Filosofia como Experimentação à luz da Carta VII: Para além

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Filosofia como Experimentação à luz da Carta VII: Para além
do Problema Escrita versus Oralidade
Leander Alfredo da Silva Barros1 - Universidade Federal de São João del-Rei
RESUMO: Platão, em um trecho da Carta VII, expõe sua crítica ao método escrito das
doutrinas filosóficas, enfatizando, assim, o caráter experimental da filosofia, que se traduz no
exercício do pensar metafísico inaugurado no Ocidente no século V a. C., tão abordado nos
diálogos socráticos. Tomando como ponto de análise principal a referida carta e,
posteriormente, alguns diálogos, pretende-se compreender a postura platônica diante da
filosofia, que, enquanto saber, não está destinada a ser transmitida pela escrita, mas ser
praticada por todos aqueles que a ela se dispõem pelo exercício oral da dialética. Entre os
estudiosos que discutem a existência ou não de doutrinas não escritas de caráter esotérico ou
não e aqueles que afirmam ser os escritos platônicos a validação da sua doutrina, este artigo
pretende adotar uma posição de mediação entre ambas posições, utilizando-se das mesmas
para confirmar a doutrina platônica que adota o método dialético como o autêntico modo para
se filosofar, que se traduz na experimentação, da qual qualquer comunicação mostra-se
insuficiente, dito que, conforme se verifica em Platão, os saberes filosóficos “sérios” são
impressos na alma, obviamente filosófica.
Palavras-chave: Carta VII; Dialética; Escrita; Filosofia; Oralidade.
ABSTRACT: Plato, in a excerpt from the letter VII, talks about his critic to the written
method of the philosophic doctrine, emphasizing the experimental character of the
philosophy, that can be seen in the metaphysics launched in the Occident in the V century
B.C, theme approached in the Socratic dialogs. Taking as the main point of analysis, the
referred letter, and, later, some dialogs, it is intended to understand the platonic posture about
the Philosophy that, as a knowledge, is not meant to be transmitted through written, but to be
practiced for everybody that claim for the oral exercise of dialectic. Among the experts who
study the existence or not of the written doctrines, with a exoteric character or not, and other
who say that the platonic writings are the validation of his doctrine, this article intend to
mediate both positions, using it to confirm the platonic doctrine that adopt the dialectic
method as an authentic method to do philosophy, that can translated in the experiment, from
which any communication is not enough, once, as can be verified in Plato, the “serious”
philosophic knowledge are put in the soul, obviously philosophic.
Key words: Letter VII; Dialectic; Written; Philosophy; Orality.
1
Aluno do Curso de Filosofia da UFSJ, 2° Período. E-mail: [email protected]
BARROS, Leander Alfredo da Silva
- 52 Como consequência de um comércio prolongado e de uma existência dedicada à
meditação de tais problemas é que a verdade brota na alma como a luz nascida de
uma faísca espontânea, para depois crescer sozinha. (PLATÃO, Carta VII, 341d,
1975).
N
o que se refere às interpretações platônicas, muito se tem discutido. Há diversas
correntes que veem no corpus platonicum diversas acuidades que tanto afirmam sua doutrina
quanto a negam. Dentro da vastidão de diálogos, e com tamanha profundidade que deva ser
ressaltada, a Carta VII, sem dúvida, coloca em discussão os objetivos de Platão referentes à
escrita das suas doutrinas filosóficas, nas quais credita e expõe nos diálogos socráticos,
quando diz na mesma carta:
Quanto ficou dito acima foi conversado com Dionísio, apesar de eu não lhe haver
exposto toda a matéria nem ele ter exigido isso de mim. Dava-se ares de saber
muitas coisas e de dominá-las, principalmente as mais importantes, por tê-las
apanhado de ouvido com outras pessoas. Posteriormente soube que chegara a
escrever um tratado acerca das questões aprendidas comigo, que ele apresentava
como trabalho original, não simples reprodução de conversa com estranhos. Mas,
sobre isso nada posso dizer com segurança. O que sei, é que outros já escreveram a
respeito de tais assuntos, porém gente de tanto valor que nem a si mesmo se
conhece. O que estou em condições de afirmar de quantos escreveram e ainda virão
a escrever com a pretensão de conhecer as questões com que me ocupo, quer as
tenham ouvido de mim mesmo ou de outras pessoas, quer as descobrissem por
esforço próprio, é que, no meu modo de pensar, eles não entendem nada de nada de
todas essas questões. De mim pelo menos nunca houve nem haverá nenhum escrito
sobre semelhante matéria. (341b-c, 1975).
Ora, semelhante crítica, apresenta-a também no diálogo Fedro:
Sócrates- É que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto, parecidíssima com
a pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; mas, se
alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa com os
escritos. És inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes; mas se, com o
teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só
respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente
fixados na escrita, rolam daqui dali os discursos, sem o menor discrime tanto por
entre os conhecedores da matéria como os que nada têm que ver com o assunto de
que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não. E no caso de serem
agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão de ajuda paterna, pois
por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer alguém. (275de).
E ainda encontraremos dura crítica na Carta II, que diz:
Reflete nesse ponto e acautela-te para que não venhas algum dia a arrepender-te por
haveres divulgado levianamente tais noções. Para alcançar semelhante desiderato, a
Filosofia como Experimentação à luz da Carta VII: Para além do Problema Escrita versus Oralidade
- 53 primeira medida é nada escreveres, porém guarda tudo de memória, pois não há
meio de evitar que os escritos se tornem conhecidos. Essa, a razão de eu nunca haver
escrito nada acerca de semelhantes questões. Não há escritos de Platão, nem nunca
haverá; o que por aí corre com esse nome é de Sócrates belo e remoçado. (314b- c).
A partir do surgimento dos novos conceitos epistemológicos propostos por Thomas S.
Kuhn, os estudos platônicos passam a ser vistos de outra maneira. A noção de “paradigma” e
de “ciência extraordinária” recai sobre toda a tradição hermenêutica acerca de Platão e de toda
a filosofia antiga. Com isso, apresentam-se alguns problemas, como: a superioridade da
palavra viva, da dialética como método para o autêntico filosofar (oralidade), o valor da
tradição indireta e a possível desvalorização dos diálogos, enquanto transmissores da doutrina
platônica. É evidente que múltiplas interpretações entram em cena nesta discussão acerca de
Platão.2 Porém, nosso objetivo aqui é ter como afirmativa a carta escrita por Platão e
compreender a metafísica presente na dialética que constituirá, conforme o pensamento do
filósofo, o verdadeiro filosofar.
Mas dentre as interpretações possíveis, a que mais nos enquadramos é aquela em que
Platão não estaria preocupado em provocar uma oposição entre a oralidade e a escrita, mas
sim em reafirmar o processo dialético como o único capaz de conduzir o filósofo ao
conhecimento, à busca de verdades inerentes da reflexão própria. O que não se torna claro e
nem é seu desejo, em suas obras, é a existência de um método a priori, estático, para que se
alcance o inteligível; mas isso discutiremos mais adiante.
2
Há, primeiramente o paradigma tradicional que se baseia no platonismo, ou seja, na transmissão dos discípulos
da Academia, que transcreveram as doutrinas não escritas de Platão, como Aristóteles, Espeusipo e Xenócrates.
Já o neoplatonismo concede autarquia aos diálogos, porém se valendo da transmissão indireta das doutrinas não
escritas.
Em meados do século XIX, entra em vigor o paradigma de Schleiermacher, dando ainda preeminência quase
absoluta aos diálogos; por motivos cronológicos e doutrinais, acaba por tornar irrelevantes as doutrinas não
escritas. (REALE, 2004, p. 27.) Há, porém, uma série de problemas, agora realçados pela pesquisa
schleiermacheriana, como problemas em relação à autarquia dos diálogos, cronologia, unidade, historiográficos,
como também problemas filosóficos e a impossibilidade de conciliação entre a tradição indireta e os escritos, ou
seja, uma possível reconciliação dos diálogos com as doutrinas não escritas. (REALE, 2004, p. 50). Veremos
também alguns estudiosos da Escola Platônica de Tübingen no século XX, ao depararem-se com a Carta VII, e o
Fedro, iniciaram uma profunda investigação sobre as Doutrinas não escritas de Platão, a qual gerou divergentes
opiniões acerca do assunto aqui referido e que citaremos algumas vezes. Nestas discussões, encontram-se Gaiser
e Krämer, na contemporaneidade Szlézak e Giovanni Reale são seus sucessores, que tentam superar
Schleirmacher nas questões por ele levantadas. Enfim, novas interpretações se pretendem, no que diz respeito
aos diálogos platônicos, tão obscuros, complexos e contraditórios para muitos estudiosos, e isso é defendido pelo
viés do novo paradigma instaurado na contemporaneidade, propondo uma leitura “esotérica” da filosofia
platônica; logo após as teorias kuhnianas terem ganhado força, o próprio Krämer, irá dizer: “ Uma mudança de
paradigma na ciência depende amiúde, como sabemos a partir de Th. S. Kuhn, de motivos, contingentes e extra
científicos. Nas pesquisa sobre Platão, no momento, existem ainda forças antagônicas e dificuldades que se
opõem à definitiva superação do schleirmacherianismo[...]” (KRÄMER, p.134 apud REALE, 2004, p. 52).
BARROS, Leander Alfredo da Silva
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1 A Carta VII para além de um manifesto político e de uma autobiografia
A carta sétima, que traz à tona os fatos da segunda viagem de Platão à Siracusa, no
governo do tirano Dionísio II, por súplica de Dião que conhecera Platão na sua primeira
viagem ao mesmo local. Além ser um manifesto político e uma autobiografia da política
apregoada por Platão, e que se reflete no seu livro A República, traz, em si, outros objetivos,
como o questionamento e a crítica da validade da escrita filosófica.
No final deste escrito, no qual Platão soube que Dionísio tinha grande apreço pela
filosofia, notou que todas as suas informações a respeito de tais assuntos eram provenientes de
expressões mal compreendidas. Esperava, pois, que, no contato com o filósofo ateniense,
pudesse o tirano se enveredar pelo caminho filosófico árduo e dele nunca mais sair, e também
conforme ele agir em favor da cidade de Siracusa. (cf. 340a- d). Mas, como relata o próprio
Platão, diante da “prova” feita a Dionísio, percebeu-se que este não estava disposto ao
tamanho e gradual esforço exigido para os assuntos filosóficos.
Havia, pois, nos arredores das cidades, comentários de obras escritas pelo próprio
Dionísio de lições aprendidas com o amigo de Dião, o que gera em Platão a base para a crítica
à escrita filosófica, já ressaltada acima. Ainda em continuação do assunto, Platão começa,
ainda que implicitamente, uma discussão acerca do processo dialético (cf. seção 4).
2 Carta VII: Oralidade versus Escrita: Os paradigmas da interpretação
Platônica
Diante de toda problemática trazida pela análise da Carta VII, surgem, a partir do
século XX, novos paradigmas hermenêuticos em relação a toda obra platônica. Há, como já
dissemos, aqueles que buscam, ainda que sem forças, a fundamentação autárquica dos
diálogos, como autênticos difusores da doutrina platônica e conferem a inautenticidade à
Carta VII, e há aqueles que defendem a existência de doutrinas não escritas difundidas por
Platão. Ressaltam, pois, que os diálogos, segundo o novo paradigma adotado, não são base
suficiente para afirmarem doutrina platônica e que tem ainda mais valor a tradição indireta, ou
seja, o platonismo.
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Quanto ao caráter esotérico ou exotérico, há, ainda, demasiadas divergências. De um
lado, acredita-se que Platão possa ter destinado seus escritos ao público, ao alcance de todos,
conferindo-lhes, então, um caráter exotérico, ou destinado suas obras apenas aos iniciados,
aos membros da Academia; também pode não ter tido nenhum de ambos os objetivos. Quanto
a isto, a discussão está ainda em aberto. Convém, porém, ressaltar que há divisões entre os
estudiosos em relação a isso. A classificação ainda não é possível, partindo-se somente da
busca da compreensão nas doutrinas não escritas, que por si só, não conferem este caráter.
Analisando a tradição indireta, é provável que sim, ou seja, que Platão tivesse, sim, momentos
de atividade filosófica na Academia, nos quais doutrinas foram explanadas, e que não se
encontram em nenhum de seus escritos. O que fica demasiadamente claro e relevante é que a
filosofia platônica, como ele próprio atesta na Carta VII, requer demasiado esforço e não se
dirige a qualquer um.
O debate que se instaura sobre o excursus platônico que, aqui, pretendemos lançar luz,
é a crítica que Platão instaura (341b- c) e que, também, é confirmada no Fedro (275d-e).
Conforme o próprio Platão, a escrita é morta, não pode trazer consigo nenhum ensinamento
filosófico; segundo seu autotestemunho, “as coisas mais sérias” ou “ maiores” (os princípios
primeiros), dentre outros (cf. seção 5, p. 14) devem ser confiadas à oralidade e não ao escrito;
para isso, ele irá descrever todo um processo gnosiológico do conhecimento (341c), e isto é
incorreto, inútil, e quem assim age mostra-se descomprometido com a filosofia.
Assim afirma Szlezák:
A persistência no labor ingente do caminho dialético é recompensada pela chegada à
meta. Ainda que a Carta VII se detenha, no excurso filosófico, de forma demorada e
impactante na “debilidade dos logói”, não deixam de constituir para ele sempre uma
premissa inconteste a “faísca” da intelecção e o “saltar” da faísca do conhecimento,
que produzem uma “luz” autoalimentadora na alma e por consequência, a
possibilidade de atingir aquele conhecimento que realmente sacia o anseio da alma
pelo saber [...] Contudo também com Dionísio se debateu não tudo (341 a8)- a
locução denota que aquilo “que Platão levava a sério” [...] abarcava um número
maior de “pontos” de conteúdos distintos. Todos esses pontos tinham de ser
formuláveis pela linguagem [...] Não ocorre uma contradição: os conteúdos da
filosofia oral de Platão são de cunho diferente das ciências das disciplinas. Isso se
mostra no fato de que eles- por causa da debilidade constitutiva dos “logói” e dos
outros meios de conhecimento[...] fundamentalmente não podem ser blindados
contra a possibilidade de serem mal-entendidos e contra refutações erísticas.
(SZLEZÁK, 2011. p. 65-66).
Ao criticar duramente a escrita filosófica, Platão tem em mente os riscos possíveis,
segundo a morbidade da escrita. O escrito não processa na alma o processo dialético, pode,
também, ser alvo de críticas por outros estudiosos, ou por pessoas que não possuem nenhum
conhecimento do assunto. Quando o escrito não cumpre a função que está presente no escrito
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dialético, para o filósofo, ele é um escrito inútil, inconveniente. O que provavelmente
aconteceu, quando Dionísio ousou tentar escrever o que ouvira de Platão, incorrendo em erro,
porque o escrito não traduziu, obviamente, tudo o que o tirano conseguiu apreender.
Conforme Mannon, ousa saber o que não sabe por meio da escrita, ela é fonte de
vanglória, ela é contrária às virtudes ético-pedagógicas, tem a intenção de imortalizar o que
não é imortalizado, ou seja: o conhecimento (MANNON, 1992, p.18-19). Aliado a seu mestre
Sócrates, convém aludir que Platão também preferira a oralidade e a erradicação de doutrinas
escritas. Apesar de ser um jogo muito belo do autor, que segue regras sérias, ele é sempre um
“mitologizar” (narrar) e está sempre preso ao “fantasma” autoral, pois por si só não se
defende, nele estão ausentes, muitas vezes, clareza e completude. Ele não é digno de guardar
em si “as coisas de maior valor” de um filósofo. (cf. REALE, 2004, p. 54-67).
Afirma assim ainda Szllezák:
Esses textos (Fedro, Carta VII)- grifo nosso- fazem valer que a escrita dá aos
leitores a falsa impressão de possuir um saber que não adquiriram por si mesmos ao
preço de uma dialética ativa. O diálogo platônico aparece então como um modo de
utilizar a escrita à guisa de um catalisador que suscita um exame autônomo e
corrige assim os defeitos habituais deste meio de comunicação. Essa opinião
remonta a Schleiermacher no começo do século XIX (1997, apud GILL 2011, p.
57).
Ao apressar-se, Dionísio errou o caminho filosófico, que é tomado pela persistência
que deve ter, aquele que no caminho dialético envereda-se. Ele não se submeteu à “prova” da
qual Platão diz no mesmo ofício, porque a filosofia é penosa, trabalhosa e não admite
descanso. A oralidade, então, se mostra em vantagem à escrita, porque ela não é enganadora,
mas busca a verdade por meio da dialética; é um compromisso sério e penoso e um eficaz
método para compreender as coisas que se infundem na alma. Dela se extrai aquilo que, na
escrita, fica à margem, ou mesmo obscuro, e, com ela, se obtém os “melhores frutos”, como
vemos no Fedro (276a-e).
A Carta VII, em consonância com o Fedro, como vimos, nos propõe uma nova análise
de toda a doutrina platônica. Já que Platão entra em choque com a escritura da filosofia, como
atestam então os diálogos, por qual motivo ele se deteve em escrever, por meio do
personagem Sócrates, doutrinas filosóficas? Seriam mesmo doutrinas o que ele queria expor?
Haveria outros modos de se compreender Platão? Escrita ou Oralidade. Esses e demais
questionamentos só encontram sentido, quando analisamos a própria doutrina, ou seja,
recorrendo aos diálogos e almejando compreender o processo dialético; a partir disso,
poderemos afirmar algumas posições que nos direcionarão às respostas de tais proposições.
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3 A elevação da dialética como autêntico método filosófico: filosofia como
experimentação
No próprio desenrolar da Carta VII, Platão parece demonstrar o caminho que se deve
percorrer, no que diz respeito à atividade filosófica. A defesa da atividade oral é nitidamente
exposta, a experiência do dialético passa, então, a ser exposta, é metáfora da “luz” que se
acende na alma, como uma faísca a partir da reflexão dos assuntos filosóficos; ela é
espontânea e cresce sozinha. (341d).
Mais adiante, enumera os elementos necessários para alcançar o conhecimento de
cada ser: o nome, a definição, a imagem, o conhecimento e a coisa em si (341a- b). Visto isso,
podemos inferir daí que Platão busca descrever o processo dialético; mais adiante, ainda diz:
[...] a mais convincente demonstração é a que mencionamos há pouco: como há dois
princípios, a essência e a qualidade, o que a alma procura conhecer não é a
qualidade, mas, a essência. Ora, justamente o que cada um dos quatro elementos
apresenta à alma, nos raciocínios e nos fatos, é o que ela não procura, e como tudo o
que é expresso ou manifesto é facilmente refutável pelos sentidos, todo o mundo,
por assim dizer, se enche de obscuridades e de incertezas[...] Só depois de os
esfregarmos, por assim dizer, uns nos outros, e compararmos nomes, definições,
visões, sensações e de discuti-los nesses colóquios amistosos em que perguntas e
respostas se formulam sem o menor ressaibo de inveja, é que brilham sobre cada
objeto a sabedoria e o entendimento, com a tensão máxima de que for capaz a
inteligência humana (343b-c, 344b-c).
Platão, ao demonstrar sua crítica à escrita, não tem por objetivo levá-la ao total
descrédito. O que pretende dizer é que muitas das coisas, ou muito do conhecimento que
temos das coisas, encontra-se tão absorvido e confuso dentre os quatro primeiros elementos, o
nome, os conceitos, as imagens, no conhecimento prévio. Com isso, ofuscamos a “coisa em
si”, nos distanciamos do verdadeiro ser das coisas e não buscamos conhecer a essência, a qual
alma anseia.
Esta experiência de ir ao encontro da essência obviamente só é permissível no âmbito
da linguagem, e nisto qualquer comunicação se mostra ineficaz. Como o próprio Platão, é
necessário nos colocarmos nestes “colóquios amistosos”, nos quais os logói (são
aprimorados). Inseridos na multiplicidade de definições, só a partir do exercício dialético
nosso saber se configurará com a verdadeira sabedoria, com o verdadeiro entendimento.
Vemos no Livro VI da República o exercício dialético ético-pedagógico no qual
Sócrates busca inserir Gláucon, ao demonstrar-lhe a grandeza do Bem, o princípio que
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propicia a contemplação das essências. Entretanto, contemplação de natureza muito maior que
a essência e com ela não se confunde, assim como o Sol está entre a visão e a coisa vista, mas
não é sequer nenhuma delas, assim:
- Pois bem! Eis o que deves afirmar... É a ideia do bem que confere verdade ao que
está sendo conhecido e capacidade ao que conhece. Deves pensá-lo como causa da
ciência e da verdade, na medida em que esta é conhecida, mas, embora a ciência e a
verdade sejam belas, pensarás com acerto se pensares que a ideia do bem não se
confunde com elas e as supera em beleza. Como aqui é correto considerar que a luz
e a visão são semelhantes ao sol mas não é correto tê-las como o sol, assim também
é correto considerar que lá sejam semelhantes ao bem mas não é correto considerar
que uma outra seja um bem. Ao contrário, deve-se atribuir um valor ainda maior à
natureza do bem (508e-509a).
Este caminho ascendente da Alegoria do Sol, do sensível-inteligível proposto por
Platão, nada tem de dual e consiste em negar toda a multiplicidade em direção ao Uno. Ou,
seja, partindo das hipóteses, das ideias superiores às inferiores, tem como objetivo a ciência
suprema, de caráter noético, cujo objetivo somente o filósofo pelo exercício dialético pode
alcançar. Muitos homens, porém, ficam à margem das opiniões, e alguns matemáticos chegam
até a dianóia3. Ou seja, a experiência que a doutrina platônica propõe é a reminiscência, uma
gnosiologia a partir da experiência da alma que busca conhecer, intermediária entre o saber e
o não saber.
Analogicamente, na Alegoria da linha, Platão vê, nos seres vivos, artefatos, logo após
nas hipóteses, imagens, ideias e sombras degraus (seções) dos quais a alma tenta superar-se,
indo de encontro ao inteligível, ao princípio (509e-511a). A alma fica presa somente às
hipóteses e, daí, não prossegue, não vai em direção ao princípio e, na maioria das vezes, está
presa às imagens (êidos) que os objetos imitam (511a); disto se faz necessário compreender
que:
[...] a seção das coisas inteligíveis é aquela em que a própria razão que as apreende
com a força dialética, considerando as hipóteses não como princípios, mas,
realmente como hipóteses, como degraus e pontos de apoio, para chegar ao princípio
de tudo, aquele que não admite hipóteses. Num movimento inverso, por sua vez, vai
descendo na direção do fim e, sem servir-se de nada que seja sensível, mas apenas
das próprias ideias, por meio delas e por causa delas, acaba por chegar às ideias.
(511b- c).
Consideremos bem que a dialética, aqui, é apresentada como “força” geratriz do
movimento que conduz ao princípio a alma filosófica. Inserido numa tradição órfico3
São virtudes do pensamento que estão abaixo da ciência/ inteligência suprema (noética), é um conhecimento
mediano, entre a inteligência suprema e as opiniões.
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pitagórica, Platão traz, para o cerne de sua doutrina, a alma capaz de vivenciar experiências de
reminiscências, que, mediante ao exercício dialético, poderá alcançar graus do inteligível; por
isso, sensível-inteligível unem-se numa mesma e única dimensão do processo vivido pelas
almas. Neste trecho, também, o filósofo traça o caminho descendente, ou a diaíresis da alma
filosófica que, após alcançar o Uno, parte em retorno até às ideias e já não se contenta
somente com o sensível. Devido à debilidade da sua alma e da sua corporeidade, não pode
permanecer no inteligível, que só se alcança pelo esforço contínuo, precisa voltar novamente
às idéias e ao sensível.
A experiência também presente no Livro VII da República reforça a importância do
exercício dialético como caracterização do método filosófico excelente. Na Alegoria da
Caverna, na qual os prisioneiros só enxergam (prisão) as “sombras” (ideias) da fogueira
(poder do Sol) e creditam nela o “ser” de tudo que existe, e quando um dos prisioneiros se
depara com a realidade (inteligível) e pode vislumbrá-la, é demasiadamente doído, forçoso.
Na educação filosófica, é preciso sair desta “caverna” subterrânea na qual alguns
homens estão prisioneiros e redirecionar o “olhar”. Forçoso olhar que implica sair do visível,
do mais próximo, da visão mais “simples” como a do prisioneiro e ir ao encontro do mais
inteligível, até o mais profundo da alma. Este exercício constante, do qual o filósofo é
praticante, é próprio da experiência, que vê Platão como o limite entre o dizível e o indizível,
quando diz:
- E então? A essa caminhada não chamas de dialética?
- Sem dúvida.
- Libertar-se dos grilhões, disse eu, voltar-se das sombras para as imagens e para a
luz, ascender do subterrâneo ao sol, sendo ainda impossível olhar na direção dos
animais, das plantas, e da luz do sol, olhar para as imagens divinas na água e para as
sombras dos seres, mas não para as sombras das figuras projetadas por essa outra luz
que, comparada à do sol, é uma imagem dele. Todo esse empenho com os estudos de
que falamos tem a capacidade de elevar a melhor parte da alma até a contemplação
do que há de excelente nos seres, do mesmo modo que, naquele momento, elevou o
mais preciso órgão do corpo na direção da contemplação do que há de mais
luminoso no âmbito corpóreo e visível (532b-d).
Na reflexão incitada no diálogo sobre a própria dialética, surge, então, do próprio
Gláucon, a inquietação pela descrição de semelhante método, o caminho (páthos) a ser
traçado, o início e o fim do caminho. Aqui, para nós, encontra-se o ponto máximo da
discussão sobre a ineficácia das comunicações dos conteúdos filosóficos, quando Sócrates
mesmo diz:
- Não mais, meu caro Gláucon, disse eu, serás capaz de acompanhar-me. Não porque
de minha parte me falte boa vontade... Não verias mais uma imagem do que estamos
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- 60 falando, mas a própria verdade, pelo menos segundo me parece. Se é realmente
assim ou não, ainda não vale a pena afirmar, mas deve-se afirmar que se verá algo
como isso. Não é verdade?
- Como não?
- E eu só a capacidade dialética a tornaria visível ao que tem experiência nas
ciências de que falamos, mas, por outra via de forma alguma?[...] (533a).
A experiência, então, por mais que se funde na dialética, toma, aqui, caráter
individual, pois o conhecimento formar-se-á em cada alma. Não há mais um modo de dizer
aquilo é indizível e que é uma experiência tão verdadeira, mas particular. Contudo, não se
dispensa a relevância do exercício dialético, do interminável processo experimental da alma
filosófica. Não há, pois, um método estabelecido, ele se faz, partindo do mais baixo ao mais
alto, redirecionando o olhar. Mas diante disso, de que forma agirá o homem? Bastará somente
o discurso oral? Como deve ser esta educação filosófica?
4 Uma metafísica educacional: Para além da escritura e da oralidade
Estão longe de ser uma mais relevante que a outra, exclui-se a ideia de serem
antípodas oralidade e escrita. Visto que, a dialética é o exercício, ou o método por excelência
filosófico. Que além de um simples método, é acontecimento, é o extraordinário da dimensão
humana que brota quando se alcança a verdade, o verdadeiro conhecimento.
Ainda no Livro VII da República é lançada a seguinte questão:
- A tarefa que cabe a nós, fundadores que somos, disse eu, é obrigar que as melhores
naturezas cheguem ao aprendizado que, no que falávamos há pouco, dávamos como
o melhor de todos, isto é, ver o bem e fazer aquela caminhada para o alto e, depois
que a fizerem e já tiverem contemplado suficientemente o bem, não devemos
permitir-lhes o que hoje permitimos.
- O quê?
- Que permaneçam lá, disse eu, e não queiram descer outra vez para junto daqueles
prisioneiros, nem partilhar com eles das labutas e das honras, sejam elas de pouco ou
muito valor (519d).
Torna-se necessário, para Platão, a psicagogia filosófica aqui. Não basta a
experimentação individual, o filósofo deve regressar à caverna, porque sua dimensão é
corpórea também, para tornar efetiva sua dimensão humana, configura-se, enquanto cidadão,
na sua politeia. O filósofo tem por missão também educar para dialética, não como um saber
que se aplica, que é pura teoria e depois prática. Na filosofia platônica, está em questão o todo
do homem, a compreensão de si mesmo, partindo de si para compreender o mundo.
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No que concerne à escrita e à oralidade, temos um problema, que vai além da
credibilidade dos diálogos, ou das doutrinas não escritas da tradição indireta. O que podemos
inferir, e aqui apresentando apenas uma interpretação que não se posiciona a favor de
nenhuma das antípodas, é que Platão não proíbe a escrita, mas a vê muito mais irrelevante e
muito mais próxima do erro, e de apresentar um saber falseado perante a oralidade, e não se
conforma à dialética filosófica da qual é defensor. Somos obrigados a concordar com
Trabattoni, quando enfatiza esta questão:
Antes de mais nada há um problemas de tradução, porque os estudiosos estão
indecisos entre entender que a ciência platônica não é ensinável, diferentemente de
todas as outras ciências (que o são), ou que é ensinável, mas não do modo em que o
são as outras ciências. Mas, do ponto de vista do sentido, isso não é essencial,
porque a coisa mais importante é apreender a diferença, quem em todo caso existe,
entre o modo platônico de ensinar e o das outras ciências[...] Ora exatamente essa é
a posição em que se colocaram os tubingueses. Sua exigência plenamente
justificada, de dar uma importância adequada ás críticas de Platão relativamente à
escrita, e sua tentativa de daí extrair uma espécie de ponto arquimediano para
compreender de modo novo toda a filosofia platônica, traduz-se, paradoxalmente, no
sue contrário: a malograda compreensão dos motivos teóricos que estão na base
daquelas críticas termina, na verdade, por colocá-los nos antípodas, onde gostariam
de estar, isto é, no ponto preciso onde estão aqueles que, nas palavras de Platão,
“não compreenderam nada das coisas que muito lhe interessam” (2003, 179-180).
De nada, porém, adianta dar total crédito a qualquer comunicação. Tanto a escrita
como a oralidade se mostram como insuficientes, como ineficazes, quando desprovidas desta
ação ético-pedagógica que leva o homem à dialética, ao esforço filosófico, para que, assim, se
depare com as coisas em si mesmas. Assim, estaremos no caminho contrário ao que Platão
propõe como possibilidade mais próxima da filosofia, contudo sem prévias sobre o caminho,
que pode ser sinuoso, e a saída completamente obscura.
[...] Na “sétima carta”, determina o filosofar, em sua mais interna essência, como o
devir participativo do homem na iluminação, semelhante a um raio que lhe
sobrevém, arrancando-o do chão. “ Não dá para dizer e ensinar (a filosofia) como
um outro saber, mas, somente a partir de um constante acompanhamento e uma
longa convivência com as suas questões, de repente como que por um salto de uma
faísca, acende na alma uma luz que se alimenta de si mesma...”[...] O que significa
que para Platão, o problema da instrução e da formação do homem não é antes de
tudo uma questão de “aplicação” de uma filosofia[...] para Platão a filosofia é toda
ela, original e indissociavelmente, questão do ser e autocompreensão do homem. A
essência do homem está segura em sua abertura para o mundo. A filosofia platônica
é originalmente tanto teoria das ideias como também política, Paideia é a fundação
da humanidade na verdade do todo (FINK, 1970, p. 25).
Na metáfora da centelha, da Carta VII, fica claro que, quando tenho as possibilidades
do conhecimento (gravetos), nada se garante que, ao tentar incinerá-los, deles irão sair o fogo
BARROS, Leander Alfredo da Silva
- 62 -
(conhecimento). Tudo acontecerá por fruto de uma causa natural (conhecimento já presente na
alma). Esquecer é próprio da filosofia platônica, que vê na alma a possibilidade de
rememoração daquilo que está presente nela mesma, nas experiências já vividas
(metempsicose). Por isso, a escrita não é propícia para a dialética, muito menos é possível
garantir que o outro alcance o conhecimento, mesmo que, nisso, haja demasiado empenho.
Tudo dependerá do saber que tem residência na alma; disto convém compreender a natureza
da filosofia de Platão, para se concluir que, dela, nada se pode afirmar com plena clareza
(TRABATTONI, 2003, 178-180).
Para tornar evidente que o discurso (logói) traduzido de forma oral não é suficiente,
tomemos como exemplo a sofística, tão combatida por Sócrates e seus discípulos; em nada
difere dos erros que a escrita pode obter, como o falseamento da verdade, uma cópia do que
seja a verdade, a confusão conforme alerta Platão dos “quatro elementos” apresentados na
Carta VII, porque:
Se imitar é reproduzir, por semelhança, um modelo, o uso do paradigma indica uma
ação mimética, o que nos leva afirmar a ação do dialético, como parcialmente
imitativa, na medida em que ele domina uma ação técnica com cópias, modelos,
regras, rotinas e fins. No entanto, seus objetivos escapam das causas nas quais a
techné como produção está presa (a matéria, a forma, o trabalho e o objeto
produzido para fins crematísticos, por exemplo). Como o sofista, o dialético é um
técnico no sentido de aquisição (e não da fabricação, da caça à alma do discípulo,
mas, à diferença do sofista, essa caça tem o intuito de despertá-la da letargia em que
se encontra, fazendo com que o discípulo possa ver suas próprias ideias [...] Esse
télos sabemos está ausente no sofista[...] O dialético é também um legislador quando
cria paradigmas, quando dirige à alma à aporia, quando trabalha com a linguagem
com o intuito de demonstrar a sua força, sua fraqueza, sua ambiguidade, tentando
transcendê-la , o que não ocorre com o sofista [...] (ANDRADE, 1993, p. 147-148).
A oralidade, então, apresenta demasiados perigos perante a dialética. Ao usar os seus
dissói logon, os sofistas buscam persuadir, aproveitando da debilidade, da fraqueza das
palavras, apresentando uma falsa verdade, em conformismo com interesses próprios, dos
quais os cidadãos tomarão as consequências. Na perspectiva dialética platônica, o objetivo
(télos) é outro. É a partir do próprio sujeito, do que está inato em si, que está latente, para o
objeto, que é senão o próprio filósofo, contrariamente à sofística, na qual cada um se vê mais
sábio a ponto de se impor e educar aos seus discípulos.
A dialética pretende tirar o homem do nível das sombras, do mutável e da
impermanência do devir, das opiniões (doxái); traz à tona o que há de mais divino na alma
humana, que precisa “vir à luz”. Por isso, não se conforma com o ideal sofista, e é esse é um
grande perigo em relação à filosofia platônica, quando se defende a total supremacia da
oralidade enquanto comunicação filosófica suprema distanciada dos ideais dialéticos. “Sabem
Filosofia como Experimentação à luz da Carta VII: Para além do Problema Escrita versus Oralidade
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bem o sofista e Platão que o logos é um phármakon e a escolha de seu uso faz o bom e o mau
médico” (ANDRADE, 1993, p. 148). Visto isso, oralidade e escrita podem atuar como
simulacros da verdade.
5 Considerações Finais
Ao final deste estudo, somos obrigados a dar voz a Hans-Georg Gadamer:
O problema geral da interpretação platônica tal como se nos apresenta hoje, funda-se
sobre a obscura relação existente entre a obra dialógica e a doutrina de Platão, que
só conhecemos por uma tradição indireta (GADAMER apud REALE, 2004, p. 24).
Estão tão imbricadas na filosofia platônica: educação, ontologia, filosofia e política,
que se torna extremamente dificultoso construir um paradigma hermenêutico acerca dos
conhecimentos filosóficos transmitidos por Platão.
Por fundar-se em uma filosofia da experimentação, na qual a experiência ganha o
lugar da verbalização escrita ou não, torna-se difícil seu estudo, mas nunca impossível ou
desnecessário. Por mais que a defesa da autarquia dialógica seja ultrapassada e sem mais
sentido, mostra-se também precipitado atribuir à tradição indireta a explicação, do que, em
certo momento, não se é mais explicável, e sim fruto de uma vivência.
Como querer “paradigmatizar” um autor tão controverso, tão cheio de aporias, que ora
se afirma, ora se nega? Mas, eis a questão: é justamente por levar tão a sério o compromisso
filosófico, por querer “filosofar por meio da metafísica da luz”, da “centelha” imediata, que se
torna impossível verbalizar algo que é tão próprio da dimensão humana, da alma filosófica a
ser educada, que é impossível traçar um caminho, pois nunca se sabe se a direção mudará! No
noético, não se verbaliza, é impossível. A Carta VII, o Fedro, e A República, são exemplos
claros disso, Andrade assim afirma:
Na Carta VII Platão enumera cinco degraus para o conhecimento, começando com o
nome da coisa, seguido pela definição dela, depois pela sua simples figura para,
então, chegar à chamada ciência, o que acontece na dóxa alêthes. Somente no quinto
degrau o conhecimento da ousía é alcançadosem verbalização, porque noético. A
bem dizer os quatro graus da República não deixam de seguir os cinco da Carta VII.
Se atentarmos para o fato de que “paradigmatizar” é saber usar da ambiguidade da
BARROS, Leander Alfredo da Silva
- 64 linguagem até onde possa provocar a alma, e essa técnica tem que ser abandonada
no momento em que nenhum suporte sensível-verbal for necessário nessa
ascendência. No quarto degrau, quando o esforço dianoético se aproxima do seu fim,
o conhecimento transforma-se, na medida do possível, no encontro da verdade com
a opinião, criando a “opinião verdadeira”. Nenhum “resto” de paradigma ou aporia
permanece nesse momento (ANDRADE, 1993, p. 151-152).
Dentre as variadas formas interpretativas, cada uma salvar-se-á conforme os aspectos
convenientes que mais lhe aprouverem, e renegar-se-á tudo àquilo que parece obscuro; mas a
obscuridade está em “jogo” no corpus platonicum como em nenhum outro, porque será só a
partir daí que irá se fazer a “luz”. Segundo Fink (1970, p. 23), “Filosofar é a forma humana de
seguir pela clareira do mundo”. É um acontecimento espontâneo, excitante, que em nada é
soberbo como a ciência atual, porque nunca se tem a garantia de como se faz este saber, mas
só se sabe praticando, dialogicamente, redirecionando o olhar para o mais “alto”, um
verdadeiro posicionamento radical perante o questionamento, a partir de si próprio, ou seja,
dotada do caráter parturiente.
Aquilo em que, na verdade, errara o tirano Dionísio é querer transmitir uma
experiência, só pode ser descrita na experiência do inteligível e a isto conferir caráter de
verdadeiro conhecimento. Como bem elenca Reale, o que provavelmente tentara explicar na
comunicação escrita seria o Uno, fundamentação da realidade, o Bem, verdade da virtude e do
vício, o falso e o verdadeiro de tudo que existe, os princípios primeiros da realidade, dentre
outros (REALE, 2004, p. 73). Todos estes conteúdos, que para Platão só encontram a
plenitude do esclarecimento dentro da discussão, ou melhor, do movimento da discussão
dialética.
Não há como conformar o saber platônico à ciência, cujo domínio humano busca
também possível. Ela carrega em si um “demônio”. Como a sacerdotisa da sabedoria apolínea
Pítia, que diz a verdade de modo controverso, turvo, como Hermes, que diz a verdade, mas
não na sua totalidade. É como a sibila que “diz pelas entrelinhas”; é sempre um jogo que
busca decifrar, é sempre enigmático. Entre o esoterismo e o exoterismo, não damos
preferência a nenhum, pois no que diz respeito à filosofia platônica, tudo está relacionado à
alma do filósofo, que se deixa penetrar pelo filete da “luz”, pela “centelha” espontânea, que só
alcança o verdadeiro saber por meio do acontecer do movimento dialético, a partir do qual o
verdadeiro conhecimento grava-se na alma.
Filosofia como Experimentação à luz da Carta VII: Para além do Problema Escrita versus Oralidade
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Submetido em: 29/04/2013
Aceito em: 09/12/2013
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