A Natureza do Homen e os limites da Tecnologia Ronaldo Pimentel Mestrando em Lógica e Filosofia da Ciência do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFMG; Licenciado em Filosofia pela UFJF; [email protected] Resumo Na Filosofia da Técnica, uma das grandes dualidades que se torna um problema filosófico é a dualidade entre o Natural e o Artificial. Segundo os textos de Descartes, a pergunta pelo que pode ser considerado como natural ou o que vem a ser a natureza das coisas necessariamente deve passar pela pergunta sobre a natureza do homem. No caso do homem, a natureza do seu corpo é o que aparece de modo necessário e é justamente aquilo que é descrito de acordo com as leis da Física, de modo mecânico assim como no caso dos objetos técnicos ou no caso das máquinas inventadas pelos homens, o que leva à aproximação do cancelamento entre a dualidade natural e artificial. No texto, mostraremos como que o conceito de mecânico ou de procedimento finito da matemática, ou de máquinas abstratas, se relaciona com a noção de um corpo como o de um homemmáquina e, ainda mais, como que a noção de mecânico não se aplica a determinadas partes daquilo que é composto o homem, principalmente a sua mente. Para tanto, utilizaremos uma importante descoberta da lógica, os teoremas de incompletude de Gödel (1931) e as considerações filosóficas sobre esses teoremas em Gödel (*1951) já que essa descoberta constitui-se uma tese anti-I.A. de grande importância. Palavras-chave: Gödel, Descartes, Church, Turing, incompletude, tecnologia, mentes, máquinas Introdução As considerações aqui apresentadas são baseadas na Meditações Segunda e Sexta1 e também Tratado sobre o homem2. O principal problema apresentado aqui é o cancelamento entre duas grandes dualidades importantes e que incluem a diferença entre o artificial. A diferença parece cair sob um preconceito que segundo o prof. Ivan Domingues “(..) toma o objeto técnico como artificial em oposição aos objetos naturais, como na tradição latina e medieval ao falar dos artificialia, dizendo que ele ocupam um enclave especial e circunscrevem um mundo à parte (...)”3. Diante da dualidade entre Natural e Artificial, utilizaremos como primeiro lema, a noção de que os processos humanos podem ser representados por uma máquina e, como segundo lema, a noção de que as máquinas abstratas modelam as máquinas reais ou físicas. Na tentativa de se romper com essa dualidade presente na tradição ocidental, a natureza do homem aparece como tema problemático. Seguindo o método de Descartes, uma vez conhecida a natureza humana, a natureza das coisas em seus aspectos claros e distintos deve se tornar inteligível. Saber clara e distintamente o que sou eu é saber qual é a minha natureza, e descobrir em mim aquilo que aparece como sendo uma verdade necessária e também saber as leis que determinam os movimentos do meu corpo. Os movimentos realizados pelo nosso corpo aparecem, no TH, como que algo mecânico, hidráulico ou ainda por processos térmicos como a fermentação que configura os movimentos das partes do corpo ou pelo movimento dos espíritos através das terminações nervosas. O corpo é uma espécie de máquina, ou como se queira chamar, um relógio ou um autômato que funciona basicamente sozinho e de acordo com as suas configurações. A máquina construída por Deus é mostrada como que construída pelo homem através de objetos técnicos como ferramentas mecânicas criadas pelo homem. Da natureza humana torna possível, então, pelos argumentos de Descartes, a construção de um homem artificial como um fundo de utilização do progresso da técnica. Introduziremos então, na discussão sobre o cancelamento entre as duas grandes dualidades – o natural e o artificial – um importante argumento, ou uma tese anti inteligência artificial realizado pelo lógico e matemático Kurt Gödel na conferência Some Basic Theorems on the Foudations of Mathematics and their Implications4. A conferência de Gibbs apresenta um argumento baseado nos Teoremas de Incompletude (GÖDEL, 1931), que afirma que se um sistema lógico forte o suficiente para conter a aritmética é consistente, então o sistema é incompleto porque não se demonstra a consistência do sistema dentro do próprio sistema. As considerações filosóficas aqui lançadas depende do entendimento do conceito de 1 DESCARTES, R. Meditações in Os Pensadores pág. 91-98 & 129-142 DESCARTES, R. Tratado Sobre o Homem in MARQUES, J. Descartes e sua Concepção de Homem, 1993, Edições Loyola, São Paulo Obs.: Por abuso de linguagem, referimos ao Tratado, durante o texto, por TH 3 DOMINGUES, I. Ética e Técnica, texto-aula da disciplina Filosofia da Técnica (Pós-Graduação em Filosofia - UFMG) 4 GÖDEL, K. Some Basic Theorems on the Foudations of Mathematics and their Implications, * 1951, in FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Unpublished Essays and Lectures, Vol. III, New York: Oxford University Press, 1995 Obs.: Por abuso de linguagem, referiremos esse texto por Conferência de Gibbs 2 mecânico, utilizaremos desse conceito matemático para mostrar que as leis da física depende desse conceito e inclusive as leis da mecânica, admitindo que no texto de Descartes há a possibilidade de um reducionismo das leis da biologia às leis da Física. Mostraremos ainda que uma inteligência baseada no conceito de mecânico é impossível e que tal impossibilidade constitui um problema no cancelamento das grandes dualidades, principalmente entre o natural e o artificial (inteligência artificial). Do conhecimento do claro e distinto As respostas que partem dos sentidos que temos dos corpos não são uma verdade necessária, e, também, os atributos da alma que dizem respeito aos sentidos, que a leva à imaginar, sentir e se mover, também, não são uma verdade necessária. Porém, esses conhecimentos de mundo são realizados pelos nossos corpos. As respostas às perguntas sobre o funcionamento do corpo, e inclusive do funcionamento do nosso entendimento do mundo e que envolve determinadas dinâmicas psíquicas devem partir de algo necessário. O que é necessário está baseado no pensamento e o conhecimento da natureza das coisas somente é possível enquanto a coisa for pensada. As leis da Física são uma espécie de teoria, ou pensamento racional, que é capaz de dar as respostas para o funcionamento do corpo e em parte do conhecimento realizado pelos corpos enquanto se movimentam no mundo. Assim, o método de Descartes parte do conhecimento do cogito, o que é mais fácil de conhecer até a natureza física das coisas pertencentes ao nosso corpo, o que é mais difícil de se conhecer e, nessa seqüência podemos incluir o conhecimento do homem que se apresenta como coisa e espírito. A natureza da coisa enquanto material é descrita fisicamente. A natureza do espírito não é especificada pela natureza da coisa, porque ambas são espécimes ontológicas distintas. De um lado, a res cogitans é o espírito, e do outro, a res exrtensa é o material pertencente ao mundo físico. Interessa também a Descartes descrever o funcionamento claro e distinto das coisas materiais. A res extensa é correspondente ao nosso corpo. A máxima da dúvida deve ser capaz de dar um entendimento do eu enquanto pensa e assim partir em direção ao conhecimento das coisas. Em relação à natureza do espírito, a função da dúvida metódica é desconfiar das verdades supostamente dadas tais como a existência de um Deus, de um mundo e de um sujeito concreto pertencente ao mundo leva ao conhecimento da natureza do espírito. Partindo da dúvida, chega-se a uma primeira certeza corresponde à capacidade de pensar, porque a capacidade de pensar algo está relacionada à capacidade de existir, ora, o que pensa pode pensar a sua própria existência, e dizer que existe, portanto, é uma verdade indubitável para quem pensa, ou seja, "Eu sou, eu existo". A cada pensamento que tenho, sou capaz de notar que eu existo. Uma primeira certeza, portanto, em Descartes é que eu existo, Penso, logo existo. Não sou a máquina que representa o corpo humano, essa não é a minha natureza, somente, mas há algo de máquina em mim e que está na extensão do meu corpo. A atividade que pode ser dita como de natureza do que eu sou é pensar e pensar está inseparavelmente contido em existir. Sendo assim, a minha natureza, o meu existir é o pensamento. O resto da minha natureza que não é puro espírito deve ser dada à esse de modo claro e distinto e que condiz com o pensamento, deve ser dado de modo necessário, satisfazendo as condições do espírito. Para se chegar à natureza necessária do meu corpo, não uso a imaginação. Tenho o poder de imaginar, esse é o reconhecimento das coisas pelos órgãos dos sentidos, mas a imaginação não é minha natureza, mas é uma dinâmica psíquica gerada no meu corpo. Essa depende dos sentidos, que foram colocados em suspenso, não posso ter uma idéia clara e distinta de uma coisa somente baseado nas coisas que estão presentes nos sentidos, como, por exemplo, um pedaço de cera não pode ter sua natureza revelada somente pelos sentidos mas pelo pensamento também, já que aquilo que está presente na sera de modo claro e distinto é o que torna possível à cera ser conhecida clara e distintamente. É da natureza do homem conhecer clara e distintamente, assim como é de sua natureza errar nessa consideração, mas o conhecimento de coisas exteriores e de sua natureza é mais difícil e o erro começa ao pensar que a natureza das coisas é dada pelo sentido. Há diferenças com respeito à imaginação e a concepção dos objetos, como por exemplo, os objetos geométricos são conhecidos com mais propriedade se considerarmos por sua parte a concepção, em que as relações, de um ponto de vista do pensamento são vistas clara e distintamente através das leis da geometria ao ponto que a imaginação não possui essa propriedade, já que está baseada nos sentidos, e não na razão e a razão é capaz de dar um conhecimento mais amplo do ponto de vista da capacidade do conhecimento do objeto. Do que foi dito, podemos concluir que há dificuldades em conhecer a natureza dos corpos. Não é possível conhecer a essência das coisas, ou seja, não sou capaz de conhecer a essência ou natureza das coisas presentes fora do espírito de modo total, mas sou capaz de conhecer a natureza do espírito mais facilmente. Dada a primeira tarefa de conhecer clara e distintamente a natureza do espírito, é possível conhecer clara e distintamente a natureza das coisas materiais. Diz Descartes que “Com efeito, obtenho imediatamente o conhecimento da existência e da natureza de meu espírito, ao passo que o meu pensamento me proporciona apenas a idéia clara e distinta dos corpos cuja existência é problemática.” 5 Mas imaginar, sentir, movimentar, etc. está ligado a um tipo de substância corpórea e a suas qualidades sensíveis. O conhecimento dessa substância é o conhecimento da Natureza das coisas materiais ou da natureza dos corpos. Para pesquisar a natureza dos corpos, Descartes vale-se da dúvida novamente mas agora para refutar aos erros dos sentidos e vindos da imaginação e suas crenças e em seguida passa a mostrar em que sentido deve-se acreditar na existência de algo mas não pela imaginação. Notar que os corpos inicialmente eram conhecidos pelos sentidos e esses sentidos passavam para o corpo humano através dos órgão dos sentidos e das partes do corpo. Os sentidos que são passados pelas partes dos corpos muitas vezes nos enganam muito; e nos enganam porque tudo o que sinto acordado é o mesmo que posso sentir quando estou sonhando. Isso é a ilusão que os sentidos nos passam e, ainda mais, é por isso que Descartes chega à conclusão de que a alma existe distintamente do corpo, mas o conhecimento que temos pelos sentidos não é possível de nos dar a natureza dos corpos, por isso o conhecimento dos corpos pelo sentido é errôneo. 5 DESCARTES, R. Meditações, in Os Pensadores, pág. 98 A Natureza dos corpos e do corpo humano Por existir sentidos exteriores ao corpo é que é possível existir, então, corpos dos quais temos uma apreensão passiva de prazer ou de dor. Isso indica, segundo Descartes, a existência de uma natureza, mas que ainda assim é assimilada de um modo muito confuso do que se fosse assimilada somente pelo pensamento. Desse modo, a confusão dos sentidos não nos leva à “natureza” das coisas como elas distintamente são e daí, Descartes elabora o que entende por natureza dos corpos ou das coisas. A natureza do corpo é como a natureza das coisas, já que o corpo é uma máquina, cuja verdade dessa asserção se fundamenta nas leis da física e no desenvolvimento dos sistemas mecânicos. Além disso, a natureza do corpo é de ordem divina, dada por Deus mas que ainda assim é concebível um conhecimento racional de acordo com leis da física que descrevem os sistemas mecânicos. O homem, em Descartes, aparece como uma espécie de confusão entre alma e corpo, e esse todo formado de alma e corpo é o homem, porém, no TH, o homem aparece descrito como algo formado mais de suas partes mecânicas do que propriamente a alma. A alma está tão reduzida que aparece somente acoplada à glândula hipófise, o resto da estrutura do corpo humano, ou a sua grande maioria, é uma máquina em funcionamento, como uma complexa obra mecânica. Lembramos que os aspectos conscientes ocorrem somente na presença da alma, segundo Descartes e, ao considerar esses aspectos da consciência e de que é na mente em que ocorre os processos conscientes, a mente também ocupa a glândula H pois é também a alma. Afirma Descartes "Que meu corpo (ou, antes, eu mesmo por inteiro, na medida em que sou composto do corpo e da alma) pode receber diversas comodidades ou incomodidades dos outros corpos que o circundam."6. De acordo com essa perspectiva, podemos ver que essas comodidades e incomodidades irão influenciar no funcionamento do corpo de alguma maneira, esse funcionamento depende do contato entre os corpos. Essa espécie de contato é característica dos objetos físicos, que se chocam e interagem entre si. O corpo é movido por essas interações entre os objetos físicos. A descrição física indica o modo de ser das coisas e a sua natureza fundamental e as leis da física apontam para um entendimento racional possível de ser conhecido de modo necessário pelo espírito. Ou seja, não confiar puramente no corpo e nem na união entre espírito e corpo mas somente é possível conhecer a natureza das coisas se essas coisas forem possíveis de serem conhecidas pelo espírito, inclusive coisas com existência material devem ser capazes de ter um entendimento totalmente concebível espiritualmente, mas não somente pelos sentidos. É partindo do espírito – alma ou mente – que se tem a possibilidade de se conhecer as leis da física. Mas por ser ele capaz de dar o conhecimento físico do mundo material não quer dizer que o espírito também funcione como se fosse uma máquina nos moldes da físicos, nem que seja uma espécie de máquina abstrata. Com respeito aos corpos, a descrição segue com uma analogia entre os órgãos do corpo humano, os seus sistemas e seu funcionamento, comparando esses órgãos com máquinas como sistemas a vapor, foles, bombas e tubulações e ainda em sistemas que 6 DESCARTES, R. Tratado Sobre o Homem in MARQUES, J. Descartes e sua Concepção de Homem, 1993, Edições Loyola, São Paulo, pág. 136 funcionam por fermentação. A fermentação é o principal processo termodinâmico dessa máquina. A máquina adquire o calor, e esse processo corresponde ao processo de digestão dos alimentos. O calor gerado nesse processo é repassado para o coração que sempre está quente e que transmite o calor a partir do peito; e assim fornecendo energia para um sistema hidráulico que corresponde ao coração, que aparece literalmente como uma bomba e a corrente sangüínea, que é um tipo de sistema de tubulações em que, os canais que vão dar no cérebro levam os espíritos animais adquiridos do exterior para o cérebro. Do cérebro esses espíritos se distribuem para o restante do corpo. O corpo humano é uma verdadeira máquina, um autômato e é nesse sentido que pode ser comparado a algo artificial, como os artefatos ou objetos técnicos produzidos pelo homem. A fermentação dos alimentos no sistema digestivo leva ao coração o calor, de onde é espalhado para o resto de todo o corpo através da circulação do sangue que, ao chegar no cérebro liberam os espíritos animais nele existentes. Os espíritos animais tem função morfológica parecida com a de um impulso nervoso, são adquiridos através da alimentação, como descreve Descartes, e deve ir para o cérebro, finalmente para os pontos periféricos do sistema nervoso através dos nervos. Os espíritos animais têm função apenas física. A função fisiológica do espírito animal é movimentar os músculos que formam a estrutura muscular do corpo, que, unidos aos ossos fazem os membros do corpo se movimentarem. Os espíritos animais não fazem parte da natureza da alma mas da natureza do corpo físico, e são responsáveis por reações no sistema nervoso que não passam pela consciência, ou pela alma, as dinâmicas psíquicas geradas mecanicamente pelo simples contato com objetos exteriores ao corpo. Inclua nessa categoria a memória dos sentidos, que afetam a posição da glândula hipófise encontrada no meio do cérebro. A localização da alma está no cérebro, onde todos os tubos da máquina do homem vão dar. Os tubos dos nervos responsáveis pelos sentidos e pelos reflexos, que não são executados de modo consciente, são comparados com cordas que estão tensas e que podem ser puxadas através de uma excitação exterior, que, como um mecanismo que aciona um sino localizado no cérebro, faz com que uma excitação exterior à alma, ao tocar a corda do sino, o sino venha a bater no interior da alma, como se ela estivesse sentindo o que ocorre do lado de fora, esse é um dos papéis dos nervos. Assim funcionam, basicamente, para todos os órgãos dos sentidos. O cérebro, antes de ser habitado pela alma, é habitado pelos espíritos animais e não possui nada diferente do funcionamento de uma máquina regida por leis mecânicas, o funcionamento do cérebro é descrito de acordo com a movimentação existente dos espíritos dentro do cérebro, o que na atualidade pode ser denominado como os impulsos nervosos produzidos pelos neurônios e que Descartes descreve como os espíritos que se movimentam no interior dos filetes contidos nos nervos, ou nos neurônios. O papel da alma é tão pequeno que nem é capaz de ter no cérebro um papel mais relevante do que habitar a glândula H. São esses espíritos, os espíritos animais, que habitam o cérebro e que fazem com que sentimos o mundo ao redor e são eles responsáveis pelas dinâmicas psíquicas realizadas pelo contato com o mundo exterior e pela construção da memória da máquina. O conhecimento do mundo exterior não é totalmente claro e distinto dada a própria natureza inferior da matéria. Assim, podemos dizer com Descartes que o funcionamento do corpo em sua grande maioria depende dos espíritos que correm pelos filetes do cérebro e dos órgãos espalhados pelo corpo, os movimentos todos realizados pelo corpo têm que passar pelo cérebro através dos espíritos e que viajam pelo corpo, gerando respostas conforme a excitação do corpo pelo exterior do corpo. A percepção sensível, que é dada pelo movimento dos espíritos através dos filetes nervosos e que vão em direção aos órgãos dos sentidos, podem funcionar assim tanto quanto o homem estando acordado quanto ele estando dormindo, não fazendo nenhuma diferença. Esses sentidos nos levam a formar idéias quando chegam na glândula H. Uma das coisas que é uma processo que ocorre como se fosse uma máquina é justamente o processo de constituir memória, já que a memória é algo que ocorre com a correlação entre outros corpos. A memória também funciona como se fosse um processo mecânico, como Descartes descreve da seguinte maneira: Pois se a figura de algum objeto particular for impressa, muito mais distintamente que nenhuma outra, no local do cérebro para o qual justamente pende essa glândula, os espíritos que tenderem para lá não poderão deixar de também receber a impressão. E é assim que as coisas passadas voltam às vezes ao pensamento como por acaso, sem que a memória seja nisso muito excitada por nenhum objeto que toca os sentidos. (...) Mas o efeito da memória que me parece aqui mais digno de ser comentado consiste em que, sem que haja nenhuma alma nesta máquina, ela possa estar disposta a imitar todos os movimentos que homens verdadeiros ou outras máquinas semelhantes farão em sua presença.7 Vemos aqui que a memória é mais um dos procedimentos mecânicos realizados pelos aspectos físicos do corpo e não da alma propriamente dita, sendo essa a natureza da memória. A idéia básica por traz da descrição realizada por Descartes no TH pode nos levar ao cancelamento da dualidade existente entre o natural e o artificial – se toda atividade humana for completamente descrita por um procedimento finito. O cancelamento pode não ser possível, mas somente aproximativo, como uma curva assintóptica em relação a esse cancelamento, se o processo de descrição por meio de uma máquina de todas as atividades humanas for incompleto. A natureza humana, pelo menos em grande parte descrita no TH, se confunde com o artificial, mas isso ocorre justamente porque tanto os objetos artificiais quanto os naturais baseiam o seu funcionamento segundo as leis da Física, que é a descrição mais verdadeira, clara e distinta, do real. E a descrição do homem como um autômato está relacionada a uma ligação entre as leis da Física e os sistemas biológicos que compõem o nosso corpo, e nesse sentido, os corpos aparecem como máquinas que podem ser construídas por uma espécia de engenheiro ou ainda serem reengenhadas por quem conhece as partes dessa máquina. Mas a intenção, ainda, de ter o homem descrito como as coisas construídas por ele mesmo como que por instrumentos físicos indica um desejo atrás do cancelamento das grandes dualidades e que é justamente que o homem seja um tipo de ser também construído pelo próprio homem ou um homem-instrumento, se as grandes dualidades virem a ser totalmente desfeitas. 7 DESCARTES, R. Tratado do Homem, in Descartes e sua Concepção de Homem, São Paulo, Edições Loyola, 1993, Pág. 188 O homem é uma máquina construída por Deus, e, também, essa máquina possui a alma, quando está animada, e isso é que lhe dá a consciência, a alma como uma espécie de mente, considerando as suas particularidades, nos lança a uma outra espécie de dualidade expressa entre a mente e a máquina, ou se a mente é algo que pode ser representado por uma máquina. Mostraremos que a mente não possui um correlato mecânico como o restante do corpo. Determinados processos mentais podem até ser representados por processos mecânicos. A máquina que é o corpo humano poderia até sentir, e realizar atos reflexos inconscientes, diferentes daqueles que fazem a alma conhecer: Quando houvesse uma alma nesta máquina, ela poderia, às vezes, sentir diferentes objetos por intermédio dos mesmos órgãos, dispostos da mesma maneira, e sem que haja aí nada que se mude, a não ser a situação da glândula H.8 Na verdade, a maior parte do homem é somente a sua máquina e a alma própria constituiria um problema a ser resolvido em relação à possibilidade de se construir um homem-máquina, devemos incluir na discussão a noção de mente e a relação entre mente e máquina. Agora vamos definir o que podemos denominar por mecânico. O Conceito de procedimento finito, e correlatos mecânicos Mas essa máquina, o corpo humano, que aqui aparece como uma ferramenta mecânica, que realiza basicamente movimentos e que é comandada por movimentos ocorrendo em seu interior. Veremos, agora, como que essa noção de corpo interpretado por leis mecânicas pode ter ligação com o conceito matemático de procedimento finito. Possuímos dois tipos distintos da noção de uma máquina. De um lado, temos as máquinas abstratas e as máquinas reais. As máquinas reais são limitadas e as suas limitações são inerentes à sua natureza física tais como o desgaste, o que faz com que máquinas dessa espécie necessitem de constante manutenção e também, a capacidade finita de memória que essas máquinas possuem são inerentes à sua condição física. As máquinas reais ou físicas necessitam também de um determinado tempo para executar determinado procedimento finito. Todo procedimento executado por uma máquina é um procediemnto finito. Deixamos como diferenças básicas entre uma máquina abstrata e uma máquina real a de potencial infinito tanto de memória quanto de capacidade de funcionamento. Não há necessidade de reparos numa máquina ideal nem de limitação de informações. Um procedimento finito é um procedimento mecânico, mas o procedimento mecânico aqui não se assemelha com a noção de mecânica dos movimentos. Pelo contrário, se uma lei da física envolve um procedimento mecânico, isso se dá porque é possível ter uma modelagem matemática em que essa lei física possa ser utilizada por procedimentos finitos. Há dois elementos em que uma máquina que executa um 8 DESCARTES, R. Tratado do Homem, in Descartes e sua Concepção de Homem, São Paulo, Edições Loyola, 1993, Pág. 187 procedimento mecânico, um em que ela se baseia para executar o processamento e o outro elemento é o fim do processamento, são esses elementos a entrada e a saída de dados. Uma máquina deve executar procedimentos efetivos, o que quer dizer que sempre que for fornecida uma entrada, uma saída sempre será produzida. Uma máquina não pode ser muda, mas deve sempre produzir uma resposta ou saída de dados. O procedimento ainda é considerado mecânico, se quanto às estradas de dados numa máquina e à saída de dados dessa máquina, o processamento de dados da entrada que leva à saída de dados deve ser finito, ou seja, há determinados passos ou algoritmos que a máquina deve seguir, são blocos de rotinas ou procedimentos que possuem início e fim em que ao fim do procedimento uma resposta é produzida. Um procedimento mecânico é finito. Por isso, um procedimento mecânico pode ser denominado procedimento finito. Há vários modos possíveis de representar um procedimento finito, dentre eles, entre as máquinas abstratas, citaremos os de função recursiva como uma espécie de definição de função matemática em que os cálculos são executados automaticamente como um procedimento finito e o de máquina de Turing como um modelo de máquina abstrata que executa procedimentos finitos. O conceito de mecânico, é o cerne de dos teoremas de lógica matemática mais famosos do século XX, que são os teoremas de incompletude de Gödel (1931). Ao que é definido como mecânico equivale ao que é definido como procedimento finito. As leis da física, da mecânica, são na verdade relações matemáticas. Como essas relações são matemáticas, elas se subordinam às leis lógico-matemáticas, e que são baseadas nesse conceito de procedimento finito. O que queremos mostrar é que, de acordo com os teoremas de Gödel (1931), uma descrição matemática do funcionamento como um todo do ser humano é impossível, ou seja, nem tudo no corpo humano é possível de ser descrito por procedimentos finitos ou mecânicos. O conceito é central e possui uma importância fundamental em relação aos desenvolvimentos da matemática, o que Gödel entende por procedimento finito é justamente o que vamos transcrever: Esse conceito, para a sua aplicação ser considerada nessa conferência, equivalente ao conceito de “função de inteiros computáveis” (isto é, uma em que a definição produz que é de fato possível computar f(n) para cada inteiro n). Os procedimentos a serem considerados não devem operar sobre inteiros mas sobre fórmulas, porém, por causa da enumeração das fórmulas em questão, eles podem sempre reduzidos a procedimentos operando sobre inteiros.9 O que vemos aqui na citação do texto de Gödel (*1951) é uma descrição matemática de um procedimento de decisão finito, a função f(n) nesse caso aparece como uma representação desse procedimento de decisão (operação sobre números inteiros). Podemos considerar um procedimento de decisão finitário aquele em que a função f(n) sempre produz uma resposta. Ao produzir essa resposta, o procedimento é considerado efetivo. Quando o procedimento de decisão recebe um determinado número e computa um determinado outro número, o que podemos ter é um determinado tipo de decisão finitária. Denominamos a esse procedimento de finito porque esse procedimento sempre produz uma resposta depois de determinados passos contidos dentro desse procedimento e esses passos 9 GÖDEL, K. Some Basic Theorems on the Foudations of Mathematics and their Implications, * 1951, in FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Unpublished Essays and Lectures, Vol. III, New York: Oxford University Press, 1995, pág. 304 não são infinitos. Descreve Gödel que a redução do conceito de procedimento finito ao de uma máquina de Turing é também possível. Todo método de decisão matemático e efetivo pode ser lavado a cabo por uma máquina de Turing. Considerando que as máquinas de Turing podem ser a representação de um comportamento humano, a máquina se comporta como um ser humano escrevendo algarismos com um lápis em uma folha devidamente preparada para cálculos aritméticos em duas dimensões, o que é um determinado tipo de comportamento mental, Gödel vê a possibilidade de se considerar filosoficamente algumas conclusões dessa situação e a conclusão em que chega Gödel é que a as máquinas de Turing não são suficientes para a descrição completa da mente humana. Iniciamos essa consideração como os famosos teoremas de incompletude de Gödel (Cf. Gödel, 1931)10. A aplicação dos teoremas de incompletude é possível em qualquer método matemático axiomático e que, principalmente, contenha como seu componente uma aritmética ou a teoria dos números. O método efetivo de cálculo nos Teoremas de Incompletude são as funções recursivas. Nesse tipo de função, os métodos de demonstração que se utilizam de axiomas, regras de inferência e os teoremas podem ser interpretados como o resultado desse tipo de função. Essas funções possuem um correlato em máquina de Turing. Notamos que a teoria dos números, aqui, possui uma estrutura dedutiva constituída de axiomas e de regras de inferência, mas que uma tal estrutura é interpretada em uma função e o conteúdo são os números naturais. Dos axiomas, alguma coisa deve ser possível derivar, de acordo com os axiomas escolhidos. Pelo caráter objetivista que constituem as teorias matemáticas que Gödel considera, escreve ele que: Claro, a busca de uma axiomatização da matemática própria difere da concepção usual de axiomática na medida em que os axiomas não são arbitrários, mas devem ser proposições matemáticas corretas, e, ainda mais, evidentes e sem demonstrações.11 Com relação ao conceito de procedimento finito, podemos adicionar a esse conceito, em relação à demonstrações de sentenças que dizem respeito à teoria dos números, os axiomas, já que o procedimento é finito, dizemos que ele possui um início e um fim, ao ponto inicial de uma demonstração matemática, de caráter aritmético, a necessidade desse ponto inicial representada pelos axiomas é fundamental. Uma vez ocorrida a formalização (axiomatização) das teorias matemáticas, as teorias científicas que dependem da matemática passam a estar ligadas a esse processo de axiomatização. Na axiomatização de disciplinas não-matemáticas tais como a geometria física, a própria matemática é pressuposta; e a axiomatização refere-se ao conteúdo da disciplina sob consideração somente na medida que ela vai além da própria matemática. Esse conteúdo, como nos exemplos que têm sido encontrados, podem ser exibidos por um número finito de axiomas.12 10 Para uma descrição introdutória aos teoremas de Gödel, Cf. Nagel & Newman 1958 (Gödel's Proof) GÖDEL, K. Some Basic Theorems on the Foudations of Mathematics and their Implications, * 1951, in FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Unpublished Essays and Lectures, Vol. III, New York: Oxford University Press, 1995 pág. 305 12 GÖDEL, K. Some Basic Theorems on the Foudations of Mathematics and their Implications, * 1951, in FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Unpublished Essays and 11 Aqui, o que temos é uma hierarquização, em que as ciências como na física se subordinam à matemática, que é mais básica. Podemos, aqui, introduzir a noção de uma máquina fisicamente construída. O princípio de uma máquina estruturada fisicamente é o mesmo que o princípio de uma máquina abstrata dos conceitos matemáticos. Uma máquina executa um determinado procedimento, ainda que com suas interferências e as suas limitações. No procedimento funcional, a função recursiva, a entrada de dados são os números naturais, a saída de dados são também números naturais, a saída de dados deve sempre existir se a função calcula todo valor em que há a entrada de dados. Na máquina de Turing, a entrada de dados é feita por uma fita unidimensional em que os dados representam quadriculados como na folha preparada para o cálculo aritmético em que os quadrados representam o vazio (0) e o cheio (1), qualquer outro conceito de calculabilidade efetiva, ou de computabilidade são equivalentes a esses conceitos. Uma vez estruturados os conceitos de função numérica que executa um procedimento finito e o de máquina de Turing, podemos enunciar a Tese de Turing e a Tese/Definição de Church13. Numa máquina construída fisicamente, as entradas e as saídas são de estados físicos para estados físicos. Uma máquina física está sujeita ao desgaste e necessita de constante manutenção. Uma máquina abstrata, pode-se considerar que não há o tempo decorrido entre a entrada de dados e o processamento de uma resposta. A máquina física possui memória finita e há a contagem de tempo gasto para executar determinada tarefa. As máquinas abstratas são modelagens não aplicadas ao mundo físico mas as máquinas que existem no mundo físico são semelhantes às máquinas abstratas mas não se equivalem, dadas as suas limitações. Por fim, devemos conjecturar aqui que as máquinas físicas possuem correlatos em máquinas abstratas, com o uso da Tese de Turing e da Tese/Definição de Church, acrescido o conceito de uma máquina construída em nosso espaço físico. Há diversos modelos de máquinas que funcionam em nosso mundo físico. Estamos trabalhando aqui com a noção de que o corpo humano, a natureza do corpo humano, é de ser um conjunto de máquinas físicas que formam o conjunto orgânico como um todo do corpo humano, de acordo com a descrição elaborada por Descartes acima. Então, segundo o nosso argumento, podemos dizer que a máquina que é o corpo humano pode ser representada por um dos conceitos e modelos de máquina existentes. O argumento funciona assim: (1) Segundo a Tese/Definição de Church e a Tese de Turing, as diversas representações de máquinas abstratas existentes são equivalentes, por exemplo: Funções recursivas <EQ.> Máquina de Turing (2) Consideramos agora, que as máquinas físicas, construídas pelos homens, podem ser representadas máquinas abstratas – ainda que com seus limites e interferências, por serem semelhantes em certos pontos. E, além do mais, as leis da física estão baseadas em relações Lectures, Vol. III, New York: Oxford University Press, 1995, pág. 305 13 A tese de Turing afirma que “Todo processo que puder ser chamado de um procedimento efetivo pode ser realizado por uma máquina de Turing.” (Cf SAGASTUME & BAUM, 2003). Enquanto isso, o correlato mecânico da Tese/definição de Church afirma que “Um procedimento é mecânico se, e somente se, pode ser simulado por uma função recursiva.” (Cf. TASSINARI, 2003). Concluímos que máquinas são equivalentes entre si, variando somente o modo como se expressam segundo o conceito de máquina utilizado. matemáticas, como temos visto. (3) O corpo humano é uma máquina física. Logo: Podemos aplicar as mesmas conseqüências matemáticas para todas essas máquinas. O argumento funciona se levarmos em conta a Matemática como uma ciência básica aqui. Consideramos a matemática depurada de toda inconsistência e aparada por todo rigor formal da lógica. A primeira coisa a ser axiomatizada na Matemática são os conjuntos e a aritmética, em seguida, se as teorias necessitam da matemática, então, necessariamente, deve utilizar dos axiomas existentes na matemática, já que são ciências de base matemática. O teorema de incompletude tem a ver com a livre contradição desses sistemas matemáticos axiomatizados. A questão da consistência é uma questão matemática bem definida se estamos diante de um sistema formal. A proposição que afirma a consistência de um sistema da matemática como a aritmética não dever ser demonstrada pelo próprio sistema dedutivo em questão. Isso é o que é expresso pelo segundo teorema de incompletude de Gödel. A demonstração da consistência de um sistema matemático deve ser dada não de dentro do sistema, como que se fosse um nível formal em que a própria teoria afirmando a sua própria consistência. É algo de nível meta-teórico e não de nível teórico. Diz Gödel: Pois isso torna impossível que alguém deveria construir um certo sistema de axiomas bem definido e leis de inferência e conseqüentemente produzir a seguinte asserção sobre isso: Todos esses axiomas e leis de inferência que eu percebo (com certeza matemática) por serem corretos, e ainda mais eu acredito que eles contenham toda a matemática. Se alguém faz uma tal asserção, contradiz a si mesmo. Pois ele percebe os axiomas sob consideração serem corretos, ele também percebe (com alguma certeza) que eles são consistentes. Então ele tem um insight matemático não derivável a partir do axiomas.14 Limitações dos correlatos mecânicos Aqui introduziremos um argumento que pode ir de encontro às noções de que todo o comportamento humano pode ser descrito em uma máquina, ou seja, que tudo aquilo que está presente na natureza humana pode ter um correlato físico, ou artificial. A principal tese é que o trabalho da mente humana não pode ser reduzido ao do cérebro humano e que o cérebro humano pode ser reduzido a um correlato físico, como uma máquina de Turing, um sistema físico porque o cérebro humano é uma máquina finita como qualquer outra máquina. Com isso, o problema da dissolução entre o natural e o artificial aparece, se considerarmos que a mente humana não possui um correlato artificial mecânico. A questão aparece quando refletimos sobre a não-demonstração da consistência de teorias matemáticas nelas mesmas. Confirmamos aqui algumas das noções apresentadas por Descartes no TH. A memória no TH aparece como algo pertencente aos aspectos mecânicos do corpo. Realmente, as representações de máquinas apresentadas aqui necessitam de alguma memória para o seu funcionamento, assim como os computadores modernos em que há compartimentações específicas para o armazenamento de memória, que, com muita paciência de um matemático pode ser transcrita para uma máquina de Turing, em que a 14 GÖDEL, K. Some Basic Theorems on the Foudations of Mathematics and their Implications, * 1951, in FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Unpublished Essays and Lectures, Vol. III, New York: Oxford University Press, 1995, pág. 309 memória é representada por uma fita unidimensional. O cérebro, nesse caso, pode ser representado por uma máquina de Turing, se dele for possível um conhecimento total dos seus aspectos fisiológicos e portanto é um tipo de máquina em que parte do pensamento matemático é executado, confirmando a que foi escrito no TH, já que as leis que governam o cérebro são leis físicas. Mas, o problema em relação a considerar todo o aspecto da vida humana, como uma mente totalmente mecânica não funciona. O problema da consistência é o problema central aqui. A máquina da mente humana seria finita, e não poderia entender a si própria ou o seu próprio funcionamento, estamos nos limitando aqui no caso em que há o conhecimento matemático realizado pela mente humana. A limitação à suposta máquina mental estaria em entender a consistência das teorias matemáticas que ela mesma produz. Nenhuma máquina compreende de modo a totalidade da matemática. O trabalho da mente humana não pode ser reduzido ao trabalho do cérebro. O cérebro é uma máquina finita como qualquer outra máquina, com seus neurônios e suas outras partes fisiológicas. Diante da limitação inerente às máquinas e a existência de algo humano que é superior às máquinas, Gödel formula três hipóteses na Conferência de Gibbs: Ou a matemática é incompleta nesse sentido, isso é, axiomas evidentes podem nunca ser compreendidos numa lei finita, que é dizer que a mente humana (também o domínio da pura matemática) infinitamente supera os poderes de qualquer máquina finita, ou ainda há problemas de diofantine absolutamente não solucionados do tipo especificado (onde o caso que ambos os termos da disjunção são verdadeiro, então há, estritamente falando, três alternativas).15 O que essas hipóteses nos apontam são três diretivas para o entendimento da mente humana. Indicamos essas diretivas segundo duas possibilidades. A primeira é que a mente é uma máquina. A segunda é que a mente não é uma máquina. Quando há o caso em que a mente humana é um tipo de máquina, o que podemos dizer é que não há como o conhecimento matemático avançar, por um lado, de nunca sabermos se um sistema de matemática é consistente e porque a máquina não conhece toda a matemática contida no seu funcionamento. Do outro lado, há uma lei finita que produz o conhecimento matemático, que é puramente mecânico, e que a mente humana, por estar subordinada a essa lei nunca poderá descobrir qual é a lei fundamental de todo conhecimento matemático que produz e, também, sem avanços às áreas da Matemática que não são formalizadas do modo que mostramos. Por outro lado, se a mente humana é uma máquina, a máquina não poderia ser capaz de emitir uma saída de dados que represente a sua própria consistência. Como a mente consegue mostrar que o conhecimento matemático que ela própria tem acesso por meio de formalização é consistente, quer dizer que há um outro método de verificação de consistência que não seja puramente contido em um processo finitário, porque esse processo de verificação da consistência é sobre o processo finitário, além da própria existência de proposições indecidíveis, que não seja a demonstração da consistência de uma teoria nessa teoria mostram que há aspectos não formalizados da matemática e, 15 GÖDEL, K. Some Basic Theorems on the Foudations of Mathematics and their Implications, * 1951, in FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Unpublished Essays and Lectures, Vol. III, New York: Oxford University Press, 1995, pág. 307 portanto, aspectos não mecânicos da mente humana. Por algum outro método que não o finitário é que é possível demonstrar a consistência. Assim, podemos concluir o argumento que diz respeito à não existência de um correlato mecânico para a mente humana. Conclusão Na descrição de um sistema matemático, o procedimento finito pode ser representado por uma função recursiva. O sistema matemático possui axiomas lógicos e específicos, leis de inferência que são representadas por funções recursivas e que pela Tese de Turing e a Tese/Definição de Church é possível mostrar que são máquinas de Turing. Essas máquinas são máquinas inferenciais e simulam determinado comportamento da mente humana. O Teorema da Incompletude diz que um formalismo consistente que contenha a aritmética é sempre incompleto. O segundo Teorema da Incompletude diz que a consistência de uma linguagem como a aritmética formalizada não pode ser demonstrado dentro da própria aritmética, portanto, o Teorema da Incompletude diz a não demonstrabilidade da sua consistência. Toda teoria matemática, que possui a aritmética clássica e que é consistente, é incompleta. A máquina de Turing simula uma máquina humana, executando processos elementares som símbolos seqüenciais. Desde que um homem com caneta e lápis, ele pode ser um "calculador" de máquina de Turing utilizando-se de seqüências de 0 e de 1, inserindo instruções nessa máquina. Vemos, pelos Teoremas de Incompletude que há partes da matemática que não podem ser identificadas com um determinado tipo de formalismo e, portanto, não como uma máquina de Turing, ou um computador representado por uma máquina de Turing. Assim, podemos ver a existência de partes nãomecânicas contidas na mente humana e que não são reduzidas a um determinado tipo de mecanismo, já que a matemática é um conhecimento de espécie mental ou do espírito humano. A mente não é um mecanismo físico, ou a descrição de uma máquina abstrata, que é pode ser um modelo padrão de um mecanismo físico. Como uma máquina é um objeto artificial construído pelo homem, certos processos da mente humana não são traduzidos nesses mecanismos artificiais. Há aspectos da mente humana que não são reduzidos puramente a uma inteligência artificial. Desse modo, voltamos ao início da argumentação, com a descrição dos processos mecânicos contidos no corpo descrito por Descartes. A mente humana, então, nesse caso, não possui um correlato físico como o corpo. Se o corpo humano é uma máquina, possui então um correlato mecânico de acordo com as noções de procedimento finito que apresentamos aqui. Há procedimentos finitos que são executados pela menta humana, como o exemplo dado acima de um homem que introduz instruções em uma máquina de Turing através de um papel e de um lápis, o que o homem está fazendo é construindo uma máquina, artificial, que executará operações semelhantes às sua operações mentais. Mas nem todo processo mental é um processo finito, e esse é o limite de uma máquina, há algo de inconsistente em uma máquina que conhece completamente o seu programa. Os teoremas de Gödel mostram o limite entre o que é mental e o que é artificial. Voltamos à situação da glândula H quando vemos com Gödel que “6.1.19 O cérebro é uma máquina de computar conectado a um espírito.”16. A situação é a mesma, em que a consciência não pertence à máquina e que a máquina não realiza processos a não ser àqueles ditados pela consciência, ou ainda, todos os processos finitários contidos dentro da consciência. O que é mecânico possui um modelo matemático, como vimos e é um modelo matemático formal ou submetido a uma representação por um procedimento finito. Há procedimentos matemáticos (e outros processos) que não são totalmente formalizados. A mente humana não se comporta de modo totalmente mecânico, orque não é capaz de formalizar intuições que ela possui no processi de aprendizagem ou de construção de teorias matemáticas. A mente possui o conhecimento intuitivo que está fora do formalismo e, mais uma vez citamos Gödel: A mente humana é incapaz de formular (ou mecanizar) todas as suas intuições matemáticas. Isto é, se aconteceu de formular alguma delas, esse fato produz novo conhecimento intuitivo, por exemplo a consistência de seu formalismo. Esse fato pode ser chamado a “incompletabilidade” da matemática.17 A incompletabilidade inerente a um sistema formal em que há somente a existência de procedimentos finitos precisa ser explicitada. Mais uma vez o núcleo da questão está da verificação da consistência. A mente pode ser capaz de produzir esses sistemas, como o exemplo acima do “computor” humano, ou seja, do homem que introduz instruções dentro de uma máquina de Turing. Imaginamos que um processo mental, conhecido ainda por não ser um procedimento finito, passa a ser considerado finito por algum expert em computação ou um matemático astuto, esse processo passa ao aspecto formal, pelo rigorismo de um sistema formal matemático, se tornando um conhecimento matemático formal ou para uma instrução dentro de uma máquina de Turing. Vemos acima a possibilidade de tradução entre esses procedimentos finitos. No caso da instrução da máquina passar para um sistema formal de matemática, ainda assim, há algo de inerentemente informal nas teorias da matemática, que seja a verificação da consistência dessa nova teoria matemática formal, e que é um processo que não faz parte desse formalismo. Tudo isso aponta para algo na mente que não possui um correlato formal, mecânico ou que possa ser traçado um procedimento finito para isso. Incluímos aí a própria criatividade humana, entre outras capacidades descritas de acordo com determinadas filosofias, como na filosofia da Matemática de Gödel, a noção de intuição intelectual de objetos matemáticos abstratos. Essa zona de fronteira, que é exposta pelos Teoremas de Incompletude é um importante ingrediente na discussão do cancelamento da dualidade entre o natural e o artificial. O teorema e suas implicações apontam para a impossibilidade da fronteira ser totalmente derrubada, mas que a constante busca de um conhecimento mais claro e distinto, capaz de ser formalizado em teorias matemáticas e que possam ser exibidos em máquinas de acordo com a Tese de Turing e com a Tese/Definição de Church pode se possível, a fronteira entre o natural e artificial, então, somente é afastada, mas nunca derrubada. 16 17 Gödel in WANG, H. A logical Journey: From Gödel to Philosophy, Cambridge Mass, MIT Press, 1996, pág. 189 Gödel in WANG, H. A logical Journey: From Gödel to Philosophy, Cambridge Mass, MIT Press, 1996, pág. 184 BIBLIOGRAFIA DESCARTES, R. Meditações in Os Pensadores DESCARTES, R. Tratado Sobre o Homem in MARQUES, J. Descartes e sua Concepção de Homem, 1993, Edições Loyola, São Paulo DOMINGUES, I. Ética e Técnica, texto-aula da disciplina Filosofia da Técnica (PósGraduação em Filosofia – UFMG) FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Publications 1929 1936, Vol. I, New York: Oxford University Press, 1986 FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Unpublished Essays and Lectures, Vol. III, New York: Oxford University Press, 1995 GÖDEL, K. Some Basic Theorems on the Foudations of Mathematics and their Implications, * 1951, in FEFERMAN, S. (editor-in-chef) Kurt Gödel: Collected Works – Unpublished Essays and Lectures, Vol. III, New York: Oxford University Press, 1995 SAGASTUME, M. & BAUM, G. Problemas, Lenguajes y Algoritmos, 2ª Ed. Campinas: UNICAMP, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 2003, Coleção CLE; v. 37 TASSINARI, R. P. Incompletude e Auto-organização: Sobre a Determinação de Verdades Lógicas e Matemáticas, Tese de Doutorado, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, UNICAMP, 2003 WANG, H. A logical Journey: From Gödel to Philosophy, Cambridge Mass, MIT Press, 1996.