UMA ABORDAGEM DA COLEÇÃO LUCAS-ATOS Texto Básico: At 1.1-11 INTRODUÇÃO Atos é o segundo livro de Lucas que estabelece uma sequência de narrativa em relação ao Evangelho. Consideremos a transição entre estes dois livros. I – Livro 1: Jesus Começou a Fazer e a Ensinar É uma prática comum iniciar um segundo livro ou volume 2 de uma mesma colação, recapitulando de forma abrangente aquilo que foi tratado no livro anterior (Lc 24.50-53). Dessa forma, Lucas o médico, providencia uma perfeita ligação e continuidade entre o Evangelho e Atos, dizendo que no primeiro “Jesus começou a fazer e a ensinar”. É interessante notar o que ele quer dizer com isso. Na língua grega, o ato de “começar” foi um ato consumado. Todavia, o fazer e ensinar são contínuos. Em outras palavras, o autor está afirmando que Jesus iniciou o fazer e o ensinar quando esteve exercendo seu ministério terreno, mas que continua a fazer e ensinar mesmo depois de ser elevado às alturas e plenamente glorificado. Cristo continuou trabalhando através de seu Espírito, pela instrumentalidade dos apóstolos. Na verdade, mesmo durante a sua encarnação, Jesus foi plenamente revestido pelo Espírito Santo. Lucas faz questão de anunciar que Jesus é o portador do Espírito e que seria este o outro Consolador que passaria a tratar com os apóstolos manifestando o próprio Cristo. A ascensão só ocorre depois de Jesus ter dado ordens específicas a seus apóstolos através do Espírito (v. 2). A que se refere isso? Do que Lucas está falando? De todo ministério terreno de Jesus, dos quarenta dias nos quais esteve com os discípulos, ou está se referindo a uma ordem específica? Teologicamente, todas são possíveis. É certo que Jesus aproveitou muito bem esse tempo continuando a ensinar os seus apóstolos quanto às coisas relativas ao reino de Deus (v. 3c). Contudo, no início do capítulo primeiro de Atos, a intenção de Lucas é claramente fazer a transição do ministério, morte e ressurreição de Jesus (Livro 1), para o envio do Espírito (Livro 2), registrando os acontecimentos que marcaram o período de cinquenta dias de espera entre a morte de Cristo e o Pentecostes. Portanto, sobram duas possibilidades: um conjunto de ordenanças ou um mandamento específico? Recorrendo novamente ao texto, certamente encontramos a resposta. Embora ARA (Almeida Revista e Atualizada) traduza por “haver dado mandamentos”, no grego essa expressão traduz um único termo que é singular, que significa “tendo ordenado” ou “tendo (ou havendo) dado mandamento”. Que mandamento seria esse? No verso 4 desse capítulo temos a resposta. Jesus utiliza uma palavra sinônima a “mandamento” para “determinar” que eles não se ausentassem de Jerusalém, mas esperassem lá o cumprimento da promessa do envio do Outro Consolador. Essa era a ordem! A observância a esse mandamento era vital para o recebimento da promessa. II – Ressurreição e Ascensão A “ressurreição” e a “ascensão” ligam os acontecimentos do Evangelho ao Livro de Atos, indicando a sequência dos eventos narrados nos dois livros. Pela ordem, é referida primeiramente a ressurreição. Lucas afirma que a ressurreição de Jesus está baseada em muitas “provas incontestáveis”. Essa expressão traduz apenas um termo no grego que só aparece aqui em todo Novo Testamento. É uma palavra que tem forte conotação científica. Lucas, como médico, está declarando que ele chegou a várias provas como fruto da pesquisa histórica que realizou para escrever Lucas/Atos. Faz parte desse conjunto de provas, o testemunho de muitos. No verso 3, afirma-se que os apóstolos foram testemunhas oculares da ressurreição de Jesus, pois estiveram com o Senhor ressurreto não apenas uma vez, mas durante quarenta dias. Destaca-se o claro ensino quanto à humanidade do Cristo ressurreto. Já havia em seu tempo a pregação de ideias gnósticas que afirmavam que Jesus não veio em carne, mas existia como um fantasma. Ele registra que Jesus “depois de ter padecido, se apresentou vivo” (v. 3). Positivamente, Lucas aqui se refere à morte física de Jesus, uma vez que um espírito não pode ser crucificado. Em seguida, afirma que o Messias que morreu, apresentou-se “vivente”. Ora, ao construir assim seu argumento, o autor está declarando que, após ter morrido fisicamente, Jesus apresentou-se vivo fisicamente. Esse sentido é confirmado pelo termo utilizado, que aplicado a alguém que possui natureza física, naturalmente significará um organismo vivo, ou seja, um corpo. Mesmo a vida eterna em Cristo também traz essa ideia, uma vez que Jesus, tendo ressuscitado fisicamente, é o padrão da nossa ressurreição. Assim como ele está hoje em sua humanidade, nós seremos no “novo céu e nova terra”. A ascensão, como descrita em Atos, não apenas narra o acontecimento histórico, mas contém também um forte conteúdo profético escatológico (relativo aos últimos dias). Jesus foi elevado à vista de muitos e encoberto pelas nuvens. Para o judeu, essa cena tinha um significado especial. A nuvem ou fumaça representava a presença pessoal de Deus. À frente do povo, no êxodo, ia a coluna de nuvens: o Senhor estava guiando seu povo (Êx 13.21); quando Moisés subiu ao Monte, as nuvens desciam e envolviam o cume (Êx 24.15), e conversava com Deus face a face como qualquer fala a seu amigo; no Sinai, fumaça, fogo e trovões anunciavam a presença do Todo-Poderoso (Êx 19.18); na consagração do Tabernáculo, nuvens desceram o encheram todo o recinto (Êx 40.34); Isaías, ao ter a visão no templo do trono de Deus, diz que a sala se encheu de fumaça; na transfiguração, uma nuvem luminosa os envolve (Mt 17.5; Mc 9.7). A literatura talmúdica (Talmude foi o registro das tradições orais dos judeus) usou o termo “shekinah” para se referir a esse fenômeno. Assim, a visão de Cristo encoberto pelas nuvens transmite a ideia de ter adentrado à presença de Deus. O conteúdo profético está no anuncio dos anjos. Eles exortam os discípulos nesses termos: “Varões galileus, por que estais olhando para as alturas? Esse Jesus que dentro vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (v. 11). Fica claro aqui que a segunda vinda de Cristo se dará nos moldes de sua ascensão, ou seja, será manifesto pelas nuvens. Paulo confirma essa informação (1Ts 4.17). O próprio Cristo já havia falado a respeito do seu retorno “sobre as nuvens” (Mt 24.30). A cena do retorno de Jesus indica não apenas “seu poder e glória”, mas também a sua divindade. Significa que ele vem do seio de Deus. III – A Realidade do Reino de Deus É hora de abordarmos a continuidade do reino trazido por Cristo e anunciado no Evangelho de Lucas (Lc 17.21) com a vida da igreja no reino, como a vemos em Atos. O reino de Cristo não é deste mundo (Jo 18.36). Com isso, entendemos que o seu reinado é uma realidade espiritual, ou seja, ele não vai voltar a esta terra antes do juízo final para reinar sobre o seu povo de forma política, nos moldes de Davi. Ele já reina hoje! No final do Evangelho de Mateus, lemos: “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt 28.18). Essa é uma declaração do Cristo que reina, e é sob essa sua autoridade que ordena o avanço da igreja. Em Atos vemos a versão de João para essa chamada “grande comissão”. Obviamente, não se trata da mesma ocasião narrada em Mateus, mas é uma passagem de conteúdo semelhante. Ainda atordoados com a inédita ressurreição gloriosa do Cristo, os discípulos perguntam ao Rei se ele restauraria o reino imediatamente a Israel (1.6). Primeiramente, antes do derramamento do Espírito os apóstolos ainda não tinham pleno entendimento das verdades relativas ao reino. Isso era uma função do outro Consolador (Jo 14.26). Por isso, aqui eles estão ainda expressando algo daquela ideia comum aos judeus que Cristo haveria de implantar um reino político, entronizado em Jerusalém. O que Cristo diz a eles? “Não vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva autoridade; mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (At 1.7-8). Será que ele diz: “não”? Ou será que ele quer mostrar aos discípulos que a concepção deles estava errada? O tempo da restauração de todas as coisas não coincide com o início do reinado de Cristo (Rm 8.1825). Cristo só haverá de habitar fisicamente com os redimidos, quando toda a Criação for restaurada e os eleitos ressuscitados para a glória eterna. Todavia, ele fala da realidade do reino! A descida do Espírito é a implantação definitiva do reino de Cristo neste mundo. É através do Outro Consolador que Cristo realiza sua igreja. O derramamento indica a era da plenitude do Espírito de Cristo. E neste poder os apóstolos e a igreja testemunharão a partir de Jerusalém, por toda Judéia e Samaria, até alcançar os confins da terra. CONCLUSÃO O Cristo que morreu na cruz continua vivo e atuante através do Espírito Santo que habita a sua igreja. Lucas escreve o segundo livro para mostrar à igreja a atividade constante de Jesus abençoando e guardando os crentes para a vida eterna. Assim como sua existência é inquestionável, sua volta é certa. Vale a pena viver para Deus. Rev. Jair de Almeida Júnior.