IDENTIDADES MÚLTIPLAS, TRADIÇÃO E MUDANÇA NA MÚSICA

Propaganda
IDENTIDADES MÚLTIPLAS, TRADIÇÃO E MUDANÇA NA MÚSICA AFRICANA
CONTEMPORÂNEA
José Roberto de Vasconcelos Galdino
(História/UEPG)
Resumo: Este artigo tem como proposta realizar algumas discussões sobre
identidades na música africana contemporânea e mostrar uma parte da produção da
diversidade dessa música engajada e crítica, desde a década de 1960 até hoje. Seu
objetivo é mostrar como alguns músicos africanos mistura(ra)m tradições e
mudanças e produziram/produzem novas sonoridades ricas e inovadoras. Para isso
discutiremos os conceitos de identidade(s), tradição e mudança; utilizando as
concepções de identidade genérica e identidades múltiplas ou híbridas em Hall
(2002, 2006); as concepções de tradição e do papel da oralidade nos Djélis ou
Griots, em Ki-Zerbo (1982), Barry (2000) e Hernandez (2005); e a importância da
inovação e da mudança em Diawara (1998). Trataremos da crítica à ideia da
existência de identidades unitárias, essencializadas, contraposta às identidades
múltiplas como consequência das migrações que promovem uma ampla diversidade
étnica e cultural e pluralizam as identidades culturais. Também serão tratadas as
contradições e misturas entre as tradições musicais africanas e as inovações vindas,
especialmente, da diáspora africana e do uso de instrumentos eletrônicos ocidentais.
Trabalharemos com uma pequena amostra da riqueza musical africana
contemporânea, desde a sua disseminação através de Miriam Makeba até os dias
atuais, com Toumani Diabate, Anjelique Kidjo e outro(a)s. Estes músicos
contribuíram para divulgar as músicas africanas tradicionais misturadas, num
caldeirão musical, com as músicas da diáspora, também influenciadas pela África, e
criaram uma riquíssima musicalidade.
Palavras-chave: identidades; tradição; mudança; música africana contemporânea.
1306
Introdução
A proposta deste artigo é realizar algumas discussões iniciais sobre
identidades na música africana contemporânea e mostrar um pequeno recorte de
sua enorme diversidade através de alguns músicos engajados e críticos. Ele se
inicia na década de 1960, com a disseminação da música da África para o resto do
mundo e a crítica do apartheid, com Miriam Makeba, e vai até os dias atuais, com a
música africana crítica de Anjelique Kidjo e com alguns projetos musicais coletivos.
Seu objetivo principal é discutir como alguns músicos africanos mistura(ra)m tradição
e mudança e produziram/produzem novas sonoridades ricas e inovadoras e
promove(ra)m as identidades africanas, a descolonização e a defesa da paz, da
saúde, das mulheres e das crianças.
Para isto serão trabalhados os conceitos de identidade genérica e de
identidades múltiplas ou híbridas, em Stuart Hall (2002, 2006); de tradição e do
importante papel da oralidade nos djélis ou griots, em Joseph Ki-Zerbo (1982),
Boubacar Barry (2000) e Leila Hernandez (2005); e de tradição, inovação e
mudança em Manthia Diawara (1998, 2013). Então, mostraremos como músicos
africanos contemporâneos, alguns deles griots, misturam músicas e instrumentos
tradicionais com as inovações vindas, especialmente, da diáspora africana e com os
instrumentos eletrônicos ocidentais.
Identidades, tradição e mudança
Após a chamada contracultura, na década de 1960, o conceito de identidade
passou por grandes mudanças. Os movimentos pelos direitos civis dos negros e
feministas, nos EUA e Europa, trouxeram para o campo político o questionamento
dos processos de identificações genéricos, nacionais e falocêntricos. Desde então,
vários grupos sociais excluídos, constituídos de negros, mulheres, indígenas,
homossexuais, contestaram estas concepções excludentes e normativas de
identidades e passaram a valorizar as identidades étnicorraciais, de gênero e outras.
Apareceu, então, a possibilidade da existência de identidades múltiplas como uma
resposta à crescente homogeneização produzida pela mundialização econômica.
Conforme Stuart Hall, essa globalização: “vem ativamente desenredando e
subvertendo
cada
vez
mais
seus
próprios
modelos
culturais
herdados
1307
essencializantes e homogeneizantes [...]” (HALL, 2006, p. 43). Existe um processo
de tentativa de homogeneização cultural, a partir dos EUA, que ele denomina de
“McDonald-ização” ou “Nike-zação”, mas também há processos opostos sutis que
estão descentrando os modelos ocidentais e levando a uma disseminação da
diferença cultural para todo o planeta. O que seria “meramente” local e o global
estão atados entre si, um não existindo sem o outro. E a “modernidade” já não tem
um único centro transmissor, agora, as “modernidades”, estão em toda parte.
A descentralização das modernidades ocorre porque os fluxos migratórios
não regulados de povos e culturas são cada vez maiores e irrefreáveis e levam à
construção de um novo tipo de consciência transnacional e transcultural. Esses
processos de migrações livres e forçadas estão promovendo uma ampla diversidade
étnica e cultural e, ao mesmo tempo, pluralizando as identidades culturais. Para Hall:
“As identidades, concebidas como estabelecidas e estáveis estão naufragando nos
rochedos de uma diferenciação que prolifera” (HALL, 2006, p. 43).
Segundo Hall “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um „eu‟ coerente. Dentro
de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal
modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.” (HALL,
2002, p. 13). Portanto, não há uma identidade plenamente unificada, coerente,
completa e segura, pois “à medida que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quase poderíamos nos
identificar – ao menos temporariamente.” (HALL, 2002, p. 13).
Para este autor, existem dois discursos identitários nas sociedades
contemporâneas. Uma concepção identitária genérica, nacional, estável, normativa,
que estaria se perdendo na modernidade, e outra concepção identitária híbrida, que
reconhece a diversidade e a pluralidade. Mas temos “fortes tentativas para se
reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão, o „fechamento‟ e
a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade.” (HALL, 2002, p. 92). Essa disputa
entre tradição e mudança aparece em alguns discursos sobre identidades na África.
Em defesa da tradição, Joseph Ki-Zerbo afirma que colocar um texto literário
oral retirado do seu contexto “é como um peixe fora da água: morre e se decompõe”
(KI-ZERBO, 1982, p. 28). Ele também fala das máscaras africanas que, tiradas do
1308
seu contexto tribal, são levadas para serem expostas como obras de arte à
curiosidade dos não iniciados e perdem sua carga de sentido e de vida. Portanto,
este autor enfatiza a funcionalidade e a tradição.
Já, Manthia Diawara (1998) diz que a arte africana não deve ser limitada
apenas a sua dimensão funcional na sociedade, como o uso ritual das máscaras
pelos músicos, dançarinos, anciãos e antepassados. Elas devem ter uma identidade
autônoma como obra de arte. Então, é preciso retirar as figuras sagradas da sua
função ritual para revelar os artistas que as criaram. Ele critica as elites africanas
que veêm o papel das máscaras e da arte apenas nos rituais tradicionais. Fora dos
rituais elas perderiam seu valor estético. Elas pretendiam denunciar as pilhagens e a
violação das tradições africanas pelo Ocidente, mas também impede(ia)m a
discussão da autoria individual das obras de arte e da dívida de artistas modernistas
para com os artistas africanos. Ao enfatizar apenas a autonomia e a autenticidade
tribal, ignoram a abertura dos artistas africanos à mudança.
Como o Ocidente se apropriou e detém o monopólio da definição de arte
africana, não importando os autores, a originalidade de uma obra de arte africana
não passa pela assinatura do artista original, mas pelos intermediários ocidentais.
Então, o papel criativo dos artistas africanos é silenciado e suas intenções estéticas
são desvalorizadas em detrimento da sua função ritual. Esses artistas têm de aceitar
o estereótipo que os vê como “primitivos”. Negando a arte africana como arte, se
reproduz o estereótipo de que os africanos só tem uma percepção funcional da arte.
Diawara critica a ênfase demasiada na tradição, originalidade e autenticidade em
detrimento da mudança e da inovação. A arte africana, como qualquer cultura e arte,
não é imutável e suas transformações revelam inovações estéticas através dos
artistas individuais que reformulam a tradição.
Os griots: tradição e mudança
A diversidade de identidades e as riquezas das culturas africanas se revelam
especialmente nas artes, na oralidade e na música, A oralidade é extremamente
importante e se manifesta através da co(a)ntação que transmite os mitos e histórias
dos ancestrais. Os co(a)ntadores são poetas e músicos, homens, mulheres ou uma
família, que fazem parte de uma casta de “guardiões da memória”, encarregados da
memorização e transmissão das tradições de/na sua comunidade. Segundo
1309
Boubacar Barry (2000), eles são os djélis, que significa “sangue”, “força vital”, a
circulação do sangue, que é a própria vida, como a palavra que circula. Eles também
são chamados griots e são encarregados da transmissão oral do conhecimento dos
antepassados, da memória e da história de uma comunidade. A música tem estreita
relação com estas tradições, com a vida cotidiana (festas, rituais, trabalho) e é
compartilhada com todos os membros da comunidade. Conforme Leila Hernandez,
os griots são muitas vezes “respaldados pela música e valendo-se da coreografia
contam coisas antigas, cantando as grandes realizações dos „bravos e dos justos‟,
celebrando o heroísmo e a salvaguarda da honra” (HERNANDEZ, 2005, p. 30).
Algumas famílias de griots cantam suas histórias há mais de setenta
gerações, como a família de Toumani Diabate, griot da etnia mandinga – tocador do
korá. Conforme Wole Soyinka (2003), a família de Bala Fasseke Kouyaté, primeiro
griot do Reino do Mali, até hoje é a fiel depositária do instrumento sagrado – o
balafon – de Sundiata Keita, que o conquistou como troféu de guerra, de Soumaoro
(Sumanguru) Kanté, Rei Sosso. Este balafon até hoje é o símbolo do Império
Mandingo e da República da Guiné. Segundo Ki-Zerbo (1982), ainda hoje ecoam no
timbre épico e quente dos griots, as histórias de Sundiata Keita, fundador do Reino
do Mali; ou a história de Chaka, fundador do Reino Zulu.
Assim como é fundamental a importância e a riqueza dos músicos tradicionais
africanos, os músicos africanos atuais, muitos deles griots, também ocupam um
lugar primordial na música local e mundial, influenciando e sendo influenciados pelas
músicas ocidentais, principalmente a música negra caribenha, brasileira e norteamericana. Estes músicos e griots não cantam somente a história e mitos dos reinos
e povos africanos antigos, mas também cantam sobre seu presente, misturando o
passado com a modernidade, as tradições locais com influências mundiais, a
exaltação dos heróis históricos e míticos com a crítica dos governos tirânicos e
corruptos. Usam instrumentos, ritmos e gêneros tradicionais, mas acrescentam a
eles aquilo que Diawara (1998), tratando da arte africana, chama de reformulação da
tradição, ou seja, há uma incorporação da mudança e da inovação, deixando-se de
se dar ênfase demasiada na tradição, originalidade e autenticidade.
Há uma influência de mão-dupla das músicas africanas no mundo e do
mundo na África, especialmente aquelas levadas e vindas da Diáspora africana.
Conforme Aziz Diengo, “as músicas de África teceram através da Diáspora
1310
casamentos de amor com outros idiomas. Desses encontros feitos de sofrimento
nasceram, contudo, em resposta a um irresistível apelo à vida, músicas
extraordinárias [...].” (apud VUNGE, 2010, s.p.). Os exemplos mais importantes
dessas trocas são o blues, o jazz, o reggae, a salsa, a rumba, o samba, o zouk.
Hall, tratando da música da diáspora, afirma que essas trocas entre as
tradições musicais populares do “primeiro” e “terceiro” mundo fertilizam umas às
outras e constroem “um espaço simbólico onde a chamada tecnologia eletrônica
avançada encontra com os chamados ritmos primitivos [...].” (HALL, 2006, p. 37). Ele
também alerta para a idealização que normalmente se faz com relação às músicas
consideradas mais autênticas porque são mais antigas. Para ele, “a proliferação e a
disseminação de novas formas musicais híbridas e sincréticas não pode mais ser
apreendida pelo modelo centro/periferia ou baseada simplesmente em uma noção
nostálgica e exótica de recuperação de ritmos antigos” (HALL, 2006, p.37). Estes
hibridismos musicais incorporam múltiplas tradições musicais fragmentadas.
A disseminação das músicas africanas surgiu junto com o processo de
descolonização e de independências das ex-colônias africanas, especialmente na
década de 1960, e com o pan-africanismo e o movimento negro nos EUA. Em 1963,
foi criada a Organização da Unidade Africana (OUA), na Etiópia. Em 1966, em
Dakar, o presidente do Senegal, Leopold Senghor, em conjunto com a UNESCO,
organizou o I Festival Mundial de Cultura e Artes Negras (FESMAN), congregando
grande parte dos países africanos e membros dos EUA, Brasil e do Caribe. Do
Brasil, lá estiveram os músicos Clementina de Jesus, Ataulfo Alves e Elizeth
Cardoso, bem como o capoeirista Mestre Pastinha. Também foram Duke Ellington e
Josephine Baker, dos EUA. Este foi um dos primeiros momentos de promoção da
música africana e de raiz africana de outras partes do mundo. A OUA organizou em
1969, em Argel (Argélia), o I Festival Pan-Africano de Cultura (PANAF), com a
presença de Nina Simone, Oscar Peterson e Miriam Makeba. Em 1977, realizou-se o
II Festival Mundial de Cultura e Artes Negras, em Lagos, na Nigéria, com a presença
de Stevie Wonder, Donald Bird, Miriam Makeba, Louis Maholo, National Bembeya
Jazz da Guiné e os brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Somente na década de 1980, começaram a aparecer de forma mais ampla as
tentativas de dar visibilidade às artes africanas e de africanos pelo mundo,
especialmente à música. Elas se disseminaram juntamente com a luta e os festivais
1311
musicais antiapartheid, com a produção de trabalhos conjuntos entre músicos
europeus e dos EUA com músicos africanos e com a criação e circulação de um tipo
de música que se convencionou chamar de World Music, ou seja, músicas étnicas,
tribais, fora do circuito daquilo que convencionalmente chamamos música ocidental.
Desde então, muitos músicos promoveram as identidades africanas; a paz; a
dignidade dos emigrantes africanos na diáspora; lutaram contra o regime do
apartheid; contra governos ditatoriais; contra a corrupção; contra a guerra e a
violência; contra a fome, a miséria e a AIDS; contra o neocolonialismo. Um pequeno
exemplo pode ser encontrado nos músicos que veremos a seguir.
A riqueza musical africana
Iniciamos o recorte da riqueza musical da África com a mais importante
cantora da África do Sul, Zenzile Miriam Makeba (1932-2008) a “Mama Africa”, que
colocou a música africana no mapa mundial, com o sucesso de sua música “PataPata”, na década de 1960. Foi uma grande ativista pelos direitos humanos e contra o
apartheid.
Participou
do
documentário
antiapartheid
“Come
Back,
Africa”,
apresentado no Festival de Veneza, em 1960, e fez denúncias para o Comitê da
ONU antiapartheid. Em função de sua militância, perdeu a cidadania e o passaporte
sul-africano e passou a viver no exílio grande parte de sua vida. Depois que casou
com Stokely Carmichael, dos Panteras Negras e do Movimento Black Power, acabou
virando persona non grata nos EUA. Foi então para a Guiné, depois da revolução
de Sékou Touré, e tornou-se delegada do país na ONU. Depois de gravar com Paul
Simon, em 1987, ela voltou a fazer sucesso triunfal no mercado dos EUA. Somente
pode voltar para a África do Sul, em 1990, a convite de Nelson Mandela.
O músico sul-africano Hugh Ramopolo Masekela (nascido em 1934),
trompetista, cantor e compositor tornou-se uma das vozes mais fortes contra o
apartheid e um dos maiores músicos do seu país. Tem influência das tradições
musicais africanas e afroamericanas (jazz, afrobeat e mbaqanga - música zulu). Em
razão de sua grande atuação política foi exilado. Foi casado com Miriam Makeba. Já
separado dela, em 1967, participou do Festival de Monterey (EUA). Com Stewart
Levine, ele organizou o Festival Zaire 74, em Kinshasa, concomitante com a disputa
do título mundial de boxe, entre Muhammad Ali e George Foreman. Foi um festival
de soul com músicos como James Brown, B. B. King, Célia Cruz, Miriam Makeba e
1312
Manu Dibango. Criou uma canção, em 1986, denominada “Bring him back home”,
que é um apelo para à libertação de Mandela. Em 1987, participou, com outros
músicos africanos, do álbum Graceland, de Paul Simon. Junto com Mbongeni
Ngema, compôs músicas para o musical da Broadway “Sarafina”. Tocou com Miriam
Makeba, Fela Kuti, Harry Belafonte, Stevie Wonder, Dizzy Gillespie, Bono Vox e
outros. É diretor de uma organização não lucrativa The Lunchbox Fund, que fornece
comida diária para os estudantes de bairros pobres de Soweto, na África do Sul.
Outro músico emblemático é Fela Anikulapo (“aquele que carrega a morte no
bolso”) Ransome Kuti (1938-1997), nigeriano e ativista político e pelos direitos
humanos. Criou o Afrobeat e com suas letras e posições políticas inspir(a)ou a
liberdade de expressão. Sua mãe foi militante feminista e seu pai era líder sindical
dos professores. Teve contato com os Panteras Negras, assim como com a Black
Music, que o influenciaram. Apoiou o movimento pan-africanista de Nkrumah.
Questionou fortemente os poderes dos governos ditatoriais nigerianos. Criou uma
comuna independente, em Lagos, chamada República Kalakuta. Tentou se
candidatar à presidência da Nigéria, mas teve sua pretensão recusada pelas
autoridades. Em 1986, participou do show “Conspiração da Esperança” em apoio a
Anistia Internacional, nos EUA; e, em 1989, gravou o álbum antiapartheid “Beasts of
no Nation” (“Bestas de Nenhuma Nação”), cuja capa apresenta Reagan, Thatcher e
Botha, com os caninos pingando sangue. Seu filho, Femi Kuti, continua a luta.
Nos anos de 1980, outros músicos africanos estouraram na mídia ocidental.
Um deles é Youssou N’Dour (nascido em 1959), senegalês, filho de mãe griot e um
dos mais famosos músicos africanos. Juntou gêneros tradicionais, como o njuup e o
mbalax, com a música ocidental, com grande sucesso. Com grande militância, em
1985, organizou um concerto para a libertação de Mandela, em Dakar e, no ano
seguinte, gravou o álbum Nelson Mandela. Em 1988, participou de vários concertos
“Direitos Humanos Já” para a Anistia Internacional. Gravou com Paul Simon e Peter
Gabriel, Sting, Branford Marsalis, Ryuichi Sakamoto, entre outros e gravou a trilha
sonora do desenho animado “Kirikou e a feiticeira”. Tornou-se embaixador para a
ONU, FAO, OIT e UNICEF, participando de inúmeras campanhas contra a AIDS e
contra a corrupção e os genocídios. Em Dakar, criou um estúdio de gravação para
jovens músicos e uma empresa de micro crédito, denominada Birima. Também
1313
tentou candidatar-se à presidência do Senegal, em 2012, mas a sua solicitação foi
recusada. Atualmente é Ministro da Cultura e do Turismo do Senegal.
Anjelique Kidjo, que nasceu em 1960, é uma grande cantora e compositora
do Benin, filha de mãe ioruba, diretora de teatro, e pai da etnia fon. Seu avô morou
na Bahia. Ela foi influenciada por Miriam Makeba, Manu Dibango, Carlos Santana,
James Brown, Aretha Franklin (o soul, jazz, funk) e pelas músicas tradicionais
africanas do Benin. Militante antiapartheid, desde os quinze anos, cantou em Paris
abrindo shows de Miriam Makeba, em 1989, e de Nina Simone, em 1990. Fez
parcerias com Manu Dibango, Ray Lema, Branford Marsalis, Carlos Santana e
outros. Suas músicas falam da paz (“Fifa”), da vida (“Ayé”), do meio ambiente, das
crianças (“Mutoto Kwanza” – “Crianças Primeiro”) e das culturas africanas. Ela
participou do evento Back2Black, no Brasil, que promove encontros artísticos,
políticos e culturais entre o Brasil e a África. É embaixadora da UNICEF, desde
2002, sempre promovendo eventos para ajudar as crianças de países africanos e
também do Haiti. Em 2006, criou a Fundação Batonga, em Washington, que atua em
países africanos (Benin, Mali, Serra Leoa, Camarões e Etiópia) e dá formação
educacional para meninas e mulheres para que se tornem lideranças. A fundação
oferece bolsas de estudo, material escolar, apoio aos professores e constrói escolas.
Desde 2009, apoia a Campanha “Direitos da Mulher na África” (Africa Womens
Right) da Federação Internacional de Direitos Humanos, e também a Campanha
para a Erradicação do Tétano, da UNICEF. Em 2010, tornou-se embaixadora do
“Live Earth”, participando de um show de 24 horas de música em várias cidades de
todos os continentes. O objetivo era sensibilizar a opinião pública mundial para o
aquecimento global, organizado pelo Save our Selves (“Salvemos a Nós Mesmos”).
O projeto Playing for Change: Songs Around the World (“Tocando para
Mudar: Músicas ao redor do Mundo”), criado em 2007, reúne músicos de inúmeros
países para promover a paz e realizar a construção de escolas de música, como em
Kirina (Mali); Tamale (Gana); Kigali (Ruanda); e Gugulethu (África do Sul). Este
projeto é apoiado por músicos africanos como Baaba Maal e Barou Sall (Senegal);
Toumani Diabate, Mahamadou Diabate e Tinariwen (Mali); Ilo Ferreira (Cabo Verde);
Mermans Kenkosenki e Jason Tamba (Congo); Ijeoma Njaka (Nigéria); Ruth “Titi”
Tsira e Vusi Mahlasela (África do Sul); Louis Mhlanga (Zimbabwe); Kadiatou Sibi
1314
(Gâmbia); Mohammed Alidu e Rocky Dawunting, (Gana); Collin Sekajugo (Ruanda);
e músicos de várias partes do mundo: Bono, Keb‟ Mo‟ e Sandra de Sá.
Fatoumata Diawara, nascida em 1982, é atriz, compositora e cantora do
Mali. Nasceu na Costa do Marfim, mas seus pais são do Mali e é lá que ela vive.
Tem influência das músicas tradicionais wassoulou, parecidas com o blues. Em
2012, participou da Campanha “30 Canções, 30 Dias” para apoiar as mulheres numa
plataforma multiprojeto de mídia denominada “Metade do Céu: como as mulheres ao
redor do mundo lutam por um futuro melhor.”. Em 2013, ela juntou mais de 40
músicos de seu país para gravar um vídeo para a paz no Mali – que passou por uma
guerra civil, com a interferência de tropas da França. A Campanha é “Vozes Unidas
por Mali” e o título da música é Mali-Ko (“A Paz”) e conta com o apoio de Toumani
Diabate, Amadou e Mariam, Oumou Songaré, Bassekou Kouyate, Vieux Farka
Toure, entre outros. Bassekou Kouyate, tocador de n‟goni (origem do banjo), já havia
gravado um vídeo em favor da tolerância e da paz, chamado Jama-Ko.
Toumani Diabaté (nascido em 1965), músico do Mali, é tocador de korá (um
dos instrumentos dos griot) e pertencente a uma família de griots, da etnia
mandinga, há 71 gerações, e é outro destes exemplos de elevação da música e da
cultura africana tradicional e moderna a níveis mundiais. Seu pai Sidiki Diabaté foi
denominado o Rei do korá na África. Toumani gravou com Ry Cooder e Ali Farka
Touré. Dois de seus álbuns são de solos de korá: “Kaira” (1987) e “The Mandé
Variations” (2008). Mesmo sendo um músico famoso e de enorme sucesso no
mundo continua dando aulas de korá e música tradicional moderna no Conservatório
em Bamako, iniciado em 2004. Ele e outros músicos se mobilizam para ajudar a
preservação da música tradicional (de korá) e para educar as novas gerações para
conservar seu rico patrimônio musical. Atualmente é embaixador da ONU.
Estes músicos também bebe(ra)m de fontes antigas como as das mulheres
griots dos Mande. Segundo Diawara, entre elas existe uma canção popular chamada
“Baninde” (“dizer não a opressão, desafiar o opressor”). Ao cantar esta canção as
mulheres estão exortando os jovens para que resistam à injustiça e busquem
transformar o mundo para melhor, seguindo o exemplo de seus antepassados. A
canção “vai repetindo o refrão „Ban ye dunya la dyala‟ („A resistência traz alegria ao
mundo‟), seguido dos nomes dos heróis cuja resistência fez com que a vida dos
africanos mudasse para melhor” (Apud SANTOS, 2013, s. p.).
1315
Considerações finais
Frente a estes músicos, podemos dizer que, da mesma forma que a África foi
apropriada, transformada e ressignificada na diáspora, os africanos se apropriaram,
reelaboraram e ressignificaram inovações ocidentais e africanas da diáspora. Um
exemplo disso pode ser encontrado na fala de Anjelique Kidjo, que diz: “(...) eu
aprendi que a fim de se dar através da música, você tem que se posicionar entre
outros indivíduos que pertencem a diferentes culturas e estilos e então buscar
caminhos para descobrir que nós não somos totalmente diferentes.” (Jornal O
Estado do Maranhão, 02/set/2009, s.p.).
Os músicos africanos beberam das fontes das musicalidades da diáspora
caribenha, norte-americana e brasileira – que já tinham influências profundas vindas
da África - misturaram estas influências com as músicas tradicionais e devolveram
para o mundo uma variedade imensa de gêneros e ritmos musicais. Eles misturaram
tradições e inovações e produziram novas sonoridades riquíssimas e inovadoras.
Dentre essa herança podem ser citados os seguintes e mais conhecidos
gêneros musicais: o afrobeat, disseminado por Fela Kuti; o juju, popularizado por
King Sunny Ade; o highlife; o makossa, difundida por Manu Dibango; o soukos ou
Rumba Africana; a morna, popularizada por Cesária Évora; o Pop do Senegal,
difundido por Youssou N'Dour, Baaba Maal e Ismael Lo; as músicas mandingas, de
Toumani Diabate, Ali Farka Toure e Salif Keita; as músicas isicathamiya e
mbaqanga, popularizada pelo grupo Ladyshmidt Black Mambazo.
Esta pequena amostra da música africana deixa bastante evidente que temos
muito a aprender com a impressionante riqueza das músicas que vem desse
continente
com
enorme
diversidade
cultural.
Conforme
Eduardo
Socha,
“percebemos que direcionar nossa atenção à música africana significa não apenas
ouvir o passado e o presente. Como nos mostra a arte contemporânea, significa
também ouvir o futuro da música ocidental.” (SOCHA, s. d., p. 27).
Infelizmente, no Brasil não conhecemos quase nada desta vasta e rica
produção das culturas e das músicas da África. As musicalidades e riquezas
culturais do continente africano continuam a não ter nenhum espaço por aqui.
Segundo o escritor angolano José Eduardo Agualusa, os brasileiros tem vergonha
de suas raízes africanas e preferem consumir as produções norte-americanas. Ou,
1316
como disse Anjelique Kidjo, em sua passagem pelo Brasil: “Há tantos problemas que
vem dessa vontade de ocultar a África quando ela está aqui presente; sem a África
não haveria o Brasil (...).” (Jornal O Estado do Maranhão, 02/set/2009, s. p.).
Podemos acrescentar que sem a África e os seus descendentes nós teríamos muito
menos riqueza cultural, étnica e, especialmente, musical.
Referências Bibliográficas
ARTE DA ÁFRICA. Catálogo da Exposição Arte da África: Obras primas do Museu
Etnológico de Berlim. Peter Junge (org.). Rio de Janeiro: Brasília: São Paulo: Centro
Cultural Banco do Brasil, 2003.
BARRY, Boubacar. Senegâmbia: o desafio da história regional. Rio de Janeiro:
Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2000.
DIAWARA, Manthia. A arte da resistência africana. Trad. Marina Santos. In:
www.artafrica.info/html/artigotrimestra/ , acessado em 16/mar./2013.
_____. Africa‟s art of resistence. In: In Search of Africa. Cambridge: London:
Harvard University Press, 1998, p. 174-212.
FLORI, Jean-Jacques. Documentário “Music in the weapon”. 1982.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
_____. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história
contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.
KI-ZERBO, Joseph (coord.). História geral da África: metodologia e pré-história
da África. São Paulo: Ática: UNESCO, 1982, v. 1, p. 27-31.
LEVY-HINTE, Jeffrey. Documentário “Soul Power” (“Zaire 1974”). 2008.
O ESTADO DO MARANHÃO. Anjelique Kidjo em São Luiz. São Luiz, 2/set/2009. In:
www.blogoestado.com/josejorge , acessado em 7/mar/2013.
SALVATORE, Aja. Documentário “Music in Mali – Life is Hard, Music is Good”.
2013.
SOCHA, Eduardo. O continente que deu ritmo ao mundo. Biblioteca EntreLivros.
Ed. especial n.6, p. 24-27. São Paulo: Duetto, s/d.
1317
SOYINKA, Wole. Uma lição do balafo. In: Arte da África. Catálogo da exposição.
Peter Junge (org.). Rio de Janeiro: Brasília: São Paulo: Centro Cultural Banco do
Brasil, 2003.
VASARHELYI, Elizabeth Chai. Documentário “Yossou N’Dour: I Bring What I
Love”. 2008.
VUNGE, Adebayo. Artes negras: Festival Mundial em Dakar. Luanda,
22/dez./2010. In: http://funjadadesabado.blogspot.com.br/2010/12/artes-negrasfestival-mundial-em-dakar.html acessado em 12/mai./2013.
1318
Download