Como pode um edifício salvar uma cidade, ou parte dela?

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Público Porto
ID: 61562721
26-10-2015
Tiragem: 33895
Pág: 13
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 31,00 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Como pode um edifício salvar
uma cidade, ou parte dela?
Em Newcastle, no Reino Unido, um centro cultural mudou a face da cidade. No Porto, o antigo
matadouro municipal é apontado como âncora da regeneração da freguesia de Campanhã
FERNANDO VELUDO/NFACTOS
Intervenção urbana
Abel Coentrão
Ironia das ironias, o antigo matadouro do Porto está livre da morte.
A Câmara do Porto anunciou na semana passada que quer instalar ali,
em Campanhã, o antigo Museu da
Indústria. Há um plano mais ambicioso ainda por revelar, e o vereador
da Cultura da cidade, Paulo Cunha
e Silva, afirmou numa conferência
sobre Arte, Espaço Público e Transformação Urbana que neste edifício, que
esteve para ser vendido e cedido à
especulação imobiliária, se vai afinal
consumar a política que ele vem propondo, “de uma cultura para os cidadãos, não para os agentes culturais”.
Mas pode um edifício salvar uma
cidade, ou parte dela? A “casa da
música” de Newcastle, o centro
Sage-Gateshead, completou no ano
passado uma década de funcionamento e de transformação, cultural,
mas também social, de uma região
no Nordeste de Inglaterra que entrou
no século XXI em crise profunda, e
a precisar de se reinventar. O caso
foi apresentado no Porto como um
bom exemplo de como a grande arquitectura — o edifício foi o primeiro
equipamento cultural desenhado por
Norman Foster — aliada a um exigente, e abrangente, programa pode mudar a envolvente.
Segundo uma das impulsionadoras
do projecto e antiga responsável pelo
Programa de Ensino e Participação
deste centro, Katherine Zeserson, em
Newcastle o segredo terá passado pela aliança entre um edifício marcante
e de qualidades acústicas excepcionais, o poder da regeneração urbana
— a margem do rio entre as cidades
de Gateshead e Newcastle, onde se
localiza o Centro, tornou-se uma zona de eleição — um programa de concertos, nas múltiplas áreas musicais,
atraente para múltiplos públicos, e
o envolvimento da população da região na aprendizagem e na própria
criação artística.
Entre obra e financiamentos, foram investidos em dez anos 250 milhões de libras no Sage-Gatheshead,
mas, nessa mesma década, as múltiplas actividades ali realizadas geraram 300 milhões. Cerca de seis milhões de pessoas visitaram o centro,
onde se realizaram 4500 actividades,
e mais de 2000 empregos foram cria-
Antigo matadouro municipal chegou a ser posto à venda pelo Município do Porto, durante a gestão camarária de Rui Rio
Instalar o Museu da
Indústria no antigo
matadouro salva
dois patrimónios:
as peças do museu,
fechadas há anos;
e um matadouro
que os arquitectos
classificam como
uma catedral
dos. Por cada libra de dinheiro público ali colocado, este equipamento
gerou 3,63 libras. E os habitantes da
região identificam-se com o projecto.
Na componente de ensino, a receita
conseguida foi cinco vezes superior à
inicialmente estimada, e a utilização
das várias salas para conferências foi
quatro vezes maior do que o admitido no plano de lançamento deste
centro.
Para Katherine Zeserson, este é
um excelente exemplo do papel que
a arquitectura e a cultura podem ter
na cidade. E o Porto conhece bem
essa importância, pelo impacto que
o Museu de Serralves ou a Casa da
Música — que aliam a assinatura de
arquitectos de renome a projectos
culturais de grande qualidade — têm
nos públicos locais e regionais e no
turismo também. O vereador Paulo Cunha e Silva, que já defendera
que o Porto está bem servido com os
espaços e equipamentos de que dispõe, disse ter a expectativa de que o
Mercado do Bolhão, depois de reabilitado, se torne numa âncora da zona
mais antiga, e apontou para o matadouro um papel semelhante, na mais
deprimida freguesia do Porto, carente de uma operação — ou operações
— de regeneração urbana e social.
Nesta conferência de Serralves,
organizada pela Bienal de São Paulo, Jordi Pardo, um dos rostos da revolução urbana que mudaram Barcelona desde os jogos Olímpicos de
1992, apontou a educação e a cultura
como a “forma mais poderosa” de
reabilitar uma cidade, socialmente falando. Crítico da arquitecturaespectáculo, sem programa e sem
relação com a envolvente, o actual
membro do painel de selecção e monitorização das capitais europeias da
cultura considera que ela, a cultura,
deve estar presente em toda a cidade, numa aproximação ao conceito
de liquidez que Paulo Cunha e Silva
vem propondo no Porto, com programas como o Cultura em Expansão, entre outros.
Aos poucos, a cidade performativa
vai chegando aos seus limites mais
orientais. Em 2013, numa iniciativa
privada de uma ex-vereadora do município, Manuela Monteiro, antigos
armazéns de mercadorias, perto da
estação de caminho-de-ferro, foram
transformados no dinâmico Mira Espaço Cultural. A partir dele, gente
que não vive em Campanhã, entre
ela muitos artistas, tem levado ali o
seu trabalho e, noutras actividades,
descoberto este antigo pólo industrial da cidade, onde das fábricas só
sobram os cascos, alguns, e muitas
memórias.
Pela sua história, oferecer a esta
zona o Museu da Indústria fará todo
o sentido, e é já uma espécie de dois
em um, que salva dois patrimónios
deixados ao abandono: as peças do
antigo museu, fechadas há anos num
armazém de Ramalde; e um matadouro que os arquitectos classificam
como uma catedral. E dentro de dias
se saberá o que mais se pode ainda
fazer com este tesouro.
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