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Ortodoxia X Heterodoxia
Desde a famosa discussão entre David Ricardo e Thomas Malthus sobre a
tendência natural da economia de mercado ao equilíbrio, a ciência econômica
se dividiu, ao longo de seu desenvolvimento, em incontáveis correntes e
escolas de pensamento, cada qual seguindo determinados axiomas e
metodologias de análise.
Geralmente, as novas escolas de pensamento econômico surgem como
contraposição às idéias predominantes no seu período. Por exemplo, Malthus,
ao defender que excessos de poupança agregada poderiam deixar uma
economia de mercado fora de uma situação de equilíbrio de pleno-emprego,
rompeu com a Lei de Say, incontestável pela Economia Política Clássica.
Depois, a Escola Histórica Alemã bateu no pressuposto de que as leis
econômicas são universais, defendendo que cada nação tem uma cultura
econômica característica. Marx, por sua vez, atacou as bases morais do
capitalismo, até então vistas como decorrência do direito natural do homem e
da disposição natural das pessoas à troca. No início do século XX, Keynes, tal
como Malthus, negou a tendência da economia de mercado ao equilíbrio, pelo
que o autor denominou de princípio da demanda efetiva. Schumpeter, por sua
vez, desconsiderou o desenvolvimento linear da economia capitalista,
apresentando sua teoria dos ciclos. Por fim, a Escola Austríaca negou a
possibilidade de descrição quantitativa (matemática e estatística) dos
fenômenos econômicos, pela complexidade da ação humana.
Nas últimas décadas, com o declínio da Escola Keynesiana, tornou-se comum
nos meios acadêmicos denominar de "Ortodoxia" as correntes predominantes
ao longo de todo o desenvolvimento da Ciência Econômica (Economia Política
Clássica, Teoria Neoclássica, Síntese Neoclássica da Teoria Geral Keynesiana,
Monetarismo e Novo-Classicismo), também conhecida como o "Mainstream" da
Economia, defendida pelos grandes centros acadêmicos, e "Heterodoxia" as
correntes de oposição, sendo as principais citadas no parágrafo anterior.
Atualmente, a dicotomia entre "Ortodoxos" e "Heterodoxos" dentro da
Economia tende a deixar de ser um debate sobre axiomas e pressupostos
sobre a análise empírica da disciplina, e se tornar um verdadeiro choque de
visões de mundo. Explicando melhor, Ortodoxos e Heterodoxos não se
preocupam tanto em discutir campos tradicionais de controvérsia na
Economia, tais como o papel do Estado no desenvolvimento (liberalismo ou
planejamento ativo), o comércio internacional (vantagens comparativas ou
deterioração dos termos de intercâmbio) e a relação entre crescimento
econômico e bem-estar social, a tampouco se apegam a determinadas
correntes políticas (direita ou esquerda), mas sim tendem a criar um duelo de
opiniões sobre a própria natureza da ciência econômica e seu papel na
sociedade.
Por um lado, vemos economistas ditos "Ortodoxos", orgulhosos por se
considerar na "fronteira da ciência", admirando engenheiros, menosprezando
sociólogos, e de vez em quando largando pérolas do tipo "se eu pudesse voltar
no tempo, teria estudado matemática, em vez de economia". Por trás desse
comportamento, estão as características das próprias ciências naturais
contemporâneas, marcadas pela frieza, pelo determinismo estrito (a não ser
pela "Teoria do Caos", que não é muito conhecida) da realidade aos modelos
já apresentados e descritos, e o caráter prático da atividade profissional, isto
é, a idéia de que o economista deve ser preparado para FAZER, e não para
ARGUMENTAR, sendo portanto, os campos de controvérsia da Ciência
Econômica deixados de lado.
Por outro lado, os economistas ditos "Heterodoxos", seja lá de qual corrente,
se preocupam mais em humanizar os grandes problemas econômicos, em
deixar a formalização matemática em segundo plano, em defender a
multidisciplinaridade entre as ciências sociais para uma melhor observação da
vida e da sociedade humana. Dessa maneira, a economia deixa de ser uma
ciência estritamente positiva para assumir um lado mais moral (tal como era
nos seus primórdios, na Economia Política Clássica), e o profissionalismo
prático dá lugar a um caráter mais intelectual para o economista. Todavia,
algumas vezes vemos economistas de correntes heterodoxas criticando a
ortodoxia sendo a crítica um objetivo em si mesmo, isto é, não com o objetivo
de correção, mas com a intenção de desmerecer os adversários, o que é
prejudicial não só à atividade profissional e científica, mas sim à própria
convivência democrática nos centros acadêmicos de Economia. Ou então,
outros Economistas elegem como seus "guias" ou "mestres" os principais
expoentes e/ou fundadores de suas correntes heterodoxas, e considerá-los a
verdade absoluta, impassíveis de críticas, o que acaba por corromper a
própria noção de Ciência Econômica, tornando-se algo como uma religião.
Fazendo uma analogia, a atual disputa na Ciência Econômica se assemelha à
disputa entre os Românticos e os Realistas na literatura mundial na metade do
século XIX.
Não cabe a nenhum economista, individual ou coletivamente,
independentemente de suas escolhas ideológicas e profissionais, julgar qual
das correntes Ortodoxas e Heterodoxas detém a verdade científica absoluta,
uma vez que esse próprio conceito é passível de controvérsias. Além disso,
nada sabemos sobre o que será "ortodoxo" ou "heterodoxo" na economia daqui
a vinte ou trinta anos. Mas é importante que seja assegurado a todos os
profissionais da economia o direito a expressar aquilo que acredita, sem
linchamentos morais, de modo a evitar que os debates intelectuais se tornem
verdadeiros campos de batalha, como já vem acontecendo.
http://www.econ.puc-rio.br/gfranco/Scheinkman_ortodoxia.htm
Folha de São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007
JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN
A ortodoxia dos heterodoxos
O conhecimento econômico avançou combinando desenvolvimento teórico com
sofisticação na análise de dados
HÁ NO Brasil uma divisão convencional entre economistas ortodoxos e heterodoxos.
Uma das principais referências heterodoxas é John Maynard Keynes. Em 1936, quando
a sua "Teoria Geral" foi publicada, a economia clássica era incapaz de explicar ou criar
políticas para resolver a Grande Depressão. Apenas dez anos depois, o futuro Prêmio
Nobel Paul Samuelson já observava a grande aceitação das idéias keynesianas nas
melhores universidades americanas e britânicas.
Mas a pesquisa em economia não parou em 1936. Na década de 50, Milton Friedman
argumentou que a hipótese de Keynes de que o consumo é uma função da renda
corrente e que, além disso, cresce menos do que proporcionalmente com a renda não era
válida. Friedman partiu de observações empíricas, mas também de um raciocínio
puramente teórico baseado no modelo de um Homo economicus racional.
Segundo esse modelo, cada família faz suas decisões sobre consumo baseadas na sua
renda esperada no longo prazo -a renda permanente, no jargão de Friedman-, em vez da
sua renda corrente. Um trabalhador desempregado que sabe que em breve terá boas
ofertas de emprego consome mais do que um com piores perspectivas.
Os dados econômicos trazem informação apenas sobre a renda anual -uma medida
muito imperfeita da renda permanente. Para superar essa dificuldade, Friedman
desenvolveu uma análise estatística sofisticada -os detalhes eu vou poupar ao leitor-,
que mostrou que, na realidade, como a teoria predizia, o consumo de cada família é
aproximadamente proporcional à sua renda permanente. Uma das implicações desse
resultado é que algumas das políticas keynesianas de curto prazo, como o corte
temporário de imposto sobre a renda, causam pouco estímulo ao consumo, porque têm
efeito limitado na renda permanente dos consumidores. O trabalho de Friedman não foi
a última palavra sobre o comportamento do consumo, mas, com um artigo de
Modigliani e Brumberg no mesmo espírito, foi a base para as pesquisas sobre esse
tópico feitas nos últimos 50 anos.
O livro de Friedman é um excelente exemplo de como inovações na teoria, aliadas a
uma análise empírica rigorosa, trazem nova luz a problemas de política econômica, mas
não é um caso singular. O conhecimento econômico avançou muito nas últimas décadas
combinando desenvolvimentos teóricos com uma crescente sofisticação na análise de
dados.
Um exemplo entre os primeiros é a teoria dos jogos, que trouxe uma perspectiva
original para situações de interação estratégica. Por sua vez, a análise empírica
beneficiou-se do progresso na econometria, o estudo de métodos estatísticos para a
interpretação da evidência econômica, e da construção de novas bases de dados.
Como em todo campo em que há atividade de pesquisa, uma parte do que é produzido
em economia tem pouco valor e é rapidamente esquecida, mas há grande contraste entre
a literatura "convencional" e a literatura acadêmica heterodoxa no Brasil, em que se
encontra com muito maior freqüência referências a Keynes ou Ricardo (morto em 1823)
do que a artigos recentes em econometria ou teoria econômica.
Tudo isso seria de pouca importância se fosse uma mera discussão acadêmica, mas
essas divisões têm outras conseqüências. No começo da década de 70, Carlos Langoni
documentou que investimentos em educação no nosso país tinham uma taxa de retorno
muito alta e poderiam servir para reduzir a desigualdade. O trabalho de Langoni foi
recebido com hostilidade no meio acadêmico brasileiro e não influenciou a política
educacional.
Houve elementos ideológicos nesse episódio, mas a acolhida negativa também foi
resultado da falta de conhecimento entre boa parte dos economistas brasileiros da teoria
do capital humano e da incapacidade destes para julgarem a qualidade dos métodos
empíricos que Langoni utilizou. Não é óbvio que o governo da ditadura, interessado em
grandes obras e subsídios a empresários amigos, teria escutado a academia, mas
perdemos uma chance de investir mais cedo em educação.
Leio no dicionário Houaiss da língua portuguesa que um uso informal da palavra
"ortodoxo" é "que não tolera o novo e o diferente". Exatamente o que parece descrever
uma parcela dos heterodoxos.
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