A problemática câncer do colo do útero

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Câncer na visão de usuárias de unidades de saúde do município de Campina
Grande-PB
Joselito Santos
A problemática câncer do colo do útero
No Brasil, desde a década de 30, com a queda da mortalidade causada pelas
doenças infecciosas e parasitárias, as neoplasias, juntamente com as doenças do
aparelho circulatório, vêm sendo responsáveis por um número cada vez maior de
óbitos, apontando para uma mudança no perfil de mortalidade semelhante àquela
observada nos países desenvolvidos (Brasil, 2000a).
Alguns estudos definem esse panorama como decorrente do processo de
urbanização, unido à mudança nos hábitos alimentares, comportamentos sociais e
sexuais, e exposição a diversos riscos ambientais, que gerou também o aumento da
morbi-mortalidade por doenças crônico-degenerativas e um declínio diretamente
proporcional por doenças infecciosas e parasitárias (Brasil, 2001a).
No quadro das doenças crônico-degenerativas, o câncer se destaca por ser
importante problema de saúde1. No Brasil, para o ano 2000, estimava-se que
ocorreriam 337.535 casos novos e 122.600 óbitos por câncer no país. Para os
homens, esperava-se 165.895 (49%) casos novos e 66.060 (54%) óbitos, e para as
mulheres estimavam-se 171.640 (51%) casos e 56.540 (46%) óbitos (Brasil, 2002).
Quanto ao sexo feminino, os cânceres mamários e genital são os tumores
mais freqüentes entre as mulheres. Especificamente em relação ao câncer do colo
do útero2, seu início se dá por transformações intra-epiteliais não malignas
progressivas que podem evoluir para uma lesão invasora, num período de 10 a 20
anos (Brasill, 2000a). A evolução dessa patologia, na maioria dos casos, se dá de
forma lenta, passando por fases pré-clínicas detectáveis e curáveis. Dentre todos os
tipos de câncer é o que apresenta um dos mais altos potenciais de cura
(Brasil, 2002).
1. A esse respeito ver material do Instituto Nacional de Câncer – INCA, disponível no Periódico
Revista Brasileira de Cancerologia, que traz artigos especializados sobre a temática câncer.
Recomendável também acessar endereço eletrônico: http://inca.org.br
2. O INCA, é o órgão governamental normativo, coordenador e avaliador na formulação da política
nacional de prevenção e controle do câncer (PNPCC). Na detecção precoce do câncer, o Programa
Viva Mulher abrange o controle do câncer do colo do útero e de mama.
2
Para esta enfermidade são considerados fatores de risco a multiplicidade de
parceiros, história de infecções sexualmente transmissíveis (da mulher e de seu
parceiro) e a idade precoce na primeira relação sexual e multiparidade. Além desses
fatores, estudos sugerem outros, cujo papel ainda não é conclusivo, tais como
tabagismo, alimentação pobre em alguns micronutrientes e uso de anticoncepcionais
(Ponten et al., apud Brasil, 2000c). Há consistente associação desta patologia com o
baixo nível sócio econômico de diversas camadas populacionais em todo o mundo.
Estudos do Brasil (2000a) indicam que o câncer do colo do útero representa
cerca de 15% de todos os tipos de câncer femininos, sendo o segundo tipo mais
comum entre as mulheres. A característica principal do câncer do colo do útero é a
sua associação com o baixo nível sócio-econômico em todas as regiões do mundo,
afetando os setores da população mais vulneráveis socialmente. Os estudos indicam
que nesses setores se concentram as barreiras que dificultam o acesso aos serviços
para diagnóstico e tratamento precoce da doença, barreiras estas oriundas das
dificuldades financeiras, institucionais e de insuficiência de serviços especializados.
O colo do útero é a parte do organismo mais suscetível ao câncer em
mulheres da América Latina e Caribe. Calcula-se que, em todas as Américas,
incluídos Canadá e EUA, a cada ano ocorrem quase 68.000 novos casos de câncer
cérvico-uterino (Parkin, apud Robles et al., 1996). Aproximadamente 80% dos casos
de câncer cervical diagnosticados em todo o mundo ocorreram nos países em
desenvolvimento (Nascimento et al. 1996; Brasil, 2000b).
No Brasil, estimou-se para o ano 2001, 16.270 novos casos e 3.725 óbitos 3
(Brasil, 2001a). Para o Nordeste foram estimados, para 2001, 780 óbitos e 3.960
novos casos de câncer do colo do útero e, para a Paraíba, a estimativa foi de 30
óbitos e 160 casos novos. No Nordeste a taxa de incidência é de 16,25/100.000 e a
de mortalidade corresponde a 3,12/100.000 e na Paraíba, as taxas de incidência e
de mortalidade estimadas são 8,93/100.00 e 1,79/100.000 respectivamente
(Brasil, 2001b).
Em relação aos novos casos por região geográfica no Brasil, o câncer do colo
do útero ocupa a primeira posição na Região Norte, a segunda posição na Região
Nordeste e terceiro lugar nas Regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. É a segunda
causa de mortalidade por câncer na Região Norte, a segunda nas Regiões Nordeste
3. Para obter mais dados sobre a estimativa de incidência e mortalidade por câncer no Brasil
recomenda-se acessar http://www.inca.org.br
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e Centro-Oeste. Nas Regiões Sul e Sudeste, a mortalidade por esta doença ocupa a
quarta e quinta posição respectivamente, e sua taxa de incidência é de
18,86/100.000 e a de mortalidade 4,31/100.000 (Brasil, 2001b; Kligerman, 2001).
De acordo com dados do Sistema de Informação de Mortalidade – SIM –
ocorreram na Paraíba, no ano 2000, 806 óbitos por câncer, sendo 25 deles (3,0%)
por câncer do colo do útero. O Sistema de Informação sobre Câncer de Colo de
Útero - Siscolo, implantado em 2000, registrou um total de 1.122 lesões precursoras
do câncer do colo do útero, dentre os 104.758 mil exames colpocitológicos
realizados. As lesões de alta malignidade corresponderam a 0,24% dos exames
realizados e a mortalidade por câncer de colo de útero foi de 1,41/100.00 (Paraíba,
2000). Em Campina Grande, no ano de 2000, de acordo com dados da Secretaria
Municipal de Saúde, ocorreram 12 óbitos por câncer do colo do útero
(Campina Grande, 2001).
Atualmente, a medicina dispõe de uma arma eficiente para detectar o câncer
do colo do útero que, se diagnosticado precocemente, tem cura. É a colpocitologia
oncótica - teste de Papanicolaou. Apesar deste exame ser simples, inócuo, eficiente
e barato, tem sido utilizado no Brasil, na maioria dos estados, de forma incipiente e
com pouco impacto na redução da morbimortalidade por esta doença (São Paulo,
1996).
Nos países com serviços de saúde organizados e que investiram na
prevenção do câncer do colo do útero, houve uma sensível redução da taxa de
mortalidade, como os Estados Unidos e Canadá, cuja faixa de redução é de 5% ao
ano. Para reduzir o problema, algumas ações podem ser desenvolvidas, como
colocar ao alcance da população feminina exames preventivos e ações educativas
para identificar as mulheres que possam vir a ter o câncer (Robles, 1996), bem
como, desenvolver ações para motivá-las a realizarem os exames. Para isso, é
necessária a implantação e/ou implementação de programas efetivos, eficazes e
permanentes nos serviços de saúde.
Os estudos demonstram que, a cada ano que passa, o câncer do colo do
útero se configura como importante problema de saúde pública e causa de morte
feminina no Brasil. Observa-se que mesmo dispondo de muitos dados que podem
ser influenciadas pela heterogeneidade da qualidade de informação, da qualidade da
assistência prestada, do nível de capacidade diagnóstica e do grau de acesso aos
serviços de saúde, é possível visualizar a distribuição das principais neoplasias
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malignas nas diversas regiões do Brasil. Este panorama possibilita melhor alocação
dos esforços e recursos, para promoção de ações e controle do câncer no país
(Brasil, 2002).
A partir destas observações, o objetivo deste trabalho é compreender o
câncer na visão de usuárias de unidades de saúde no município de Campina
Grande, no estado da Paraíba. Para desenvolvê-lo foram realizadas, no primeiro
semestre de 2002, entrevistas: 17 com usuárias da Unidade Básica de Saúde Raif
Ramalho, 16 usuárias do Hospital Universitário Alcides Carneiro, ambos localizados
na zona urbana do município de Campina Grande, no estado da Paraíba. Como
instrumento de coleta de dados foi utilizado um roteiro de entrevista estruturado,
com questões subjetivas. Os depoimentos das usuárias são analisados pela
metodologia qualitativa, cuja análise do processo saúde-doença considera aspectos
sócio-econômicos e culturais, vivenciados pelas usuárias, cujos valores, ideologias,
crenças estão interrelacionados às ações de saúde.
Uma abordagem a partir da observação
Para o enfrentamento do câncer já é aceita a noção de que o melhor
tratamento para um paciente com a doença é conseguido com a integração de
diversos serviços. Ocorre que a experiência profissional tem demonstrado que esses
serviços se referem ao tratamento oncológico dentro da visão biomédica, sem uma
clara definição ou contemplacão de outros aspectos que circundam a doença, o que
reflete a necessidade de novos tipos de abordagens que auxiliem no tratamento, na
melhoria da qualidade de vida dos pacientes e na compreensão do significado que
eles atribuem à doença.
Em nossa experiência profissional constatamos que a saúde é colocada
dentro de uma visão técnica, racionalista e instrumental, conformando um modelo
que não consegue alargar seu alcance além dele mesmo. Tal caracterização impede
uma compreensão mais ampla e complexa do contexto em que está inserida a
problemática câncer. Sobre este, é importante observar que, além da necessidade
de integrar serviços, de esclarecer a população sobre a doença, sua dimensão, suas
formas de prevenção e fatores de risco, também é preciso compreender as
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concepções de saúde das pessoas, visando por conseguinte, entender esse
processo.
Ocorre que a observação às equipes de saúde, tem demonstrado, na maioria
das vezes, que elas não dispõem de habilidades para lidar com questões que se
alarguem além da visão biológica da saúde, encontrando dificuldades, por diversos
motivos, para compreender o que pensam e como os indivíduos agem sobre a
doença que lhes afeta e/ou que lhes pode afetar. Encontram dificuldades, por
exemplo, para compreender como as usuárias concebem seu problema e seu
próprio corpo, não conseguem partilhar um espaço que as permita formular suas
próprias idéias sobre seu estado de saúde em um plano dialógico.
Parece difícil aos profissionais de saúde romperem com a rigidez do trabalho
mecanicista e hierárquico, não demonstrado, muitas vezes, capacidade de utilizar
sua autonomia profissional para romper com as ações preconcebidas e rotineiras
que, na maioria das vezes, os conduzem a não compreenderem o significado que os
usuário(as) e pacientes atribuem a sua doença.
Alguns estudos têm demonstrado que os profissionais de saúde justificam
muitas de suas atitudes e dificuldades de atuação por sobrecarga e precariedade do
local de trabalho, isentando-se de seu compromisso sobre as condições de vida da
população. Dessa forma, afastam-se das questões sociais e voltam sua atenção
preferencialmente para os formatos prescritivos, relegando a importância de sua
participação em atividades que promovam a melhoria da qualidade de saúde da
comunidade (Fernandes; Narchi, 2002).
Consideramos que a percepção do câncer do colo do útero e da saúde, além
daquela colocada anteriormente, como racionalista, possibilita compreender a forma
pela qual os atores envolvidos nesse processo, a exemplo das usuárias dos serviços
de saúde, representam esse cenário. Dessa forma, a partir dessa percepção
também é possível indicar outras formas de abordagem da temática câncer do colo
do útero, sobretudo, subsidiadas pelos saberes das usuárias.
Essa observação é necessária, pois se percebe que há todo um investimento
simbólico diante do câncer, cuja construção ocorre socialmente. Diante dessas
considerações, acredita-se que a saúde pública deve buscar compreender a visão
das usuárias dos serviços de saúde sobre o câncer. A partir dessa visão pode-se
analisar e discutir a possibilidade da inclusão dos aspectos simbólicos na
abordagem dessa doença nos serviços de saúde, com vista a sua melhor
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compreensão, cuja visão médico-biológica, apenas, tem sido incapaz de dar conta
da complexidade desse objeto.
Compreendendo os depoimentos
Desenvolvemos o estudo levando em consideração que as informações
fornecidas pelas usuárias sobre a assistência recebida e a compreensão do
significado que elas dão ao câncer do colo do útero são importantes para
compreensão de suas atitudes e práticas diante da doença, bem como para a
reorientação e adoção de novas práticas dos programas voltados à prevenção,
tratamento e cura dessa doença.
Os depoimentos revelaram que, quanto ao motivo pelo qual as usuárias
procuravam por assistência, as intercorrências ginecológicas representaram 79% e a
procura por prevenção representou apenas 21% do total. Esse dado revela que a
prevenção deveria estar em primeiro plano, mas tem recebido pouca ênfase, fato
que indica a necessidade de seu redimensionamento, visando inverter o pronto
atendimento e a visão meticamentosa e curativa adotada pelos serviços de saúde, e
para a melhoria da veiculação das informações e esclarecimentos às mulheres, de
preferência conduzindo-as à visão da promoção da saúde como parâmetro ideal
para as suas vidas, discutindo com elas essas mesmas questões.
Outras dimensões foram exploradas no trabalho, de maneira que pudessem
refletir a percepção das mulheres sobre a assistência recebida no serviço de saúde
onde foram atendidas. A esse respeito, os depoimentos revelam uma atenção
inadequada, corroborada pelo autoritarismo dos profissionais, a quem elas atribuem
a responsabilidade pela recuperação de sua saúde e pela cura do corpo.
“A gente vem cuidar do nosso problema de mulher e de coisa que aparece no
corpo e as pessoas aqui tratam a gente muito ruim. Cheguei cedo e ainda não fui
atendida e a moça (enfermeira) disse que é assim mesmo. Tô com um exame pra
mostrar e tô muito ansiosa para falar com um médico mas desse jeito não sei se
vai dá pé não” (Ent. 11).
“É difícil moço tá aqui e ser tratada desse jeito ... o doutor não escuta os problema
da gente e despacha a gente logo ... o rapaz lá do balcão marcou uma ficha
errada pro exame de ultrasom e até agora eu não resolvi o problema e se eu tiver
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algum problema que é que eu faço? Eles sabem que a vida da gente está nas
mãos deles mas não ligam pra isso, e isso atrapalha ainda mais as coisas que a
mulher tem para tratar” (Ent. 21).
“Um doutor é uma pessoa que sabe das coisas e que a gente acha que vai
resolver nosso problema de mulher. Só que quando a gente chega aqui é tratada
com desprezo e sem mesmo ser vista na cara pelo doutor... não pergunta muitas
vez nem nosso nome e fica brabo sem eu saber porque, o que foi de errado que
fiz pra ele ficar daquele jeito ... desse jeito a gente fica mais nervosa ainda vindo
pro médico e mostrar as coisas que a gente tem” (Ent. 26).
Ainda sobre a assistência, atribuem falta de compromisso social e indiferença
dos profissionais diante do fator que ocasionou a ida delas ao serviço, sendo mais
importante, aos profissionais de saúde, a prescrição meticamentosa imediata que a
conversa esclarecedora e amiga. Problemas que subjazem além da doença que se
descortina, como os de ordem psicossocial e subjetivas são relegados.
“Tava muito triste com uns probleminhas de saúde e de casa. O doutor não quis
ouvir o dito que eu tinha pra dizer sobre o que doía. Mas o que eu queria mesmo
era conversar com ele pra ter esclarecimento sobre outras coisas que incomodam
a minha cabeça, minha vida e sobre a doença. Ele disse que tinha que me
medicar, baixou a cabeça escreveu uma receita com três remédios que eu não
entendi e me mandou voltar quando acabasse os remédios. Fiquei triste porque
ele não ligou para a minha voz, pro meu problema, só empurrou remédio e pronto
... e a pessoa onde é que fica nessa história?” (Ent. 18).
“Queria mais que ser atendida. Eu queira mesmo era encontrar alguém para
conversar, um doutor por exemplo. É ele quem compreende o problema e com ele
a gente confia contar as coisa. Mas a doutora que atendeu não ligou muito não. A
conversa que eu queria eu não tive. Só sei que tem uma receita e um exame pra
eu fazer, mas ninguém perguntou se eu tinha dinheiro ou não... Acho que tenho
que se virar sozinha (Ent. 2).
“Onde está o compromisso com as pessoas que precisam disso aqui. E o
juramento para tratar bem? Acho que as pessoas merecem respeito e o pessoal
daqui devia dar mais atenção à sociedade que vem para cá e precisa deles. Eles
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deviam ter mais responsabilidade com essas coisas ... nossa saúde não é
brinquedo não ... eu sou gente e eles não ver isso” (Ent. 22).
As usuárias deixaram emergir, com muita freqüência, que o modelo de
atenção ora em vigor e que lhes assiste, resulta da culpa do sistema, já que o
governo não pune os maus servidores e os chefes não ligam para a situação, sendo
improdutivo fazer qualquer reclamação.
“O governo só fala que vai resolver mas não resolve. Já vim aqui muitas vezes e
as pessoas continuam atendendo igual, ruim. As mesmas pessoas fazem as
mesmas coisas sempre. Também ninguém aqui resolve e eles deitam e rolam e
fazem o que querem da gente” (Ent. 4).
“Isso é culpa do INPS que desleixou de vez. Era ruim as coisas aqui só que acho
que tá cada dia mais ruim. Esse tal de SUS só tem conversa e nada ... consulta é
pouca e remédio pra mulher se tratar nem vê. Exame só na secretaria e lá nem vê
também... só vejo falar num tal de sistema e nada, nada... nadinha” (Ent. 9).
“Me mandaram reclamar essa “desculhambação” pro diretor, dei lá um depoimento
que uma moça escreveu mas não vi mais nada fora isso. O rapaz que me
maltratou continua trabalhando no mesmo canto ... Os chefes parece num ligar pra
nada. Se os chefes não fazem nada o que a gente mulher vai fazer se ninguém
escuta? Quando escuta é só de faz de conta” (Ent. 33).
A esses fatores emergiram sentimentos ligados à condição social, cujo
atendimento ruim elas atribuem a suas condições de cidadãs pobres. Essa condição
lhes impede de dispor de planos de saúde, sentimentos que se afloram mais
contundentemente quando declaram não terem outra “saída” pois suas condições
sócio-econômicas as obrigam a submeter-se ao atendimento, mesmo que seja ruim.
“Atende a gente assim porque nós é tudo pobre. Se nós fosse rico todo mundo
falava com a gente e atendia rindo e chamando de madame. Ser pobre é assim
mesmo, ninguém trata como gente. A gente parece uns cão sem dono seu moço”
(Ent. 16).
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“Teve uma mulher aqui que chegou de carro e era colega de uma das mulheres
que trabalha aqui e foi colocada na nossa frente e a gente teve que ficar
esperando um tempão. Apois a gente não tem carro e nem tem colega aqui
dentro. Apois pra chegar té aqui a gente não tem dinheiro e vem caminhando com
as pernas inchada... Ninguém se importa se as coisas nossa é assim” (Ent. 29).
Essa condição fez emergir sentimentos ligados à falta de opção, falta de outro
serviço de saúde para onde ir, tendo em vista os poucos locais que oferecem o
atendimento que elas procuram.
“Seu moço eu já rodei a cidade inteira pra encontrar médico e não acho. Na minha
cidadezinha não tem nem posto que preste e venho parar aqui em Campina. Já
corri tudo que é hospital e secretaria de saúde e vim parar aqui após dois meses
depois da marcação... não tinha vaga pro dia que vim aqui, só tinha médico pra
hoje” (Ent. 3).
“Nossa precisão manda a gente pra qui. O problema que eu venho resolver aqui
não encontrei outro lugar pra ver. O povo que trabalha nesses canto diz que não
tem vaga e que espere com paciência. Chega noutro e acontece a mesma coisa.
É preciso tá muito necessitada pra sofrer esse sufoco todo. Se mais lugar
atendesse a gente, a gente não precisava correr tanto prá cuidar da saúde da
gente” (Ent. 19).
“Já desisti de procurar e venho pra qui. Demora eu ser atendida mas é o jeito. Ou
me humilho nessas fila ou nada feito. Se a gente tem que cuidar da saúde é o
jeito, fazer o quê? Melhor que ficar sem ser atendida” (Ent. 28).
Esses depoimentos colocam-se no plano de questões mais pontuais que
dizem respeito ao sistema de saúde implantando em nosso país. É esse sistema de
que dispõem essas mulheres para cuidar da saúde e que as submete a uma árdua
tarefa que é acorrer aos serviços públicos de saúde sem a certeza de receberem
assistência adequada, o que pressupõe a necessidade de rever-se as políticas
voltadas para o setor, com vistas a melhorar a qualidade dos serviços oferecidos a
essas mulheres.
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Além de tentarmos compreender essas questões, procuramos, através dos
depoimentos, identificar a forma pela qual as usuárias concebem o câncer do colo
do útero: sua prevenção, tratamento e cura. As transcrições revelam a importância
de se compreender e valorizar seus saberes, considerando-os como mais um
elemento para compreensão do câncer, além daqueles fornecidos pela visão
biomédica.
Os depoimentos sobre o exame preventivo revelam uma reação negativa das
mulheres como o medo do diagnóstico e incerteza, como se pudessem transportar
de um “futuro” para o “hoje” algo que lhes poderia acontecer e mudar o curso de
suas vidas.
“Fico com medo do exame porque a gente não sabe o que vai acontecer quando
abrir o papel ou falar com o médico sobre o resultado. Pode ser que tenha alguma
coisa lá e prejudique a saúde da gente e aí... pode ser uma vida de sofrimento se
confirmar alguma coisa, a gente sempre espera uma coisa pior” (Ent. 5).
“O exame é uma coisa que a gente nunca sabe o que vai dar. Isso deixa a gente
preocupada e se alguma coisa dá errado a gente tem que vir muitas vezes ao
médico, vir muitas vezes ao hospital e deixar de fazer outras coisas na vida e a
vida passa com isso” (Ent.. 30).
Ao falarem sobre o câncer deixaram transparecer uma visão pessimista, cujo
significado revela uma palavra que não pode ser pronunciada – usam o termo
“aquela doença” em muitos casos – ; idéia de finitude; malignidade; incapacidade
física. Algumas não o consideram como possível de cura, como ocorre em alguns
casos, quando diagnosticado precocemente.
“Penso ser incurável, sem jeito ... como pensar na morte. Uma amiga minha viveu
apenas dois meses depois que soube que tinha a doença. Isso assusta a gente e
não se sabe o que fazer para não ficar com medo dessa realidade” (Ent. 12).
“Tive conhecidos que já tiveram aquela doença (câncer) tanto homem como
mulher. Eles morreram e fiquei muito triste e com medo. Imaginei que também
poderia ser comigo... Foram embora do dia pra noite, não tiveram chance
nenhuma, só sofreram muito” (Ent. 23).
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“Pra mim é uma doença má e que faz uma pessoa sofrer quando tem ela. Eu acho
que essa doença significa coisa ruim e que não é bom pra ninguém... Ao ouvir o
nome a gente imagina dor e a morte (...) Penso cá comigo que a gente se ficar
com esse tal de câncer fica com as partes paralisada... como uma amiga minha
que operou o peito e ficou com problema de pegar peso e deixou de trabalhar ...
fez quimioterapia que dói e queima mas não resolveu o problema dela” (Ent. 24).
Na visão das mulheres o câncer significa a perda do corpo em suas partes
constitutivas. Essa idéia corresponde a uma perda seqüencial: o câncer ataca o
corpo e este se degenera, ao degenerar-se precisa ter esse processo interrompido
através da mastectomia e histerectomia.
“Vejo o câncer como uma coisa que parece uma ferida que come a pessoa. Como
é uma doença muito perigosa ela vai aumentando até a pessoa ficar necessitando
de ser operado e ter que ver arrancado o peito, o útero...” (Ent. 17).
“Pro meu modo de ver, é muito difícil ter que perder o seio e ficar com defeito,
depois ainda tem o risco de perder o outro seio, como ocorreu com uma amiga
minha... outra teve que tirar tudo do útero e ovário. Depois disso ela foi ficando
paralisada em uma cama e a doença atacando até ela perder as forças dela”
(Ent. 31).
“Meu conhecimento diz que é um mal que começa sem que ninguém veja, um
bicho silencioso, quando se sabe: “bum”! já se estar com a doença e tem que ser
operada para retirar a parte que tem um tumor” (Ent. 32).
Essa perda também representa para as mulheres uma incapacidade que se
estende além da perda de partes do corpo, envolvendo uma série de impedimentos
à vida cotidiana, a exemplo dos afazeres domésticos e de trabalho,
“Uma amiga minha deixou de lavar roupa e de passar ferro. Não consegue pegar
peso e quando pega o braço dói e incha, ela reclama muito porque não pode mais
fazer essas coisas... é isso tudo que ocorre se a pessoa tiver o câncer” (Ent. 8).
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“A pessoa fica proibida pelo médico de fazer as coisas... perde o emprego porque
não serve mais para fazer força e sem força a gente não é nada, fica inutilizada”
(Ent. 10).
“Pra quem trabalha na roça deve de ser muito difícil porque não pode ficar no sol e
nem de trabalhar com a enxada, não planta feijão nem cuida de criação, só pode
ficar de repouso pra não adoecer ainda mais como uma cumade minha que nem
um queijin (queijo) fez mais depois da cirurgia” (Ent. 13).
Emergiu dos depoimentos categorias relacionadas à condição de mães de
família, diante da possibilidade de, enquanto mulheres, serem suscetíveis à doença
que poderia impedir a assistência aos filhos e de concretude, quando do
conhecimento de casos em amigos, parentes e através deles e por outros meios.
“Nós que somos mães não podemos adoecer para não prejudicar nossos filhos. O
que vão fazer se a gente adoecer? Uma dona de casa doente é coisa muito ruim e
quem sofre é a família e a mãe fica muito triste ainda mais que a doença” (Ent. 1).
“A mulher é fácil de adoecer porque tem mais problema íntimo. Eu tenho medo de
ter o câncer porque pode me prejudicar, porque qualquer mulher pode ter
problema de peito e de problema ginecológico e se ela adoecer deixa de servir pra
fazer as coisas ....” (Ent. 34).
“A gente se espelha em outras amigas que tiveram o problema e a gente acha que
pode ser igual a nós o problema. Já vi na minha família dois câncer de mama e
numa casa perto da vila... uma vez vi uma mulher na reportagem chorando ... nós
mulheres pudemos ter a mesma coisa” (Ent.36).
O conhecimento das mulheres diante de casos de câncer com outras
pessoas, e em alguns casos, com pessoas ligadas à família, evidenciou a percepção
do problema que o câncer representa sobre a condição de mulher, sobre a relação
conjugal, o que pode interferir na vida íntima.
“Minha cunhada perdeu o marido depois que fez “teresctomia” (histerectomia) e
ela ficou só. Ele disse que não dava mais para fazer sexo com ela ... foi embora e
arrumou outra mulher” (Ent. 6).
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“Minha prima arrumou um namorado. Na hora que ele viu ela sem peito não quis
mais. Ela ficou com vergonha e ficou achando que não era mais a mulher de
antes, tem medo de ter outras pessoas prá namorar. Depois disso fiquei com
muito medo disso acontecer comigo ... não gosto nem de pensar eu com isso e
meu marido fazendo a mesma coisa” (Ent. 14).
“Acho que se alguma coisa acontecer comigo nesse sentido de câncer eu vou ficar
muito triste e amargurada feito uma colega de trabalho. Eu também acho que
ficaria feito ela, magra, chorosa e sem vontade de namorar com meu marido ...
muitos dizem que muitos homens não gostam de mulher com esse problema ...
isso atrapalha a mulher e a mulher se acaba” (Ent. 20).
Considerações finais
Esses sentimentos emergentes e esse panorama conflitante extrapolam a
própria visão de conceber, sob uma análise da compreensão das mulheres, o câncer
do colo do útero. As sintomatologias dos problemas que envolvem a saúde, a mulher
e tudo aquilo que repercute em sua vida e que refletem no seu corpo, também
redimensionam ou pelo menos, compreendem a necessidade de, ao menos, buscar
compreendê-lo além da visão moderna médico-biológica.
Buscar essa compreensão significa um desafio, dado ser o campo saúde por
demais complexo, mas ao mesmo tempo desafiador e instigante. Permite-nos
convergir com outras visões à medida que esse processo se configura como
importante objeto de estudo para as ciências sociais. Ao tentar compreendera visão
de usuárias sobre o câncer do colo do útero, oportunizamos também a possibilidade
de redimensioná-lo como expressão de uma sociedade em constante transformação
e em que, romper com determinismos e racionalismos sobre o corpo, a
saúde/doença, o indivíduo e seu entorno, também significa considerá-los como
categorias que se somam e se referem mutuamente, e em cuja relação precede um
mundo também construído pelos diferentes saberes, aspectos para os quais
nenhuma possibilidade pode ser desfeita ou desprezada, dado serem nascidos,
estabelecidos e mediados por uma série de (re)negociações e (re)significações no
cotidiano social.
Neste estudo, a tentativa de compreender algumas dessas possibilidades,
leva-nos a refletir quão importante é submeter a realidade objetiva que se desdobra
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em nossas idéias à análise do saber construído no tecido social e de construto
coletivo na circularidade dos saberes.
Existe, portanto, entre as mulheres do estudo, um compartilhamento de
idéias, opiniões e crenças sobre o câncer do colo do útero, e isso funciona como um
recurso de apreensão de mundo, consubstanciando a forma de perceberem a
saúde/doença e, conseqüentemente, o próprio sistema de saúde. Pontuamos que,
se a compreensão desses significados, desses saberes não for levada em
consideração por profissionais e serviços de saúde, é muito provável que o pouco
conhecimento de usuárias sobre o câncer do colo do útero, o medo do diagnóstico, a
incapacidade do sistema em atender à demanda, a fragilidade e a ineficiência das
políticas públicas serão fatores que continuarão relacionados ao aumento do número
de casos e mortes pela doença em nosso meio.
Referências Bibliográficas
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Saúde/INCA, 2000a.
BRASIL. Estimativa de Incidência e Mortalidade por Câncer no Brasil. Ministério
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Normas
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Recomendações do Instituto Nacional de Câncer/MS. Revista Brasileira de
Cancerologia, v. 46, n. 1, 23-33, 2000c.
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