A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de

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OTTE, Georg. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de Walter Benjamin. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 8, n. 1 e n. 2, pág. 25 - 38, jan/jun e jul/dez
2004. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit.
A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de Walter Benjamin
Georg Otte*
Para Gudrun e Jan Skuin
RESUMO: Na Obra das Passagens, Walter Benjamin retoma o tópos milenar do “Livro do Mundo“,
postulando que ele se aplique também ao mundo urbano. Ao lado da arquitetura, a moda é um dos
campos privilegiados dessa ‘leitura das coisas’, que divide com a leitura dos textos a possibilidade
da citação.
PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamin, Obra das Passagens, Livro do Mundo, Moda, Citação.
”Para o filósofo, o interesse mais ardente na moda reside nas suas antecipações extraordinárias.”1 É com essa
afirmação categórica que Benjamin inicia um dos fragmentos do capítulo “Moda” da Obra das Passagens. O próprio
caráter taxativo dessa afirmação gera dúvidas, isto é, a dúvida se os “filósofos” poderiam ter algum interesse pela
moda. Tal interesse certamente não faz parte da filosofia tradicional e tudo indica que Benjamin se deixou influenciar
pelo título do ensaio “A filosofia da moda” do seu contemporâneo Georg Simmel” (SIMMEL, 1995, p. 7-37), citado várias
vezes no mesmo capítulo. Acontece que Simmel, uma das figuras principais da chamada “Kulturphilosophie” (“Filosofia
da Cultura”) não pode ser considerado como “o filósofo” no sentido genérico da palavra. Além disso, Simmel não teve a
mínima preocupação, no ensaio citado, com o potencial antecipatório da moda, tal como Benjamin o postula.
A provocação da frase inicial, no entanto, não se limita ao suposto interesse filosófico pela moda, mas é
reforçado pelo superlativo que, por uma questão de lógica, pressupõe a existência de um interesse múltiplo, sendo que
o “interesse mais ardente” estaria logo na “antecipação”, ou seja, na possibilidade de se prever determinadas coisas,
ou, como diz o final do fragmento, na possibilidade de saber “de antemão não apenas das novas correntes da arte, mas
também dos futuros códigos, guerras e revoluções.”( GS, V/1, p. 112).
Entre o início e o fim do mesmo fragmento encontra-se uma espécie de excurso sobre a arte que compartilharia
com a moda seu caráter antecipatório, mas estaria inferior a esta última exatamente nesse ponto. Podemos ver uma
outra provocação, pelo menos para a época de então, no fato de Benjamin atribuir à moda o primeiro lugar:
Pois sabemos que a arte, em seus quadros por exemplo, antecipa, por muitos anos e de várias
maneiras, as realidades perceptíveis. Podíamos ver as ruas e os salões brilhando em fogos
coloridos muito antes de a técnica tê-los iluminado numa luz igual através de propagandas
luminosas e outros recursos. É certo que a sensibilidade do artista em relação às coisas vindouras
ultrapassa de longe a sensibilidade da grande dama. Mas, mesmo assim, a moda se encontra em
um contato muito mais preciso com as coisas vindouras graças ao faro sem igual que o coletivo
feminino possui por aquilo que o futuro oferece. (GS, V/1, p. 112)
Pelo visto, determinados fenômenos culturais não se distinguem apenas pelo fato de estarem na frente de sua
época, mas também pela competição quanto ao seu potencial antecipatório. Nessa rivalidade, o “faro” do “coletivo
feminino” supera as forças visionárias do artista; o faro da mulher em relação ao futuro, segundo Benjamin, é mais
confiável que o olho do pintor e, entre os cinco sentidos, parece estar especialmente apto para antecipações.
Também na 14a tese de “Sobre o conceito de história”, um texto que, de certa maneira, foi extraído da Obra das
Passagens, Benjamin menciona o “faro” no contexto da moda. Desta vez, não é a arte que serve como parâmetro para
ilustrar o potencial transtemporal da moda, mas nada menos que a Revolução Francesa que “cita” a antiga Roma:
Professor da Faculdade de Letras/UFMG. O presente texto é a tradução da palestra apresentada no Seminário de Ciências
Culturais da Universidade Humboldt, de Berlim, como resultado de uma bolsa de pós-doutorado pela CAPES. Agradeço à CAPES o
apoio financeiro. Devo também meus agradecimentos ao Prof. Dr. Hartmut Böhme e aos participantes do seu Kolloquium cujos
comentários contribuiram para a confecção do presente texto, cuja versão em alemão foi publicada sob o título “Zitieren und
Antizipieren – Die Frage der Lesbarkeit der Welt im Passagen-Werk Walter Benjamins” na Zeitschrift für kritische Theorie, Vol 18/19
(2004), p. 133-149, e que também está disponível como videoconferência no seguinte site do Instituto Embratel
http://200.244.52.177/embratel/main/mediaview/tvpontocom.
1 Walter Benjamin, Das Passagen-Werk. In: Gesammelte Schriften, Vol. V. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1983, p. 112. O texto está
sendo traduzido pela Editora UFMG, com lançamento previsto para o final de 2005. A partir desta nota, as referências a essa obra
serão assinaladas dentro do texto, entre parêntesis, pela sigla GS (Gesammelte Schriften).
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OTTE, Georg. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de Walter Benjamin. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 8, n. 1 e n. 2, pág. 25 - 38, jan/jun e jul/dez
2004. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit.
A Revolução Francesa se concebia como o retorno do Império Romano. Ela citava a antiga Roma
exatamente como a moda cita um traje antigo. A moda possui o faro pela atualidade quando ela se
move no emaranhado do acontecido. Ela é o salto de tigre para o passado. No entanto, esse salto
acontece numa arena que está sob o comando da classe dominante. O mesmo salto sob o céu livre
da história é o salto dialético que, para Marx, representava a revolução.( GS, I/2, p. 701)
O fenômeno mais ou menos cotidiano da moda – Benjamin não está pensando apenas na moda da “grande
dama” – é mencionado lado a lado com o acontecimento histórico que geralmente é considerado como o divisor de
águas da era moderna. Nas teses sobre a história, no entanto, não se trata das forças antecipatórias da moda, mas da
sua capacidade extraordinária de citar o passado. Seguindo a linha auto-imposta do marxismo (BENJAMIN, 1966, p.
782)2, o nosso autor abafa sua estima pela moda através da restrição de que o “salto de tigre” estaria acontecendo “sob
o comando da classe dominante”.
A introdução da moda nas reflexões sobre a filosofia da história, entretanto, é mais que uma provocação dos
filósofos ou do establishment acadêmico, que recusou ao nosso pensador a entrada na academia. Ela faz parte de uma
valorização generalizada, por parte de Benjamin, do cotidiano e do comumente desprezado (GS, I/2, p. 695.)3, que se
reflete no uso pejorativo da moda na linguagem do dia-a-dia, fazendo com que determinadas inovações sejam
desvalorizadas como estando apenas “na moda”. Benjamin, portanto, abre um espaço reflexivo para algo cotidiano e
secundário, mostrando que é em fenômenos muitas vezes considerados insignificantes que reside a possibilidade de
citar o passado ou de antecipar o futuro.
Mesmo se Benjamin, nas “Teses”, não chega a conferir à moda – como no caso da arte – uma importância maior
do que à Revolução Francesa, podemos partir do pressuposto de que lhe concederia o primeiro lugar exatamente por
causa do seu caráter subliminar, uma vez que o “citar” de um traje antigo se adequa melhor ao encontro fugaz entre o
presente e o passado (GS, I/2, p. 695.) do que as referências retóricas de um Robespierre à Roma antiga.4 Pois a
relação que pode ser estabelecida entre o presente e as épocas anteriores ou posteriores não se baseia tanto nos
espetaculares “saltos de tigre” apresentados pelos grandes domadores da história, mas num “índice clandestino” que o
passado traz consigo, de acordo com a segunda tese, e que aponta para o “encontro marcado” com o presente:
Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que
escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas
não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações
precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.(BENJAMIN, 1985, p. 223)
A “leitura” de códigos, de guerras e de revoluções futuras a partir da moda pode parecer uma especulação um
tanto exagerada, mesmo porque o conceito de leitura aqui empregado lembra muito as práticas pouco confiáveis dos
jogadores de búzios e de outros videntes. Mas, além de se interessar também pelo estudo dessas práticas, Benjamin
deixa claro, que, para ele, não se trata de ler o futuro na constelação dos búzios ou na mão das pessoas5, mas da
leitura como um modo peculiar de percepção e como parte de uma filosofia abrangente da história, que encontrou nas
“Teses” sua expressão final.
A seriedade da análise, ou então: da “leitura” da moda se evidencia na tentativa de Benjamin de explicitar a
diferença de classe que existiria entre o proletariado e a burguesia através dos respectivos critérios da continuidade e
da descontinuidade: assim, a “classe burguesa”, conforme sua maior familiaridade com a moda, estaria marcada por
uma volubilidade maior, o que se evidenciaria pelo fato de que as idéias geradas por essa classe seriam mais volúveis
que o fundamento ideológico, supostamente mais sólido, dos oprimidos. Cabe esclarecer que “volubilidade” é a
tradução do alemão Sprunghaftigkeit, derivado de springen, “saltar” ou “pular”, ou seja, a burguesia, em sua
instabilidade ideológica, estaria ‘saltando’ ou ‘saltitando’ de uma posição à outra.
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Aqui cabe lembrar principalmente a crítica de Adorno, em sua carta de 10/11/1938, ao uso que Benjamin faz do marxismo,
cobrando a “mediação” necessária entre a base material e a superestrutura cultural. Por mais que a crítica de Adorno a alguns
‘curtos-circuitos’ de Benjamin à maneira do marxismo vulgar seja justificada, evidencia-se ao mesmo tempo sua falta de
compreensão em relação à predileção benjaminiana pelo imediato, ou seja, pela ausência de mediação.
3 Até Roland Barthes, em sua análise semiológica sobre a moda, vê o risco de se expor ao ridículo quando ilustra questões da
Filosofia da linguagem através da moda, ou ainda através da linguagem de revistas de moda. BARTHES, 1985, p. 22.
4 Estamos nos referindo à “orientação quase natural dos atores históricos da época revolucionária pela República romana antiga –
estilizada como modelo normativo“. (GUMBRECHT, 2003, p. 36).
5 Benjamin até mesmo considerava essas práticas como etapas preliminares da leitura de textos: “Esse tipo de leitura é o mais
antigo: a leitura anterior a qualquer linguagem, das vísceras, estrelas ou danças. Posteriormente passaram a ser usados de elos de
mediação, tais como ruínas e hieróglifos.“ (GS II/1, p. 213, apud BOCK, 2000, p. 31).
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OTTE, Georg. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de Walter Benjamin. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 8, n. 1 e n. 2, pág. 25 - 38, jan/jun e jul/dez
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Ora, para se chegar a uma compreensão adequada da burguesia, a descontinuidade passa a ser a “idéia
condutora” do “pensador materialista”, ou seja, o objeto “volúvel” exige um método “volúvel”:
Nesse empreendimento [de compreender a burguesia] temos que proceder de maneira excêntrica e
volúvel [sprunghaft]. É o procedimento da moda no sentido pleno da palavra. “Salvar” as grandes
figuras da burguesia significa, em boa parte, compreendê-las na parte mais decadente da sua
atuação e significa arrancar, citar dessa atuação aquilo que ficou enterrado e invisível debaixo dela
por não ter servido aos poderosos. [...] (GS, V/1, p. 460; grifo meu)
Ao conhecedor das “Teses” não escapa a ambivalência desse fragmento: por um lado, Benjamin parece reforçar
o clichê da moda como sendo expressão de uma mera mania de inovação de uma burguesia decadente, inserindo-a no
esquema marxista da luta de classes, quando, ainda no mesmo fragmento, se deixa levar à formula patética de que as
“ondas da moda [burguesa] se rompem na massa compacta dos oprimidos”, por outro lado conhecemos o valor que tem
para ele, principalmente nas “Teses”, o “choque”, o salto – inclusive o salto de tigre – e a quebra do “continuum”, para
chegar a um novo conceito de história.
Outra ambivalência, característica do procedimento benjaminiano em geral, consiste na diluição da fronteira
entre a realidade e a consciência da realidade, entre o plano ontológico e o epistemológico, sendo que, a rigor, são três
planos que se delineiam neste último fragmento e que dificultam uma leitura analítica: primeiro, a burguesia é “volúvel”,
segundo, ela tem uma consciência “volúvel” e, em terceiro lugar, ela só pode ser compreendida pelo historiador através
de um método correspondente, que, segundo Benjamin, deve acompanhar, metodologicamente, essa “volubilidade”.
Entretanto, esse método não consiste, de maneira alguma, em sua adaptação ad hoc a um objeto
particular e nem mesmo a uma inovação que tivesse surgido na fase tardia do nosso pensador, pois, já no
“Prefácio epistemológico” (GS, I/1, p. 207-237) do livro Origem do drama barroco alemão – o próprio Benjamin
faz questão de estabelecer um paralelo entre este último e a Obra das Passagens – encontram-se reflexões
em torno do “salto” e da “volubilidade” – , além de afirmações categóricas do tipo “método é desvio” (GS, I/1,
p. 208). No mesmo prefácio, Benjamin desenvolve ainda sua própria etimologia do termo Ursprung (origem),
que, numa tradução literal, significaria algo como salto original: “Na origem [Ursprung] não se trata do devir de
algo que nasceu [Entsprungenes], mas antes de algo que nasce e escapa do devir e do passar
[Entspringendes].”( GS, I/1, p. 226) A “volubilidade” e a excentricidade, portanto, não são apenas uma
característica da burguesia parisiense do século XIX, mas representam, para Benjamin, um paradigma
epistemológico conforme o qual as idéias se relacionam com as coisas “como as constelações com as
estrelas” (GS, I/1, p. 214):
As idéias são eternas constelações, e, quando se concebe os elementos como pontos nessas
constelações, os fenômenos passam a ser divididos e salvos ao mesmo tempo. E é nos extremos
que esses elementos, cuja extração dos fenômenos é tarefa do conceito, aparecem da maneira mais
nítida. A idéia pode ser circunscrita como uma formação que relaciona o singular-extremo aos seus
similares.(GS, I/1, p. 215)
A constelação como tal – Sternbild, literalmente, significa “imagem de estrelas” – é excêntrica, ou então
descentrada; a rigor, seu centro é vazio, pois ela é constituída pelos seus extremos, a saber, as estrelas. Também na
17a tese de suas reflexões sobre a história, Benjamin recorre à constelação no sentido concreto enquanto resultado da
exigência de uma paralisação da história, quando diz que somente o procedimento de arrancar uma época “do
processo homogêneo da história” possibilitaria sua percepção enquanto história excêntrica e constelar. Somente o
“choque” permite o “salto” e, assim, a transformação da visão linear numa imagem constelar da história. A
descontinuidade que, no fragmento citado da Obra das Passagens e numa postura ‘ideologicamente correta’, não
determina apenas o ser e a consciência da burguesia, mas também o processo de conhecimento do historiador, serve
como postulado epistemológico generalizado em outros textos.
A idéia da excentricidade da moda, portanto, não corresponde apenas ao senso comum, mas a moda se
transforma num ícone da filosofia da história de Benjamin exatamente pelo fato de que sua Sprunghaftigkeit, sua
volubilidade, a transformar num fenômeno descentrado, fora do eixo “homogêneo da história”. A extra-vagância, o
desvio da moda dos caminhos trilhados pelas modas passadas facilita, por assim dizer, o trabalho do historiador, uma
vez que este é dispensado da operação difícil de “arrancar” os elementos de seus contextos imediatos e de “fazer
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explodir o continuum da história” (16a tese), pois, devido à própria descontinuidade da moda, ele é poupado de tais
esforços, podendo passar diretamente à sua “leitura”.6
Essa descontinuidade faz com que um “singular-extremo” de uma determinada época se cristalize, contribuindo,
assim, à sua caracterização, a saber, à caracterização da moda e, por extensão, à caracterização da época. A
descontinuidade, porém, significa também que a moda, depois de ter permanecido por um tempo à altura de sua época,
caia logo nas profundezas da memória coletiva, para, eventualmente, ser “citada” um dia. Mas, mesmo se esse
“singular-extremo” continue apenas como “ruína” – o que importa é que continue existindo, podendo ser recolhido e
“lido” por uma geração do futuro. Tudo leva a crer que, por trás do “historiador materialista” de cunho marxista, se
esconde um materialismo especificamente benjaminiano (OTTE, 2001) que supera o primeiro em radicalidade na
medida em que atribui uma importância maior à materialidade do objeto e à percepção sensorial correspondente.
Mesmo assim, Benjamin insiste em considerar apenas o “materialismo histórico” (marxista) como capaz de
reanimar a matéria morta. Mais uma vez, é um suposto “interesse ardente” que toma conta do historiador:
O interesse do historiador materialista no passado é, em parte, um interesse ardente pelo fato deste
ter acabado e pelo seu estar-morto profundo. Ter certeza disso, em geral e no todo, é uma condição
indispensável para a citação (reanimação) de partes desse fenômeno. (GS, V/1, p. 459)7
Enquanto o proletariado revolucionário, paradoxalmente, convive numa certa tranqüilidade com seu passado –
“Os exemplos dos seus combatentes, a sabedoria dos seus líderes não envelhecem.”( GS, V/1, p. 460) –,
caracterizando-se assim por uma atitude um tanto estática, as ruínas que sobram do dinamismo “volúvel” da burguesia,
devido à sua afinidade com a moda, têm que ser resgatadas como se fossem objetos arqueológicos; elas têm que ser
reanimadas, para se tornarem, assim, “citáveis”. Esse paradoxo poderia ser interpretado no sentido de que o
proletariado extrairia do passado de seus líderes o ímpeto para transformar o presente, enquanto a burguesia, por meio
da moda, altera o presente apenas na aparência para mascarar um passado marcado pela opressão e para transformar
assim o presente em um status quo permanente.
Ora, uma tal diferenciação entre um dinamismo revolucionário e um dinamismo “da moda” que serviria
para sufocar os impulsos revolucionários, não é compatível com a importância que Benjamin atribui à moda
em particular e ao mundo perceptível de um modo geral. Mesmo se ele, em alguns momentos, deixa entrever
o dualismo entre ser e aparência, entre Sein e Schein, entre verdade latente e a ilusão manifesta,
normalmente com base em pressupostos marxistas, e mesmo se ele, nessas ocasiões, se deixa levar pela
postura platônica cristã cartesiana e também marxista – ou seja, ocidental – de considerar os cinco sentidos
como algo suspeito, não há dúvida que, nos fragmentos aqui citados, esses sentidos não são apenas órgãos
físicos, mas que eles estão no centro, como ele diz em um outro lugar, de uma “concreção superior” (GS V/1,
p. 495)
Aparentemente, essa concreção superior” também se enquadra nas hierarquias tradicionais, segundo as quais a
realidade estaria dividida em uma esfera superior e outra inferior, sendo que, esta última, seria representada pelo
mundo físico. Em Benjamin, no entanto, a “concreção superior” não faz parte de uma camada superior dentro de uma
geologia de valores, mas resulta de um processo espaço-temporal, descrito como “condensação”. À maneira dos restos
carregados por um rio após uma enchente, que se acumulam num determinado obstáculo, qualquer presente pode opor
obstáculos ao fluxo do tempo para assim acumular as “ruínas” do passado. Nesse processo, o material carregado pelas
águas se condensa, ou seja, os restos dispersos, as ruínas se transformam numa imagem “condensada” no espaço,
“superior” à sua dispersão no tempo.8
Os esforços terminológicos de Benjamin, conforme os quais o passado é denominado o “acontecido”, o presente
o “atual” ou o “tempo de agora” e o futuro o “vindouro”, parecem ser outro indício de que sua dialética não é aquela
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Segundo Willi Bolle, o historiador se serve também do flâneur como medium para ler o “texto da cidade“. Bolle também recorre ao
termo da “leitura“ quando fala na “teoria baudelairiana da modernité, que faz o diagnóstico da época a partir da leitura de sua
epiderme, a moda.“ (BOLLE, 2000. p. 78/85).
7 Procuramos manter, na nossa tradução, certas ‘extravagâncias’ da linguagem de Benjamin, uma vez que, no nosso entender, não
cabe ao tradutor tornar o original mais ‘palatável’.
8 Márcio Seligmann-Silva, em Ler o livro do mundo, associa a questão da densidade e materialidade ao caráter imagético do
conceito benjaminiano de leitura (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 229-230).
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OTTE, Georg. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de Walter Benjamin. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 8, n. 1 e n. 2, pág. 25 - 38, jan/jun e jul/dez
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entre uma infra-estrutura inferior e uma superestrutura superior,9 mas uma dialética da interpenetração e condensação
de épocas diferentes. Talvez não seja por acaso que Benjamin, no fragmento, não fale do “conceito de história” – de
acordo com o título das “Teses” estabelecido pelos editores –, mas de uma nova visão da história, pois não se trata de
apresentar um conceito abstrato da história, mas uma visualização que corresponda à mencionada “concreção
superior”. Certamente não é por acaso que ele, mais uma vez, recorre à moda, para tornar essa visão mais nítida.
Segundo esta,
deveria se falar de uma maior condensação (integração) da realidade, na qual tudo que provém do
passado pode obter, na hora propícia, um grau superior de atualidade do que no momento de sua
existência. É na imagem como a qual e na qual o passado é compreendido que essa atualidade
ganha contornos. E é essa penetração e presentificação de fatos do passado que é a prova da
veracidade das ações do presente. É ela que leva a pólvora que está embutida no acontecido a
explodir (sendo o verdadeiro emblema do acontecido a moda). [Adotar] esta abordagem do
acontecido, isto é, não a histórica usual, mas a política [significa] agir dentro de categorias políticas.
# moda # (GS, V/1, p. 495; grifo de Benjamin; acréscimos entre colchetes da edição alemã)
Já na citação inicial, onde se trata da rivalidade entre a moda e da arte, a “antecipação” não diz respeito a uma
realidade qualquer, mas à “realidade perceptível”; e quando Benjamin fala, ainda na mesma citação, duas vezes das
“coisas vindouras” e outra vez do “vindouro”, com o qual a moda estaria “num contato muito mais constante, muito mais
preciso”, a escolha das palavras serve mais uma vez para reforçar a idéia de que o presente e o futuro não se
encontram numa relação de causa e efeito, mas que o futuro já está presente no presente, do mesmo modo que o
passado ainda está presente no presente.10 A “antecipação”, portanto, não envolve contatos secretos com um mundo
sobrenatural, mas com o mundo natural e material, ou seja, trata-se da constatação de que o passado, o presente e o
futuro são do mesmo mundo e que a diferenciação de níveis temporais sucessivos perde o sentido diante da real
justaposição das coisas no espaço, mesmo que seja na forma de “ruínas”.
Mesmo se a questão do futuro e, conseqüentemente, da antecipação, não desempenha um papel importante na
obra de Benjamin e mesmo se ele, no anexo B das Teses, a rejeita dentro de uma crítica geral à ideologia do
progresso, as passagens citadas deixam claro que, no fundo, não importa se é o passado ou o futuro que está em
contato com o presente. Nesse ponto, até o vidente ganha do historiador positivista, que exige dos seus correligionários
que “tire da cabeça tudo que sabe da história posterior” (7a tese), para deixar valer apenas o acontecimento ‘positivo’:
Certamente, o tempo não foi experimentado como homogêneo nem vazio pelos videntes que
escrutinavam suas profundezas. Quem tiver consciência disso talvez chegue a uma noção da
maneira como o tempo passado era experimentado na rememoração: a saber, exatamente assim.(
GS, I/2, p. 704)
Cabe lembrar que o conceito da “rememoração” ocupa um lugar central na obra de Benjamin, pois o
Eingedenken, cujo Ein- sinaliza unidade ou união, se caracteriza justamente pela possibilidade de o presente e o
passado se unirem, entrando assim em oposição direta ao ideal positivista – e também cartesiano – de se isolar cada
fato, ou então, cada acontecimento do passado com o pretenso pressuposto de uma análise mais objetiva. No entanto,
cabe lembrar, também, que não se trata de tentativas saudosistas de retornar ao passado, mas de “citações”
inesperadas através das quais, como no caso da moda, o passado irrompe no presente, evidenciando sua atualidade.
Assim, o “salto de tigre” não se refere apenas à superação de grandes distâncias, mas também à idéia de o passado, à
maneira do animal selvagem, ficar à espreita no “emaranhado do acontecido” para, com seu “faro pela atualidade”,
surpreender o presente.
A arena, onde acontece o salto do tigre domesticado da sociedade de classes urbana, pode ser visto como o
espaço-tempo no qual a história se passa e no qual a questão da posterioridade ou da anterioridade é secundária. Para
Benjamin, não existem palcos diferentes da história que, de acordo com o ideal positivista de objetividade, teriam que
ser isolados, mas a história como um todo é, à maneira da arena, um único palco grande no qual os acontecimentos de
épocas diversas podem se relacionar na forma de diversas “constelações”. Por mais que Benjamin se posicione a favor
do materialismo histórico de cunho marxista, a Tese 14a deixa bem claro que o “emaranhado”, a arena e o “céu livre”
são metáforas para uma espacialização do tempo que dificilmente poderá ser encontrado em Marx.
Cf. BOCK, 2000, p. 573-4, sobre o rompimento da “hierarquia entre idéias superiores e fenômenos inferiores“. Uma crítica de
Benjamin à dialética marxista entre infra-estrutura e super-estrutura encontra-se nos fragmentos K 2,5 (GS V/1, p. 495-6) e N 1a,6
(GS V/1, p. 573-4).
10 Jeanne-Marie Gagnebin, em seu Prefácio às Obras Escolhidas (“Walter Benjamin ou a história aberta”), fala da “presença do
passado no presente”. (GAGNEBIN, 1985. p. 15)
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Assim, Benjamin fica devendo uma explicação da citação enquanto idéia supostamente marxista, mesmo porque
Marx desprezava a citação na história como “farsa”, considerando o recurso ao passado antes como obstáculo dentro
de um desenvolvimento revolucionário do que como um possível ganho para a compreensão da história:
E quando parecem estar ocupados em revolucionar as coisas e a si mesmos, em criar uma situação
inédita, justamente nessas épocas de uma crise revolucionária eles imploram ansiosamente aos
espíritos do passado para servi-los, emprestam-lhes os nomes, os motes de guerra, as vestimentas
para apresentar, com esse disfarce honroso e com essa linguagem emprestada, o novo ato da
história mundial. É assim que Lutero se vestia de apóstolo Paulo e a Revolução Francesa de 1789 a
1814, respectivamente, de República e de Império Romanos [...] (MARX, 1972, p. 115)
Portanto, quando Marx lança mão das imagens da vestimenta e do têxtil, o faz com a intenção clara de criticar o
recurso ao passado como farsa que deturpa as metas do presente e não como uma citação que pudesse conferir um
peso maior às ações do presente. Marx associa as “vestimentas” e o “disfarce” ao mundo do teatro exatamente para
desmascarar o recurso ao passado. Ele está longe de imaginar uma relação dialética com o passado, pois, de acordo
com a frase anterior ao fragmento citado, a “tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo nos
cérebros dos vivos.” Se o “estar-morto profundo” (cf. acima) do passado em Benjamin é apenas um pressuposto para
que ele possa ser citado e reanimado, o passado para Marx é uma entrave que o presente deve evitar.
Mais decisivo, porém, que as divergências em relação ao conceito marxista de história – que se tornam
evidentes na Obras das Passagens, mas tiveram que ceder espaço às confissões enfáticas a favor do Materialismo
histórico – é o desprezo de Marx em relação aos empréstimos que o presente retira do passado. A insegurança das
pessoas diante de um momento de crise as levaria ao “disfarce” do presente com retalhos do passado e assim a uma
deturpação da situação considerada real. Em Marx, o emprestar, mascarar e disfarçar servem para mostrar como as
aparências do passado escondem as verdades do presente, que é privado, assim , de seu potencial revolucionário. A
adoção de símbolos fisicamente perceptíveis do passado serve apenas para apresentar um “novo ato da história
mundial”, que deixa de ser “novo” devido ao disfarce com a roupagem velha; o próprio Marx lembra que a “farsa” tem
sua origem no teatro.
Evidentemente, seria equivocado deduzir da passagem citada, onde o mundo do teatro apenas serve como
metáfora, uma posição marxiana em relação ao mundo sensível. Criticar algo como “teatro” não significa desprezo pelo
teatro, da mesma maneira que criticar algo como “moda” não significa desrespeitá-la. Tudo indica, no entanto, que o
mundo sensível, mesmo na obra restante de Marx, não passa de uma determinante abstrata dentro da lógica
materialista, sem que sua percepção seja valorizada como um meio de compreensão da realidade. A passagem citada
demonstra uma desconfiança em relação ao mundo sensível que não é muito distante da dúvida epistemológica que
Descartes desenvolve gradativamente em suas Meditações e que começa pela desconfiança em relação aos próprios
sentidos.
O palco da história de Marx, portanto, está muito distante da arena de Benjamin. O passado e o presente não se
penetram em Marx para serem reunidos num único espaço, mas entram numa relação de conflito. Assim, não é de se
admirar que Benjamin, com seu postulado de um “núcleo temporal” (Zeitkern), que liga e condensa épocas diversas, se
distancia explicitamente do marxismo:
Cabe recusar, com ênfase, o conceito da “verdade atemporal”. Mas a verdade não é – como o
marxismo afirma – apenas uma função temporal do conhecimento, mas é vinculado a um núcleo
temporal que se encontra tanto no objeto quanto no sujeito do conhecimento. Isso é tão verdadeiro,
de modo que o eterno é antes o babado de um vestido do que uma idéia. (GS, V/1, p. 578)
Benjamin rejeita um progresso do conhecimento, no qual o presente do sujeito ‘progride’ cada vez mais em
relação ao objeto do passado, para assim alcançar a distância adequada. Por mais que seja difícil imaginar o “núcleo
temporal” – há certas analogias com o núcleo magnético do ímã com seus pólos e campos de força (GS, V/1, p. 587/8)
–, o que importa é que, nesse último fragmento, trata-se, mais uma vez, de uma condensação no espaço-tempo e que o
sujeito do presente e o objeto do passado são partes constitutivas do mesmo núcleo, talvez seus dois pólos, entre os
quais são gerados campos de força e tensões. Para Benjamin, a relação entre presente e passado é “tensa” e quando,
na 5a tese, fala da imagem do passado que apenas “relampeja”, fica claro que essa relação não é nostálgica ou
saudosista, mas marcada por ‘descargas’ inquietantes, para manter a metáfora do âmbito eletro-magnético.
Tudo indica que o próprio babado no vestido possui características do “núcleo temporal”. Ele não apenas faz
parte, enquanto algo eterno, de um determinado contexto histórico, mas também da “memória involuntária” dos atores
da história. O babado é o núcleo que tanto polariza quanto aglutina, sendo assim responsável pela tensão dialética
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entre a identidade do núcleo eterno e a diferença das particularidades das diversas épocas. A moda, enquanto tal, pode
ser “volúvel” e servir, por isso, como metáfora da diferença, mas seus acessórios “singulares-extremos”, como o
babado, provocam, ao mesmo tempo, a memória de épocas do passado, representando, com base em sua identidade
“eterna”, porém marginal, um elo subliminar entre elas.
O babado cita o passado, sendo que ele divide com a citação verbal de um texto a ambivalência própria ao
caráter metonímico da citação: da mesma maneira que a citação, por um lado, é a repetição idêntica de um fragmento
de texto, mas, por outro lado, a evocação do texto inteiro – cita-se um texto repetindo uma parte dele –, o babado
também, graças à sua emergência numa outra época, produz uma ligação entre dois contextos distantes. Da mesma
maneira que o fragmento textual literalmente citado causa, no momento da citação, tanto uma ruptura no texto no qual é
inserido quanto uma aproximação entre o texto de origem e o texto que estou chamando aqui de “texto-alvo”, o babado
também provoca uma “explosão” tanto na continuidade de uma determinada moda quanto uma aproximação de duas
épocas distantes. A destruição passa a ser a condição para a construção.
A citação, portanto, surte um efeito semelhante ao objetivo almejado pelo materialista histórico:
Ele a aproveita [a oportunidade] para fazer explodir uma determinada época do processo contínuo
da história: assim, ele arranca uma determinada vida da época, uma determinada obra da obra
inteira. O fruto desse procedimento consiste no fato de que na obra particular é preservada a obra de
uma vida, na obra de uma vida, a época e na época, o processo de toda a história (GS, I/2, p. 703).
Qualquer citação é o “arrancar” de um fragmento de seu texto, ou então, de seu contexto histórico, sendo que
ela representa esse texto ou contexto tanto no sentido de uma substituição quanto no sentido temporal, isto é,
tornando-o “re-presente”. A esse arrancar do fragmento citado do contexto do passado corresponde sua ‘invasão’ no
contexto do presente. O caráter súbito desse processo produz uma ruptura da linearidade, sendo que o seu aspecto
destrutivo é compensado pela geração de constelações complexas na forma de “imagens históricas” ou “dialéticas”:
Imagem é onde o acontecido se encontra subitamente com o agora. Em outras palavras: imagem é
dialética suspensa. Pois, enquanto a relação entre o presente e o passado é puramente temporal e
contínua, a relação entre o acontecido e o agora é dialética: ela não é processo, porém imagem,
“volúvel”.( GS V/1, p. 118)
Assim, não é de se admirar que a passagem do babado, já muito citada pelos comentadores benjaminianos, não
aparece apenas no capítulo N, dedicado às questões da teoria do conhecimento, mas também, enquanto fragmento
autônomo, no capítulo B, dedicado à moda. (GS V/1, p. 118) “A moda é constituída nada mais do que de extremos”11,
diz Benjamin no mesmo capítulo, pois são os extremos como o babado que tanto conferem identidade a uma
determinada moda quanto possibilitam o déjà-vu “relampejante” da imagem dialética.
Hoje em dia, o uso do conceito benjamiano de citação é amplamente difundido, como na arquitetura, por
exemplo, e se o nosso autor não apenas ressalta as relações da moda com o passado, mas também da arquitetura,
nada impede de reclamá-lo como precursor, ou então, como ‘antecipador’ também do pós-modernismo. É de se
perguntar até que ponto isso vale também para o conceito da leitura que passou a ser usado, com uma certa
freqüência, no âmbito dos estudos culturais. No caso dos Cultural Studies de origem anglo-saxônica, ele poderia ser
adotado no contexto da emancipação das culturas ditas “periféricas”, no sentido de se questionar a hegemonia das
culturas logocêntricas, isto é, centradas na escrita, justapondo-lhes culturas baseadas em outras formas simbólicas. A
escrita passaria a ser uma forma simbólica entre outras e a leitura a ser uma técnica que abrange todas as formas
simbólicas. Mais uma vez, Benjamin poderia desempenhar o papel de precursor, ressaltando-se, ao mesmo tempo, que
ele, apesar de ser referência constante de autores como Homi Bhabha,12 em momento algum discutiu a questão do
colonialismo.
No entanto, consideramos essas referências – ou seja, essas citações – como adequadas e legítimas, uma vez
que Benjamin promove a emancipação do objeto em relação à palavra, rejeitando a dominação desta sobre aquele e
procurando a dissolver, de um modo geral, o dualismo e a hierarquia entre significante e significado. Quando Benjamin
diz, em um dos fragmentos, que na Obra das Passagens como um todo: “Não tenho nada a dizer, apenas a mostrar.”
(GS, V/1, p. 574), fica evidente, mais uma vez, que não se trata, nesse empreendimento, de um texto sobre uma
GS V/1, p. 119. Benjamin cita de uma publicação com o título “70 anos de moda alemã“. Cabe esclarecer que a citação se refere
à opinião de a moda mudar de um extremo para o outro – e não aos acessórios “extremos“.
12 Homi K. Bhabha recorre várias vezes às teses “Sobre o conceito de história“ de Benjamin e, principalmente, ao ensaio intitulado
“A tarefa do tradutor” (Ver também a tradução de Susana Kampff Lages) para desenvolver, a partir da teoria da tradução de
Benjamin (e do pensamento de Derrida), um conceito de diferença cultural.
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determinada realidade, mas que os textos citados, como, por exemplo, a propaganda de um perfume, são parte dessa
realidade, assim como o perfume oferecido “diz” alguma coisa dessa realidade. A linguagem é “coisificada” e as coisas
passam a ter sua linguagem. Palavras e coisas são parte de uma realidade maior que inclui tanto o mundo das coisas
materiais quanto o dos textos verbais.
“Qualquer leitura é acompanhada por citações, ou seja, o leitor sempre vai além do texto ou contexto
propriamente dito, lê outras palavras e outras coisas” (BLUMENBERG, 1986, p. 342). A questão decisiva para o
conceito específico de leitura em Benjamin é a questão se o portador do significado, o signo, é constitutivo para a
realização dessa leitura ou se, no sentido da arbitrariedade de Saussure, o signo é reduzido a uma mera função
intermediadora. Pois é esse signo constitutivo que evoca, através do seu uso, o seu contexto, assim como o babado
evoca uma determinada moda do passado, citando-a e trazendo-a para o presente. Enquanto as linguagens artificiais
racionais da matemática e da lógica são mantidas “limpas”’ de qualquer peso particular, isto é, histórico, o esforço de
Benjamin vai no sentido contrário, no sentido de resgatar o caráter histórico da linguagem, a das palavras e das coisas.
Como no caso do rufo, palavras e coisas possuem, graças ao seu caráter material, uma “eternidade” que não perdem
mesmo fora de seu contexto original. Muito pelo contrário: enquanto “singulares-extremos”, essas “ruínas” têm que estar
fora de seu texto ou contexto, para poder assumir o papel de intermediário.
O tópos da linguagem das coisas, ou então, do mundo enquanto livro, remonta a uma tradição milenar, cujos
começos são anteriores à sua tematização por Sto. Agostinho e cujo ápice mais recente é a leitura do código genético:
O discurso do livro da natureza aponta para o fato de que a realidade pode ser lida como um texto. É
isso que queremos fazer aqui [na Obra das Passagens] com a realidade no século XIX. Abrimos o
livro dos acontecimentos. (GS, V/1, p. 580)
Um traço comum a todas as variantes desse tópos13 é que não se trata de um livro sobre a natureza, porém da
natureza enquanto livro. O “livro da natureza” é uma metáfora que se baseia no fato de que a natureza também não é
uma entidade que existe por si só, mas que seus componentes são signos que apontam para algo além da sua mera
existência. Uma análise mais sucinta da história desse topos poderia apoiar-se nas diferenças na referencialidade das
coisas enquanto signos: se, para Sto. Agostinho, que desconhece qualquer historicidade do mundo, o “livro da
natureza” aponta para seu criador, o “livro da cultura (urbana)” de Benjamin é responsável pelo estabelecimento das
relações intramundanas e intra-históricas. Transcendência e imanência seriam os possíveis critérios de diferenciação,
que distinguem Benjamin de outros autores, inclusive daqueles que, embora pensem em categorias históricas, “lêem”
os índices do presente a partir de um futuro utópico, isto é, fora da topografia da história.
A idéia da história topográfica faz com que ela possa ser vista como um espaço, dentro do qual cada objeto pode
se relacionar com outros objetos, formando assim novas constelações, normalmente designadas como “acontecimento”.
Ao conceito difundido da história enquanto seqüência de acontecimentos que se revezam, Benjamin opõe formações
espaciais, cujos componentes materiais, embora ruínas, não se perdem nesse espaço, nem perdem em valor. Muito
pelo contrário: o “lixão” da história é um tesouro onde qualquer objeto pode se transformar numa preciosidade a partir
do momento em que evoca ou “cita” o passado, desencadeando uma interpenetração, ou seja, uma “dialética” entre
épocas tidas como distantes. Por esse motivo, a imagem, enquanto formação bidimensional que permite relações
“ricas” entre seus elementos, é uma representação mais condizente com esse conceito de história do que o texto linear
das “grandes narrativas”, como diria Lyotard, cuja seqüência unidimensional é responsável pela “pobreza” das relações
mútuas. Conseqüentemente, Benjamin não entrega o conhecimento da história a uma lógica monocausal, que, por
assim dizer, seria enfaticamente linear, mas a uma leitura dialética de imagens, compostas por elementos do passado e
do presente. Assim, as relações entre duas épocas
não são de natureza temporal, mas imagética. Somente as imagens dialéticas são verdadeiramente
históricas, isto é, não arcaicas. A imagem lida, a saber a imagem no agora da recognoscibilidade
carrega ao máximo a marca do momento crítico e perigoso que está na base de qualquer leitura.
(GS V/1, p. 578)
ABSTRACT: In his Arcades Project, Walter Benjamin resumes the millenary topos of the „Book of the
World“, postulating its use even for the world of the city. Beside architecture, fashion is one of the
privileged fields of this reading, which shares with the reading of text the possibility of quotation.
Keywords: Walter Benjamin, Arcades Project, Book of the World, Fashion, Quotation.
Adotamos o conceito do “tópos“ de Ernst Robert Curtius em Literatura européia e Idade Méida latina. O próprio Curtius dedica um
sub-capítulo ao tópos do “livro da natureza“.
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OTTE, Georg. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de Walter Benjamin. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 8, n. 1 e n. 2, pág. 25 - 38, jan/jun e jul/dez
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