SABRINA ALBIM DE SOUZA DIAS VASCONCELOS “PALAVRAS EM TORNO DO LEITO”: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NO HOSPITAL COM CRIANÇAS COM SÍNDROME DE DOWN. RIO DE JANEIRO SETEMBRO 2011 UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA SABRINA ALBIM DE SOUZA DIAS VASCONCELOS “PALAVRAS EM TORNO DO LEITO”: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NO HOSPITAL COM CRIANÇAS COM SÍNDROME DE DOWN. Dissertação apresentada no Programa de Pós Graduação: Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Orientadora: Professora Drª Maria Cristina Candal Poli RIO DE JANEIRO SETEMBRO 2011 V331 Vasconcelos, Sabrina Albim de Souza Dias Palavras em torno do leito: a contribuição da psicanálise no hospital com crianças com Sindrome Down / Sabrina Albim de Souza Dias, 2011. 75p. ; 10cm. Dissertação (Mestrado em Psicanalise, Saúde e Sociedade) -Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, 2011. Orientador: Profa. Dra Maria Cristina Poli 1- Psicanálise 2 – Sindrome de Down I- Poli, Maria Cristina II – Universidade Veiga de Almeida III - Titulo CDD 616.858842 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Setorial da Tijuca/UVA SABRINA ALBIM DE SOUZA DIAS VASCONCELOS “PALAVRAS EM TORNO DO LEITO”: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NO HOSPITAL COM CRIANÇAS COM SÍNDROME DE DOWN. Aprovada em: 12 de Setembro de 2011, Rio de Janeiro. BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Professora Dra. Maria Cristina Poli – Orientadora Doutorado em Psicologia pela Université de Paris 13 - Paris-Nord. Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade – UVA _____________________________________________ Professora Dra. Fátima Cavalcante Doutora e Pós-doutora em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ) Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade – UVA ________________________________________________ Professora Dra. Marisa Decat Doutorado em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e Mestrado em Psychologie Psychopathologie Subjectivité Langage pela Université Louis Pasteur - ULP, Strasbourg, França. Coordenadora e Professora da Pós-graduação em Psicologia Hospitalar - FUMEC A todas as pessoas especiais que me inspiraram a desenvolver este trabalho. AGRADECIMENTOS À minha querida orientadora, Cristina Poli, pelo vasto conhecimento ensinado e pela admirável serenidade transmitida neste momento de tanta ansiedade. À professora Fátima Cavalcanti por reforçar para mim, de um modo muito precioso, que, realmente, as pessoas com Síndrome de Down são ―Pessoas Muito Especiais‖. À professora Marisa Decat, meu eterno agradecimento pelo carinho em aceitar meu convite. Admiro-a e sigo seus passos profissionais desde a Graduação, Pós-graduação e, hoje, no Mestrado, é uma honra escutá-la. Tudo o que aprendi sobre Psicanálise no Hospital devo a ela – um tesouro de conhecimento e sabedoria. À minha amada mãe, pelo exemplo, pela paciência e dedicação para corrigir meus erros cometidos na vida e na escrita. Minha mestra em Letras é responsável pelo toque especial do Português neste trabalho. Aos três homens da minha vida: meu marido, meu pai e meu irmão, pelo humor cômico necessário para suavizar as cobranças da vida. À admirada vovó Ailza, por existir! Às novas amigas do Mestrado com quem partilhei novas conquistas e angústias neste trajeto das nossas vidas. Aos hospitais que acreditaram no meu Projeto e o abraçaram. “O mundo não fala. Sou eu que dou a ele a minha palavra; sou eu que digo o que as coisas são.” Tezza, 2007. RESUMO A presente dissertação desenvolve uma reflexão sobre a contribuição da psicanálise no hospital com crianças com Síndrome de Down internadas, para assim podermos pensar o que ‗faz‘ um analista quando conduz uma escuta analítica para-além das quatro paredes do consultório. O texto terá como base, noções e conceitos fundamentais da psicanálise: transferência, inconsciente e linguagem e, para isso, lançaremos mão de Lacan nos textos ―A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud‖ e ―Os quatro conceitos a Psicanálise‖. Apreendendo estes conceitos, vamos percorrer também na leitura de Freud nos textos ―Projeto para uma psicologia científica‖ e ―Psicologia das massas e análise do eu‖ para compreendermos a constituição social do sujeito da psicanálise. E por fim, relatamos a história de três pais que compartilham conosco as aleluias e as agonias do nascimento de um filho com a Síndrome. Dessa forma, intitulado, palavras em torno do leito, o texto se apresenta como uma pesquisa bibliográfica que abre espaço para o questionamento da subjetividade implicada em cada criança, internada num hospital, com seu sintoma, sua dor e, mais, um diagnóstico de Síndrome de Down que convoca o analista a atuar no hospital... E com palavras! PALAVRAS-CHAVE: psicanálise, hospital, deficiências, síndrome de Down, transferência, linguagem e inconsciente. ABSTRACT This dissertation develops a reflection on the contribution of psychoanalysis to the hospital with children with Down syndrome in hospital, so we can think about what 'makes' an analyst when it leads to an analytical listening, beyond the four walls of the office. The text will be based on notions and concepts of psychoanalysis: transference, unconscious and language and, therefore, we use texts of Lacan in "The Instance of the Letter in the Unconscious or Reason Since Freud" and "The four concepts of psychoanalysis" . Seizing these concepts, we will also go on reading the texts of Freud's "Project for a Scientific Psychology" and "Psychology and the Analysis of the Ego" to understand the social constitution of the subject of psychoanalysis. Thus, titled, words around the bed, the text is presented as a literature that opens space for the questioning of subjectivity involved in each child, a hospital, with your symptoms, your pain, and more, a diagnosis of syndrome Down that calls the analyst to work in the hospital ... And with words! KEY WORDS: psychoanalysis, hospital, disability, Down syndrome, transfer, language and unconscious SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..................................................................................10 2 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO.....................................................12 2.1 Inconsciente e linguagem.................................................................16 2.2 Estádio do Espelho e Narcisismo ....................................................19 2.3 Psicanálise: uma proposta de constituição social do sujeito...........22 3 DEFICIÊNCIAS..................................................................................28 3.1 O que é a Síndrome de Down?..........................................................31 3.2 Discurso médico.................................................................................34 4 PSICANÁLISE E HOSPITAL.............................................................42 4.1 Setting analítico.................................................................................43 4.2 Não há psicanálise sem Transferência ............................................45 4.3 Contribuição da psicanálise no hospital.............................................50 5 DOCUMENTÁRIO “DO LUTO À LUTA” ..........................................54 5.1 Luto e a magia das palavras...............................................................54 6 RELATOS DOS PAIS APAIXONADOS.............................................60 7 NAP (Núcleo de Atendimento ao Paciente): uma construção....66 8 CONCLUSÃO....................................................................................69 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................72 10 1 – INTRODUÇÃO. O presente trabalho foi inspirado no percurso pelos hospitais onde trabalhei e aprendi com os ensinamentos da profissional, pioneira em Psicologia Hospitalar, em Minas Gerais, a psicanalista Dra. Marisa Decat, a qual nos ensina que, ―o critério para o trabalho analítico, também nos hospitais, é o critério ético, o que implica a ética do bem dizer, isto é, na especificidade das respostas às demandas quando ao acolhê-las a partir de uma posição específica, pode respondê-las‖ (Decat, 1996, p.156). Dessa forma, psicanalistas acolhem a demanda no hospital a fim de ―colocar o paciente para andar‖ (Decat, 1996, p.157). O possível sucesso terapêutico oferecido pela psicanálise já era destacado por Freud. De acordo com Decat, (1996) quando um psicanalista acolhe a demanda, ele promete com sua oferta um resultado. Caso contrário, seria um grande engodo, uma perversão. Assim, a psicanálise, no hospital, não se trata de um bem moral, mas de um bem a oferecer. Pode-se fazer uma apropriação deste trabalho, dividindo-o em três partes importantes. Os primeiros capítulos priorizam dissertar sobre os conceitos psicanalíticos que importarão para compreender a constituição do sujeito na psicanálise e o inconsciente estruturado como a linguagem. Por conseguinte, nos capítulos posteriores, serão destacadas as considerações sobre deficiência e a Síndrome de Down e a contribuição da psicanálise no hospital com essas crianças. E, por fim, destacaremos três livros autobiográficos em que o autor narra a experiência de ter um filho com Síndrome de Down e a construção, na prática, de um setor de psicologia em um hospital privado do Rio de Janeiro. Desse modo, no primeiro capítulo, abordaremos a constituição do sujeito baseado no texto de Freud ―Projeto para uma psicologia científica‖, em que ele tenta estabelecer uma Psicologia com base físico-química e com um vocabulário naturalista/fisicalista. A explicação deslizará para a Experiência de Satisfação, a influência da linguística estrutural de Ferdinand de Saussure na Psicanálise e a apresentação do inconsciente estruturado como linguagem. O 11 Estádio do Espelho acrescenta à explicação que Lacan aposta na construção do sujeito (e não na sua existência a priori). Na segunda parte do trabalho, encaminhamos a discussão para a reconstituição histórica da deficiência e especificamos a Síndrome de Down de acordo com o discurso biológico. Dessa forma, aproveitando as explicações e o saber da ciência sobre a Síndrome, resgatamos de Lacan os quatro discursos para questionar se a doença orgânica (atrelada ao discurso médico) pode atingir a subjetivação da criança. Na terceira parte, destacaremos a contribuição da psicanálise no hospital, apontando que o analista poderá acolher tanto a produção de uma retificação subjetiva como, ainda, constituir-se em um trabalho de análise. O efeito desse trabalho, porém, só se sabe a posteriori. Como escutar o narcisismo que é colocado à dura prova quando os pais de uma criança com Síndrome de Down se veem diante do seu filho, internado num hospital, devido às complicações de saúde que a síndrome pode provocar? E, por fim, não podíamos deixar de destacar uma série de construções importantes, fruto das inúmeras tentativas de compreensão e de diálogo entre profissionais e pais que fazem parte do universo da criança que adoece e é hospitalizada: os três livros autobiográficos dos pais que têm filhos com Síndrome de Down: ―O filho eterno‖, ―Relatos de um pai apaixonado‖ e ―Cadê a Síndrome de Down que estava aqui?‖ Esse material precioso nos ajudou a refletir sobre a expressão de um pai que diz: ― – o nascimento do meu filho com Down foi semelhante ao desabamento de um prédio de sessenta andares de desinformação‖. A construção do setor de psicologia dentro do hospital se inspira nesse relato e na apresentação da APACHE (Associação para melhoria das condições de hospitalização da criança) no livro ―Bicho da cara preta: crianças no hospital‖. Trata-se de uma associação pioneira na França na luta para melhorar o ambiente hospitalar da criança e sublinhar também a importância do acolhimento no hospital, baseado nas premissas do programa de humanização hospitalar. 12 2 – A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO. Para falar de sujeito, a partir da psicanálise, realçando os escritos de Lacan, precisamos de nos remeter à noção de estrutura que difere do conceito de desenvolvimento. Essa perspectiva é crucial na discussão sobre a lógica da estrutura e a lógica do desenvolvimento. Afinal, o sujeito para a psicanálise é produto da estrutura pela linguagem e não um ser que cresce e evolui biologicamente de modo prévio. No livro ―Psicanálise e psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura‖, Oscar Cirino (2001) nos apresenta Jean Piaget e Henri Wallon como autores que defendem os ―estágios do desenvolvimento‖. Para eles, representantes da psicologia genética, os estágios são operacionais e seguem uma sequência evolutiva de aquisições. De acordo com esses autores, o desenvolvimento psíquico é uma construção progressiva baseada na relação do indivíduo com o meio. Dessa forma, o desenvolvimento psíquico fica atrelado ao desenvolvimento psicomotor e afetivo. É importante realçar que a psicanálise foi, em alguns momentos, relacionada a esse processo de evolução do psíquico devido à leitura de Ana Freud e Renné Spitz sobre os textos de Freud, como se o sujeito adquirisse uma relação madura com o objeto para alcançar satisfação. Dessa forma, a contribuição de Lacan, sempre preciosa, evidencia que seu ―retorno a Freud‖ foi para sublinhar a crítica quanto à assimilação da psicanálise com a psicologia evolutiva e genética. Para a Psicanálise, sujeito se constitui no campo do Outro. Essa constituição traz em si a marca da divisão desse sujeito, visto que, para se constituir, ele depende do significante, e este vem do Outro. Freud (1895), no ―Projeto para uma psicologia científica‖, referindo-se à experiência de satisfação, já nos adianta sobre a importância fundamental desse Outro, que 13 em geral é a mãe, para o pequeno bebê desamparado, que, ao ser acolhido por alguém que lhe interpreta e lhe satisfaz as necessidades, mantém, então, sua sobrevivência, mas também, primordialmente, oferta-lhe a chance de aceder a seu estatuto de sujeito. Ou seja, o bebê nasce e interage com um mundo dinâmico e submetido a variadas situações, em que ele apreende e responde, de maneira particular, de acordo com sua singularidade. Freud (1900), no ―Projeto para uma psicologia científica‖, tenta estabelecer uma Psicologia com base físico-química e com um vocabulário naturalista/fisicalista. Para isso, faz uso de dois axiomas: determinismo e materialismo. Ou seja, os processos do aparelho psíquico não são localizados na psiquê, mas se dão no substrato material, que são os neurônios. Dessa forma, Freud nos explica que, no Princípio da Inércia, todo acúmulo de energia é sentido como desprazer e, com isso, deve haver uma descarga (ações motoras): quantidade de energia = 0. Mas essa teoria sofreu alterações. Afinal, se a quantidade de energia for = 0, o sujeito paralisa. Com isso, surge o Princípio da Constância que se refere à possibilidade de a quantidade de energia ficar diferente de zero (a menor quantidade de libido possível). De acordo com Freud (1900), na experiência de Satisfação ocorre uma ligação entre o objeto que proporcionou a satisfação com a imagem do movimento que permitiu a descarga. A partir de uma necessidade do vivente, o aparelho procurará reinvestir na imagem (lembrança) da percepção do objeto, numa tentativa de vivenciar a satisfação original novamente. É isso que Freud chama de desejo, ―o reaparecimento da percepção é a realização do desejo e o caminho mais curto a essa realização é uma via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo a uma catexia completa da percepção‖. (Freud, 1900, p.603). Assim, o aparelho primitivamente visa repetir a percepção à qual estava ligada a satisfação de necessidade. O aparelho alucina o objeto de satisfação, 14 mas deve dar lugar a uma atividade capaz de tornar possível o discernimento entre o objeto alucinado e o objeto real (entre alucinação e percepção). Esse discernimento só é possível com os signos da realidade que são fornecidos pelo sistema percepção-consciência. O processo de pensamento visa, portanto, substituir uma identidade perceptiva por uma identidade de pensamento. Dessa forma, o processo de pensamento que se forma a partir da imagem-lembrança constitui-se como um contorno para a relização de desejo, o que faz uso do pensar um mero substituto do desejo alucinatório. (Garcia – Roza, 2002, p.184) O pensamento é o resultado da frustração do desejo, na medida em que este busca uma satisfação que não encontra. O sujeito, ao passar pela experiência de satisfação, desejará satisfazer-se com o primeiro objeto, que para sempre ficou perdido, trazendo a noção de que o aparelho sempre deseja. Então, o ―desejo de outra coisa‖ aponta o objeto perdido, jamais reencontrado e o caráter insatisfeito do desejo, sua relação com a falta. Ou seja, ao estabelecer uma relação entre inconsciente e repetição, pode-se dizer que o inconsciente nos faz buscar aquele objeto de satisfação. Com isso, acabamos repetindo outros objetos – erramos o alvo e encontramos outros objetos substitutos, mas com o mesmo objetivo – uma identificação precária (parece, mas não é). Repetimos, pois não alcançamos o alvo. O deslizamento metonímico é essa busca constante, cada significante tenta representar um objeto de desejo. Freud (1900), então, no ―Projeto‖, afirma que nunca haverá o encontro entre o objeto procurado e o objeto encontrado, pois é exatamente a falta do objeto que põe o aparelho psíquico para trabalhar. Ele supõe que o bebê encontra-se em um desamparo primordial e, a partir daí, analisa a experiência de satisfação. Kelles (1999), psicóloga do Hospital Mater Dei, em Belo horizonte, que realiza um trabalho na UTI neonatal, sob a coordenação da Psicanalista Marisa Decat, pioneira em Psicologia Hospitalar em MG, transmite-nos sua escrita sobre essa entrada do bebê na estrutura. 15 Inicialmente, esse pequeno ser, num estado de total desamparo, vive sua primeira experiência de satisfação basicamente a nível orgânico, decorrente de uma excitação interna que precisa ser eliminada. Esse incômodo será aliviado com a ajuda de outro ser, um ser falante,em geral a mãe que saberá lhe oferecer o objeto adequado nesse momento e introduzirá essa criança no mundo da linguagem. Podemos dar como exemplo a fome, que será saciada organicamente com a ingestão do alimento e virá revestida de uma sensação prazerosa que a criança registrará e tentará retomar em várias ocasiões de sua vida. (KELLES, 1999, p.) E é nesse Outro, que lhe garante a sobrevivência, que a criança depositará, de foma fantasiosa, um poder, como aquele que tudo pode, sem falhas: um Grande Outro, nomeação dada pela psicanálise. Lacan (1964) nos diz: O sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro significante. O significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito, para um outro significante, o qual outro significante tem por efeito a afânise do sujeito – quando o sujeito aparece em um lugar como sentido, em Outro lugar, ele se manifesta como fading, como desaparecimento. (LACAN, 1964, p. 206) O sujeito, porém, não se encontra apenas no campo do Outro. A mensagem que vem desse Outro, através de suas demandas, produz interrogações, produz um enigma, pelo fato de esse outro ser submetido a uma lei e não ser possuidor de todos os significantes. Dessa forma, uma falta é encontrada no Outro. E é dessa falta que surge a operação da separação. Nessa operação, o sujeito se pergunta o que quer o Outro e, dessa falta do Outro, surge, então, a dimensão de falta no próprio sujeito. As vivências dessa fase irão indicar a estrutura psíquica do sujeito, por isso, sabemos da grande importância dos primeiros anos de vida para o ser humano. 16 2.1 – Inconsciente e linguagem. A linguística estrutural de Ferdinand de Saussure influenciou a Psicanálise e a escrita de Lacan, realçando a questão do significante. Lacan nos ensina o quanto a linguagem é determinante do sujeito. Já existimos mesmo antes de nascer através do nome que recebemos. Mas o que mais interessa a Lacan não é somente a linguagem, e sim a relação da linguagem com o inconsciente. Servo da linguagem, o sujeito do inconsciente (sujeito da psicanálise) é aquele que fala e deseja. É a fala que marca a posição e a verdade desse sujeito. Mas fala é o lugar da ambiguidade, do equívoco e é, justamente, essa pluralidade de sentidos do significante que favorece a abertura do inconsciente no discurso. Assim, Lacan marca que o inconsciente não está nem dentro nem fora, mas na própria fala do analisante que se estrutura da mesma forma como a linguagem é estruturada – ―o inconsciente é o efeito da fala sobre o sujeito, o sujeito se determina no desenvolvimento dos efeitos da fala, em consequência de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem‖ (LACAN, 1964, p.142). A teoria psicanalítica fundamenta-se na aposta da existência do inconsciente, o que explica um grande número de fenômenos, tais como os sonhos, os atos falhos e os sintomas. No fim do século XX, Freud conceituou o inconsciente de uma maneira divergente de como era formulado até então – não comportava a qualidade da consciência. O inconsciente freudiano ultrapassa isso, refere-se a um sistema com leis próprias de funcionamento. A priori, o inconsciente era apresentado por Freud nos sonhos, chistes, esquecimentos, isto é, nas falhas e deslizes em nossa rotina, como se fossem acidentais. Mas Freud dá a isso uma significação, apontando para um sentido e determinismo psíquico. Ou seja, as formações do inconsciente (chistes, sonhos, atos falhos) portam um saber enigmático que insiste em se desvelar. Dessa forma, frente à mudança na forma de abordar o inconsciente, buscamos algo a ser decifrado a partir da explicitação do inconsciente como 17 uma sintaxe – uma lei da articulação – como se alguma coisa viesse a ser revelada e transformada. São essas as formações de interesse de uma análise através da associação livre e não mais a ênfase de se buscar uma origem do sintoma. O sentido que estava por detrás do sintoma se transforma num sentido de construção sobre o sintoma – da recordação à interpretação. Cabe, portanto, ao analista sustentar, na transferência, os momentos de manifestação do inconsciente – trata-se de um chamado ao sujeito. Na realidade, Freud não criou um novo termo, mas cedeu a ele um novo estatuto. De acordo com suas premissas, o inconsciente passa a ser apresentado como algo que foge à cadeia lógica da consciência, possuindo uma realidade exclusiva: a realidade psíquica. É a partir da hipótese de que o inconsciente existe que o analista propõe ao sujeito que fale, pois o sintoma tem algo a dizer. A Psicanálise quer decifrar o sintoma, pois existe algo para além da consciência. De acordo com essa questão, Freud dialoga com a Pessoa Imparcial no texto: Podem os leigos exercer a análise? A Pessoa Imparcial continua: suponhamos que o paciente não esteja mais bem preparado para compreender o tratamento analítico do que eu; então, como o senhor vai fazê-lo acreditar na magia da palavra ou da fala destinada a libertá-lo do seu sofrimento? (FREUD, 1926, p. 183) Freud realça a palavra como um instrumento valioso de acesso ao inconsciente, sugerindo que o paciente discurse livremente sobre o que lhe vier à mente, renunciando a toda crítica – trata-se da associação livre - para que, desse modo, haja abertura para os tropeços da fala, pelos quais o conteúdo do inconsciente aparece como os chistes, atos falhos, esquecimentos. Já Lacan nos traz outra concepção da relação consciência e inconsciência. Ele nos ensina que a consciência fica em continuidade com o inconsciente, devido à linguagem. Isso é o aforismo – o inconsciente funciona 18 com as leis da linguagem e, assim, estrutura-se. Lacan toma o signo linguístico para fazer uma análise e baseia o inconsciente na lógica do significante. Dessa forma, a partir da experiência do inconsciente, Lacan subverte a lógica de Ferdinand Saussure (abaixo) em que o significado de todo significante é arbitrário. Algoritmo Saussureano: = significado = conceito CADEIRA significante som ―Lacan vai inverter essa relação, colocando o significante em cima e o significado embaixo (S/s) Por quê? Porque o inconsciente se interessa muito mais pelo significante do que pelo significado, ele é constituído por cadeias de significantes.‖ (QUINET, 2008, p.29) A ―cadeira‖ pela qual a Psicanálise se interessa não é o som acústico enquanto tal, mas sim a ―cadeira significante‖ que se associa a um significado. Portanto, Lacan propõe que há uma primazia do significante sobre o significado. Então, de acordo com Lacan, as leis da linguagem são submetidas ao significante: Significante = Algoritmo Lacaniano Significado A teoria do significante foi introduzida por Lacan no escrito, ―Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise‖ (1953), no qual ele ainda não 19 aborda o deslizamento do significado sob o significante. Foi em ―A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud‖ (1957), que ele detalhou seu estudo sobre o significante, realçando a teoria da ―primazia do significante‖: Para além da fala, é toda a estrutura da linguagem que a experiência analítica descobre no inconsciente (...) A linguagem com sua estrutura preexiste à entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental. (...) Também o sujeito se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais num discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento. (LACAN,1957, p.498) Ou seja, cada ser humano é portador, desde a infância, das fantasias relacionadas com o filho que ele deseja ter. As brincadeiras de boneca são apenas uma dessas manifestações. Existe, a priori, um lugar simbólico para o bebê. Dessa forma, o bebê é antecipado no tempo. Mas é devido aos sonhos, antecipações e idealizações do Outro que existimos. As palavras em torno do berço contornam o bebê que, a priori, é puramente falado pelo Outro. O sujeito é produzido dentro da linguagem que o aguarda. É nesse contexto que Lacan nos aponta o único lugar possível ao sujeito: no significante, que está no campo do Outro. 2.2 – O Estádio do espelho e o narcisismo. Lacan aposta na construção do sujeito (e não na sua existência a priori) e explora as condições necessárias para tal. Uma primeira referência é encontrada quando ele descreve o estádio do espelho como formador da função do eu. O que é o estádio do espelho? É o momento em que a criança reconhece sua própria imagem. Mas o estádio do espelho está bem longe de apenas conotar um fenômeno que se apresenta no desenvolvimento da criança. Ele ilustra o caráter de conflito da relação dual. Tudo o que a criança aprende nessa cativação por sua própria imagem é, precisamente, a distância que há de suas tensões 20 internas, aquelas mesmas que são evocadas nessa relação, à identificação com essa imagem... Não é na via da consciência que o sujeito se reconhece, existe outra coisa e um mais além‖ (LACAN, 1956, p.15) Lacan constata que a criança manifesta um interesse particular por um objeto privilegiado: sua imagem especular. É uma curiosidade intensa que pode ser confirmada por qualquer pessoa que tenha experiência com crianças. De fato, são frequentes as brincadeiras nas quais, valendo-se dessa curiosidade, um adulto diverte uma criança colocando-a diante do espelho para que ela possa apreciar sua imagem. Dessa forma, Lacan se detém nos possíveis efeitos que a imagem produz na estruturação da criança. O bebê humano, ainda que nasça a termo, é eminentemente prematuro. Essa prematuridade o impede de vivenciar seu corpo como uma unidade. Apesar de o seu corpo biológico ser unificado e não um amontoado de membros disjuntos, não é assim que a criança se experimenta. A descoordenação motora, característica do início da vida, faz com que a criança tenha um sentimento de despedaçamento em relação a seu corpo. Com isso, a consciência de um corpo, como uma totalidade, deverá ser construída. O bebê, porém, sem a vivência da unidade corporal, verifica no espelho ou nos seus semelhantes, o corpo do outro como uma totalidade. É exatamente por isso que sua imagem refletida exerce um enorme fascínio sobre a criança. Ela antecipa a conquista da unidade funcional de seu corpo. É o que Lacan chama de um espetáculo: Um espetáculo cativante de um bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por algum suporte humano artificial (o que chamamos, na França, um trotte-bebé), supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem (Lacan, 1949/1998, p. 97). 21 Através dessa imagem que captura a libido, a criança constitui a primeira forma do eu. Nessa operação, denominada por Freud de narcisismo, a libido investe a imagem do corpo como um objeto e, através da identificação com essa forma, constitui o eu como objeto (de seu investimento). Portanto, tanto em Freud como em Lacan, o eu tem a mais estreita relação com o corpo. Para ambos, o eu é corporal. Assim, o corpo de que se trata em psicanálise não é o corpo biológico, mas o corpo construído ao ser objeto de investimento libidinal. Cabe realçar que essa imagem com a qual a criança se identifica está num descompasso com o que criança experimenta. A criança, que se localiza num estádio de descoordenação motora, detém a imagem no espelho como uma imagem ideal, a ser alcançada, já que essa imagem aparece a ela como completa. Por ser ideal, embora seja a sua imagem, a criança a vivencia como a imagem de um outro. É, portanto, em relação a uma alteridade (da imagem especular) que o eu se constitui. Lacan perfilhou a dependência do eu quanto à sua origem em relação ao outro, nas situações confusas em que as crianças pequenas confundem suas ações com as de uma outra. Num fenômeno nomeado como transitivismo, choram ao ver uma outra cair, batem e afirmam terem sido batidas. O transitivismo, que se difere numa época em que a fronteira entre o eu e o outro é mais frágil, nunca desaparece por completo das relações humanas. Isso se deve ao fato de o eu carregar consigo as marcas dessa origem e, para sempre, haver a possibilidade de nos perdermos no outro. A imagem especular, ao constituir a unidade do eu, o constitui como diferente dos objetos do mundo. Assim, essa imagem é crucial na constituição do eu como objeto e do campo dos objetos do mundo. Anterior à apreensão dessa imagem, não havia o eu e nem o objeto. A própria imagem do corpo, a rigor, só se constitui como um objeto no ato mesmo de sua assunção. Por isso, não há possibilidade de haver relação com qualquer objeto antes do narcisismo. Uma vez que não há eu, até mesmo seu despedaçamento não é 22 possível de ser experienciado. Portanto, o fato de a criança constituir um eu é de fundamental importância, para que ela efetivamente possa estar no mundo e apoderar-se dele, caso contrário, a relação com o mundo fica extremamente empobrecida e, talvez, até mesmo inexistente. 2.3 – PSICANÁLISE: UMA PROPOSTA DE CONSTITUIÇÃO SOCIAL DO SUJEITO O outro está sempre em nossas vidas, seja como modelo, objeto, auxiliar ou adversário, por isso não se deve segregar o sujeito do outro, ensina-nos Freud. Dessa forma, a psicologia individual se assemelha à psicologia social, como descreve Freud (1921) em ―Psicologia das massas e análise do eu‖: O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos pulsionais, contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em oposição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo a mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mais inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. (FREUD, 1921, p.81) Assim sendo, Freud nos mostra que todas as relações do indivíduo com seus pais, irmãos, relacionamentos amorosos ou profissionais são fenômenos socias referentes ao principal tema das pesquisas psicanalíticas. Ainda em seu texto Psicologia das massas e análise do eu, de 1921, Freud elege um capítulo para abordar a identificação. Segundo ele, a identificação consiste no mais remoto laço afetivo entre duas pessoas e desempenha papel fundamental no ―desenrolar‖ do complexo de Édipo. Nesse momento, o teórico articula a identificação ao Complexo de Édipo; e usa o 23 Édipo do menino como referencial, mas diz que o mesmo também se aplica, com substituições necessárias, à menina. Ao falar do menino, ele nos diz que a identificação é ambivalente desde o início – pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo de afastamento de alguém. Freud posteriormente diz que é fácil enunciar numa fórmula a distinção entre a identificação com o pai e a escolha deste como objeto. No primeiro caso, o pai é o que gostaríamos de ser; no segundo caso, o que gostaríamos de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao objeto do eu. Portanto, o primeiro tipo de laço é possível antes que qualquer escolha sexual de objeto tenha sido feita, mostrando que a identificação esforça-se para moldar o próprio eu de uma pessoa, segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo. (FREUD, 1921, p.134) O psicanalista busca desemaranhar a identificação tal como ocorre na estrutura de um sintoma neurótico e, assim, pode-se compreender melhor suas conclusões a respeito do sonho de sua paciente da ceia de salmão defumado (A bela açougueira), em que fala da identificação por meio da criação de um sintoma. Freud exemplifica assim: Suponhamos que uma menininha (e, no momento, ateremo-nos a ela) desenvolva o mesmo penoso sintoma que sua mãe; a mesma tosse atormentadora, por exemplo. Isso pode ocorrer de diversas maneiras. (FREUD, 1921: 134) Segundo Freud (1921), a identificação pode provir do Complexo de Édipo e há três formas de identificação. Nesse exemplo citado acima, significa um desejo hostil, por parte da menina, de tomar o lugar da mãe. E o seu sintoma expressa seu amor objetal pelo pai; ocasionando realização de seu desejo de assumir o lugar da mãe – sob a influência do sentimento de culpa. Para Freud, esse é o mecanismo completo da estrutura de um sintoma histérico e diz sobre sua reflexão sobre a identificação da menininha: Você queria ser sua mãe e agora você a é – pelo menos, no que concerne a seus sofrimentos. (FREUD, 1921:134) 24 Na segunda forma, a identificação pode aparecer no lugar da escolha de objeto, em que a escolha de objeto regride para a identificação. Toma-se, como exemplo, Dora – a paciente de Freud que imita a tosse do pai; ela estava completamente identificada com a mãe. Ela imitava a tosse do pai, mas a sua identificação era com o objeto dele, a sua mãe. Já a terceira forma de identificação seria o mecanismo no qual a identificação é baseada na possibilidade ou no desejo de colocar-se na mesma situação. Suponha-se, por exemplo, que uma das moças de um internato receba de alguém por quem está secretamente enamorada uma carta que lhe desperta ciúmes e que ela reaja por uma crise de histeria. Então, algumas de suas amigas que são conhecedoras do assunto pegarão a crise, por assim dizer, através de uma infecção mental. (FREUD, 1921:135) Ou seja, as outras moças também gostariam de ter um caso amoroso secreto, baseado nesse mecanismo de identificação, sob a influência do sentimento de culpa, em que aceitam também o sofrimento envolvido nele. Um ego através de mimetismo copia o outro ego em um determinado ponto. Portanto, Freud nos apresentou as três fontes da identificação: Primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com o objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio de introjeção do objeto no ego; e, terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra que não é objeto de pulsão sexual (FREUD,1921, p.136) Após essa apresentação sobre a teoria de Freud a respeito da identificação, é importante acrescentar também o percurso de Lacan (1990), que através de seus escritos, mostra-nos que a identificação do sujeito começa em seus primeiros anos de vida, através das experiências perspectivas da criança, o que pode ser explicado através do estádio do espelho. A criança nasce em um estado de prematuração neurológica e só se configura a partir da 25 apreensão de sua imagem quando vista no espelho, passando a constituir-se como uma totalidade. A imagem do corpo como unidade é um precipitado. A criança tem que subjetivar para se constituir como uma unidade, unificando, assim, o seu próprio corpo. Há sempre um ―buraco‖ entre a imagem e o próprio corpo, que tem que ser preenchido com a subjetividade. O corpo real é fragmentado e necessita do olhar do Outro para se constituir. O sujeito se identifica com aquilo que o Outro diz que ele é. A partir da primeira identificação é que ocorrem todas as outras identificações, por isso é que estamos sempre ―condenados‖ ao olhar do Outro. A primeira identificação se dá no momento da formação do eu que se forma no decorrer das identificações imaginárias. As imagens constitutivas do eu imaginário não são imagens quaisquer. O eu só se identifica com as imagens em que se reconhece: a parte imaginária do Outro que atrai a atenção do eu, levando-o à identificação – são imagens constituídas da figura do Outro. Essa parte do Outro que atrai é o traço sexual desse Outro. Freud, então, analisa a constituição do eu e nos ensina o quão é fundamental o processo de identificação para a constituição e manutenção dos grupos. Ele conclui que o homem é um animal de horda, sempre reunido e sob comando do líder. Cada membro tem uma ligação com o líder e cada ligação mantém a relação entre eles: 26 Freud recorre a Le Bon para ler sobre sociologia e verifica que Le Bon defende a ideia de ―alma coletiva‖. Para ele ―os dotes particulares dos indivíduos se apagam num grupo e que, dessa maneira, sua distintividade se desvanece.‖ (FREUD, 1921, p.85). Ou seja, o que explica a existência do grupo é uma alma coletiva. O sujeito reage de maneira bem distinta quando sozinho e quando em grupo. Um grupo é impulsivo, irritável, emotivo e o amor o constitui e o mantém. O grupo não possui a faculdade crítica, a reflexão, nem a razão do sujeito sozinho. Nesse contexto, então, evidenciamos o texto de Freud, ―Totem e Tabu‖ (1913), para relacionar com ―Psicologia das massas e análise do eu‖ (1921), afinal, neste, tem-se a união pelo amor e em Totem e Tabu, a união se dá pelo ódio. Em Totem e Tabu, o assassinato do pai é um ato necessário, fundador da civilização, ato que instaura a lei que nos separa do mundo da natureza e nos introduz na cultura, o que possibilita a internalização dos interditos paternos. Freud nos ensina, dessa forma, que o assassinato do pai é essencial para a internalização da lei pelos filhos, com a metáfora paterna. ―O mal estar na civilização‖, texto de Freud, apresenta-nos como a cultura e a civilização produzem um mal estar humano devido ao antagonismo existente entre a civilização e as exigências da pulsão. Pois, para que a civilização se desenvolva, faz-se necessária uma renúncia da satisfação pulsional, causando, possivelmente, frustrações, na vida sexual, e agressividade. Freud (1915), em ―A pulsão e seus destinos‖, sublinha os caminhos da pulsão em: o retorno ao próprio eu (o sujeito maltrata a si próprio), o recalque (produzindo o sintoma), a sublimação (a pulsão encontra a satisfação no inesperado) e a transformação em seu contrário (toma-se, como exemplo, o amor transformado em ódio). 27 Segundo Freud (1915), a pulsão constitui-se de quatro elementos: - Drang (pressão): a pulsão é contínua, não para, busca satisfação constantemente. Uma força para alcançar a meta. - Ziel (meta): nunca alcançada totalmente, sempre parcial. - Objekt (objeto): é o objeto que permite à pulsão encontrar satisfação. - Quelle (zonas erógenas): o ponto de origem é sempre uma zona erógena. Portanto, a pulsão encontra-se de um lado e a cultura do outro lado. Todo percurso desenvolvido neste capítulo nos mostra que o sujeito é um sujeito da cultura, isto é, nasce imerso num banho de linguagem. Já existimos antes mesmo de nascer. Ou seja, o sujeito se constitui a partir do Outro – o sujeito se constitui na cultura e precisa dela para viver. Toma-se como exemplo, as próprias palavras em torno do berço que nos apontam que, a priori o bebê é falado pelo Outro. De quem são as palavras que, neste trabalho, propusemos a pesquisar em torno do LEITO? Adianto que nos capítulos posteriores destacaremos as palavras do médico e dos pais em torno da criança com síndrome de down internada no hospital. 28 3 – DEFICIÊNCIA A noção de deficiência vai-se modificando historicamente, à medida que as condições sociais são alteradas pela própria ação do homem, gerando novas necessidades na sua relação com o meio social. É possível intentar uma análise dessa condição no âmbito dos diferentes modos de produção social (comunidade primitiva, sociedade escravista, feudal e capitalista), na busca da compreensão dos mecanismos sociais construídos, ao longo dos tempos, para identificar e assumir posições diante de sujeitos diferentes, ou que não atendam às exigências de seu tempo. Segundo Bianchetti (1995), na comunidade primitiva, a satisfação das necessidades humanas estava na dependência do que a natureza proporcionava como abrigo em cavernas e alimentos. Estando a natureza fora do controle dos homens, o nomadismo era condição para sobrevivência, e cada homem teria de buscar a manutenção de sua vida. Sendo um ―peso morto‖ para seu grupo social, e não havendo por parte deste qualquer compromisso com a sua manutenção, os deficientes seriam, provavelmente, abandonados à própria sorte. Com a sociedade escravista na Grécia Antiga, a satisfação das necessidades básicas do homem livre era garantida pelos escravos. Não tendo mais que prover a própria subsistência, ele podia pensar de forma sistematizada. De acordo com Bianchetti (1995), em Atenas, a vida da polis, a valorização da retórica, da capacidade de argumentação e a contemplação possibilitaram, a partir da obra de Platão, que se estabelecesse uma cisão entre corpo e mente. À mente caberia mandar e governar, atividades dignas realizadas pelos homens livres; ao corpo, caberiam as tarefas degradantes, realizadas pelos escravos. 29 Segundo Pessotti (1984), Platão propunha que pessoas imperfeitas fossem abandonadas à própria sorte. Para Aristóteles, essa prática seria legítima mesmo para o controle demográfico. É fácil concluir que essa era uma condição fatal para as pessoas com deficiência, particularmente quando implicava dependência econômica. Ainda de acordo com Pessotti (1984), essa prática só se modificou a partir da transformação do modo de organização social. Na Idade Média, sob a influência teológica, a dicotomia corpo/mente transformou-se em corpo/alma. A partir da instituição de uma moral cristã, sendo todos os homens possuidores de uma alma, passou a ser intolerável a prática do abandono, socialmente aceita e justificada na sociedade escravista. Diante do conflito moral, que impedia deixar à mercê da sorte esses homens dotados de alma, a sociedade encontrou no asilamento a solução alternativa, uma resposta pouco onerosa que oferecia dupla conveniência: assegurava cuidados exigidos pela moral cristã vigente e removia o incômodo. Pessotti (1984) ainda nos explica que, com a agudização das contradições da sociedade feudal, teve início um longo período de crise, marcado por guerras, insurreições, fome, crise ideológica. Era a transição a um novo modo de produção, o capitalismo. Rompendo com a visão predominante na sociedade feudal, que se baseava na visão teológica, o divino passou a ser substituído pelo natural. O homem, a sociedade e o mundo passaram a ser concebidos como realidades individuais imanentes, dotadas de uma lógica particular, em vez de serem determinados por forças divinas. Com base nessas transformações, passou-se à compreensão de que os comportamentos humanos, suas capacidades e incapacidades foram determinadas por leis naturais. A deficiência seria, então, compreendida a partir dessa perspectiva. 30 A questão do ―natural‖ foi explicitada por Locke, no seu ―Segundo tratado sobre o governo civil‖, publicado em 1692: ―Os homens são definidos como proprietários de si mesmos, de seus corpos, de sua força de trabalho, livres e iguais, podendo realizar no mercado a troca de suas mercadorias, sendo limitados apenas por suas incapacidades naturais‖ (LOCKE, 1978, p.11) Dessa forma, se não podiam realizar sua condição de igualdade, as pessoas com deficiência eram enviadas às instituições, tuteladas pelo Estado, junto com outras pessoas nas mesmas condições (os doentes, os loucos, os miseráveis, os incapazes), proscritas pela sociedade. De acordo com Pessotti (1984), era segregado todo aquele que, em virtude de suas incapacidades naturais, ainda que, possuindo seu corpo, não era livre da dependência do outro e tampouco participava do processo de produção e acumulação de riqueza. Não sendo capaz de se realizar como força produtiva, passou a se inscrever na sociedade como alheio às relações concretas estabelecidas entre os homens. E à medida que as contradições do capital, ao longo do século XX, impuseram novas exigências, ampliou-se a margem daqueles considerados divergentes do modelo social. As transformações sociais imprimiram a demanda por novas habilidades, entre elas, a capacidade de ler, escrever e calcular em níveis básicos. Se, a partir da Idade Média, a questão orgânica era definidora da condição da deficiência, isso se modificou no século XX. De acordo com Pessotti (1984), aqueles sujeitos incapazes de aquisições acadêmicas foram, também, incorporados à categoria dos deficientes, por não atenderem às expectativas culturais emergentes. Assim, no século XX, a incompetência escolar passou a ser compreendida como deficiência mental leve, associada aos quadros anteriormente reconhecidos, como o cretinismo, a idiotia, a imbecilidade e a debilidade mental, legados pelo saber do século XIX. 31 Bueno (1997) assinalou que, se há alguma continuidade histórica na identidade social do anormal, é que em todas as épocas a sociedade identificou, por algum critério, aqueles que possuem características divergentes das encontradas na maior parte de seus membros. Argumentou que essa identificação é pautada não pela presença da diferença, mas sim por suas consequências nas possibilidades de participação desse homem na construção coletiva da sobrevivência e reprodução social. Dessa forma, uma pessoa é considerada deficiente quando não corresponde a um padrão considerado normativo, e há um homem de referência para cada tempo. Dessa forma, o conceito de anormalidade social vai sendo historicamente construído, complexificando-se na mesma medida em que as condições sociais vão sendo transformadas pela relação do homem com o meio. Dessa maneira, com base na ciência, observam-se mudanças no perfil daqueles identificados como deficientes. 3.1- O que é a Síndrome de Down De acordo com o dicionário Aurélio, ―deficiência‖ refere-se à falta, carência e insuficiência . Já ―síndrome‖ refere-se a um conjunto de sintomas ligados a uma entidade mórbida. Segundo Cavalcante (2003), faz-se necessário também distiguir a deficiência do termo ―desvantagem‖ que, conforme o dicionário, trata-se de falta de vantagem, inferioridade e, devemos diferenciar também de ―incapacidade‖, que refere-se a falta de capacidade legal. Segundo Mustacchi (1990), a Síndrome de Down decorre de um acidente genético que ocorre em média em 1 a cada 800 nascimentos, aumentando a incidência com o aumento da idade materna. Atualmente, é considerada a alteração genética mais freqüente e a ocorrência da Síndrome de Down entre os recém nascidos vivos de mães de até 27 anos é de 1/1.200. Com mães de 30-35 anos é de 1/365 e depois dos 35 anos a frequência aumenta mais rapidamente: entre 39-40 anos é de 1/100 e depois dos 40 anos torna-se ainda maior. Acomete todas as 32 etnias e grupos socioeconômicos igualmente. É uma condição genética conhecida há mais de um século, descrita por John Langdon Down e que constitui uma das causas mais frequentes de deficiência mental (18%). No Brasil, de acordo com as estimativas do IBGE realizadas no censo 2000, existem 300 mil pessoas com Síndrome de Down. Seus portadores apresentam, em consequência, retardo mental (de leve a moderado) e alguns problemas clínicos associados. O mesmo autor nos ensina que, diferentemente dos 23 pares de cromossomos que constituem, na maioria das vezes, o nosso genótipo, no caso da Síndrome de Down, há um material cromossômico excedente ligado ao par de número 21 e, por isso, também é chamada ―trissomia do 21‖. Não existem graus de Síndrome de Down, o que existe é uma leitura desse padrão genético em cada indivíduo, como ocorre com todos nós. Assim, como existem diferenças entre a população em geral também existem diferenças entre os portadores de Síndrome de Down. Existem 3 tipos de Síndrome de Down: A trissomia livre (92% dos casos), quando a constituição genética desses indivíduos é caracterizada pela presença de um cromossomo 21 extra em todas as suas células. Nesses casos, o cromossomo extra tem origem no desenvolvimento anormal do óvulo ou do espermatozóide onde ocorre uma não-disjunção durante a meiose, na gametogênese, sem razões conhecidas. Em consequência desse fato, quando eles se encontram para formar o óvulo fecundado estão presentes, em um dos gametas, três cromossomos 21 no lugar de dois. Ao longo do desenvolvimento embrionário, o cromossomo adicional permanece acoplado a todas as células do indivíduo em função da divisão celular. Diante dessa explicação biológica sobre a síndrome, recordo-me da questão exposta por Vorcaro (2000), no texto ―Doenças Graves na Infância‖ : ―se a saúde é a fiadora da sustentação do ideal do qual um filho é a promessa, o efeito da doença orgânica pode atingir a subjetivação da criança?‖ De acordo com Vorcaro (2000), apesar de a estruturação do sujeito não depender do orgânico, uma doença grave pode interferir na estruturação do 33 sujeito quando se torna um traço prevalente, como se o sujeito fosse reconhecido apenas por um único traço: ―o down‖, por exemplo, destituindo ―O João, A Maria‖. Dessa forma, a impotência associada à doença apaga a criança idealizada pelos pais, ―já que não pode responder de onde é esperada, não pode alimentar a ficção que a sustém na posição que lhe foi atribuída‖ (Vorcaro, 2000, p.335) Realçada e constatada uma insuficiência interpretada pelos pais em seus filhos, o desejo do filho ideal cai por terra. A autora Elsa Coriat nos apresenta um caso clínico em que os pais questionam: ―os bebês com Síndrome de Down podem dizer ‗agu‘???‖ Os pais acrescentam que, ultimamente, ouviram o filho balbuciar ‗agu‘, mas não deram importância a isso, pois lhe disseram que as crianças que têm Síndrome de Down não dizem ‗agu‘ e, dessa forma, ficaram inseguros quanto à certeza com o que pensaram ter escutado. Nas palavras de Coriat: Um pai ou uma mãe que não acredita no que seus olhos e seus ouvidos lhe informam acerca da significação da conduta do bebê, porque não coincide com o que os outros garantem que tem que ser; um pai ou uma mãe que acredita ter visões quando seu filho com problemas comporta-se como qualquer outra criança; esse pai e essa mãe, ao invés de responder ao ―agu‖ buscando repeti-lo ou ampliá-lo, procurará não voltar a escutá-lo, retirando-se da cena, uma vez que, se o escutasse, iria supor que é apenas uma ilusão. O ―agu‖ de seu filho, em vez de enchê-lo de alegria, irá trazer-lhe a lembrança de que lhe disseram que isso é impossível; possivelmente, seus olhos irão encher-se de lágrimas, cortando a incipiente comunicação. (Coriat, 1997, p.170) Vorcaro (2000) acrescenta que a doença grave provoca mudanças na identidade atribuída à criança e também altera a posição dos pais que se sentem destituídos de saber para reconhecer e cuidar dessa criança. Deslocam, assim, essas funções para os especialistas ou agentes de saúde sublinhando uma insuficiência dos pais: Nessa lacuna do saber parental, o diagnóstico, em sua função de instrumento classificatório etiológico e nosográfico, compreende o que é irreconhecível pelos pais e indica terapêuticas que reconduzirão ou adaptarão a criança à normalidade, condenando, aliviando ou salvando os pais do mal estar que a doença produz aos ideais. (Vorcaro, 2000, p. 104) 34 De acordo com Vorcaro (2000), quando esses pais localizam no médico um discurso de mestre, será ele, o médico, quem antecipará o adulto que essa criança vai ser, pois sua palavra prognosticadora orientará o laço dos pais com a criança. E o diagnóstico pode até adquirir um tom de identidade social destituindo o nome da criança: ―meu filho é Down‖, ―ele é PC‖, ―aquele Asperger‖. 3.2 – O discurso médico Os discursos, lembramos aqui, são formas de tratar o impossível, o real ou aquilo que escapa à simbolização. (MUCIDA, 2001, p.124) O legado de Lacan, por meio do qual se pode verificar as diferentes posições assumidas por um sujeito no laço social é uma teoria fundamental para todo psicanalista que trabalha em uma instituição. Trata-se da chamada ―Teoria dos quatro discursos‖, desenvolvida entre 1969 e 1970 por Lacan no Seminário XVII, intitulado ―O avesso da psicanálise‖, em que ele aponta a existência de quatro discursos que regulam o laço social. São quatro elementos que constituem a estrutura de todo discurso: - S 1: significante mestre, - S 2: cadeia dos significantes constituídos S2, S3, S4...representada pela abreviação S2, - a: mais gozar - $: sujeito barrado pelos significantes que o constituem. O sujeito, na teoria lacaniana, é representado por dois significantes: um significante é o que representa um sujeito para outro significante e o sujeito é aquilo que o significante representa, ou seja, o sujeito é efeito do significante. 35 Os lugares que os elementos citados acima podem ocupar são os quatro seguintes: o agente , outro . a verdade produção O que organiza esse discurso? O que desempenha o papel de agente? Qual é a sua verdade? Qual é o outro ao qual esse discurso se dirige? Qual é o produto que tal discurso comporta? Todas essas questões permitem situar da melhor maneira as condições de representação, isto é, as condições do laço social nas quais o sujeito precisa produzir seu registro, suas identificações. Os discursos nada mais são do que lugares lógicos decorrentes do apelo fálico, que convoca o eu a se representar, lugar que Lacan (1969) aborda como aquele que não cessa de não se escrever, responsável pela busca da construção de um representante que possa tornar-se suporte simbólico para amparar os laços discursivos. De acordo com Lacan (1969), pode-se dizer que os discursos, esses lugares lógicos, definem uma forma de gozo. Então, vê-se um deslocamento do próprio sujeito da fala para um sujeito do discurso que não, necessariamente, fala. Mas é um sujeito implicado no seu gozo. Lacan (1969) ainda sublinha que esses lugares são responsáveis pela produção de todos os nossos atos de repetição, desde atos enunciativos a atos sintomáticos ou sublimatórios, ou seja, atos nos quais o sujeito se precipita em um objeto pulsional, na fronteira determinada pela articulação alienação/separação da relação ao Outro. Então, cada discurso tem um agente, que é aquele que coloca o discurso para funcionar. O agente é sempre um ator sustentado numa verdade, particular para cada um dos quatro discursos. Tem-se um agente que, embasado em uma verdade, agirá sobre alguém (o outro), para se obter uma produção. O outro é o lugar do trabalho, a produção (mais valia) é o excesso, o 36 resto, objeto (mais de gozar) e a verdade é aquilo que desvelando vela, o que não se diz por inteiro, o que faltam palavras, é o enigma. É importante lembrar que é a rotação dos quatro elementos nos quatro lugares que vai configurar a estrutura de cada discurso, o que fornece as seguintes possibilidades discursivas: Discurso do Mestre (governar): S1 → $ S2 a Encontra-se o discurso do mestre como o discurso da instituição do sujeito enquanto tal. Teremos um agente que chamaremos de senhor (S1) que agirá sobre o escravo (S2), fazendo-o produzir. Tem-se como produto o objeto que terá um valor a que o escravo renuncia para o gozo do senhor como sujeito. Então, esse discurso, ao instaurar essa identificação do sujeito, faz com que ele se represente, tenha uma identidade: ―eu sou isso‖, ou seja, o sujeito fica identificado ao seu próprio significante. Assim, tem-se o sujeito alienado entre dois significantes (S1 e S2), isto é, alienado ao seu inconsciente. Lacan (1969) identifica esse discurso do mestre ao discurso do próprio inconsciente que é uma cadeia de significantes cuja existência se manifesta através de suas formações, como os chistes, sintomas, atos falhos, sonhos e revelam a verdade, o desejo do sujeito. O inconsciente é um operário que trabalha em tempo integral, é incansável. Já o Discurso Universitário implica uma subversão discursiva em relação ao discurso do mestre: (educar) S2 → S1 a $ Esse discurso mudou a relação do homem com o saber. O saber que se sustentava, meramente, no próprio significante mestre, no discurso 37 universitário, esse saber equivale a outro, pois são as publicações, citações e títulos universitários que garantem o valor de um saber. Dessa forma, o saber se conta em títulos acadêmicos e o próprio sujeito torna-se instrumento de gozo. Discurso Histérico: (fazer desejar) $ a → S1 S2 O discurso histérico denuncia o discurso do mestre; o sujeito histérico faz objeções à instituição do sujeito como tal, ele interroga o discurso do mestre, há sempre algo escapando e se manifestando, demonstrando que o sujeito não é inteiro. Há uma revelação da castração do mestre que é barrado. Nesse discurso, tem-se um sujeito dividido, mergulhado num ‗não saber‘, sempre apontando o furo do Outro, pois esse discurso é o laço que mostra a articulação do sujeito com o Outro através do desejo. Um desejo sempre insatisfeito. Discurso do Analista: a S2 → $ S1 Na análise, o objeto mais de gozar situa-se na função de agente para que o sujeito barrado produza os significantes primordiais, que o alienam como sujeito, tendo esse laço o saber depositado na experiência como a sua verdade. O discurso do analista demonstra que o sujeito é descentrado em relação a ele mesmo, é dividido. A psicanálise mostra que o significante, no caso: ―eu sou isso‖, é incapaz de se significar a si mesmo. O sujeito jamais poderá ser definido por ele mesmo, pois depende da sua localização na cadeia de significantes e o sujeito não é aquilo que o representa. A função do objeto aparece na renúncia ao gozo. Na relação com o outro, há um mais de gozar que se estabelece e será captado por alguns. Lacan (1969) refere-se ao objeto ‗a‘ enquanto perdido, sendo um ‗mais de 38 gozar‘. Gozar para o Outro, uma vez que a fantasia que implica a relação do sujeito com esse objeto ‗a‘ que é sempre um objeto do Outro, na medida em que o sujeito o supõe ser do Outro. Mas o processo analítico pretende levar o sujeito a saber que esse Outro tampouco detém o objeto que lhe falta, pois o outro é furado, perdido. Para além desses 4 discursos que fazem laço social, Lacan não deixou de fazer referência a outros contextos nos quais não se produzem laços sociais, isto é, não há relação entre o agente e o outro. O discurso capitalista. Uma variação, um deslizamento do discurso do mestre: $ S1 S2 a Trata-se da forclusão do laço social. E a psicopatologia trata-se de uma estratégia para combater essa forclusão. O mais gozar não advém mais do laço social, mas dos objetos. Há um desvanecimento do mestre, um declínio dos significantes mestres em prol dos objetos; no lugar da verdade, a oferta de Um para todos. Nesse sentido, Ribeiro (2010) nos recorda que os produtos postos no mercado, objetos ‗a‘, produzidos pela ciência, são postos para gozar – ofertas de satisfação garantida e imediata. Tomam-se, como exemplo, as latusas (termo utilizado por Lacan), para expressar celulares, computadores, dentre outros produtos, que estão sempre obsoletos, fazendo com que o consumidor não pare de comprar em busca de uma satisfação. Outro exemplo importante são as drogas. Seu uso é efeito do discurso capitalista, pois o usuário de drogas não pode parar de consumir. As drogas forcluem o sujeito do laço social assim como o discurso capitalista. Dessa forma, o discurso capitalista que forclui o laço social transforma o agente em ―palhaço consumidor‖, como se tudo dependesse da sua vontade e, assim, induz às patologias ligadas ao gozo do Outro, e o sujeito faz sintomas. 39 Podemos pensar aqui como o discurso capitalista apropria-se da Síndrome de Down? Porque propagandas (o marketing), novelas e espetáculos de arte (como, por exemplo, o ballet) têm divulgado tão, frequentemente, as pessoas portadoras da síndrome como se fosse bom ter a Síndrome de Down? Portanto, o discurso capitalista reduz o sujeito a um mero consumidor e incrementa as patologias. Mas cabe realçar que o analista é o sujeito suposto saber e deve saber como se sustentar nesse lugar, ater-se ao que diz respeito ao não-todo do inconsciente, pois o discurso do analista é o que dá lugar de sujeito ao Outro. O sujeito está na posição do outro e o psicanalista é mero objeto ‗a‘, está na posição de agente do discurso. Daí a ética que rege seu trabalho. Já o discurso médico, segundo Cavalcante (2003), tenta responder, prontamente, aos pedidos do paciente na tentativa de minimizar seu sofrimento. A medicina trata o corpo do paciente como biológico e deserogeneizado, foca-se na doença e na semiologia que reflete um saber já pré-estabelecido para extrair o diagnóstico e a prescrição terapêutica adequada. O olhar médico não encontra o doente, mas a sua doença, e em seu corpo não lê uma biografia, mas uma patologia na qual a subjetividade do paciente desaparece atrás da objetividade dos sinais sintomáticos que não remetem a um ambiente ou a um modo de viver ou a uma série de hábitos adquiridos, mas remetem a um quadro clínico onde as diferenças individuais que afetam a evolução da doença desaparecem naquela gramática de sintomas, com qual o médico classifica a entidade mórbida como o botânico classifica as plantas. (ROTELLI, 1990, p.93) De acordo com Filho (1992), o discurso da medicina é claro ao vincular seu objetivo à cura, ao bem estar e ao progresso do tratamento. Sua tarefa e função social consistem na recuperação da saúde do paciente como um bem produtivo e pela possibilidade de inseri-lo no mercado do sistema capitalista. 40 O mesmo autor ainda nos transmite que, nos dois últimos séculos, o avanço da ciência trouxe uma diversidade de contribuições e benefícios para o campo da medicina, facilitando a produção de um saber objetivo sobre o corpo, seu funcionamento e seus sistemas. Consequentemente, tais avanços também foram responsáveis por alterações nos hábitos e costumes da sociedade que, hoje, exige do médico uma propedêutica e um tratamento eficaz, rápido a fim de aliviar o mal estar do doente. E, na mesma proporção em que o conhecimento avançou, fez-se necessário promover a divisão do saber sobre o organismo, pois cada parte do corpo tornou-se uma nova área de investigação específica. Dessa forma, o médico da contemporaneidade desenvolve sua abordagem de modo focal, tratando da doença e visando à recuperação do corpo ou da função desse corpo adoecido. O discurso médico, quando nomeia uma patologia para alguns pacientes, constitui um elemento identificatório. Assim, frequentemente, a pessoa deixa de ser o Diogo, a Aline, para ser o diabético, o amputado. Mas cada sujeito respoderá a isso de forma singular. De acordo com Mucida (1998), não saber o diagnóstico pode causar diversas reações. Alguns pacientes, ao se descobrirem ―doentes‖, especialmente, de modo súbito, sentem-se angustiados. Enquanto o que ele sente não tem nome, enquanto as causas das suas sensações são desconhecidas, a angústia permanece intensa. Ela presentifica o real, o sujeito fica à deriva, desprendido da palavra, fora da simbolização, fica doente penalizado por um mal estar interno o qual não consegue aliviar. Esse mal estar pode, muitas vezes, minimizar quando o médico nomeia a doença. Porém pode também promover uma espécie de cortes nos projetos de vida do paciente, adquirindo um sentido de perda que abala a estrutura psíquica desses doentes. Esses sentimentos de perda, desencadeados nesse momento, podem fazer com que a pessoa invista em cuidados extremos com sua saúde. 41 Mucida (1998) constata que o discurso da medicina oferece ao paciente hospitalizado um atrelamento do sujeito à doença. Dessa forma, parafraseando Mucida: o que tem o discurso analítico a oferecer ao paciente hospitalizado? Como descolar do ―Down‖ e escutar o ―Diogo‖? Se as doenças surgem, as síndromes existem e, se há mudanças corporais e mudanças na relação com o outro, advindos de um abalo das suas identificações, torna-se indispensável um trabalho de reconstrução, pois a falta de significantes, para nomear esse momento na história do sujeito, pode fazer persistir o real como silêncio de um vazio impronunciável. A psicanálise, no hospital, trabalha com esses pacientes na dialética: alienação – separação (ser a doença – estar doente), para possibilitar ao sujeito o caminho da interseção entre esses dois pólos, oferecendo um outro campo. De acordo com Clavreul (1983), a ―Psicanálise é, antes, o avesso da Medicina‖. Jorge (1983) afirma que, no discurso médico, há uma objetividade científica que retira a subjetividade do sujeito, tanto daquele que o enuncia como daquele que o escuta. A fala do sujeito é ouvida para ser descartada, depreendendo-se daí a função silenciadora do discurso médico, que, ao se valer apenas de seus próprios elementos, anula tudo o que nele não possa se inscrever. Dessa forma, o discurso médico reduz o sentido dos diferentes ditos do sujeito àquilo que é passível de ser neste inscrito. Uma "falta de ar‖, juntamente com uma ―dor no peito‖ e ―uma angústia por dentro‖ são reduzidos ao sinal clínico da dispnéia. Do mesmo modo, ―um peso na cabeça‖, ―uma ardência na testa‖ e ―um latejamento na cabeça‖, ―um pensamento que não pára de martelar‖ são reduzidos e nomeados de cefaléia. Jorge (1983) acrescenta que a receita médica é, também, uma ordem médica, afinal prescreve um enunciado dogmático: coma isso, não beba aquilo, não fume, repouse, faça exercícios. O discurso médico, então, refere-se a um discurso dominante, utiliza o 42 outro para impor seus ditames e seus ideais – posição de mestria. É justamente aí que pode-se destacar a distinção entre a psicanálise e a psiquiatria, pois a psicanálise não propõe esse discurso de mestria, portanto, não decide ou impõe o que é melhor para cada sujeito em particular. No decorrer de sua obra, Freud passa a valorizar, não mais a sugestão hipnótica, mas a escuta do sujeito em sua associação livre, regra fundamental da psicanálise. É a passagem de uma posição de compreensão para a de interpretação, e ainda de um ―sujeito que sabe‖, própria do médico, para a do sujeito suposto saber, lugar do psicanalista. Lugar este, que pretendemos, no próximo capítulo, destacar como a posição ocupada pelo analista, também no hospital. 4 – PSICANÁLISE E HOSPITAL Freud (1918), nas Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica, já nos alertava que, futuramente, defrontaríamos ―com a tarefa de adaptarmos nossa técnica às novas condições‖. Ele antecipava a inserção da Psicanálise no âmbito da Saúde Pública: É possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade. Quando isto acontecer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados, de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam tornar-se capazes, pela análise, de resistência e trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres. (FREUD, S. [1918] - Linhas de progresso na terapia psicanalítica). 43 Há noventa e dois anos, Freud antecipava essa inserção da psicanálise no âmbito da saúde. O escrito de 1918 é notável no que tange a esse ponto tanto pela precisão descritiva do cenário em que hoje nos situamos quanto pelo rigor ético que orienta os psicanalistas dessa época futura, que ora constatamos nos tempos atuais. Neste presente trabalho, não vamos nos ater a discussões sobre a saúde pública ou a privada, mas realçaremos essa citação de Freud com a intenção de refletir sobre o que se convencionou chamar de setting analítico. Justamente, por ser umas das justificativas que barraria a entrada de um psicanalista na instituição hospitalar, como se o analista não pudesse fazer psicanálise, ultrapassando as quatro paredes da clínica. 4.1 – Setting analítico. Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse tipo. Esta lacuna na instrução, só pode ser preenchida por um estudo diligente dos jogos travados pelos mestres. As regras que podem ser estabelecidas para o exercício do tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a limitações semelhantes. (Freud, 1911, p.139) A psicanálise de Freud nasceu dentro dos hospitais acerca dos estudos para tentar compreender os fenômenos histéricos. E Lacan desenvolveu seu trabalho no hospital Sainte-Anne. Dessa forma, como surgem as regras que constituem o setting analítico? Freud (1911) evidencia que o instrumento de trabalho do psicanalista é a palavra que desliza na associação livre num contexto transferencial. Mas ele descreve um conjunto de regras que facilitariam a intervenção analítica: tempo, local, postura, dentre outras. 44 Segundo Quinet (1991), Lacan introduz o ato psicanalítico para deslocar a ―psicanálise do âmbito das regras, para situá-la na esfera da ética. O conceito de ato desvela que o dito contrato do início da análise exime o analista da responsabilidade do seu ato – trata-se de um contra-ato‖ (Quinet, 1991, p.10). O que autoriza, então, o analista neste ato? O ato analítico é, por primazia, a passagem de analisante a analista. Ainda de acordo com Quintet (1991), aprendemos que só é possível encontrar-se o ato analítico no início da análise de cada paciente, caso ele tenha se realizado para aquele analista no final de sua própria análise. Ao dirigir uma análise, os atos do analista trazem a marca dessa passagem, mesmo quando a travessia fracassa, segundo Quinet (1991). Sendo o setting analítico um ―contrato‖ que determina o tempo das sessões, a freqüência e etc, como propor ao paciente um tipo de ‗concretização do Outro‘, sendo que o caminho da análise se direciona, justamente, para o confronto com a falta do Outro? Dessa forma, é a formação do analista que permite o ato analítico. Aprendemos que, a própria análise do analista é a condição para seu exercício. Portanto, o que se contrata na psicanálise se resume: o paciente associa livremente e seu analista presta atenção flutuante. Esse é o compromisso primordial na relação transferencial entre paciente e analista. Dessa forma, o setting analítico não é um argumento que impossibilitaria a entrada da psicanálise numa instituição hospitalar. Não se pode abordar o setting como um espaço real, afinal é psíquico, trata-se de uma construção simbólica para o desenvolvimento da análise. 45 4.2 – Não há psicanálise sem transferência. Na psicanálise, o termo ―transferência‖ foi introduzido por Sigmund Freud e Santor Ferenczi, entre 1900 e 1909 para conceituar: ―Um processo constitutivo do tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos objetos.‖ (ROUDINESCO,1998, p.766) A transferência é um dos conceitos cruciais elaborados por Freud no decorrer da sua obra, a partir da sua clínica com pacientes histéricos e considerada uma condição sine qua non num processo anatítico. Mas Freud realça que o manejo desse trabalho – um caminho sinuoso e delicado – tratase de uma dificuldade séria que o analista deve enfrentar. O Vocabulário de psicanálise Laplanche define: ―Designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada. É a transferência no tratamento que os psicanalistas chamam a maior parte das vezes de transferência, sem qualquer outro qualificativo. A transferência é classicamente reconhecida como o terreno em que se dá a problemática de um tratamento psicanalítico, pois são a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução que caracterizam este.‖ (LAPLANCHE E PONTALIS, 1994, p.514) O paciente vê no analista o retorno, a reencarnação de alguma importante figura de sua infância ou passado, transferindo para ele sentimentos e reações que, sem dúvidas, aplicam-se a esse protótipo. Consequentemente, a ambivalência dessa relação também será reproduzida pela transferência, pois chegará o momento em que sua atitude positiva para com o analista se transformará em negativa, adversa e agressiva. Enquanto é positiva, ela é de grande utilidade para o tratamento, modificando toda a situação analítica e 46 realçando o objetivo racional que o paciente tem para ficar sadio. Mas, quando negativa, torna-se um entrave ao tratamento, podendo levar à sua interrupção. No texto, ―Sobre a dinâmica da transferência‖, Freud (1912) tenta discernir a transferência positiva da negativa, descrevendo-as em detalhes: É importante separar uma transferência ―positiva‖ de uma ―negativa‖, a transferência de sentimentos afetuosos da dos sentimentos hostis, e tratar separadamente os dois tipos de transferência para o médico. A transferência positiva ainda se divide em transferência de sentimentos amistosos ou afetuosos que são admissíveis à consciência, e transferência de prolongamentos desses sentimentos no inconsciente. Com referência aos últimos, a análise demonstra que, de modo regular, remontam a fontes eróticas. E somos assim levados à descoberta de que todas as relações emocionais acham-se vinculadas geneticamente à sexualidade e se desenvolveram a partir de desejos puramente sexuais. (...) A psicanálise demonstra-nos que pessoas que em nossa vida real são simplesmente admiradas ou respeitadas podem ainda ser objetos sexuais para nosso inconsciente. Assim, a solução do enigma é que a transferência para o médico só é adequada como resistência ao tratamento quando é uma transferência negativa ou uma transferência positiva de impulsos eróticos recalcados. (FREUD, 1912, p. 116) Dessa forma, ele pontua que o fato de a transferência reanimar imagens infantis pode aparecer em análise como ―a arma mais forte da resistência‖ (FREUD, 1912, p. 115), porque o paciente extrai dos conteúdos passados as suas armas de defesa contra a evolução do tratamento – armas estas que devem se arrancadas uma a uma. Quando fragmentos particularmente aflitivos ou parte do material inconsciente dos complexos infantis estão a ponto de serem transferidos para a figura do analista, a resistência aí se coloca. Assim, a transferência é um paradoxo, pois é o ―motor da análise e o máximo da resistência‖. Afinal, a lógica do inconsciente é paradoxal. (―é você e não é você‖) – o paciente transfere a sua realidade sexual recalcada para sua realidade atual, atualizando os clichês da vida amorosa. Cabe ao analista, suportar esse lugar que lhe é dado, sem saber que lugar é esse. Portanto, a transferência, em Freud, é uma força motriz que tanto serve de trampolin que impulsiona o analisante ao deciframento de suas próprias 47 interpretações fundantes quanto serve de obstáculo à rememoração. O importante será a posição do analista ao manejar a transferência com a intenção de utilizá-la como o instrumento crucial, ―o motor do tratamento‖. Lacan cria os matemas – notações breves sob a forma de letras e números – para viabilizar a transmissão dos conceitos de maneira mais objetiva do que os conteúdos imaginários. Dessa forma, resgato aqui o algoritmo da transferência: S ______________ → Sq s1, s2.......sn Ou seja, o significante da transferência é o significante que o analisante, inconscientemente, apresenta para o analista. Sq é um significante ‗qualquer‘ atribuído ao analista, a partir do qual o analistante representa o analista. ‗Qualquer‘, pois não é o significante do analista, mas sim o significante do sujeito em análise. Tanto que, se o paciente muda de analista, muda-se também o significante. No ensino de Lacan, a transferência ao analista refere-se a um saber que o analisando supõe nele. Mas esse sujeito suposto saber não traz nenhuma certeza ao analisando de que o analista saiba tudo. Pelo contrário, esse saber é bem duvidoso. ―O estabelecimento da transferência no registro do saber através de sua suposição é correlato à delegação àquele que é seu alvo de um bem precioso que causa o desejo, causando, portanto, a própria transferência.‖ (QUINET, 1991. p.34). Dessa forma, acredito na importância de realçar, neste texto, a questão da transferência quando nos referimos caracterizada pelas situações de urgência. a uma instituição hospitalar 48 Lacan rompe com a setting analítico quando enfatiza que o que sustenta um bom trabalho da psicanálise é o manejo da transferência, os fundamentos éticos dos procedimentos técnicos e o desejo do analista. No texto, ―A Direção do tratamento e os princípios de seu poder‖ (1958), Lacan atenta para a direção do tratamento e conduz a ação analítica baseada em três planos: a ―tática‖, a ―estratégia‖ e a ―política‖. Na tática, que consiste na interpretação, o analista é livre para decidir quanto ao momento e ao número de interpretações que fará ao longo desse processo. Contudo, tal tática está subordinada a uma estratégia, que é o manejo da transferência. Lacan recorda que o analista não é o seu dono, mas encontra-se alienado nela. Ele serve de âncora no percurso da análise para a reconstrução da fantasia do paciente, permitindo desdobrar-se sobre a sua pessoa o fenômeno da transferência, tendo em mente que não é de sua pessoa que se trata. Por isso, deve ser bem evidente para onde está dirigindo a análise – a política. Com efeito, a política do analista é seu estilo em manejar a transferência e é isso que carimba o próprio percurso da direção do tratamento. Essa política é a da falta-a-ser que Lacan, naquela época, em 1958, definia o sujeito como tal. É ainda nesse momento que ele aborda a transferência no marco do ser. Pela dimensão de rompimento que o inconsciente suscita no ―ser pensante‖, o sujeito surge como a falta-a-ser, isto é, como efeito do esvaziamento da consistência do ser. Esse processo se refere ao efeito de linguagem sobre o ser vivo. Na busca de sua verdade, o sujeito se dirige ao Outro. Portanto, a transferência insere o analista atribuindo-lhe saber. É nesse sentido que no escrito ―Função e campo da fala e da linguagem‖ (1953), Lacan sublinha que, no início da análise, pode acontecer um ―erro subjetivo‖ (LACAN, 1953, p.309), em que o analisante situa o saber do lado do analista: o Sujeito suposto Saber. Isso expressa o modo pelo qual o sujeito mantém sua relação de objeto. O que só é possível porque logo de início, na experiência psicanalítica, estabelece-se a dimensão da palavra que propicia 49 que o sujeito propriamente dito constitua-se por um discurso que a presença do analista introduz. Dentro desse contexto, a abstinência do analista em responder à demanda de amor do analisante é um elemento importante no manejo da transferência, porque é através desse ―não-agir‖ que ele conduz o tratamento de forma a provocar no sujeito o desejo de descobrir a sua verdade, que nunca poderá ser inteiramente dita, denunciando o impossível da estrutura do inconsciente. Nessa direção, sua função é propiciar o aparecimento da significação do analisante, o que corrobora o pressuposto lacaniano de que ―nada fazemos a não ser dar à fala do sujeito sua pontuação dialética‖ (LACAN, 1953, p.311). Ou seja, é a regra da abstinência do analista que leva o paciente a encontrar a dimensão da ignorância, do seu não-saber que o conduz na busca de sua fala verdadeira, fala de sujeito – sujeito do inconsciente. Por isso, quando um paciente hospitalizado pergunta ao analista ‗por que comigo?‘, não será função do analista responder a essa questão, mas sustentar, sob transferência, tal enigma. Na instituição hospitalar, a escuta do analista busca situar o que é vivido pelo paciente e implicá-lo no percurso que faz na vida para além do adoecer. Segundo Quinet (1991), ―...trata-se de introduzir o sujeito em sua submissão ao desejo como desejo do Outro. A retificação subjetiva aponta que, lá onde o sujeito não pensa, ele escolhe; lá onde pensa, é determinado, introduzindo o sujeito na dimensão do Outro. (QUINET,1991, p.38) Então, quando o paciente questionar ―por que comigo?‖, não será função do analista fornecer respostas a esta pergunta, mas sim sustentá-la para que esta possa transformar-se em um enigma para o sujeito. O analista deve acolher esta demanda de amor, sem, no entanto, satisfazê-la. Através da psicanálise, devemos escutar o paciente, ou seja, saber no seu discurso, qual a posição do sujeito em relação ao Outro da linguagem – dar espaço para este paciente falar e ser escutado é de extrema importância para advir o sujeito do desejo. (MOHALLEM, 1996, p. 32) 50 Dentro de uma Instituição Hospitalar, o analista trabalha com a angústia e com a direção de seu paciente para que este se torne autor da sua própria história, isto é, fale de um outro lugar; para, dessa forma, sair da posição de objeto vitimizado pelo Outro. Essa função do analista se dá através da escuta, pela transferência, proporcionando ao sujeito um outro lugar diferente do lugar do sujeito alienado onde o desejo não aparece. Assim, o sujeito desenvolve a capacidade de aprender sobre si mesmo e sobre o Outro, sempre deslizando na cadeia de significantes. Afinal, a via privilegiada para o trabalho é a via do simbólico. Todo sujeito tem o direito da sua palavra para que ele possa dizer dele. É onde vacila a alienação (―eu não sou exatamente aquilo que você disse‖). De acordo com Marisa Decat1 ―do que herdaste de teu pai, transforme e faça seu‖ trata-se de uma dívida simbólica com os pais, ou seja, o sujeito é capaz de se situar no discurso parental, apontando a própria demanda, da alienação à separação. É como de despir da roupagem que lhe foi atribuída. ―Che Voui?‖(Que queres?) E a angústia emerge nesses momentos de separação, corte ou perda do objeto, quando o sujeito é obrigado a ceder algo precioso, algo cuja perda lhe ameaça de aniquilamento, queda. É nesse sentido que o dispositivo analítico, que convoca o sujeito a falar através associação livre, necessariamente, pressiona-o a um dizer para além dos seus ditos, cuja perda é impossível de deter. O sujeito faz, então, a experiência do encontro com o real, real do qual a angústia é sinal. Com isso na condução de um tratamento, é preciso que o analista seja capaz também de perceber o que cada sujeito pode suportar de angústia, ou melhor, o quanto de angústia é possível de ser experimentada pelo analisante. O manejo da angústia implica o analista operar um modo de sustentação da 1 Discussão com as psicólogas e psicanalistas Marisa Decat e Léa Mohallem no Hospital Mater Dei, Belo Horizonte, MG. 51 palavra, incentivando o analisante a continuar a lidar com o impossível de suportar – o real – através do simbólico. Dessa forma, o psicanalista em ambiente hospitalar pode oferecer um espaço para que o sujeito seja escutado de um lugar diferente da posição de doente ou numerado pelo leito. É ir mais além, é deslizar na palavra que o ajudará a suportar e suavizar a condição humana. Se o sujeito quer saber algo sobre si mesmo, ele vai demandar isso seja na clínica ou no hospital e, dessa forma, a transferência não está atrelada a um ambiente, mas mistura com o próprio sujeito. 4.3 – Contribuição da psicanálise no hospital Na clínica psicanalítica, o sofrimento do sujeito é central. De acordo com Lacan (1964, p.158), ―até certo ponto, sofrer demais é a única justificativa para nossa intervenção‖. Presenciar o sofrimento humano é fato frequente para quem trabalha em uma instituição hospitalar, inclusive para o psicanalista. No hospital, a dimensão do corpo fica escancarada, pois há sempre uma urgência física que justifique uma internação. Porém o que se observa é que nem sempre a causa do sofrimento se associa apenas ao adoecimento orgânico. A escuta psicanalítica oferece um novo cenário dentro do contexto hospitalar, uma vez que a psicanálise foca a escuta do inconsciente. Com essa ferramenta, o psicanalista contribui na elucidação da determinação inconsciente para, assim, minimizar o sofrimento. A contribuição da psicanálise no hospital está na própria origem, quando os sintomas histéricos esbarravam no limite da Medicina. Freud (1893) questionava as nevralgias, anestesias, contraturas, paralisias, ataques histéricos, convulsões epileptoides, perturbações da ordem dos tiques, vômitos crônicos, anorexia e várias formas de perturbação da visão, ou seja, sintomas 52 que desafiavam Freud e a medicina da época. Freud (1888) realçou a etiologia desses sintomas, pois a medicina não conseguia explicá-los, afinal não expressavam nenhuma relação física que descrevesse sua existência. Pelo contrário, sua fenomenologia associava-se ao saber médico sobre a fisiologia do corpo humano. Atualmente, as discussões sobre essa contribuição vêm sendo ampliadas, e Lacan traz importantes elucidações sobre o tema. No texto ―A ciência e a verdade‖, Lacan (1966, p.870) define o ―sujeito da Psicanálise como o sujeito do Inconsciente — ―aquele tomado numa divisão constitutiva‖, entre o saber e a verdade. Lacan retoma a citação freudiana Wo Es war, soll Ich werden como ―(...) lá onde isso estava, lá, como sujeito, devo [eu], advir‖. Essa afirmação refere-se à definição do aparelho psíquico realizada por Freud em 1923, no texto ―O Eu e o Isso‖, em que ele apresenta as instâncias psíquicas do Isso, Eu e Supereu. Dessa forma, Freud e posteriormente Lacan, nos dizem sobre a verdade do sujeito que se encontra justamente nessa outra dimensão, a dimensão Inconsciente. Ou seja, entre o que o sujeito diz e a verdade, há questões de outra ordem e, dentre elas, as que se constituem nas demandas do sujeito àqueles que o tratam. Numa internação hospitalar, pode acontecer de retornar para o sujeito a dimensão do desamparo. Quando aflui numa internação o sofrimento físico e o sofrimento psíquico, produz-se um estado de desamparo, produzindo uma ―urgência subjetiva‖. Essa urgência está ligada à dimensão do encontro com o Real — como Lacan (1976-1977, lição de 16 nov. 1976) o define, ―o que não cessa de não se escrever‖ —, em que o sentido escapa. É a dimensão sempre traumática do encontro com o limite do saber, da vida e da morte. É através da angústia que essas questões se manifestam, gerando efeitos diversos e singulares para cada um. Enfim, o que se presentifica nessas situações, em última instância, é a dimensão da castração, da finitude, pois, como diz Lacan (1964), o encontro com o Real é sempre faltoso e traumático. Dessa forma, para muitos sujeitos, a intensidade da vivência de 53 uma internação torna-se insuportável, causando sofrimento. Nem sempre as defesas psíquicas que o sujeito dispõe para lidar com esse momento contribuem para o seu tratamento. Alberti (1999, p.155) sublinha que ―O trauma é precisamente o momento em que o sujeito que fala não dá conta de dizer, não encontra representantes, significantes para designar uma experiência, seja ela sexual, de dor, de morte ou de perda‖. Ao analista, portanto, cabe escutar as fantasias e sentidos de cada sujeito e acolhê-los sem deixar-se misturar neles. De acordo com Lacan, (1962-1963) é de extrema importância saber que sempre o que é enunciado comporta uma dimensão outra, a do Inconsciente. A clínica psicanalítica escuta situações limites, graves, com histórias trágicas e, com isso, há um risco do analista se deixar impactar por essas situações, comprometendo, assim, a sua escuta. No hospital, esse risco fica ainda mais propício de acontecer. As histórias construídas e as tentativas de atribuição de sentido são formas que o sujeito encontra de dizer de seu desamparo, do encontro com o Real, com a dimensão da castração. E, nesse cenário, uma escuta diferenciada que possa acolher o sujeito e reconhecer sua existência já comporta em si uma dimensão terapêutica do trabalho psicanalítico. A experiência nas instituições hospitalares nos aponta que a psicanálise pode acolher os sujeitos para que, desse encontro, possa advir alguma vicissitude que torne sua angústia mais suportável e apontar para a equipe de saúde que ali há um sujeito que sofre, e que a relação estabelecida por cada um tem efeitos para o paciente e para o próprio profissional: esse é o trabalho do analista no hospital. Dessa forma, para além de um drama na vida de um sujeito, e por mais intenso que isso possa parecer, o analista deve sustentar a dimensão ética a partir do desejo, cujo foco é sempre a escuta do sujeito do inconsciente. Lacan (1959-1960) sublinha que, para além do que é dito no discurso manifesto do paciente, existe uma outra cena, uma outra determinação para as demandas e ações do sujeito: a determinação inconsciente. 54 5 – Documentário: “Do luto à luta” O documentário ―Do luto à luta‖, de Evaldo Mocarzel, lançado no ano de 2005, é uma das suas produções mais pessoais, afinal, ele mesmo reconheceu que o ponto de partida foi o nascimento da sua filha Joana, com Síndrome de Down. Em entrevistas, ele faz uma analogia à experiência do nascimento da sua filha, como um desabamento de um prédio de sessenta andares sobre sua cabeça. Ou seja, um enorme edifício de falta de informação, de ‗não saber‘, do desconhecido de como conviver com uma pessoa deficiente. ―Do luto à luta‖ foi definido por Mocarzel como um filme a que gostaria de ter assistido quando sua filha nasceu. Nenhum outro documentário tinha ousado apresentar de forma tão escancarada os preconceitos, os desafios e sutilezas do universo dos portadores da Síndrome de Down. O documentarista Mocarzel dá voz a eles: convida dois jovens que têm a Síndrome de Down, para representarem no mundo cinematográfico, o papel de um casal de pais que recebem a notícia do nascimento de um filho com a Síndrome. O casal de jovens, que expressa admiração às produções de Spilberg, prepara, roda e discute o pequeno filme sobre o cenário da notícia de um bebê com Síndrome de Down. A inclusão no cinema metaforiza, assim, a batalha pela inclusão social que está no núcleo de ―Do luto à Luta‖. O triunfo de Mocarzel é inegável. Sem exagero, seu filme tocou de forma intensa a conscientização pública em torno dos portadores de Síndrome de Down. Representação disso foi a participação da sua filha, Joana, na telenovela da Globo, ―Páginas da Vida‖ de Manoel Carlos. 6.1 – Luto e a magia das palavras. No texto ―Luto e melancolia‖, Freud (1915) apresenta uma aproximação 55 entre os termos e sublinha algumas diferenças fundamentais. Descreve o luto como ―uma reação à perda de um ente querido, à perda de uma abstração que a represente, como a pátria, a liberdade ou ideal de alguém, e assim por diante‖. Freud realça que o luto não é, obrigatoriamente, um processo patológico, pois, após elaborado o trabalho de luto – ―Trauerarbeit‖ – o sujeito, geralmente, quer investir em outros objetos. O termo Trauerarbeit refere-se à possibilidade de elaborar uma perda. Dessa forma, se o termo usado é ‗trabalho‘, supõe que existe uma forma de reconstruir o objeto via linguagem. Ou seja, o trabalho de luto é uma elaboração da perda significativa na vida do sujeito e a psicanálise aposta na fala, reforçando que a palavra pode vir a realizar tal tarefa. ―Embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico‖. (Freud, 1915, p. 249) Dessa forma, espera-se que, após algum tempo de trabalho de elaboração do luto, o sujeito esteja pronto para dar continuidade ao investimento libidinal em ―objetos substitutos‖. O trabalho de luto refere-se ao desligamento da libido, até então vinculada a um determinado objeto, (sendo importante destacar a dificuldade do abandono de uma posição libidinal), conforme assinala Freud: ―é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto lhes acena‖ (Freud, 1915, p. 250) demandando um tempo específico, subjetivo e particular a cada sujeito: São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. (...) Contudo, o fato é que, quando o trabalho de luto se conclui, o eu fica outra vez livre e desinibido‖. (FREUD, 1915, p.251) De acordo com Freud (1915), quando o sujeito consegue abandonar uma posição libidinal, através do hiperinvestimento e do desligamento em relação 56 ao que o objeto reatualiza, ele começa, então, a investir, livremente, em outros objetos. Isso nos permite dizer que o luto é um trabalho com início, meio e fim. O tempo necessário para realizar um luto varia em cada sujeito e da relação que se tinha com o objeto perdido. Freud considera que o ‗luto normal‘ é aquele que dura de um a dois anos no máximo, mas sabemos que não há um tempo passível de delimitação, a priori, entre o que seria considerado um ‗luto normal‘ e um ‗luto patológico‘. Freud (1915) destaca que há uma certa disposição patológica que algumas pessoas teriam diante de uma perda importante – perda de um ente querido ou alguma abstração, como a pátria, a liberdade ou ideal de alguém – e que resultaria, em vez de um luto, uma melancolia. A melancolia, cuja definição varia inclusive na psiquiatria descritiva, assume várias formas clínicas, cujo agrupamento numa única entidade não parece ter sido estabelecido com certeza, sendo que algumas de suas formas sugerem afecções mais somáticas do que psicogênicas. Freud (1915) limita-se a um pequeno número de casos, nos quais a natureza psicogênica é indiscutível. Caracterizada por um desânimo profundamente penoso, a melancolia também é caracterizada pela cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar e inibição de toda a produtividade, a ponto de o sujeito se recriminar e se degradar, culminando com uma expectativa delirante de punição. Neste trabalho, destacamos o conceito de luto, afinal o próprio nascimento de um filho já implica, naturalmente, um trabalho de luto frente às diversas perdas: a mulher deixa de ser filha para ser MÃE; o pai da recente mãe tornase AVÔ; o irmão da mãe torna-se TIO. E quando nasce um filho com Síndrome de Down? O nascimento de um filho é, certamente, um momento repleto de expectativas na vida de uma família que se vê envolta nas próprias questões narcísicas e edípicas. 57 De acordo com Mathelin (1999), o bebê que nascerá passa a ser idealizado, produzindo nos pais, sonhos, desejos e uma imagem mental do bebê ideal. E Freud (1969), como sempre, clareia nossas questões: A criança terá a vida melhor que seus pais, ela não estará submetida às necessidades que experimentamos como dominando a vida. Doença , morte, renúncia de gozo, restrições à sua própria vontade não valerão para a criança, as leis da natureza como as da sociedade pararão diante dela, ela será realmente de novo o centro e o coração da criação, his majesty the baby... O amor dos pais, tão tocante e no fundo tão infantil, não é nada senão o narcisismo deles que acaba de renascer. ( Freud, 1969, p. 96) É esse narcisismo que é colocado à dura prova quando os pais de uma criança com Síndrome de Down se veem diante do seu filho, internado num hospital, devido às complicações de saúde que a síndrome pode provocar. De acordo com Salgado (2000), pessoas com Síndrome de Down possuem maior risco de sofrer cardiopatias, hipotireoidismo, doenças respiratórias e alterações auditivas devido à frequência de otites serosas. A Sindrome é caracterizada pela hipotonia, obstipação e convulsões. Ele está sofrendo? Perguntam os pais aos médicos. Onde foi parar o trono do bebê, apontado por Freud como ―Sua majestade o bebê‖, a quem são atribuídas todas as perfeições e negados os defeitos? O bebê das promessas e das ilusões? Como investir esse corpo que fere o narcisismo parental? Cabe, então, perguntarmos, como AS PALAVRAS EM TORNO DO LEITO podem dificultar a construção psíquica desses pais? O que essas crianças com Síndrome de Down, quando estão internadas no hospital, têm a nos dizer? De acordo com Winnicott (1988), o psicólogo pode ajudar as mães na sua capacidade de dar cuidados, suficientemente, bons (good enough care). ―Basta se ocupar delas de uma maneira que reconheça a natureza essencial 58 de sua função. Para as mães que não têm isso nelas, não é instruindo-as que as tornaremos aptas a fazê-lo‖ (Winnicott, 1988, p. 121) A presente pesquisa sobre a psicanálise no hospital não pretende antecipar uma necessidade de tratamento analítico para aquela criança com Síndrome de Down internada e seus pais. Porém a psicanálise aposta que a criança ―sujeito‖ deve ser acolhida como portadora de uma história que precede em muito o momento da hospitalização. Essa história cuja estada numa internação será apenas um episódio continuará depois, apesar de... Clarice Lispector, no Livro ―Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres‖ nos transmite uma poética que lhe é própria: ―...uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o ‗apesar de‘ que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida...‖ (Lispector, 1998, p.26) Frente à experiência de uma longa internação num hospital, uma simbolização deve ser possível para que os pais continuem a imaginar essa criança, para que ela não se torne para eles, um doente a reanimar – objeto da medicina – mas que permaneça uma criança: SUA criança. O tratamento dos médicos, portadores do desejo de vida, nem sempre é suficiente também, é preciso para viver inscrever-se numa palavra; na falta disso, o ser humano morre e se ele inscreve-se numa palavra louca, ele torna-se louco. (Wanderley, 1997, p. 131) Duas crianças nascidas com o mesmo peso, com sintomatologia similar, não evoluirão de maneira idêntica, mesmo se elas se beneficiam da mesma qualidade de tratamento. (Wanderley, 1997, p. 131) É exatamente essa a proposta da psicanálise no hospital com crianças com Síndrome de Down: cada corpo é inscrito numa palavra diferente e, por isso, é diferente. E a medicina defronta-se com a verdade do corpo particular de cada um. Cada palavra dita toma um sentido diferente para cada sujeito, pois cada palavra reenvia a uma outra diferente da primeira. E é essa ligação 59 de verdade entre palavra e corpo que o analista, no hospital, vem questionar num serviço de medicina. Psicanálise, medicina e hospital, um trabalho possível em torno do leito da criança com Síndrome de Down, falando-lhes delas, da sua família, dos tratamentos aos quais estão submetidas e das razões da sua hospitalização. 60 6 – RELATO DOS PAIS APAIXONADOS. ―...entre as aleluias e as agonias de ser.‖ (Clarice Lispector, 1998, p.154) Neste capítulo, apresentaremos livros preciosos, em que os pais expressam, num relato autobiográfico, a experiência com os filhos com Síndrome de Down. Cristovão Tezza é um dos mais conceituados escritores brasileiros contemporâneos e ―O filho eterno‖ é uma prova disso. O livro é um corajoso e interessante relato da sua história desde o nascimento do seu filho, narrado em terceira pessoa. Ele inicia, descrevendo sua agonia na sala de espera do hospital. Entre um cigarro e outro, o protagonista está prestes a ter seu primeiro filho: É um papel que representamos, o pai angustiado, a mãe feliz, a criança chorando, o médico sorridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos dá parabéns, a vertigem de um tempo que, agora, se acelera em desespero, tudo girando veloz e inapelavelmente em torno de um bebê, para só estacionar alguns anos depois – às vezes nunca. Há um cenário inteiro montado para o papel e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho também. Ele merecerá respeito. Há um dicionário inteiro de frases adequadas para o nascimento. (Tezza, 2008, p.10) Ao ver o médico, ele pergunta se está tudo bem, mas não tem dúvidas da resposta positiva. Em sua cabeça, já imagina o filho com cinco anos, a cara dele. Enquanto ainda tenta se acostumar com a novidade de ter- se tornado pai, ele tem que se habituar com outra idéia: seria pai de uma criança com síndrome de Down. A notícia o desnorteia e provoca uma enxurrada de emoções contraditórias. ―Um filho é a ideia de um filho; uma mulher é a ideia de uma mulher. Às vezes, as coisas coincidem com a idéia que fazemos dela, às vezes, não.‖ Súbito, a porta se abre e entram os dois médicos... Todos se mobilizam – uma tensão elétrica, súbita, brutal, paralisante, perpassa as almas, enquanto um dos médicos desenrola a criança sobre a cama. Todos esperam. Há um início de preleção, quase religiosa, que ele, entontecido, não consegue ainda sintonizar senão em fragmentos 61 da voz do pediatra: ‗- algumas características importantes, vamos descrever. Observem os olhos, que têm a prega nos cantos e a pálpebra oblíqua... o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro... achatamento da parte posterior do crânio... a hipotonia muscular... a baixa implantação da orelha e...‖ (Tezza, 2008, p.30) A partir desse momento, Tezza escreve com uma dose de agressividade e crueldade para transmitir a vergonha de seu filho e prevê a vertigem de um inferno em cada minuto subsequente de sua vida. Ele acrescenta que ninguém está preparado para um primeiro filho, ―ainda mais para um filho assim, algo que ele simplesmente não consegue transformar em filho‖. No hospital, em torno do leito, Tezza antecipa um futuro trágico para seu filho – ―uma criança que só balbuciará, não terá autonomia nenhuma, o equilíbrio do andar sempre incerto e lento, e se os pais se distraem, eles engordarão como tonéis. Caturros, teimosos, pequenos ogros de boca aberta‖. A criança horrível já ocupava todos os poros da sua vida. Cruel a leitura. Principalmente, quando Tezza expressa entusiasmo nos problemas de saúde e nas internações de seu filho. Ele, mais uma vez, antecipa tragédias. Para ele, um simples resfriado podia se transformar numa pneumonia e evoluir para morte. Ele calculava a morte em questão de horas. E a malformação de origem nessa criança lhe dava uma expectativa de vida muito curta, o que tranqüilizava Tezza, secretamente, por alguns segundos. Os presentes, os pacotinhos, um bonequinho azul na porta do quarto, os enfeites, os chocalhos pendurados, brinquedos, sapatinhos, roupas e babados entram nesse cenário como o investimento narcísico para encobrir a síndrome ― Em casa, na rotina, Tezza ralata o quanto sente dificuldades: casa? Para ele, as informações ainda são poucas e se sente preso aos hospitais, médicos, enfermeiros, tratamentos, remédios, plano de saúde, bulas e farmácias. E nas visitas ao pediatra confirma. Para Tezza, foi necessário, mais uma vez: Nenhuma dúvida. O cariótipo deu mesmo a trissomia do 21. Pai e mãe são tomados pelo silêncio. É preciso esperar para que a pedra pouse vagarosamente no fundo do lago, enterrando-se mais e mais 62 na areia úmida, no limo e no limbo, é preciso sentir a consistência daquele peso irremovível para todo o sempre, preso na alma, antes de dizer alguma coisa. A gente já sabia. (Tezza, 1998, p.66) Tezza acrescenta que, futuramente, pensaria que não bastava a presença da criança e todas as suas evidências? Foi preciso um documento oficial, um papel, um carimbo, uma comprovação ―de um saber inatingível, uma fotografia ilegível‖. Assim, um pai e um filho com Síndrome de Down descobrem, juntos, as dificuldades inúmeras e as saborosas vitórias dessa relação. Tezza aproveita as questões que aparecem pelo caminho nesses 26 anos de seu filho, Felipe, para ressignificar sua própria vida. - Hoje tem jogo, filho! - Hoje tem?! - Tem! Atlético e Fluminense! - Então vamos chamar o Christian!! O Christian é o vizinho atleticano que sempre constrói na casa uma arquibancada de fanáticos. - Sim, ele também vem! - Isso, vamos ganhar de 4 a 0 – e ele mostra a mão esplanada, olha para os dedos, ri e acrescenta: - Opa! Errei! Cinco a zero! - Vai ser um jogo muito difícil – o pai pondera. – Que tal dois a um? O menino pensa. Ergue a mão novamente, agora com três dedos. - Três a zero, só! Que tal? - Tudo bem. Mas vai ser duro. Você está preparado? 63 - Estou! Eu sou forte! – Ele ergue o braço, punho fechado: - Nós vamos conseguir!!! - Vamos ver se a gente ganha. O menino faz que sim e completa, braço erguido, risada solta: - Eles vão ver o que é bom pra tosse!!! O pai sorri também. Tezza nos conta que é a primeira metáfora da vida de seu filho. E para que a imagem não reste arbitrária demais, Felipe dá três tossidinhas marotas. ―Bandeira rubro negra devidamente desfraldada na janela, guerreiros de brincadeira na frente da televisão. O jogo começa, mais uma vez. Nenhum dos dois tem idéia de como vai acabar. E isso é muito bom!‖ Outro livro autobiográfico em que um pai narra a experiência de ter um filho com a síndrome é: ―Síndrome de Down – Relato de um pai apaixonado‖. Rafa é uma criança que nasce num momento em que todos da família encontravam-se, literalmente, em torno dos leitos do hospital. O pai de Rafa, Marcelo Nadur, vivia a dor da recente morte da sua bisavó e, em paralelo, acompanhava sua mãe (a vovó Dayse) nas sessões de quimioterapia. O nascimento de Rafa, nesse momento, ressignificava a vida dessa família. A vovó Dayse o chama de ―remédio, a cura de todos os males‖. O livro nos apresenta uma série de fotos da criança, inclusive no hospital, quando Rafa se submeteu às sessões de luz contra a icterícia diagnosticada. Em torno do leito da criança, o médico antecipava seu futuro: ―... vocês já sabem que o bebê é mongolzinho? Terá comprometimento intelectual, hipotonia, fenda palpebral oblíqua, aumento da vascularização retiniana, microcefalia, hiperextensão articular, mãos largas e dedos curtos, baixa estatura, clinodactilia do quinto dedo, problemas cardíacos, orelhas de implantação baixa... - ―Escrevi tudo e não mostrei para Dani‖ (mãe do Rafa) – relata o pai que, apesar do discurso médico trágico, nomeia esse momento como ―isso não 64 é um bicho de sete cabeças. Deus não me dará um fardo maior do que eu possa carregar‖. Dois livros escritos pelos PAIS que irão questionar, constantemente, o diagnóstico e, desde o nascimento, o bebê irá tornar-se um paciente frequente das clínicas médicas. É a mãe quem vai levantar uma bandeira contra a indiferença social, uma batalha cujo alvo é a saúde de seu filho deficiente. Se o pai se mostra abatido, com uma certa lassidão, a mãe apresenta-se , na maior parte do tempo, exageradamente, lúcida. O que é para a mãe o nascimento de um filho? De acordo com Mannoni (1999), o nascimento de um filho é a repetição da sua própria infância, ocupando um lugar entre seus sonhos perdidos: ―um sonho encarregado de preencher o que ficou vazio no seu próprio passado, uma imagem fantasmática que se sobrepõe à pessoa ‗real‘ do filho‖. E esse filho tem a missão de reparar o que na história se perdeu. E se esse filho nasce com Síndrome de Down? Os livros nos mostram que a mãe viverá, no seu estilo próprio, um drama real que esbarra nas experiências vividas anteriores, no plano fantasmático. O ―Programa da Lurdinha‖ nos apresenta, exatamente, como essa mãe elaborou o ‗doloroso amor materno‘ sobre seu filho Lúcio‘. O livro intitulado: ―Cadê a Síndrome de Down que estava aqui? O gato comeu... Programa da Lurdinha‖ não é um manual com orientações de como cuidar das crianças que têm a Síndrome. Lurdinha nos explica melhor: Se você quer curar o seu filho ou alguém que tenha a Síndrome, não leia este livro; ele não terá para você, a menor valia. Aqui você encontra um apoio, uma orientação. Neste livro, relatamos uma experiência possível de cuidados e educação de uma criança com Síndrome de Down. Certamente, há muitas outras formas de proceder. Sabemos que não há regras e procedimentos fixos e padronizados para o trabalho de promoção do desenvolvimento das crianças em geral. Acreditamos que o mesmo vale para as crianças que apresentam a trissomia do cromossomo 21. A experiência aqui relatada é apenas uma dentre inúmeras possibilidades.‖ (Tunes, 2006, p.11) 65 O livro nos apresenta um programa, desenvolvido pela própria mãe de Lúcio, com atividades de estimulação e técnicas adaptadas e criadas dentro de casa. Tomam-se, como exemplo, as fotos ilustradas no decorrer do livro, em que Lúcio sobe no próprio carrinho, como se fosse uma escada, para destrancar a porta ou acender a luz; fotos de Lúcio sentindo as diferentes texturas no chão (liso, áspero, quente, frio) e o trabalho de equilíbrio no material fabricado por sua mãe. Dessa forma, a particularidade desse livro não é a validade dos procedimentos ou técnicas desenvolvidas, mas o desejo e o investimento que permitiram que essa mãe pudesse ver no seu filho, não a qualidade do tônus ou as falhas, mas admirar-se, como qualquer mãe faz, com as descobertas e gracinhas de cada dia, com a individualidade de Lúcio. Assim, a criança desfruta do trono que lhe cabe sustentado pelo desejo da mãe. 66 7 – NAP (Núcleo de Atendimento ao Paciente): uma construção. Motivada pela presente pesquisa bibliográfica do Mestrado, há um ano, desenvolvi e implementei um Projeto para inserção da Psicologia num hospital privado. Focada na idéia de que, através da oferta, criamos uma demanda, a Psicologia, hoje, se apresenta como um novo setor desse hospital: o NAP – Núcleo de Atendimento ao Paciente. Trata-se de um Hospital Geral que, como qualquer outra instituição hospitalar, tem como clientes sujeitos que apresentam algum acometimento no corpo e que necessitam de diagnóstico e de tratamento médicos (clínico e/ou cirúrgico). O hospital em questão é da rede de hospitais particulares do Rio de Janeiro e vivenciou, recentemente, uma mudança de nome para recolocação no mercado da saúde e construiu cinquenta novos leitos de CTI. Esse hospital é constituído por profissionais que têm diferentes vínculos trabalhistas com a instituição, e ainda, o hospital é aberto a qualquer médico que queira internar seu paciente para a realização de cirurgias ou internações clínicas — chamado de ‗médico assistente‘. A responsabilidade pela internação do paciente é um dos aspectos claramente determinado pela instituição. O hospital entende que essa responsabilidade é sempre: 1) de algum responsável do conhecimento do paciente que assina a internação; 2) da instituição; 3) do médico que está especificado na listagem diária dos pacientes. Então, em termos legais, tanto a instituição quanto a figura de um médico responde técnica e juridicamente pelo tratamento do paciente. O hospital referido tem trinta anos de existência, sendo que há vinte anos funcionava como clínica. Há dez anos tornou-se hospital geral. E há apenas um ano, conta com um Serviço de Psicologia do qual faço parte. São atendidos os pacientes internados e seus familiares em qualquer setor do hospital — no quarto de internação, no CTI, na Unidade Coronariana, na Unidade Semi-intensiva, na Emergência. Considera-se que o Serviço de 67 Psicologia adquiriu boa inserção na instituição e que o fato de se inserir na inauguração do novo nome, com a nova Direção Médica e uma nova administração, contribuiu para isso, pois não se teve que lidar com a resistência para a implantação do Serviço tão frequentemente encontrada em outras instituições nas quais a criação de um Serviço de Psicologia é realizada a posteriori. O adoecimento é um momento de muita intimidade, dor e sofrimento, tanto para o paciente, quanto para sua família. Momento este que já é invadido por muitos fatores inerentes à própria internação, como horários, regras institucionais, procedimentos. Diante disso, é importante que o sujeito saiba que a presença do psicólogo no hospital é uma oferta, e não mais uma obrigação da rotina hospitalar. A dimensão da escolha precisa ser destacada. Outro fator determinante na criação do Serviço de Psicologia nesse hospital diz respeito ao que Freud nomeou como transferência, e que Lacan define, inicialmente, como suposição de saber. Freud já alertava que ela está presente nas relações para além da relação do sujeito com o analista, sendo assim também estabelecida na relação médico-paciente. Lacan em O Seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, diz que a cada vez que o sujeito deposita o suposto saber encarnado em alguém, qualquer que seja, analista ou não, isso significa que a transferência já está estabelecida. Então, quando um médico sugere a visita do psicólogo ao paciente, a entrada no caso é facilitada, pois vem apoiada pela transferência dessa relação. Sabe-se, ainda, com Freud (1912) que a transferência que se estabelece em qualquer relação tem vicissitudes e efeitos importantes e pode ser manejada de forma a favorecer o tratamento do sujeito. Portanto, uma das funções do psicanalista no hospital é transmitir esse saber para a equipe — saber sobre a importância e os efeitos da relação de cada profissional com o paciente. Por isso, em todos os casos, busca-se discutir com o médico e com a equipe questões relevantes e apontar algumas delas por meio de registro em prontuário, visando esclarecer determinados aspectos da dinâmica psíquica do paciente, ajudando, assim, o médico e todos os profissionais de saúde a 68 instrumentalizar esse saber. A confiança que as equipes médicas têm no Serviço de Psicologia facilita os encaminhamentos e a aceitação dos pacientes pela visita do psicólogo. Apesar de a presente dissertação defender a importância da psicanálise no hospital, para a abordagem de crianças com Síndrome de Down internadas, sabemos que a criação do Serviço de Psicologia no hospital vai ‗para além disso‘, afinal, a psicanálise não escuta o ―Down‖, nem o ―tuberculoso‖, nem o ―diabético‖, muito menos ―a criança‖ ou o ―idoso‘... A psicanálise escuta o sujeito do inconsciente. Inclusive, o hospital referido não possui atendimento pediátrico, porém desejo compartilhar com vocês o sucesso dessa minha construção. Afinal, hoje, no final do curso do Mestrado Profissional, recebi o convite para implementar o Serviço em mais três hospitais privados. 69 8 – CONCLUSÃO ―Um passado ainda recente...‖ é a frase citada pela autora RosenbergReiner (2003) para se referir ao ambiente hospitalar, na década de 70, na França, onde os pais das crianças hospitalizadas são apenas tolerados nos horários das visitas, os médicos não explicam muita coisa ou não dizem palavras compreensíveis (eles não disseram nada ou eu não entendi o que eles disseram). Isso nos recorda alguma coisa? Ainda de acordo com a autora, o início do movimento de idéias referentes à qualidade do atendimento às crianças hospitalizadas, na França, é mais tardio que nos países anglo-saxões e escandinavos. Dessa forma, baseado na experiência inglesa, o Ministério do Bem Estar Social Francês publicou, em 1983, uma circular relativa à hospitalização de crianças. A circular constata que a internação de crianças desenvolve problemas de ordem psicológica e afetiva. Com isso, detalham as necessidades da criança e propõem uma série de medidas concretas a fim de melhorar as condições da internação das crianças nos hospitais. A APACHE (Associação para melhoria das condições de hospitalização da criança) é pioneira na batalha para melhorar o ambiente hospitalar para as crianças. A história dessa associação não governamental defende que os profissionais de diversas áreas podem trabalhar em conjunto e suavizar a passagem da criança no hospital. O livro ―Boi da cara preta: crianças no hospital‖ nos apresenta algumas das idéias cruciais levantadas pela bandeira da APACHE que ratificam a presente pesquisa bibliográfica: 1) ―dar lugar central à criança‖ trata-se de considerar sua subjetividade, sua história e não somente sua doença ou deficiência; 2) ―valorizar as experiências positivas‖ refere-se a respeitar as necessidades das crianças, flexibilizando regras e hierarquias do hospital. 70 A especificidade da psicanálise no hospital está caracterizada pela urgência subjetiva e, como aprendemos com Lacan, toda criação surge da urgência. Dessa forma, cabe ao analista no hospital, ter capacidade criativa e ética de amplo conhecimento teórico, espírito de equipe, destituição narcísica e conhecimento das questões do seu processo de análise para construção de uma práxis possível na instituição hospitalar, onde as complexidades são aumentadas com a possibilidade de morte, dor e sofrimentos. Dessa forma, o objetivo da APACHE é entender o ―acolhimento‖ da criança hospitalizada num sentido mais amplo, incluindo todas as fases da internação: a chegada, a permanência, a saída e o retorno da criança à sua casa. Trata-se de entender a dor da criança, reconhecer seu medo, saber sobre o sentimento de impotência que origina a culpabilidade dos pais, sua angústia. A equipe, assim, tenta abordar a criança de uma forma que ultrapasse a gentileza. E, para isso, a APACHE se preocupa com os pequenos detalhes: a decoração familiar no leito, as visitas livres, os telefones à altura das crianças, jogos na sala de atendimento e uma cartilha de informações para as crianças. A referida associação francesa lançou, em 1985, o livro ―Criança no hospital – a terapia pelo jogo‖, propondo a colaboração da ludoterapia com as equipes médicas e com cuidados com os pais. Trata-se de respeitar a criança para os procedimentos a que vai se submeter: exame de sangue, exames invasivos na garganta, sondas, lavagem, anestesias... Inclusive, hoje, baseados nessa abordagem lúdica, alguns hospitais pediátricos do Rio de Janeiro constroem, na recepção, uma mini-réplica de uma ambulância equipada com brinquedos, oferecendo uma mistura de jogos, massinhas e brinquedos que simulam injeção, remédios e equipamentos médicos. A APACHE, portanto, aposta na idéia de preparar a hospitalização de uma criança. Falar com ela sobre o hospital e escutá-la. Permitir que ela exprima seus medos e elabore a SUA maneira de superar a experiência. A psicanálise sustenta, exatamente, esta questão: escutar o horror de todos, na 71 particularidade de cada um. E este trabalho se propôs a apresentar que a dor, o sofrimento e a urgência no hospital engendram uma superação pela palavra. Assim, o psicanalista pode escutar as palavras dos médicos, dos familiares, da equipe e do paciente em torno de um leito de hospital, apostando que a palavra pode ajudar o ser falante a suportar melhor a condição humana. 72 9 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, Sônia. Esse sujeito adolescente, Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 1999. BIANCHETI, L. (1995) Aspectos históricos da educação especial. Revista Brasileira de Educação Especial, São Carlos, vol.2, n.3, p.7-19. BUENO, C.L. A reabilitação profissional e a inserção da pessoa portadora de deficiência no mercado de trabalho. Revista Integração, Brasília, n.13, p.5-8 CAVALCANTE, Fátima Gonçalves. Pessoas muito especiais: a construção social do portador de deficiência a reinvenção da família. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. CIRINO, Oscar (2001). Psicanálise e psiquiatria com desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001 crianças: CLAVREUL, Jean. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. 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