seu futuro governo – recolhe 60% dos votos dos delegados. Estive presente nesse congresso, onde fui um dos representantes do Bloco de Esquerda. Ao abraçar Romano Prodi, que o escutava como convidado na primeira fila, Fausto Bertinotti não usava as justificações fracas do “mal menor” e do “tudo menos Berlusconi”, a que recorrem alguns dos seus apoiantes. Ao invés, para conquistar o partido e a sua base eleitoral para o projecto de integração ao centro, Bertinotti desenvolveu vasta retórica sobre as propriedades socialmente mobilizadoras do futuro governo. Não sendo um governo da esquerda, tratar-se-ia de uma ruptura com o curso liberal, assegurada pela “aliança com a parte das classes dirigentes e empresariais que se propõe contribuir para a grande reforma do país” (Bertinotti, entrevista ao Corriere della Sera, 16.07.2006). Os fatalistas podem continuar a defender a opção da Refundação como se não fosse uma opção explícita, mas apenas o vagido da rez a caminho do matadouro. Vai dar ao mesmo: perante o desejo popular de mudança e sob a bipolarização, restaria saltar para o abismo. Assim fez Bertinotti, brandindo a ilusão da permeabilidade de Prodi às reivindicações do povo de esquerda. O resultado foi o congelamento do mais potente movimento da Europa contra a guerra, o italiano6, e uma massiva frustração na resistência organizada dos trabalhadores. 4. O governo Prodi não era “incaracterístico”: representava uma parte da burguesia italiana. A estória que Bertinotti contou foi-se desfazendo ao longo dos dois anos em que o líder da Refundação presidia também aos trabalhos do parlamento. Por isso é que a calamidade actual é tão pouco surpreendente. O governo Prodi tem a sua primeira crise grave em Fevereiro de 2007, na sequência do chumbo parlamentar da participação italiana na ocupação do Afeganistão. O único senador que votou de acordo com o programa da Refundação – contra o orçamento militar para a ocupação – foi expulso do partido. OS DIRIGENTES DA ESQUERDA ARCO-ÍRIS FORAM ABANDONADOS PELO “SEU” ELEITORADO PORQUE ERAM MINISTROS E DIGNITÁRIOS DE UM GOVERNO LIBERAL FRACASSADO, QUE FICARÁ APENAS COMO COROLÁRIO DA BIPOLARIZAÇÃO ITALIANA. ERRARAM LIVREMENTE E FORAM A VOTOS PROPONDO-SE PERSISTIR NO ERRO. Prodi impôs então à sua coligação um conjunto de doze condições para se manter à cabeça do governo. Entre elas, “o apoio constante à política externa de defesa e estabilização no quadro da ONU, aos nossos compromissos internacionais que derivam da pertença à UE e à NATO e do nosso envolvimento na missão no Afeganistão”; “a continuação do processo de liberalização [dos serviços públicos]”; “a reorganização do sistema de reformas, dando grande atenção à compatibilidade financeira e privilegiando as pensões mais baixas e os jovens” [i.e: nivelamento por baixo dos “regimes particulares”, em sectores onde lutas antigas conquistaram melhores condições]. Enquanto promovia novos golpes de liberalismo, o governo não só mantinha a legislação laboral de Berlusconi e a famigerada lei Bossi-Fini sobre a imigração, como aumentou as despesas militares e baixou os impostos sobre os patrões. Assim, a Esquerda Arco-Íris não se desfez por estar comprimida entre críticas ao seu estilo no governo – pela esquerda (falta de nuances críticas) e pela direita (insuficiente solidariedade com Prodi e perda de influência). Pelo contrário, os dirigentes da Esquerda Arco-Íris foram abandonados pelo “seu” eleitorado porque eram ministros e dignitários de um governo liberal fracassado, VÍRUS ABR/MAIO 2008 [8] DOSSIER ITÁLIA que ficará apenas como corolário da bipolarização italiana. Erraram livremente e foram a votos propondo-se persistir no erro. 5. A estratégia da esquerda anti-capitalista é enfrentar “a crise da política”, criando uma nova relação de forças social e uma nova cultura de poder. Resumir a luta pelo poder à institucionalidade que existe e à sua representação espectacular separa-a do conflito social real e reduz a política a um jogo plano, em que a posição dispensa o movimento e extingue o objectivo. Muitos comentadores chamam-lhe “governabilidade”. Recusá-la, seria exilar-se na “pureza” de “amanhãs que cantam” e “assaltos ao palácio de Inverno”, esperando, como diz o Daniel Oliveira, “que tudo corra mal na vida das pessoas para crescer momentaneamente”. Aceitá-lo, desejar as suas “responsabilidades”, seria coragem para o “aqui e agora”. Fora do jogo, só sobra o “protesto”, esse “tubo de escape” (ainda o Daniel) para que tudo fique na mesma. Só um pormenor não bate certo aqui. Se a participação em maiorias parlamentares e governos é a forma de conseguirmos “coisas concretas”, então porque não é? Ou, de outro modo, o problema em França e em Itália foram exactamente as “coisas concretas”, o conteúdo da governação, o projecto político e o seu alinhamento social com os mais fortes – o concreto profundo, a força da classe dominante e a consolidação do seu domínio. A esquerda socialista não recusa a questão do poder, nem capitula a uma função de “protesto”. Bem pelo contrário, a recusa do jogo da alternância é condição para a única hipótese de vitória: a estratégia que se compromete com o socialismo. A esquerda socialista é uma força de mobilização, que acumula conhecimento, memória e proposta, querendo ser cada vez mais dirigente e, como tal, cada vez mais portadora de poder social, de peso na relação de forças. Constatando hoje a excessiva ausência do protagonismo essencial – o da maioria da população, confinada ao voto e privada de outras expressões sociais e políticas da democracia –, a esquerda socialista não aceita substitui-lo. A questão da participação governamental é colocada, portanto, num quadro de exigência que é o da transformação da relação de forças entre classes. Isso implica uma acumulação de experiência e conflito, vividos amplamente e que assegurem novas conquistas. Fora de tal quadro prévio, a participação governamental da esquerda está condenada à conformação e à derrota. Esta é a primeira condição essencial para a participação numa maioria de governo.7 A outra condição é a abertura de uma dinâmica hostil à ordem do capital: no que respeita às questões da propriedade pública dos sectores estratégicos, da correcção fiscal das injustiças sociais, da ruptura com amarras como o Pacto de Estabilidade ou a NATO. Uma maioria eleitoral, neste quadro e com estes compromissos, poderia colocar a questão do governo em termos novos. Seria bom (tentar) encerrar no século passado os erros nele cometidos. Mas, para tanto, não bastará à esquerda a crítica profunda ao totalitarismo burocrático e o compromisso de princípio com as liberdades. A social-democracia tem a sua marca na barbárie do século XX, nas suas guerras (começando e acabando nos Balcãs, passando por todas as colónias) e na regressão liberal da Europa em que o século terminou. O calendário virou com sinais de esperança: um movimento de recusa da globalização capitalista arrancou no Brasil e chegou à Europa pela porta italiana, animado também por partidos, como o PT e a Refundação Comunista, então portadores de uma crítica radical. O seu percurso distinguia-os dos pais da “crise da política” à esquerda: o estalinismo e a social-democracia. Porém, no Brasil como em Itália, a estratégia governista dissipou anos de acumulação de forças, credibilidade social, energia transformadora. Sendo uma luta pelo poder, a luta pelo socialismo precisa de uma estratégia forte. O estado do mundo exige pressa, mas desaconselha os atalhos. VÍRUS ABR/MAIO 2008 [9] DOSSIER ITÁLIA NOTAS: 1 - A Esquerda Arco-Íris era composta pela Refundação Comunista, Partido Comunista dos Italianos, Verdes e Socialistas Democráticos (cisão dos Democratas de Esquerda que recusaram integrar o PD de Veltroni). 2 - As duas formações saídas da Refundação, Esquerda Crítica e Partido Comunista dos Trabalhadores, reuniram 1%. 3 - A proporcionalidade só se aplica a um quarto dos assentos parlamentares. 4 - Governo de aliança entre o PCI e a Democracia Cristã, quase concretizado no final dos anos 70 pelo secretário-geral comunista Enrico Berlinguer. 5 - Esta cisão, favorável à manutenção do apoio a Prodi, deu origem ao PCdI de Armando Cossutta, uma das formações da Esquerda Arco-Íris. 6 - Ocorreram importantes mobilizações contra o alargamento da base da NATO de Vicenza, confrontando o governo Prodi, que se manteve firmemente ao lado do plano norte-americano. 7 - Note-se que as importantes lutas dos últimos anos em Itália foram de natureza defensiva, não lograram travar a direita e foram esvaziadas, sem serem atendidas, pelo governo Prodi. OSSIER ITÁLI BERTINOTTI PERDEU O COPYRIGHT LUÍS FAZENDA, CARLOS SANTOS E VICTOR FRANCO ESTE TEXTO FOI PUBLICADO EM OUTUBRO DE 2007 NA REVISTA “A COMUNA” VÍRUS ABR/MAIO 2008 [10] DOSSIER ITÁLIA BERTINOTTI PERDEU O COPYRIGHT LUÍS FAZENDA, CARLOS SANTOS E VICTOR FRANCO | TEXTO PUBLICADO EM OUTUBRO DE 2007 NA REVISTA “A COMUNA” NO FINAL DE 2002, O SECRETÁRIO DO PARTIDO da Refundação Comunista de Itália, Fausto Bertinotti, elaborou e divulgou as suas “Quinze Teses para uma Esquerda Alternativa Europeia”. Trata-se de uma sequência de enunciados e conclusões, em menos de três páginas. A publicação dessas Teses foi simultânea à reunião em Florença de muitos partidos de esquerda da Europa, sob os auspícios da Rifondazione. O leque ideológico dos assistentes era largo, e a oportunidade não podia ser melhor na véspera do 1º Fórum Social Europeu. O texto de Bertinotti exerceu uma influência marcante no processo de aproximação e convergência de várias esquerdas no velho continente, apostadas numa luta política comum, sem prejuízo e para além das marcas de identidade de cada uma delas. O movimento e os debates que se lhe seguiram foram um impulso à cooperação europeia, até mais do que a forma a que deu lugar, a European Left (E.L.), hoje congelada a baixíssima temperatura. Vale a pena revisitar esse prontuário a usar e perguntar à actualidade o que pensa dele. 1. Bertinotti, em 2002, apoia-se na análise da globalização capitalista para deduzir o alargamento do campo de contra-hegemonia e de alternativa. “O nascimento e desenvolvimento do movimento de crítica contra a globalização gera um fenómeno de valor estratégico”. Esperava-se, e bem, revelar “o elo existente entre o modelo social neo-liberal e a guerra da globalização”. O “renascimento da política” passava por aqui. E, de um modo particular, a Refundação Comunista. Esta visão estratégica provou, e prova, estar acertada. Desde logo pelo surto do “complexo Iraque” na política mundial, cavando o isolamento dos EUA, pelas vagas de protesto social que acelerou em muitas regiões, em especial na América Latina. O sistema de guerra imperialista é o paroxismo do regime global dominante. Como é simples de perceber, o actual cerco à ditadura discordante do Irão, apoiado num argumento de autoridade idêntico ao utilizado no Iraque – quem tem as armas – alimenta o regresso de um movimento mundial pela paz, por sua vez gerador de mais profunda contestação ao neo-liberalismo. Entretanto, a Refundação substituiu a visão estratégica de afrontamento da Casa Branca e satélites por uma deriva de aceitação do “multilateralismo negociado” dos conflitos internacionais. Com várias consequências negativas: obscurece as causas do conflito imperialista e o seu domínio totalizante sob qualquer pretexto, espalha a ilusão de uma “América Democrática” que se seguirá a Bush, e só deita sal nas feridas do mundo. O processo do Império, à falta de rupturas essenciais nos EUA e na Europa, mostrará que o multilateralismo não passa de um carnaval de época, destinado a confundir a opinião pública mundial. Do ponto de vista particular da “refundação do comunismo” trata-se até de uma adaptação inexplicável ao neoliberalismo, mesmo que em versão mitigada: VÍRUS ABR/MAIO 2008 [11] DOSSIER ITÁLIA isso é simplesmente uma recuperação burguesa de um pensamento socialista. 2. Espaço à Europa. Bertinotti sublinhava em 2002 que “no seio da política mundial a Europa é, para nós, a dimensão mínima necessária para o renascimento da política das classes populares”. Pensava então que o destino europeu se ligava à ultrapassagem da crise da política pela participação das classes subalternas, por um “salto em frente” que poderia agudizar a crise da dominação da globalização capitalista. Bertinotti teve até o cuidado, fundado, de se demarcar das fragilidades democráticas da Europa actual, porém vincando bem a cultura enriquecida pela luta de classes do continente europeu. Essa visão levou a um processo, não isento de contradições, de rejeição total do modelo de instituições da União Europeia, de oposição à prevista “Constituição Europeia”, em nome de um processo democrático dos povos para outra Carta da Europa. Só esse processo tornou possível que o congresso da fundação da EL tivesse tomado essa posição por unanimidade, em consonância com os movimentos sociais mais expressivos do continente, com excepção da cúpula da Confederação Europeia de Sindicatos. Em consequência, todas as forças da EL reclamaram o referendo para rejeitar o Tratado Constitucional. Hoje, trata-se de fazer o mesmo pelo Tratado Reformador, irmão gémeo do anterior. Exigir o referendo. Pelas mesmíssimas razões. Sem tirar nem pôr. Contudo, o espectro do jogo da ratificação parlamentar ronda a EL, e isso nada tem a ver com o renascimento da política das classes populares. 3. A crise estratégica do reformismo. Foi tema destas “Quinze Teses” e de muitos outros escritos. As intervenções de 2002/4 de Bertinotti recordam essa zona dura, violenta até, de acusações aos partidos sociais-democratas e afins, culpados de terem “contribuído para a eleição de forças de direita nos EUA e na Europa” no que se chamava “a segunda fase da globalização”. Bertinotti asseverava: “Nós sabemos que as ondas de choque contraditórias dos novos processos mundiais, por um lado a globalização capitalista e por outro lado aquele que propõe que um outro mundo é possível (e necessário), põem dramaticamente em crise a hipótese reformista (…)”. Apesar do autor chamar a atenção para o facto de que as forças reformistas se dividem, consolidava a evidência de que essas forças estavam, sob a pressão da globalização, rendidas ao neo-liberalismo. Ora a “hipótese reformista” é o que governa agora Portugal, Espanha, Inglaterra, Suécia, até a coligação na Alemanha, e a própria Itália, já não falando de outros casos menos distintivos. Não é difícil verificar o avanço da NATO e a retirada de direitos sociais em todos esses países. Não há “hipótese reformista” porque vingou em toda a linha o modelo liberal e “o carácter fundamentalmente regressivo” da globalização capitalista. A tese demarcatória era e é correcta. Aplicada à Itália de hoje torna a posição da Refundação uma caricatura. Não podemos, contudo, diminuir a importância do assunto. A autoridade dos partidos, a força dos movimentos sociais, não irromperam apenas das A PARTICIPAÇÃO GESTIONÁRIA NUM GOVERNO LIBERAL, DE “CENTRO-ESQUERDA”, PODE ATÉ SER JUSTIFICADA PARA IMPEDIR MALES MAIORES ÀS CLASSES POPULARES MAS COMETE O CRIME DE ROUBAR A ESPERANÇA NUMA ALTERNATIVA SOCIAL. UMAS MIGALHAS NÃO FAZEM A DIGNIDADE NUMA LUTA DE OPOSTOS. contradições objectivas com os interesses das “classes subalternas” mas também do capital de esperança das alternativas – essa é a força subjectiva, da consciência social. A participação gestionária num governo liberal, de “centro-esquerda”, pode até ser justificada para impedir males maiores às classes populares mas comete o crime de roubar a esperança numa alternativa social. Umas migalhas não fazem a dignidade numa luta de opostos. Ao acentuar-se a crise estratégica do reformismo mantinha-se um apelo ao reagrupamento das esquerdas políticas e sociais. A Refundação ao fazer parte da crise do reformismo produz desmembramento do espaço transformador, divisões, atraso na consciência social. 4. Em 2002, Fausto Bertinotti entendia não fazerem sentido alianças de governo com os reformistas. Nas “Teses” diz-se expressamente: “O facto de que possa construir-se uma transição procurando uma aliança de governo com os reformistas, facto fixado por uma identidade histórica herdada do passado, sofre um golpe mortal na situação actual”. O autor juntava duas reflexões a esta conclusão. A primeira, as forças comunistas não se VÍRUS ABR/MAIO 2008 [12] DOSSIER ITÁLIA definiam mais pelo confronto com a social-democracia, isso não era mais um debate na esquerda. Segunda, a crise da esquerda reformista juntava-se à crise dos grupos comunistas tradicionais. O epílogo desta linha de pensamento não podia ser mais categórico: “Sabíamos que a Refundação era necessária para reconstruir uma perspectiva revolucionária. Agora damo-nos conta que ela é necessária mesmo para existir”. Com tais palavras a participação da Refundação no governo Prodi soa a epitáfio. O afastamento de governos compostos por forças gestoras do modelo liberal, embora reclamando-se de centro-esquerda, seria até uma oportunidade de crescimento da perspectiva refundacionista. E isto porquê? Segundo Bertinotti, não sendo possível qualquer aliança de governo:, “O motor para a mudança é então a constituição de um novo movimento operário. A Europa é um dos lugares privilegiados para este tipo de transformação da sociedade capitalista dos anos 2000. É obrigatoriamente o nosso terreno de acção privilegiado”. Quando o ministro do Trabalho do governo italiano, Paolo Ferrero, discute por estes dias com os sindicatos o aumento da idade da reforma dos trabalhadores e a desvalorização das pensões, trazendo na gravata a sua qualidade de dirigente da Refundação, não pode haver maior divórcio entre a tese e a vida. O oportunismo assume o zénite. O terreno de acção mudou para o partido. Mas o terreno de acção do movimento operário far-se-á, apesar da Refundação, como se vê pela contestação da FIOM (Federação dos Metalúrgicos) às medidas do governo Prodi. 5. Está na altura de a esquerda alternativa proceder a clarificações. Não se deve ser adepto de capelas e seitas que embargam o debate entre as esquerdas europeias. Em todo o caso, isso não significa escamoteamento de posições políticas, ponderadas e abertas. A esquerda alternativa tem avançado por reagrupamentos e clarificações. A cada clivagem certa tem correspondido um avanço num movimento plural. Presume-se que a Refundação tenha regressado ao perfil e à política habitual do que apelidavam de grupos comunistas tradicionais, e nem de todos. Seguramente, a política não é feita por exorcismos, mas por escolhas. Para quem nunca subscreveu várias teses de Bertinotti, as de 2002 eram suficientes para uma caminhada nova da esquerda alternativa europeia. As “Quinze Teses”, então afirmadas, estão ainda hoje válidas. Lamentavelmente, o seu autor perdeu os respectivos direitos. Nós mantemos essa escolha e trazemo-la ao crivo da crítica. Bertinotti perdeu o copyright. (citações de “Quinze Teses” a itálico) VÍRUS ABR/MAIO 2008 [13] DOSSIER ITÁLIA OSSIER ITÁLI A ESQUERDA ITALIANA EM ESTADO DE CHOQUE RICARDO PAES MAMEDE | ESTE TEXTO ENCERRA UMA SÉRIE DE NOVE POSTS PUBLICADOS NO BLOGUE “LADRÕES DE BICICLETAS” VÍRUS ABR/MAIO 2008 [14] DOSSIER ITÁLIA A ESQUERDA ITALIANA EM ESTADO DE CHOQUE POR DETRÁS DA DERROTA ELEITORAL, A PERDA DE INFLUÊNCIA SOCIAL DA ESQUERDA ITALIANA1 RICARDO PAES MAMEDE | ECONOMISTA . ESTE TEXTO ENCERRA UMA SÉRIE DE NOVE POSTS PUBLICADOS NO BLOGUE “LADRÕES DE BICICLETAS” O DEBATE EM PORTUGAL SOBRE A DERROTA da Esquerda Arco-Íris nas últimas eleições italianas parece estar condenado a centrar-se na questão da participação no governo. Como aqui sugeri, esta não é uma questão menor. As condições em que os partidos da esquerda crítica participaram no governo Prodi (aderindo à coligação de centro-esquerda de forma incondicional), aliada à escassa maioria parlamentar que apoiava este executivo, restringiram a acção daqueles partidos: no governo não tiveram força para fazer vingar as suas propostas, fora dele viram-se obrigados a conter as suas críticas para não serem acusados de estar a favorecer o regresso da direita ao poder. No entanto, antes de discutir se em 2006 a Esquerda Arco-Íris poderia ter optado por manter-se fora da coligação de centro-esquerda e do 2º governo Prodi, ou se deveria ter reivindicado condições programáticas mínimas para essa participação (e quais seriam os custos políticos das várias alternativas), vale a pena questionarmo-nos como é possível o espaço à esquerda do centro político encontrar-se na situação actual. Nomeadamente, importa tentar compreender como é que depois de 5 anos (2001-2006) de um governo inqualificável liderado por Berlusconi (com a participação da direita xenófoba e pós-fascista) a coligação de esquerda e centro-esquerda não conseguiu em 2006 mais do que uma vitória marginal – sendo claro que a fragilidade da maioria parlamentar foi um factor fortemente condicionante da acção da esquerda crítica no seio do o governo Prodi (entre 2006 e 2008) e condenou este governo a um tempo de vida limitado à nascença. Esta questão é tanto mais pertinente quanto o período do governo Berlusconi foi dos mais activos e mobilizadores das últimas décadas para a esquerda italiana.2 A resposta a esta questão é tudo menos simples. A fragilidade estrutural das esquerdas italianas encontra as suas razões numa diversidade mais vasta de factores, que incluem: os efeitos profundos e duradouros da operação ‘Mãos Limpas’ no início dos anos 90 (ver aqui), que levou ao colapso dos partidos do centro-direita e da credibilidade do sistema político italiano; o aproveitamento por parte das novas direitas populistas dessa crise sistémica, bem como dos graves problemas enfrentados pela economia italiana3 e das incertezas e inseguranças que deles decorrem; a utilização recorrente e bem-sucedida por Berlusconi da comunicação social sob seu controlo directo para atacar os adversários e para promover a sua imagem; a incapacidade da esquerda ‘reformista’ para construir um discurso claro, distintivo e mobilizador (mais sobre isto aqui); a opção das esquerdas (a ‘reformista’ e a ‘radical’, para simplificar) por um modelo de intervenção política assente na personalização e no mediatismo; inversamente, a capacidade de parte das novas direitas para intervir na sociedade italiana através de uma sólida presença junto das populações. São estes dois últimos aspectos – que dizem respeito às formas de intervenção na sociedade italiana pelas forças políticas italianas (em particular, às opções toma- VÍRUS ABR/MAIO 2008 [15] DOSSIER ITÁLIA das pelos líderes da esquerda crítica italiana em matéria de organização e de formas de intervenção política nos anos mais recentes) – que pretendo aqui realçar. Aquilo que os quatro partidos que constituíram a plataforma Esquerda Arco-Íris nestas últimas eleições (Refundação Comunista, PdCI, Verdes e SD) tinham em comum era a (vontade de) identificação com os vários movimentos sociais e de protesto que marcaram a Itália no período 2001-2006. Como aqui escrevi, este foi um dos períodos mais significativos de mobilização popular das últimas décadas em Itália, envolvendo muitos milhões de pessoas que faziam questão de se distanciar das políticas de centro-direita, prosseguidas pelo governo, tanto no plano interno como no externo. Impressionados pelo sucesso dos movimentos sociais de protesto e perante a opção recorrente por parte do centro-esquerda de manter a distância face a estes movimentos (supostamente para não afastar o eleitorado centrista), os líderes dos partidos do Arco-Íris convenceram-se que poderiam constituir-se como representantes da Itália da paz, do ambiente e da resistência a Berlusconi – um espaço político amplo, onde cabiam comunistas e socialistas de várias extracções, pacifistas, feministas, activistas LGBT, ambientalistas e católicos progressistas. Neste processo destaca-se o papel da Refundação Comunista, o partido mais representativo deste espaço político e cujo líder histórico, Fausto Bertinotti, encabeçou a lista da Esquerda Arco-Íris às eleições de 2008. Procurando sinalizar a sua predisposição para dar voz aos ‘movimentos’, a direcção de Bertinotti começou por promover o envolvimento dos activistas da Refundação nos movimentos sociais (em detrimento da vida partidária), e por favorecer a inclusão de figuras destacadas (sem filiação partidária) dos vários ‘movimentos’ (nomeadamente, dirigentes de associações e ONGs dedicadas a temas como a paz, a cooperação, o ambiente, etc.) nas listas eleitorais da Refundação. Percebendo que esta estratégia corria, ainda assim, o risco de ser vista como uma tentativa de controlo hegemónico da Refundação sobre os movimentos sociais em Itália – o que tenderia a fragilizar tanto aquele como estes – Bertinotti foi promovendo uma aproximação aos outros partidos de orientação ‘movimentista’ e a crescente diluição da Refundação no seio de uma ‘plataforma Arco-Íris’. Tal como os herdeiros formais do ex-PCI (inicialmente PDS, depois DS, agora PD) se uniram a segmentos da ex-Democracia Cristã para tornar mais convincente a sua transformação reformista, os Verdes pela Paz foram para a Refundação um parceiro de coligação útil, capaz atenuar o preconceito existente em algum eleitorado relativamente à herança comunista do partido, permitindo o alargamento da sua base eleitoral. Neste contexto de aproximação à esquerda não comunista, a Refundação optou: por privilegiar os temas consensuais entre a esquerda de protesto (paz, ambiente, direitos civis) relativamente aos temas potencialmente divergentes (e.g., questões laborais); por reforçar a crítica relativamente às experiências de “socialismo real”, sem insistir na discussão sobre modelos alternativos de sociedade; e por aligeirar a organização partidária (e.g., desvalorizando as células locais e de empresa), O ESPAÇO DEIXADO LIVRE PELA ESQUERDA ITALIANA (SEJA A ESQUERDA ARCO-ÍRIS OU A DO PARTIDO DEMOCRÁTICO, QUE HERDOU AS PRINCIPAIS ESTRUTURAS DO PCI), AO DESISTIREM DA FORMA DE PARTIDO DE MASSAS, PRÓXIMOS DAS VIDAS QUOTIDIANAS DAS POPULAÇÕES, FOI EFICAZ E UTILMENTE OCUPADO POR PARTE DAS DIREITAS PÓS-’OPERAÇÃO MÃOS LIMPAS’ assentando a intervenção política numa lógica essencialmente mediática, personalista (centrada na figura de Bertinotti) e fortemente institucional (simbolizada pela eleição de Bertinotti para a presidência da Câmara dos Deputados em 2006). Esta estratégia de diluição da identidade e da organização da Refundação no conjunto das forças pretensamente representativas dos ‘movimentos’, e de institucionalização da imagem do partido, revelou-se bem-sucedida nas penúltimas eleições (2006), quando a Refundação obteve mais 2,5 milhões de votos (e o conjunto da esquerda movimentista quase 4 milhões), tornando-se incontornável neste período da vida política italiana. Mas o custo a pagar por esta estratégia não demorou tempo a fazer-se sentir: a sua base eleitoral alargada, assente nos sectores menos ligados à tradição crítica, não resistiu a um contexto de bipolarização; num cenário de diluição de identidade política tornou-se mais fácil perder eleitores tradicionais para o voto útil; a opção por uma abordagem essencialmente mediática à intervenção política mostrou rapidamente os seus limites (ainda para mais num contexto em que grande parte dos meios VÍRUS ABR/MAIO 2008 [16] DOSSIER ITÁLIA de comunicação social eram controlados pelo principal adversário político); finalmente, a opção de criar um ‘partido ligeiro’, em que a abertura aos movimentos sociais do momento (muitos deles sem enraizamento na sociedade italiana e também eles caracterizados por uma intervenção essencialmente mediática e personalista) foi feita à custa da construção de uma presença orgânica no território e nos locais de trabalho, acabou por alienar muitos militantes e simpatizantes entre o eleitorado popular menos atento às dinâmicas macro-sociais. O espaço deixado livre pela esquerda italiana (seja a Esquerda Arco-Íris ou a do Partido Democrático, que herdou as principais estruturas do PCI), ao desistirem da forma de partido de massas, próximos das vidas quotidianas das populações, foi eficaz e utilmente ocupado por parte das direitas pós-’Operação Mãos Limpas’ – o que ajuda a explicar o facto de a Esquerda Arco-Íris perder parte do seu eleitorado para a Liga Norte. O partido separatista liderado por Umberto Bossi é hoje muito mais do que um mero movimento folclórico que reclama contra os impostos pagos pelo Norte e desperdiçados pelas máfias e pelos políticos indigentes do Sul, ou contra a invasão da Padânia por imigrantes de Leste. A Liga Norte é hoje uma força política organizada, constituída por uma vasta rede de autarcas e de activistas fortemente envolvidos na vida quotidiana das pequenas cidades e vilas pré-alpinas, e que se apresentam aos olhos dos eleitores como cidadãos iguais a todos os outros, empenhados em resolver os problemas concretos das populações. Várias associações de bairro, organizações de pequenos empresários e agricultores, sindicatos e outras associações de base – algumas fundadas e impulsionadas por gente de esquerda – são hoje dinamizadas por leghistas, muitos deles genuinamente empenhados nas suas actividades. Não por acaso, nas eleições de Abril passado a Liga Norte obteve mais votos do que a Refundação no distrito operário do complexo industrial da FIAT (outrora uma praça forte do PCI e da extrema-esquerda). A perda dramática de influência social da esquerda em Itália não começou com a participação da Refundação no último governo Prodi – e, infelizmente, nada indica que aí vá parar. Sem ter em consideração este processo não é possível compreender os maus resultados eleitorais sucessivos das esquerdas italianas. Talvez valha a pena, assim, não isolarmos a questão da participação da esquerda crítica no governo quando reflectimos sobre a evolução recente da política italiana – por muito que nela se queira encontrar a demonstração inequívoca da justeza das posições de cada um relativamente aos próximos capítulos da política portuguesa. NOTAS 1 - Este texto é baseado numa série de ‘posts’ publicados entre Abril e Maio de 2008 no blog Ladrões de Bicicletas. 2 - Na sequência dos protestos de Génova em 2001, aquando da reunião do G8, o movimento alterglobalista ganhou uma visibilidade e uma capacidade de mobilização raras. A força deste movimento fez-se sentir em varias ocasiões, como no protesto popular contra as guerras do Afeganistão e do Iraque (em que milhões de italianos, desde os vales dos Alpes às vilas costeiras da Sicília, colocaram nas suas janelas, durante meses, bandeiras com as cores do arco-íris em sinal de adesão ao protesto), na manifestação convocada pela CGIL que levou a Roma 3 milhões de pessoas em luta contra a liberalização da regras laborais ou ainda no Fórum Social Europeu de Florença, onde dezenas de milhares de activistas de várias causas se juntaram para trocar ideias e experiências, e procurar vias alternativas ao modelo de desenvolvimento neoliberal. 3 - A Itália encontra-se numa situação económica particularmente adversa, apresentando desde há mais de uma década as mais baixas taxas de crescimento económico entre os países da UE e da OCDE. O crescimento do PIB foi de 1.5% em 2007 e prevê-se que não será superior a 0.5% em 2008, situação sem paralelo entre as economias industrializadas. VÍRUS ABR/MAIO 2008 [17] DOSSIER ITÁLIA LEIA OS POSTS ANTERIORES NO BLOGUE “LADRÕES DE BICICLETAS” PARTE 1 | PARTE 2 | PARTE 3 PARTE 4 | PARTE 5 | PARTE 6 PARTE 7 | PARTE 8 IMAGENS DOSSIER ITÁLIA MAFALDABLUE BERNINI VS BERLUSCONI ANDRÉ BEJA LA UNIONE DIREITOS RESERVADOS RICCIO “FALCE E MARTELLO” SE LI PORTA CIASCUNO DENTRO DI SE, O IN SPALLA COLORGUZ SIMILI O OPPOSTI? 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