Sousa Lopes em Castelo Vide É facto desconhecido que um dos nomes centrais da pintura portuguesa na 1ª metade do século XX, Adriano de Sousa Lopes (1879-1944), protagonista no ano passado de uma das vendas em leilão mais altas de sem pre, a Procissão no Turcifal (1912), arrematada por 125 mil euros, criou nos anos 20 uma série de pinturas na vila de Castelo de Vide, integrando-a numa geografia pessoal que reuniu locais como Aveiro, a Serra da Estrela, as praias do Furadouro, da Nazaré ou da Costa da Caparica, e no estrangeiro cidades como Veneza, Paris, Bruges, o Sul de França e Marrocos. Pintor que nas primeiras décadas do século actua na transição do Naturalismo para o Modernismo, Sousa Lopes introduziu na pintura de tradição naturalista um sopro de vitalidade vindo da aprendizagem e dos salons parisienses, mas essencialmente, e por isso sempre foi inclassificável pela historiografia, conseguiu fugir a uma pintura mais convencional desenvolvendo um invulgar instinto de colorista, ao explorar de forma livre, sobretudo nas paisagens e marinhas, a matéria e expressividade intrínsecas da cor. É em 1927, na sua segunda exposição individual apresentada em Lisboa e no Porto, que o pintor, prestes a assumir a direcção interina do Museu Nacional de Arte Contem porânea, em Lisboa, a pedido do seu amigo Columbano, apresenta pela primeira vez os resultados de uma extensa digressão feita pelo país durante essa década. Entre oitenta e nove pinturas do catálogo, dez referem-se a Castelo de Vide, que visitara dois anos antes, inventariando paisagens da Serra de São Mamede, ruas típicas dos bairros do Castelo e da Judiaria, e monumentos conhecidos como a Fonte da Vila e a Igreja de São Paulo. Dessas dez pinturas, a maior parte estará hoje em colecções particulares ou na posse de familiares do artista, algumas foram reproduzidas em catálogos posteriores, mas notavelmente, entre elas, estará uma obra que José de Figeiredo destacou como importante na carreira do artista, a Praça de Castelo de Vide, da qual não temos qualquer referência. No entanto, fruto de um legado de dezenas de obras ao museu que o pintor dirigiu nos últimos quinze anos de vida, o MNAC-Museu do Chiado, em Lisboa, actualmente encontram-se na sua colecção três pinturas que são notáveis exemplos desta fase criativa em Castelo de Vide. Entre elas, está a pintura mais ambiciosa da série (e a mais cara no catálogo de 1927, 50.000$00), intitulada Outono (Castelo de Vide), uma grande paisagem panorâmica da serra de São Mamede, que abraça toda a vila. Sob um céu nublado, um extenso vale na serra é iluminado difusamente por uma súbita luz solar, vertical e subtil, que modela em primeiro plano uma mancha de oliveiras, em azul turquesa, diferenciando-a da vegetação de giestas mais no fundo, em tons de laranja, descrevendo assim a conhecida variedade de espécies da serra de Castelo de Vide, que combina em simultâneo vegetação mediterrânica com outras espécies de origem atlântica e continental. É notável o talento observador e mestria técnica com que Sousa Lopes recria uma branda luz outonal, que se escapa por entre as nuvens e se dissemina pelo centro da composição, insinuando-se ao olhar, e estendendo-se junto de umas casas por onde sai o fumo isolado de uma cham iné. Uma minúcia naturalista que é rara nas paisagens do pintor, com o reconheceu Diogo de Macedo. Essa exuberante e densa vegetação da serra atraiu-o continuamente durante a estadia na vila alentejana. Um segundo exemplo desse fascínio é Castelo de Vide, onde o artista desenvolve o mesmo tema mas com mais imediatez e audácia: não é uma paisagem composta em atelier como a anterior, pormenorizada e narrativa, mas uma mancha pintada directamente frente ao motivo, método preferido pelo pintor: a vegetação da serra é densificada e revolvida em violentos empastamentos de tinta, e a luz é transfigurada em expressivos amarelos, verdes, laranjas que se intensificam, numa das paisagens cuja radicalidade técnica não tem paralelo no catálogo do artista. Já na terceira obra, vista original de Uma rua em Castelo de Vide, o pintor fixa uma calçada íngreme de um dos bairros antigos junto do castelo, numa perspectiva acentuada, onde há um jogo bastante expressivo entre cálidos laranjas e o branco das casas caiadas, e sobretudo, no plano do fundo, uma luz solar que modela e divide em tons puros, ao alto, um cabeço da serra que envolve a vila. Espera-se então que no futuro mais pinturas desta série possam vir a ser conhecidas, ganhando a visibilidade que merecem no corpus artístico de Sousa Lopes, mas também com o um contributo im portante para a iconografia e identidade de Castelo de Vide. Carlos da Silveira Bibliografia Exposição Sousa Lopes. Catálogo com prefácios de José de Figueiredo e Affonso Lopes Vieira (cat.). Lisboa: Sociedade Nacional de Belas Artes, 1917 Exposição Sousa Lopes (cat.). Lisboa: Sociedade Nacional de Belas Artes, 1927 MACEDO, Diogo de – Sousa Lopes: Luz e cor. Colecção Museum. 2ª série, n.º 2. Lisboa: Museu Nacional de Arte Contemporânea, 1954 MATIAS, M. Margarida Garrido Marques – “Sousa Lopes – pintor”, in Sousa Lopes (cat.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980 SANTOS, Manuel Farinha dos – “O pintor Sousa Lopes”, in Sousa Lopes (cat.). Lisboa: Liga dos Combatentes/ Fundação Calouste Gulbenkian, 1962 SILVA, Raquel Henriques da – “Adriano de Sousa Lopes”, in Museu do Chiado: Arte Portuguesa 1850-1950 (cat.). Lisboa: Instituto Português de Museus, 1994 Obras referenciadas no artigo (por ordem): Castelo de Vide. N.º inv. 1099. Óleo sobre tela, 73 x 105 cm (em depósito no Ministério da Educação) Outono em Castelo de Vide. N.º inv. 1266(25). Óleo sobre madeira, 33 x 41 cm (reservas do MNAC-MC) Casas em Castelo de Vide. N.º inv. 1266(75). Óleo sobre madeira, 27 x 20,5 cm (reservas da Torre do Tom bo) Nota: Informação recolhida em Março deste ano