Estudo dirigido – Biologia Molecular A lógica da vida: uma história da hereditariedade, François Jacob. Capítulo 4: O gene. (Parte final) No começo do século XX, as duas novas ciências, a genética e a bioquímica, provocam uma mudança na biologia. Em primeiro lugar porque introduzem o rigor até então desconhecido dos métodos quantitativos: não basta mais constatar a existência de um fenômeno, trata-se, a partir de então, de avaliar parâmetros, de medir as velocidades das reações ou das freqüências de recombinação, de determinar uma constante de equilíbrio ou uma taxa de mutação. Em segundo lugar porque deslocam o centro de atividade nos seres vivos. Estes não se ordenam mais em profundidade unicamente através da articulação dos órgãos e das funções, não se enrolam mais em torno de um foco de vida de onde se irradia a organização. Para a bioquímica, a atividade do organismo dispersa-se na espessura de cada célula, nestas milhares de gotículas coloidais em que se executam as reações químicas e se constroem as arquiteturas. Para a genética, esta atividade se encontra no núcleo da célula, no movimento dos cromossomos, onde se decidem as formas, articulam-se as funções, perpetua-se a espécie. Cada ciência refere-se a seu próprio modelo. Por um lado, os químicos falam de estruturas moleculares e de catálise enzimática; explicam como os organismos tiram sua energia do meio, restabelecendo assim o curso natural das coisas: não é mais somente um fluxo de matéria que percorre o organismo, mas também um fluxo de energia. Por outro lado, os geneticistas descrevem a anatomia e a fisiologia de uma estrutura de ordem três situada nos cromossomos; atribuem à sua fixidez a memória da espécie, às suas mudanças o aparecimento de espécies novas. As qualidades dos seres vivos baseiam-se, finalmente, em duas entidades novas: o que os bioquímicos chamam proteína e o que os geneticistas denominam gene. A primeira é a unidade de execução química, que realiza as reações e dá aos corpos vivos sua estrutura. A segunda é a unidade da hereditariedade que rege ao mesmo tempo a reprodução de uma função e sua variação. O gene comanda. A proteína realiza. Em meados do século, as duas ciências encontram-se praticamente no mesmo ponto. As duas conseguiram descobrir a unidade de ação situada no centro de seu domínio. As duas conhecem, portanto, o objeto da análise futura. Mas as duas encontram-se desprovidas dos meios necessários para realizá-la. De fato, antes da última guerra, a biologia torna-se uma ciência compartimentada. Cada especialista consagra-se ao estudo de seus problemas utilizando o seu material. No mesmo instituto, às vezes no mesmo andar, frequentemente coabitam dois colegas, um interessando-se pelos genes, outro pelas moléculas [que eles codificam]. As conclusões a que a genética chega exigem a presença, nos cromossomos, de uma substância capaz de desempenhos pouco comuns: por um lado, ela deve determinar as estruturas e as funções dos corpos vivos; por outro, deve produzir cópias rigorosamente idênticas de si mesmas, sem excluir a possibilidade de raras variações. A química encontra nos núcleos dos tipos de substâncias: proteínas e este ácido ao qual Miescher, no século precedente, dera o nome de “nucléico”. Mas a estrutura deste ácido ainda é mal conhecida. É composto por quatro moléculas particulares, duas “bases púricas” e duas “ bases pirimídicas”, cada uma delas estando ligada a um açúcar e a um agrupamento fosfato em um “nucleotídeo”. Os quatro compostos associam-se em forma de um “tetranucleotídeo”. O ácido nucléico aparece assim como uma espécie molecular sem variedade nem fantasia, portanto sem aptidão para desempenhar qualquer papel na hereditariedade. Sendo assim, atribui-se este papel às proteínas, ainda que suas propriedades se prestem mal a ele. Por sua complexidade, a hereditariedade parece estar fora do alcance da química experimental. “Quanto mais descobertas fazemos sobre a atividade fisiológica e sobre a hereditariedade, diz J. S. Haldane, mais se torna difícil imaginar em termos de física ou de química uma descrição ou uma explicação capaz de englobar todos os fatos de uma coordenação persistente”. No final do século XIX e na primeira metade do século XX, desapareceu a antiga forma do vitalismo, a que a biologia inicialmente recorrera para adquirir independência. Diante do desenvolvimento da ciência experimental, da genética, da bioquímica, não se pode mais, a não ser através do misticismo, invocar seriamente um princípio de origem desconhecida, um X que escaparia por sua própria essência às leis da física, para explicar os seres vivos e suas propriedades. Se a física parece não poder explicar o conjunto dos fenômenos da vida, não é mais devido a uma força exclusiva do mundo vivo, impossível de ser conhecida. É devido a limites inerentes à observação e à análise, à complexidade dos seres vivos em relação à matéria. Assim como certas características dos átomos não podem mais ser reduzidas à mecânica, também poderia ocorrer que certas particularidades da célula não pudessem ser interpretadas em termos de física atômica. “Constatar a importância das propriedades dos átomos nas funções dos seres vivos, diz Niels Bohr, não basta para explicar os fenômenos biológicos. Portanto, o problema é saber se ainda nos falta um dado fundamental para a análise dos fenômenos naturais, antes de compreender a vida basendo-se na experiência da física... Neste caso, a existência da vida deveria ser considerada como um fato elementar sem explicação possível, como um ponto de partida para a biologia, da mesma maneira que o quantum de ação, que aparece como elemento irracional para a mecânica clássica, constitui com as partículas elementares o fundamento da física atômica”. O que poderia então impor um limite ao conhecimento do mundo vivo não é mais uma diferença de natureza entre o vivo e o inanimado. É a insuficiência de nossos meios ou mesmo de nossa possibilidade de análise. A isto se adiciona uma complexidade nos componentes dos seres vivos que não pode ser comparada à das moléculas estudada pela física e pela química clássicas. Portanto, talvez os seres vivos, em vez de escaparem às leis da física, utilizem “outras leis da física, ainda desconhecidas, diz Schrödinger, mas que, uma vez reveladas, farão parte desta ciência”. Portanto, não se trata mais de recorrer a uma força misteriosa para justificar a origem, as propriedades, o comportamento dos seres vivos. Trata-se de saber se as leis já encontradas na análise da matéria bastam ou se é preciso procurar novas. Para se constituir como ciência, a biologia teve que se separar radicalmente da física e da química. Em meados do século XX, para prosseguir a análise da estrutura dos seres vivos e de seu funcionamento, teve que se associar intimamente a elas. Desta união nascerá a biologia molecular. Dê respostas completas e criativas. Explore o que você sabe e/ou pensa. Explore seus conhecimentos, não se limite apenas ao texto. Questões para discussão 1) Qual o foco de estudos da bioquímica? 2) Qual o foco de estudos da genética? 3) Por que no segundo parágrafo o autor diz que o ácido nucléico no século XIX era visto como uma molécula sem variedade nem fantasia? Quais moléculas pensavam-se serem as responsáveis pela hereditariedade? O que Haldane quis dizer com a frase citada por Jacob? 4) As duas últimas frases do primeiro parágrafo do texto são: o gene comanda, a proteína realiza. O que isso quer dizer? Quais são as características dos genes que o tornam capazes de comandar a hereditariedade? E também: quais as características das proteínas que as tornam os motores moleculares que realizam as funções celulares? (Ou ainda: por que os genes não são feitos de aminoácidos e as proteínas não são feitas de bases nitrogenadas? O que, na estrutura de cada molécula, faz com que ela seja adaptada a uma função especial?) 5) Segundo o texto a biologia tornou-se ciência baseando-se no conceito do vitalismo. O que significa este conceito e por que ele foi adotado no século XIX? O que Schrodinger teorizava sobre o assunto? 6) A partir do século XX, a idéia de que a vida possui propriedades únicas, maravilhosas e desconhecidas (vitalismo) começou a morrer. Finalmente, através dos estudos de genética e bioquímica, era possível associar as ciências físicas, químicas e biológicas num só contexto amplo e coerente. A biologia molecular trouxe, para a biologia, um tipo de rigor lógico e matemático antes só aplicado nas ciências exatas. Quais os desenvolvimentos você acredita que permitiram à biologia integrar-se à química e a física, matando assim o vitalismo? Qual a relação moderna entre física, química e biologia? O que você pensa que ocorrerá no futuro com essas disciplinas? 7) A biologia molecular é uma ciência que tem como mãe a genética e, como pai, a bioquímica. Discuta a afirmação. Temas para discussão Genética, bioquímica, reducionismo, hereditariedade, função molecular, vitalismo, integração entre ciências, história da ciência.