documento integral - Escola Superior de Biotecnologia

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Magazine da SPM 2016 (5) 18.11
Resistência a Antibióticos no Ambiente: Uma Questão de Saúde
Pública
C.M. Manaia
Universidade Católica Portuguesa, CBQF - Centro de Biotecnologia e Química Fina - Laboratório Associado, Escola
Superior de Biotecnologia, Porto, Portugal
correspondência: [email protected]
A proliferação e dispersão de bactérias resistentes a antibióticos ensombra os grandes sucessos
alcançados pela medicina ao longo dos últimos anos. De forte ameaça clínica, decorridos 70 anos
sobre o uso regular de antibióticos, as bactérias resistentes aos antibióticos e os seus genes
passaram a importantes contaminantes ambientais. O perigo que representam é agravado pela
reconhecida capacidade de propagação e adaptação que caracteriza as bactérias. Este artigo faz
uma breve reflexão sobre os problemas e possíveis soluções que envolvem a questão da
resistência a antibióticos no ambiente.
Os
antibióticos
revolucionaram
a
medicina
O uso de antibióticos no tratamento e
prevenção de infecções bacterianas foi um
dos marcos mais importantes na história da
medicina, permitindo não só tratar infecções
outrora fatais, mas também desenvolver
intervenções
invasivas,
em
particular
processos cirúrgicos, com elevado risco de
infecção. Perante o enorme sucesso
terapêutico dos antibióticos, ao longo de
alguns anos a indústria farmacêutica investiu
entusiasticamente na procura e produção de
novos princípios activos. Numa onda de
entusiasmo crescente, percebia-se que, para
além de grande parte do investimento poder
ser rentabilizado ao nível da medicina
humana e veterinária, outras aplicações
garantiam ainda maiores margens de lucro.
O uso de antibióticos como factores
promotores de crescimento em pecuária
representava uma importante área de
mercado. Esta prática manter-se-ia na União
Europeia até ao ano de 2006 e até aos
nossos dias noutras áreas do globo (Cantas
et al., 2013). Hoje constata-se que,
paradoxalmente, a maior razão para o
fracasso dos antibióticos como agentes
terapêuticos pode ter sido justamente o
grande sucesso que tiveram nas primeiras
décadas da sua utilização (Clatworthy et al.,
2007).
Os antibióticos
Pandora?
abriram
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a
caixa
de
Muitos antibióticos são produzidos na
natureza por fungos e por bactérias e
portanto a capacidade para conviver com
diferentes tipos de moléculas com actividade
antimicrobiana encontra-se codificada nos
genomas de diferentes microrganismos
(D’Costa et al., 2006; Dantas et al., 2008).
Elementos genéticos muito semelhantes aos
genes de resistência que hoje ocorrem em
bactérias
patogénicas,
podem
ser
encontrados em sedimentos de pergelissolo
(permafrost) com mais de 30 000 anos,
demonstrando que, além de natural, a
informação genética responsável pela
resistência a antibióticos é também ancestral
(D’Costa et al., 2011). O que aconteceu ao
longo dos 70 anos de uso de antibióticos
parece poder resumir-se de uma forma muito
simples – o uso massivo e indiscriminado de
antibióticos levou a que no corpo humano, de
animais ou no ambiente, algumas linhagens
de bactérias resistentes a antibióticos
proliferassem abundantemente, invadindo
locais onde antes não existiam, nem tais
bactérias nem os genes que agora albergam.
Estas linhagens bacterianas possuem o que
se designa por resistência adquirida. Ou seja,
uma bactéria que era originalmente
suscetível a um antibiótico passou, através
de um evento genético rápido e relativamente
simples, a ser resistente. Como as bactérias
não realizam reprodução sexuada, uma
forma hábil de poderem renovar a sua
informação genética é através de processos
conhecidos por transferência horizontal de
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genes (transformação, que consiste na
captação de material genético livre no meio;
mediada por vírus; e conjugação, que implica
o contacto físico entre duas bactérias). Esta é
uma forma de recombinação genética que
oferece
às
bactérias
excelentes
oportunidades de adaptação a ambientes
hostis como, por exemplo, conseguir
sobreviver e multiplicar-se na presença de
um antibiótico (Bengtsson-Palme & Larsson,
2016). Acredita-se que a transferência
horizontal de genes tenha estado na génese
da transmissão de determinantes de
resistência do microbioma natural para
bactérias de relevância clínica, e admite-se
que assegure a contínua propagação de
resistência entre bactérias ambientais e
clínicas (D’Costa et al., 2006; Dantas &
Sommer, 2012). Deste modo, pensa-se que o
uso massivo de antibióticos seja a principal
razão para o aumento de resistência a
antibióticos. Contudo, pode haver uma
multiplicidade de factores que facilitam a
dispersão da resistência, desde poluentes
ambientais a situações de stress (Martinez,
2009).
Resistência
a
antibióticos
como
contaminante ambiental
Embora a resistência a antibióticos se
manifeste especialmente a nível clínico, onde
o uso de antibióticos favorece a proliferação
e propagação de bactérias e genes de
resistência, há hoje uma consciência clara de
que este é um problema que não está
confinado a unidades de cuidados de saúde
(Bush et al., 2011; Berendonk et al., 2015).
Bem pelo contrário. A ampla dispersão de
bactérias resistentes a antibióticos e genes
de resistência no ambiente confere-lhes hoje
o estatuto de contaminante ambiental
(Berendonk et al., 2015). Estudos realizados
em diversas partes do mundo mostram que,
a cada minuto, uma Estação de Tratamento
de Águas Residuais (ETAR) domésticas, a
funcionar bem, pode libertar para o ambiente
mais de mil milhões (109) bactérias de origem
entérica resistentes a antibióticos e mais de
100 biliões (1014) de cópias de genes de
resistência (Vaz-Moreira et al., 2014, Manaia
et al., 2016). Esta é uma carga microbiana
muito elevada que terá como consequência a
contaminação de rios (Novais et al., 2005;
Tacão et al., 2014), ou de solos (Jones-Dias
et al., 2016a). Por sua vez, a contaminação
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transdução,
de solos e de águas pode levar à
contaminação de vegetais para uso alimentar
(Campos et al., 2013; Jones-Dias et al.,
2016b), ou de diferentes formas de vida
selvagem, como o lince ibérico ou as
gaivotas que sobrevoam as nossas cidades
(Sousa et al., 2014; Vredenburg et al., 2014).
Nestes casos, através das suas rotas
migratórias estes animais selvagens podem
representar
importantes
veículos
de
dispersão de resistência entre zonas
longínquas. Mas a contaminação ambiental
com bactérias resistentes a antibióticos
atinge também espaços fechados em
ambiente citadino, como mostram estudos
realizados em linhas de autocarro (Mendes et
al., 2015) ou com animais domésticos que
co-habitam com os seus donos (Leite-Martins
et al., 2014). Na realidade, pelo que se vai
conhecendo, talvez se possa perguntar onde
é que não há bactérias resistentes a
antibióticos. Esta contaminação tem origem
essencialmente em animais e em humanos.
Se e como parte desta contaminação retorna
para os humanos é uma questão ainda não
esclarecida (Figura 1).
Sabemos que a ocorrência de contaminantes
químicos no ambiente, sejam produtos
farmacêuticos, de higiene pessoal e
doméstica, ou muitos outros é hoje uma
inevitabilidade.
Porém,
quando
o
contaminante é um ser vivo, como as
bactérias resistentes a antibióticos, há o risco
acrescido de estas se poderem auto-replicar
e portanto ampliar o seu efeito. Medidas para
conter a sua libertação e evitar a proliferação
no ambiente são urgentemente necessárias.
Riscos associados à resistência a
antibióticos no ambiente
A discussão sobre os riscos associados à
dispersão ambiental de bactérias resistentes
a antibióticos contempla duas vertentes
distintas. Uma refere-se aos factores que
podem promover a emergência e evolução
de bactérias resistentes a antibióticos. A
outra refere-se aos riscos de as bactérias
resistentes a antibióticos serem transmitidas
aos humanos. As duas estão interligadas, na
medida em que maior abundância de
bactérias resistentes a antibióticos no
ambiente contribui para aumentar a
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probabilidade de transmissão destas aos
humanos.
Fig. 1. Representação simplificada das possíveis interacções entre bactérias e genes de
resistência a antibióticos existentes no ambiente e os humanos. As setas a azul indicam a
contaminação ambiental resultante dos humanos e as vermelhas as possíveis vias de retorno. As
verdes assinalam possíveis vias de disseminação entre distintos compartimentos ambientais.
A maioria dos estudos sobre resistência a
antibióticos no ambiente tem procurado
caracterizar as populações bacterianas e
genes de resistência mais prevalentes, na
tentativa de compreender a sua relação com
os que são encontrados em humanos e
animais. Outros têm procurado esclarecer
quais os factores relativos à fisiologia,
ecologia ou genética das bactérias que as
podem tornar melhores candidatos como
agentes de dispersão de genes de
resistência.
Outros
ainda
procuram
compreender quais os factores exógenos,
sejam poluentes ambientais (por exemplo,
resíduos de antibióticos, metais ou biocidas),
tecnologias (por exemplo o tratamento de
água residual ou de desinfecção), ou práticas
(por exemplo aplicação de estrume em solos)
que podem promover a selecção e dispersão
de bactérias e genes de resistência (Novo et
al., 2013; Varela et al., 2015; Sousa et al.,
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2016; Zhou et al., 2016). Estas investigações
conduzidas independentemente em diversas
regiões do mundo têm mostrado que a
contaminação ambiental com bactérias e
genes de resistência é um problema global e
de proporções crescentes.
Além disso, tem sido evidenciada a ainda
insuficiente capacidade de quantificar os
riscos de transmissão de bactérias e genes
de resistência de fontes ambientais para os
humanos. Enquanto a capacidade de
colonização e invasão das bactérias
resistentes a antibióticos será determinante
para assegurar tal transmissão, também os
genes que transportam serão importantes.
De facto, alguns estudos recentes têm
demonstrado a existência de uma miríade de
genes de resistência no ambiente, contudo
compreende-se que nem todos terão a
mesma relevância clinica, isto é, nem todos
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representam o mesmo nível de risco. O
contexto genético em que se situam, por
para conferir resistência a um amplo espectro
de antibióticos, serão determinantes de maior
risco, quer no que se refere à propagação
quer à severidade que lhes pode estar
associada em caso de infecção. Estes são os
aspectos que importará explorar no futuro
(Martinez et al., 2015; Manaia, 2016).
exemplo em plataformas com elevado
potencial de mobilização, ou a capacidade
Designadamente, é importante reconhecer,
na vasta diversidade de bactérias ambientais
com resistência adquirida a antibióticos
(bactérias portadoras e bactérias vector),
quais as que podem ser transmitidas a
humanos
(Figura
2).
Fig. 2. Relação entre a resistência a antibióticos em ambientes naturais (resistoma natural) e
contaminados, devido a actividades humanas (resistoma contaminante). O resistoma natural,
composto pelas bactérias que na figura são designadas por reservatórios, terão sido a origem dos
genes de resistência a antibióticos hoje considerados de relevância clínica. Contudo, é o
resistoma contaminante que representa o maior risco de transmissão para os seres humanos. Da
ampla diversidade de bactérias que fazem parte do resistoma contaminante, apenas algumas têm
capacidade para colonizar o corpo humano. Estas, na figura designadas vectores, são
fundamentais para avaliar os riscos de transmissão de resistência a antibióticos do ambiente para
humanos. Outras bactérias do resistoma contaminante, por diversas razões (ecológicas ou
fisiológicas), não podem colonizar o corpo humano. Estas, na figura designadas portadoras, têm
um papel importante na disseminação de genes de resistência a antibióticos no ambiente e podem
contribuir para o enriquecimento de vectores em genes de resistência a antibióticos. Adaptado de
Manaia, 2016.
Mãos à obra …
Dados recentes mostram que quer na União
Europeia, quer nos Estados Unidos da
América, morrem todos os anos mais de 20
000 pessoas vítimas de bactérias resistentes
a antibióticos (ECDC, 2014; WHO, 2014). A
implementação de eficazes sistemas de
vigilância de bactérias resistentes a
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antibióticos em hospitais da União Europeia,
dos Estados Unidos da América e de outras
regiões do mundo permite ter uma noção
clara da evolução da situação. De acordo
com os dados disponíveis, traçam-se
cenários pouco animadores que sugerem
que, se nada for feito, o retorno à era préantibiótica pode tornar-se uma realidade
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dentro de poucos anos (ECDC, 2014; WHO,
2014, O’Neill, 2016).
Esta perspectiva desoladora não tem que ser
vista como uma fatalidade, mas antes como
um encorajamento à procura de soluções
adequadas, sejam elas medidas de controlo
da resistência (Figura 3), a descoberta de
alternativas
aos
antibióticos
ou,
de
preferência,
ambas.
Fig. 3. Aspectos relevantes na avaliação e mitigação de riscos associados com a resistência a
antibióticos no ambiente, especificamente o surgimento e propagação de bactérias resistentes a
antibióticos e seus genes e a sua transmissão para o ambiente clínico, bem como o
desenvolvimento de estratégias de controlo (caixas roxas). As necessidades e limitações actuais
bem como alguns contributos para uma melhor compreensão e controlo são também sugeridos
(caixas amarelas). Para avaliar a propagação de resistência a antibióticos no meio ambiente e o
risco de transmissão aos seres humanos é necessário padronizar os ensaios de resistência em
amostras ambientais e melhorar a definição de resistência. Este será um válido contributo para o
estabelecimento de bases de dados mais abrangentes, que também pode beneficiar da
identificação de genes de resistência em metagenomas de diferentes origens. Adaptado de
Berendonk et al., 2015.
Vejamos algumas:
Melhorar e ampliar os mecanismos de
vigilância
Na área clínica humana têm sido realizadas
importantes conquistas na vigilância de
bactérias resistentes a antibióticos (ECDC,
2014; WHO 2014). Contudo, continua a ser
difícil ter uma visão global do problema, que
englobe todos os reservatórios onde a
resistência pode proliferar e de onde pode
emanar. Continua a não ser possível ter uma
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visão clara sobre a interação entre os
reservatórios
humanos,
animais
e
ambientais. Esta visão é essencial para se
poder compreender o ciclo da resistência a
antibióticos e, neste, perceber qual o
posicionamento
dos
humanos.
A
padronização e harmonização de métodos e
o estabelecimento e manutenção de bases
de dados que compilem a ocorrência de
bactérias e genes de resistência em
humanos, animais e no ambiente será um
contributo importante não só para perceber
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como se interligam estes reservatórios, mas
também para permitir a avaliação da eficácia
de medidas correctivas implementadas em
cada um deles (Berendonk et al. 2015;
Manaia et al., 2016).
Controlar os pontos críticos
Há fontes de contaminação ambiental, como
sejam os efluentes hospitalares, as ETAR, as
unidades de produção animal, entre outros,
que se sabe poderem debitar números
elevados de bactérias e genes de resistência
no ambiente. Estes são pontos cruciais onde
uma intervenção que minimize o seu impacto
ambiental poderá ser implementada. Por
exemplo, a separação e tratamento dedicado
de efluentes de unidades de saúde; a
melhoria do tratamento das águas residuais
com incorporação de desinfecção; a redução
do uso de antibióticos na produção animal,
ou o controlo de qualidade do estrume animal
utilizado como fertilizante agrícola (Figura 3;
Berendonk et al. 2015; Manaia et al., 2016).
Melhorar as práticas de uso de antibióticos
Este continua a ser um domínio onde ainda
há espaço para melhorias, quer na saúde
humana, na produção de animal, ou na
medicina veterinária (Bush et al., 2011). Além
do importante contributo dos profissionais
nestas áreas, será também crucial a
sensibilização dos cidadãos para um
problema que requer a cooperação de todos.
Curiosamente, de acordo com dados do
Eurosbarómetro
(Abril
de
2016;
http://www.europarl.europa.eu), em Portugal
há bastante trabalho que pode ser feito nesta
área.
Estas e outras medidas podem ser
essenciais para conter a forte ameaça à
saúde pública que a resistência a antibióticos
representa. Entretanto, há que acreditar que
novos
desenvolvimentos
científicos
e
tecnológicos serão capazes de gerar
alternativas mais eficazes no combate a
infecções bacterianas.
Agradecimentos
A autora agradece a Isabel Henriques
(CESAM, UA) e Nuno Cerca (CEB, UM) pela
leitura e sugestões feitas a este artigo e que
claramente contribuíram para o melhorar.
Este artigo de divulgação foi produzido no
âmbito dos projectos de investigação
apoiados por Fundos Nacionais da FCT Fundação para a Ciência e Tecnologia
através de projectos de UID / Multi /
50016/2013-CBQF e WaterJPI / 0001/2013
STARE - " Stopping Antibiotic Resistance
Evolution", no programa Horizonte 2020 da
União Europeia ao abrigo do acordo de
subvenção
Marie
Skłodowska-Curie
“ANSWER – “ANtibioticS and mobile
resistance elements in WastEwater Reuse
applications: risks and innovative solutions” e
a acção COST-European Cooperation in
Science and Technology, ES1403: “New and
emerging challenges and opportunities in
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