1 Introdução Comecemos esta discussão fixando um número primo p. Dado um número natural m podemos escrevê-lo, de forma única, na base p. Por exemplo, se m = 15 e p = 3 temos m = 0 + 2 · 3 + 32 . Podemos tentar fazer algo semelhante para os inteiros negativos. Por analogia com as séries de potências obtemos a seguinte igualdade, ainda sem qualquer significado: −1 = (p − 1) + (p − 1)p + (p − 1)p2 + · · · Recorrendo à nossa imaginação podemos tentar escrever números racionais de modo semelhante: 1 − = 1 + 3 + 32 + · · · 2 P i Outro modo de olhar para estas séries de potências, ∞ i=0 ai p , é como sequências infinitas (b1 , b2 , b3 , · · · ) onde bi = a0 + a1 p + · · · + ai−1 pi−1 . Portanto estes bi são as reduções mod pi da série em questão. Definição 1.1 Seja πn : Z/pn+1 Z → Z/pn Z a projecção canónica. O anel dos inteiros p-ádicos, Zp , define-se como: Y i (bi ) ∈ Z/p Z | bi = πi (bi+1 ), ∀i ≥ 1 i≥1 As operações de soma e producto são definidas termo-a-termo. Podemos definir uma inclusão i : Z ,→ Zp tomando i(n) = (n mod p, n mod p2 , · · · ). Repare-se que podemos usar esta inclusão para os números racionais que têm denominador invertível mod p, ou seja, cujo denominador não é múltiplo de p. No entanto, estão a escapar-nos ainda alguns números racionais como, por exemplo, o número p1 . Definição 1.2 O corpo dos números p-ádicos, Qp , define-se como o corpo de fracções de S Zp . De forma alternativa, temos Qp = k∈Z pk Zp . Na linguagem das séries infinitas, os números p-ádicos correspondem a começar a série um pouco “antes” (em analogia com as séries de Laurent versus séries de Taylor). Por exemplo, − 16 = 3−1 + 1 + 3 + 32 + · · · . 1 2 Métricas em Q Vamos agora voltar a terrenos conhecidos para mais tarde obter informação sobre os números p-ádicos. Definição 2.1 Um valor absoluto num corpo K é uma função | | : K → R+ 0 com as seguintes propriedades: • |x| = 0 se e só se x = 0; • |xy| = |x||y|, para todos os x, y ∈ K; • |x + y| ≤ |x| + |y|, para todos os x, y ∈ K. Se o valor absoluto verificar ainda a seguinte propriedade diz-se não-arquimediano (caso contrário, diz-se arquimediano): • |x + y| ≤ max{|x|, |y|}, para todos os x, y ∈ K. Em qualquer corpo podemos definir o valor absoluto trivial, para o qual todos os elementos invertíveis do corpo têm valor 1. Este valor absoluto é não-arquimediano. O valor absoluto usual em R pode ser restringido a Q para obter um valor absoluto em Q (denotado por | |∞ ). Observe-se que este valor absoluto é arquimediano. Definição 2.2 Para cada primo p, define-se o valor absoluto p-ádico, | |p , do seguinte modo: Dado a b ∈ Q−{0} podemos escrever a b 0 = pk ab0 onde p não divide a0 b0 . Define-se | ab |p = p−k e |0|p = 0. Os valores absolutos p-ádicos são todos eles não-arquimedianos. Estes valores absolutos permitem-nos definir novas métricas em Q, tomando d(x, y) = |x − y|p . O nosso próximo objectivo será determinar as possíveis métricas que podemos colocar em Q. Teorema 2.3 Seja Z ⊂ K a imagem de Z em K. O valor absoluto | | é não-arquimediano se e só se |x| ≤ 1, ∀x ∈ Z. Temos agora um teorema que nos ajuda a determinar se dois valores absolutos são equivalentes, ou seja, se definem o mesmo espaço métrico. 2 Teorema 2.4 Sejam | |1 e | |2 dois valores absolutos num corpo K. Dois valores absolutos | |1 e | |2 são equivalentes se e só se existe r real positivo tal que |x|1 = |x|r2 para todo o x ∈ K. Usando este teorema conclui-se imediatamente que todos os valores absolutos já definidos em Q não são equivalentes. Teorema 2.5 (Ostrowski) Todo o valor absoluto em Q é equivalente ao valor absoluto trivial ou a um dos valores absolutos | |p onde p é um número primo ou infinito. A demonstração deste teorema pode ser encontrada, na íntegra, em [1]. A demonstração segue as seguintes ideias: tratam-se separadamente os casos em que o valor absoluto é arquimediano e não-arquimediano. No primeiro caso, o valor absoluto será equivalente ao valor absoluto usual pois é único valor absoluto arquimediano da nossa lista. Para começar a demonstração considera-se o menor natural n tal que |n| > 1 e considera-se o r real positivo tal que |n| = nr . Depois tenta-se mostrar que todos os racionais verificam |x| = xr . Esta parte não é de modo algum imediata. No segundo caso, começamos por admitir que o valor absoluto | | não é trivial. A maior dificuldade é determinar a que valor absoluto p-ádico é que | | é equivalente. A ideia é considerar o menor natural n tal que |n| < 1. Esse natural será necessariamente o número primo que procuramos e o resto da demonstração segue sem grandes dificuldades. O seguinte teorema mostra-nos como os valores absolutos sobre Q se relacionam bem uns com os outros. Teorema 2.6 Seja x um racional não nulo. Então, Y |x|p = 1. p≤∞ Este teorema tem uma demonstração simples bastando usar a factorização única dos inteiros em números primos. 3 De volta aos p-ádicos As métricas definidas na secção anterior permitem-nos tomar uma abordagem diferente em relação aos números p-ádicos. Podemos definir o corpo dos p-ádicos, Qp , como a extensão 3 completa de Q para a métrica |.|p . Para x ∈ Qp com x = P∞ i=k ai pi (e ak 6= 0) temos |x|p = pk . A construção de Qp como séries infinitas permite verificar facilmente que o espaço é completo para a métrica p-ádica. Observe-se que a topologia obtida em Zp poderia também ser obtido do seguinte modo: Q Colocamos em cada Ak = Z/pk Z a topologia discreta e em k≥1 Ak a topologia produto. Como Zp é subespaço do espaço produto ele tem imediatamente a topologia de subespaço. Teorema 3.1 Zp é compacto. Como cada Ak é finito então é compacto. Pelo teorema de Tychonoff, X = Q k≥1 Ak é também compacto. Basta provar que Zp é fechado em X para concluir que ele é compacto. Podemos escrever o complementar de Zp do seguinte modo: (Zp )c = [ Un,m n,m onde Un,m = {m mod p} × · · · × {m mod pn } × (An+1 − (m + An )) × Q k≥n+2 Ak . Como cada Um,n é aberto então a sua união também o é e Zp é fechado. Utilizando a métrica introduzida anteriormente podemos determinar quais são os elementos invertíveis em Zp , isto é, os elementos de Zp que têm inverso em Zp . É claro que qualquer inteiro p-ádico tem inverso no corpo Qp . Teorema 3.2 Seja x = P∞ i=0 ai p i ∈ Zp . As seguintes condições são equivalentes: • x é invertível em Zp . • |x|p = 1. • a0 é invertível em Z/pZ. 4 Lema de Hensel Já vimos anteriormente que os espaços Qp são “maiores”do que Q. Portanto é natural esperar que certas equações que não têm soluções em Q tenham soluções em Qp . Consideremos a equação x2 + 1 = 0 que nem em R tem solução. O próximo teorema diz-nos que a equação tem solução em Q5 . 4 Teorema 4.1 (Lema de Hensel) Seja f (x) = a0 + a1 x + · · · + an xn ∈ Zp [x]. Suponha-se que existe y1 ∈ Zp tal que f (y1 ) = 0 mod pZp e f 0 (y1 ) 6= 0 mod pZp . Então existe y ∈ Zp tal que y = y1 mod pZp e f (y) = 0. A ideia por detrás da demonstração é que o número y é uma aproximação da raíz do polinómio e que é possível ir melhorando essa aproximação. Para obter a raíz do polinómio construímos uma sucessão em Zp com as seguintes propriedades: • yn+1 = yn mod pn Zp . • f (yn ) = 0 mod pn Zp . • f 0 (yn ) 6= 0 mod pZp . Começamos com y2 = y1 + pz1 . Usando a aproximação de Taylor, f (y2 ) = f (y1 ) + f 0 (y1 )pz1 = 0 mod p2 Zp . Como f (y1 ) = pw obtemos w + f 0 (y1 )z1 = 0 mod pZp ⇔ z1 = w(f 0 (y1 ))−1 mod pZp . Como y2 = y1 mod pZp então f 0 (y2 ) = f 0 (y1 ) mod pZp . Obtemos assim as três propriedades desejadas. Repetindo este processo e tomando o limite da sucessão obtemos a solução desejada. Escolhendo f (x) = x2 + 1 e y1 = 2 obtemos f (2) = 5 = 0 mod 5Z5 e f 0 (2) = 4 6= 0 mod 5Z5 . Portanto, x2 + 1 = 0 tem solução em Z5 (e em Q5 , claro). Podemos fazer uma pequena generalização do lema anterior usando ideias semelhantes para a demonstração. Teorema 4.2 (Lema de Hensel, II) Seja f (x) ∈ Zp [x]. Suponha-se que existem g1 (x) e h1 (x) em Zp [x] tais que: • g1 (x) é mónico • g1 (x) e h1 (x) são primos entre si mod p. • f (x) = g1 (x)h1 (x) mod p 5 Então existem polinómios g(x) e h(x) em Zp [x] tais que: • g(x) é mónico • g(x) = g1 (x) mod p e h(x) = h1 (x) mod p. • f (x) = g(x)h(x) Se g1 (x) ou h1 (x) forem polinómios lineares voltamos ao caso do primeiro lema de Hensel. References [1] Fernando Q. Gouvêa. p-adic Numbers: an introduction. 6