http://essametamorfose.blogspot.com/2006/09/ortodoxia-x-heterodoxia.html Ortodoxia X Heterodoxia Desde a famosa discussão entre David Ricardo e Thomas Malthus sobre a tendência natural da economia de mercado ao equilíbrio, a ciência econômica se dividiu, ao longo de seu desenvolvimento, em incontáveis correntes e escolas de pensamento, cada qual seguindo determinados axiomas e metodologias de análise. Geralmente, as novas escolas de pensamento econômico surgem como contraposição às idéias predominantes no seu período. Por exemplo, Malthus, ao defender que excessos de poupança agregada poderiam deixar uma economia de mercado fora de uma situação de equilíbrio de pleno-emprego, rompeu com a Lei de Say, incontestável pela Economia Política Clássica. Depois, a Escola Histórica Alemã bateu no pressuposto de que as leis econômicas são universais, defendendo que cada nação tem uma cultura econômica característica. Marx, por sua vez, atacou as bases morais do capitalismo, até então vistas como decorrência do direito natural do homem e da disposição natural das pessoas à troca. No início do século XX, Keynes, tal como Malthus, negou a tendência da economia de mercado ao equilíbrio, pelo que o autor denominou de princípio da demanda efetiva. Schumpeter, por sua vez, desconsiderou o desenvolvimento linear da economia capitalista, apresentando sua teoria dos ciclos. Por fim, a Escola Austríaca negou a possibilidade de descrição quantitativa (matemática e estatística) dos fenômenos econômicos, pela complexidade da ação humana. Nas últimas décadas, com o declínio da Escola Keynesiana, tornou-se comum nos meios acadêmicos denominar de "Ortodoxia" as correntes predominantes ao longo de todo o desenvolvimento da Ciência Econômica (Economia Política Clássica, Teoria Neoclássica, Síntese Neoclássica da Teoria Geral Keynesiana, Monetarismo e Novo-Classicismo), também conhecida como o "Mainstream" da Economia, defendida pelos grandes centros acadêmicos, e "Heterodoxia" as correntes de oposição, sendo as principais citadas no parágrafo anterior. Atualmente, a dicotomia entre "Ortodoxos" e "Heterodoxos" dentro da Economia tende a deixar de ser um debate sobre axiomas e pressupostos sobre a análise empírica da disciplina, e se tornar um verdadeiro choque de visões de mundo. Explicando melhor, Ortodoxos e Heterodoxos não se preocupam tanto em discutir campos tradicionais de controvérsia na Economia, tais como o papel do Estado no desenvolvimento (liberalismo ou planejamento ativo), o comércio internacional (vantagens comparativas ou deterioração dos termos de intercâmbio) e a relação entre crescimento econômico e bem-estar social, a tampouco se apegam a determinadas correntes políticas (direita ou esquerda), mas sim tendem a criar um duelo de opiniões sobre a própria natureza da ciência econômica e seu papel na sociedade. Por um lado, vemos economistas ditos "Ortodoxos", orgulhosos por se considerar na "fronteira da ciência", admirando engenheiros, menosprezando sociólogos, e de vez em quando largando pérolas do tipo "se eu pudesse voltar no tempo, teria estudado matemática, em vez de economia". Por trás desse comportamento, estão as características das próprias ciências naturais contemporâneas, marcadas pela frieza, pelo determinismo estrito (a não ser pela "Teoria do Caos", que não é muito conhecida) da realidade aos modelos já apresentados e descritos, e o caráter prático da atividade profissional, isto é, a idéia de que o economista deve ser preparado para FAZER, e não para ARGUMENTAR, sendo portanto, os campos de controvérsia da Ciência Econômica deixados de lado. Por outro lado, os economistas ditos "Heterodoxos", seja lá de qual corrente, se preocupam mais em humanizar os grandes problemas econômicos, em deixar a formalização matemática em segundo plano, em defender a multidisciplinaridade entre as ciências sociais para uma melhor observação da vida e da sociedade humana. Dessa maneira, a economia deixa de ser uma ciência estritamente positiva para assumir um lado mais moral (tal como era nos seus primórdios, na Economia Política Clássica), e o profissionalismo prático dá lugar a um caráter mais intelectual para o economista. Todavia, algumas vezes vemos economistas de correntes heterodoxas criticando a ortodoxia sendo a crítica um objetivo em si mesmo, isto é, não com o objetivo de correção, mas com a intenção de desmerecer os adversários, o que é prejudicial não só à atividade profissional e científica, mas sim à própria convivência democrática nos centros acadêmicos de Economia. Ou então, outros Economistas elegem como seus "guias" ou "mestres" os principais expoentes e/ou fundadores de suas correntes heterodoxas, e considerá-los a verdade absoluta, impassíveis de críticas, o que acaba por corromper a própria noção de Ciência Econômica, tornando-se algo como uma religião. Fazendo uma analogia, a atual disputa na Ciência Econômica se assemelha à disputa entre os Românticos e os Realistas na literatura mundial na metade do século XIX. Não cabe a nenhum economista, individual ou coletivamente, independentemente de suas escolhas ideológicas e profissionais, julgar qual das correntes Ortodoxas e Heterodoxas detém a verdade científica absoluta, uma vez que esse próprio conceito é passível de controvérsias. Além disso, nada sabemos sobre o que será "ortodoxo" ou "heterodoxo" na economia daqui a vinte ou trinta anos. Mas é importante que seja assegurado a todos os profissionais da economia o direito a expressar aquilo que acredita, sem linchamentos morais, de modo a evitar que os debates intelectuais se tornem verdadeiros campos de batalha, como já vem acontecendo. http://www.econ.puc-rio.br/gfranco/Scheinkman_ortodoxia.htm Folha de São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007 JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN A ortodoxia dos heterodoxos O conhecimento econômico avançou combinando desenvolvimento teórico com sofisticação na análise de dados HÁ NO Brasil uma divisão convencional entre economistas ortodoxos e heterodoxos. Uma das principais referências heterodoxas é John Maynard Keynes. Em 1936, quando a sua "Teoria Geral" foi publicada, a economia clássica era incapaz de explicar ou criar políticas para resolver a Grande Depressão. Apenas dez anos depois, o futuro Prêmio Nobel Paul Samuelson já observava a grande aceitação das idéias keynesianas nas melhores universidades americanas e britânicas. Mas a pesquisa em economia não parou em 1936. Na década de 50, Milton Friedman argumentou que a hipótese de Keynes de que o consumo é uma função da renda corrente e que, além disso, cresce menos do que proporcionalmente com a renda não era válida. Friedman partiu de observações empíricas, mas também de um raciocínio puramente teórico baseado no modelo de um Homo economicus racional. Segundo esse modelo, cada família faz suas decisões sobre consumo baseadas na sua renda esperada no longo prazo -a renda permanente, no jargão de Friedman-, em vez da sua renda corrente. Um trabalhador desempregado que sabe que em breve terá boas ofertas de emprego consome mais do que um com piores perspectivas. Os dados econômicos trazem informação apenas sobre a renda anual -uma medida muito imperfeita da renda permanente. Para superar essa dificuldade, Friedman desenvolveu uma análise estatística sofisticada -os detalhes eu vou poupar ao leitor-, que mostrou que, na realidade, como a teoria predizia, o consumo de cada família é aproximadamente proporcional à sua renda permanente. Uma das implicações desse resultado é que algumas das políticas keynesianas de curto prazo, como o corte temporário de imposto sobre a renda, causam pouco estímulo ao consumo, porque têm efeito limitado na renda permanente dos consumidores. O trabalho de Friedman não foi a última palavra sobre o comportamento do consumo, mas, com um artigo de Modigliani e Brumberg no mesmo espírito, foi a base para as pesquisas sobre esse tópico feitas nos últimos 50 anos. O livro de Friedman é um excelente exemplo de como inovações na teoria, aliadas a uma análise empírica rigorosa, trazem nova luz a problemas de política econômica, mas não é um caso singular. O conhecimento econômico avançou muito nas últimas décadas combinando desenvolvimentos teóricos com uma crescente sofisticação na análise de dados. Um exemplo entre os primeiros é a teoria dos jogos, que trouxe uma perspectiva original para situações de interação estratégica. Por sua vez, a análise empírica beneficiou-se do progresso na econometria, o estudo de métodos estatísticos para a interpretação da evidência econômica, e da construção de novas bases de dados. Como em todo campo em que há atividade de pesquisa, uma parte do que é produzido em economia tem pouco valor e é rapidamente esquecida, mas há grande contraste entre a literatura "convencional" e a literatura acadêmica heterodoxa no Brasil, em que se encontra com muito maior freqüência referências a Keynes ou Ricardo (morto em 1823) do que a artigos recentes em econometria ou teoria econômica. Tudo isso seria de pouca importância se fosse uma mera discussão acadêmica, mas essas divisões têm outras conseqüências. No começo da década de 70, Carlos Langoni documentou que investimentos em educação no nosso país tinham uma taxa de retorno muito alta e poderiam servir para reduzir a desigualdade. O trabalho de Langoni foi recebido com hostilidade no meio acadêmico brasileiro e não influenciou a política educacional. Houve elementos ideológicos nesse episódio, mas a acolhida negativa também foi resultado da falta de conhecimento entre boa parte dos economistas brasileiros da teoria do capital humano e da incapacidade destes para julgarem a qualidade dos métodos empíricos que Langoni utilizou. Não é óbvio que o governo da ditadura, interessado em grandes obras e subsídios a empresários amigos, teria escutado a academia, mas perdemos uma chance de investir mais cedo em educação. Leio no dicionário Houaiss da língua portuguesa que um uso informal da palavra "ortodoxo" é "que não tolera o novo e o diferente". Exatamente o que parece descrever uma parcela dos heterodoxos.