História, música e mito: a construção e transmissão da memória do mito da banda Ave Sangria Artur Onyaiê1 Resumo: Incitada pela busca do sujeito pela identidade, a deliberação e reaproximação dos historiadores com a narrativa histórica, a procura por outras tradições e os novos discursos de memória se intensificam. Em vista disto, pode-se observar a grande difusão de práticas memorialísticas iniciadas na década de 70 e boom da memória na sociedade contemporânea, emergindo na superfície uma série de memórias subterrâneas (POLLAK, 1992). É baseado nessas perspectivas que passei a observar o cenário contemporâneo do rock produzido em Pernambuco e a recorrência com que a banda Ave Sangria é tida como referência mítica no que concerne à música e a década de 70 no Recife. De modo que a menção ao mito está no audiovisual, nos trabalhos acadêmicos, nas matérias jornalísticas, livros e na internet. Partindo desses eventos, pondero sobre aspectos da construção deste mito, a transmissão e valorização da memória da Ave Sangria na cidade. Palavras-chave: memória, Ave Sangria, mito. Abstract: Stimulated by the search for identity, the debate and the historians’ approach to the historical narrative, the look for other traditions and the news memory discourses get intensified. Thus, a great diffusion of memorial practices initiated in the seventies and the memory boom at the contemporary society can be observed, emerging to the surface a lot of underground memories (POLLACK, 1992). Based on these perspectives, I started to observe the rock scenario produced in Pernambuco and the recurrence that the band Ave Sangria is called as reference when related to music and the seventies in Recife. Te mention to the myth is in the audiovisual, academic articles, journalistic articles, books, and the internet. Starting from these events, I analyze the constructions aspects of this myth, the transmissions and valorization of Ave Sangria´s memory in Recife. Key words: memory, Ave Sangria, myth. 1 Graduado em História pela Universidade Católica de Pernambuco; email: [email protected] 344 A partir de observações realizadas no cenário contemporâneo do rock produzido em Pernambuco, pude constatar a recorrência com que a banda Ave Sangria é citada e tida como referência em diversos aspectos da produção cultural no que concerne à música no Recife e a década de 70. De modo que a menção à banda vai além da música; está no audiovisual, nos trabalhos acadêmicos, nas matérias jornalísticas, tópicos em livros e na internet. Outro ponto que chama atenção é como estas manifestações dão à banda um valor mítico, mas mítico no sentido simbólico e estimado da produção musical da banda na história do rock em Pernambuco. Partindo desses eventos, emergem reflexões e interrogações das quais me impelem a elucubrar sobre prováveis motivações dessa procura e valorização da memória da extinta banda Ave Sangria na cidade. A complexidade em analisar esta estima pela memória da banda se dá pelas longínquas demonstrações de apreço que já se manifestavam, décadas atrás, através da mídia impressa, exposições de arte, bandas, depoimentos orais e afins. Esta perenidade também está atrelada à idéia da memória como uma manifestação social e coletiva de Maurice Halbwachs (ano), onde além dos acontecimentos vividos pessoalmente, também atribui aos grupos sociais a construção da memória, a determinação do que é memorável e a maneira de ser rememorada. Deste modo, de acordo com o seu raciocínio, aquilo que o indivíduo absorve e considera valioso para ele, depende da sua identidade, varia de acordo com o grupo social do qual se sente inserido. Sendo assim, muitos rememorizam informações das quais não tiveram uma experiência direta, vivem acontecimentos por tabela (POLLACK, 1992), pois tais eventos têm importância para os grupos que este indivíduo está localizado. Bem como a memória coletiva, a memória individual tem sua devida relevância e papel na dinâmica da rememoração, uma vez que dentro de cada grupo onde essa valia é partilhada, existem partes exclusivas que lembram, esquecem ou pensam de maneira distinta, há variantes dentro de cada grupo social, dentro de cada indivíduo. O sujeito e os acontecimentos vividos pessoalmente também devem ser levados em consideração no que tange à constituição da memória. Devido à multiplicidade identitária do indivíduo pós-moderno, não é possível que essa apreensão do fato ocorra de acordo com um único grupo social e que, talvez, não seja totalmente condicionado a uma compreensão uniforme dessa memória. As palavras de Michael Pollack e Maurice Halbwachs estimulam a reflexão e argüição sobre como essa transmissão da memória da Ave Sangria se deu para as gerações atuais, onde 345 memórias partilhadas por variadas comunidades sociais se interseccionam no que concerne à valorização da banda, empenhando-se na reconstrução de um passado conveniente às suas identidades. Portanto, pretendo investigar da maneira sucinta, alguns aspectos desta transmissão da memória da manifestação do udigrudi2 em Pernambuco, tendo a banda Ave Sangria como referência para esta análise. A Ave Sangria Com o lema Abrir os portões do teatro e as portas da percepção, a I Feira Experimental de Música do Nordeste, acontecia no teatro de pedra de Nova Jerusalém, em de Novembro de 1972. Com a entrada franca, a produção do festival tinha o intuito de “ouvir o som do cara que toca berimbau no mercado de São José também no som de Laílson, com uma guitarra que mais parece uma central elétrica”. (FEIRA EXPERIMENTAL DE MÚSICA DO NORDESTE, 1972 apud TELLES, 2000, p. 152). Este “Woodstock nordestino” foi terminantemente categórico na abertura de espaço para a congregação de músicos que estavam dispersos no Recife e que buscavam ampliar os horizontes musicais. Dentre estes músicos estavam Lula Cortes, Marconi Notaro, Phetus, os músicos do futuro Tamarineira Village, Marco Polo e entre outros. Bem como a proposta do festival, estes artistas, em sua grande maioria, tinham a idéia de produzir uma música aberta às referências do rock estrangeiro e das especificidades das músicas produzidas no Brasil e, inclusive, em Pernambuco. Em vista disso, o evento foi responsável por engendrar várias parcerias e grupos musicais que dariam ao Recife uma movimentação musical distinta, compostas por uma linguagem pop lisérgica acompanhada de texturas psicodélicas, distorcidas, e carregada dos sotaques brasileiros. Como resultado destas parcerias, pode-se citar os discos Satwa, resultado da união de Lula Côrtes e Laílson; o disco Paêbiru, fruto da união de Lula Côrtes e o músico paraibano Zé Ramalho; e o disco da banda Ave Sangria – 2 Corruptela da palavra Underground, que dá sentido de uma produção alternativa ao fluxo principal do mercado fonográfico. No caso do Udigrudi em Pernambuco, viria a ser a movimentação de bandas alternativas, da qual Ave Sangria e Lula Cortes faziam parte. 346 banda da qual farei uma análise mais pormenorizada –, que se tornou bastante afamado quando se refere à história do Rock em Pernambuco. Ainda anônima e de maneira bastante espontânea, a banda Tamarineira Village – futura Ave Sangria –, se reuniu pela primeira vez na supracitada Feira Experimental de Música do Nordeste. Lá, recém chegado do sudeste, o poeta e vocalista Marco Polo Guimarães se integra a Almir, Ivinho, Agrício, Bira e Rafles. Não tardou muito para que as apresentações do grupo chamassem a atenção do público. Segundo José Teles, a banda conquistou um séquito de fãs devido ao formato diferenciado dos seus shows, uma maneira que a cidade não estava acostumada. (2000, p. 156). Além do formato não convencional dos shows, as músicas da banda também traziam algo de curioso: “tanto poderia ser um rockão com solos ensandecidos da guitarra de Ivinho, quanto poderia ser um chorinho movido a cavaquinho e bandolim. As incursões de Marco Polo pela poesia deixaram-lhe marcas que ele agora passava para sua música”. (TELES, 2000, p. 170). Os burburinhos em torno da banda contribuíram ainda mais na sua notoriedade, fazendo com que o seu prestigio tomasse Nordeste afora. Segundo Marco Polo, o vocalista da banda, durante uma dessas viagens pelo Nordeste, eles encontraram com uma cigana que sugeriu a mudança a mudança de nome da banda para Ave Sangria, pois sua música era livre e forte. (TELES, 2000, p. 171). A mudança do nome também será escopo deste artigo, pois há algumas controvérsias no assunto em questão. Através do empresário dos Novos Baianos, a gravadora Continental convida a Ave Sangria para fazer parte de seu quadro de bandas e, por conseguinte, a Ave Sangria ruma ao Rio de Janeiro para gravar o LP Ave Sangria. A gravadora Continental estava realizando experimentos mercadológicos no que tange grupos de rock e o consumo no Brasil, onde a Ave Sangria fazia parte destas experimentações. Por se tratar de uma experiência mercadológica, a gravadora, por medo de perder grandes investimentos, limitava ao máximo os recursos liberados à produção das bandas, muitas vezes dificultando o próprio processo de produção. No caso da banda recifense não foi diferente. Em entrevista, o guitarrista Paulo Rafael trata um pouco deste ponto: 347 A gente foi produzido por Marco Antonucci... por aí você vê, neguinho não entendia direito. A gente estava com outro tipo de mensagem, era um outro tipo de música, que depois virou o alicerce da música nordestina, aquela mistura do rock com os ritmos daqui que a gente tava fazendo. Só que a gente era bobo demais para fazer uma coisa com mais cabeça. E foi uma loucura porque o cara não entendia nada... Então não tinha nenhuma idéia do que iria fazer com a gente, foi deixando as águas rolarem, poderia ter tirado muito mais coisas pra esse disco e não tirou. (TELES. 2000, p. 172). Não obstante, mesmo com orçamento reduzido e pouco interesse da imprensa, o disco tem uma vendagem relativamente boa, chegando a décimo lugar nas paradas das rádios de algumas cidades. A música mais da banda nas rádios era a “Seu Waldyr” que, da maneira bem humorada e despojada, versa sobre a paixão de um jovem por um homem mais velho. Não levou muito tempo para que a música, apesar de bem recebida pelo público, criasse mais polêmica em torno da banda. Todavia, outros consideraram a música uma imoralidade e um atentado aos bons costumes da capital pernambucana, logo sendo condenada pela censura ditatorial. Mesmo voltando às lojas sem a faixa censurada, os músicos tinham pouquíssimas motivações para continuar tocando, já que não tinham retorno financeiro e a esperança de um impulso para banda a partir do disco arrefeceu. A necessidade de uma fonte de renda, a falta de uma infra-estrutura plausível para a sustentabilidade da banda e o assédio dos músicos por parte de Alceu Valença sucedeu o que já era previsível; a desarticulação da banda motivada por uma série de necessidades inexoráveis ao bem estar artístico e social dos membros. Em entrevista a José Teles, Marco Polo desabafa sobre o fim da banda: Era uma porção de caras pobres, alguns já com filhos, que haviam largado tudo, emprego, o escambau, para se dedicar à música. A gente ensaiava várias horas, todos os dias. Ninguém havia ainda visto grana, a esperança era o disco. Com a proibição, o grupo perdeu o pique. (TELES, 2000, p.175). Uma questão que vale a pena salientar é que, não obstante o término das atividades musicais da Ave Sangria, a sua obra e o seu prestígio permaneceram vivazes, não sendo difícil de encontrar declarações de valoração à memória da extinta banda. Na imprensa, nos sebos, 348 bandas, nos movimentos musicais, livros e na internet é possível identificar estas manifestações de grande apreço à banda, onde muitas vezes é considerada um mito dentro da história do rock em Pernambuco e no Brasil. E é partir dessas manifestações que surge a interesse de se estudar alguns eventos que contribuíram na construção deste mito. A construção do mito Instigados pelo clima contracultural que pairava sobre a conservadora cidade do Recife, a estratégia de divulgação da banda era chocar e gerar boatos. Tal tática pode ser observada na famigerada fotografia de divulgação da banda; uma jovem seminua, postada em decúbito ventral, de braços abertos, fazendo alusão a uma ave, ao grupo. Essas atitudes de provocar e pasmar a sociedade suscitaram em burburinhos em torno da banda que, de alguma maneira, impeliu para o seu reconhecimento e transmissão de sua memória. Em Do Frevo ao Mangue Beat (2004), o crítico musical José Teles conta que: Eles usavam batom, beijavam-se na boca em pleno palco, faziam uma música suja, com letras falando de piratas, moças mortas no cio. E eram muito esquisitos; "frangos", segundo uns, e uma ameaça às moças donzelas da cidade, conforme outros. Estes "maus elementos" faziam parte do Ave Sangria, ex-Tamarineira Village, banda que escandalizou a Recife de 1974, da mesma forma que os Rolling Stones a Londres de dez anos antes. Com efeito, ela era conhecida como os Stones do Nordeste. (TELES, 2000, p. 170) Em entrevista a José Teles, Rafles, uma espécie de relações público do grupo, diz: Isto era tudo parte da lenda em torno do Ave Sangria (...) O batom era mertiolate, que a gente usava para chocar. Não sei de onde surgiu esta história de beijo na boca, a única coisa diferente na turma eram os cabelos e as roupas. (TELES, 2000, p. 170) 349 Essa preocupação incitar os burburinhos e a fama de bad boys resultou em uma associação da Ave Sangria aos Rolling Stones, ficando conhecida como os “Rolling Stones do Nordeste”, devido o semelhante impacto causado pelos grupos e o conservadorismo de suas respectivas cidades – Recife e Londres. Peter Burke faz algumas considerações quando se trata de analogias de personagens e a construção de mitos, onde ele afirma que: O elemento central para a explicação desta mitogênese é a percepção (consciente ou inconsciente) da existência de uma “parecença”, em algum aspecto ou aspectos, entre um indivíduo particular e um estereótipo corrente de herói ou de malandro - governante, santo, bandido, bruxa, etc. Esta “parecença” estimula a imaginação das pessoas e começa a circular histórias acerca do indivíduo em questão, oralmente a princípio. No decorrer desta circulação oral, o mecanismo normal da distorção estudado pelos psicólogos sociais como levelling e sharpening entra em ação. Estes mecanismos ajudam à assimilação da vida de um indivíduo determinado a um certo estereótipo retirado do repertório de estereótipos presentes na memória social de uma dada cultura. (2000, p. 79-80). A figura da Ave Sangria parece ir de acordo com o pensamento de Burke, porém trajado num estereótipo miscigenado de herói e malandro, visto o valor dado à banda na manifestação da música Pop em Pernambuco e, por outro lado, a imagem de “maus elementos”, “frangos” e “ameaça às moças donzelas da cidade”. Contudo, além de seu comportamento, a sua musicalidade também causava esse impacto. Como o próprio Marco Polo, vocalista do grupo, afirma: “Tocávamos um baião com guitarras e interpretação vocal roqueiras, ou um baião com harmonia de blues, o que era uma total novidade”. Outro fator interessante que parece ter contribuído na constituição do caráter simbólico da Ave Sangria foi o livro Do Frevo ao Manguebeat de José Teles, que traz pela primeira vez algo escrito sobre algumas movimentações da música pop em Pernambuco, como a jovem guarda, os tropicalistas, os adeptos do desbunde do udigrudi e o manguebeat. Sua importância se dá por ser uma das poucas referências sobre a banda para a posteridade. Michel de Certeau conta que: 350 A escrita não fala do passado senão para enterrá-lo. Ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina (...) Assim pode-se dizer que ela faz mortos para que os vivos existam. (...) Uma sociedade se dá o presente graças a uma escrita histórica. (2008, p. 107). A partir das palavras, pode se ter uma noção maior da importância da escrita de José Teles, da qual “enterra” a Ave Sangria no túmulo da história e, concomitantemente, preserva e nutre a memória da banda com claras menções de apreço pela sua contribuição para a música pop no estado. Um fato registrado no livro sobre a mudança do nome da banda desperta certa curiosidade. Os músicos procuravam outro nome para a banda, já que sempre tinham que explicar as razões que motivaram o nome Tamarineira Village. Marco Polo conta que foi durante as viagens pelo Nordeste, mais especificamente no interior da Paraíba, onde surgiu uma cigana que se referia à banda como aves sangrias, em referência às características da banda; um som forte, livre, violento e sangrento. Este relato poético para a alteração do nome provoca bastante o imaginário do leitor. No entanto o que chama a atenção é que em um vídeo na internet mostra o próprio Marco Polo diz este encontro com a cigana foi algo inventado por eles. Todavia, o que se encontra registrado no livro é que o encontro com a cigana foi autêntico. O fim da banda também foi um forte fator que contribuiu para a sua mitificação, pois a morte gera uma forte carga emotiva que pode cooperar da maneira voluntária ou involuntária neste processo. A música pop no Recife fica marcada pela Ave Sangria e sua (im)possibilidade de alçar vôos mais remotos pelo território brasileiro. Porém, esta marca deixada pela banda ainda vem sendo perpetuada na cidade, como um mito na música de Pernambuco. Pois em vários momentos a banda é tida por jornalistas como “Maior banda de rock do Nordeste”, ou como no texto de José Teles – que fora reproduzido em diversos blogs e sites – que se refere à banda como um “Ícone cult”. Surgindo, a partir daí, o interesse para este artigo. 351 Referências BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Tradução de Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: Arquitetura, Monumentos, Mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano; Cândido Mendes; MAM-RJ, 2000. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. IN: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.2, nº 3, 1989 TELES, José. Do frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34. 2000 YOUTUBE. Marco Polo Guimarães (Ave Sangria) Entrevista. 2007. Visto em 03 de Novembro de 2010. Proveniente da World Wide Web: http://www.youtube.com/watch?v=yeWf7OsItFU 352