MEDIAEVALIA AMERICANA REVISTA DE LA RED LATINOAMERICANA DE FILOSOFÍA MEDIEVAL Año 3, N. 1, junio 2016, pp. 7-19. ISSN 2422-6599 “Ora, os homens são capazes de fazer o mal”* Sílvia Maria de Contaldo Por que, então, ó mortais, buscais fora de vós mesmos o que se encontra dentro de vós? O erro e a ignorância vos cegam. Boécio1 1. Introdução Bem, mal, justiça, injustiça, felicidade, infelicidade são temas que sempre estiveram no repertório filosófico. No horizonte medieval, a pergunta pela natureza humana, seus fins e propósitos tem em Boécio, especialmente em A consolação da Filosofia, respostas profundíssimas. Leitor de Agostinho, conhecedor da tradição filosófica grega, a interlocução de Boécio com a Filosofia traz à tona a questão do mal e a crença na possibilidade de o homem ser feliz, embora seja capaz de fazer o mal. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar algumas de suas indagações acerca da natureza humana e sua (in)disposição para fazer o mal. Sabe-se das condições adversas em que a referida obra foi escrita. Condenado injustamente à morte, na prisão em Pavia, Boécio recebe em sua cela a Filosofia, vestida com roupas que ela mesma teceu que, embora rasgadas, mostravam ainda o bordado das letras Pi e Theta2. A Filosofia ali antropomorfizada mostra-se decidida a exercer seu ofício, o de interrogar. Tornar-se-á sua companheira e mais que “consoladora” será esclarecedora, mais que alentadora, será promotora de investigações acerca das fraquezas humanas. À maneira socrática, não hesitará em perscrutar exaustivamente seu interlocutor: “de início, permites-me fazer algumas * Trabalho apresentado no Coloquio de Filosofía Medieval, realizado na Universidad Nacional de San Martín, Buenos Aires, em 2008. 1 Boécio, A consolação da Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 1998, II, 7. 2 Cf. ibíd., I, 2. MEDIAEVALIA AMERICANA REVISTA DE LA RED LATINOAMERICANA DE FILOSOFÍA MEDIEVAL perguntas para examinar e testar o estado da tua mente, para que possa saber que tipo de cura devo aplicar?”3. Não é á toa que Boécio é considerado um Sócrates da antiguidade tardia4: Ao longo de toda a obra a Filosofia não abrirá mão de seu ofício e percorrerá os temas que clarificam as situações-limite5 que os homens vivenciam, especialmente aquelas nas quais “os olhos se cegaram pelas coisas humanas”: “Vendo-me totalmente calado, incapaz de pronunciar qualquer palavra, ela pôs a mão ternamente sobre meu peito e disse: “Não temas nada, é apenas uma letargia, doença comum aos espíritos logrados. Ele se esqueceu por um momento de si mesmo, facilmente recobrará a razão, no entanto somente se recordar quem eu sou”6. 2. A cegueira da ignorância A razão pode ser recobrada e esse tipo de cegueira tem cura. Mas, diz a Filosofia, “se esperas a cura do médico, deves mostrar-lhe a doença”7. Assim, passo a passo, Boécio irá expor8 as dores da sua alma reconhecendo, na Filosofia, a verdadeira luz: “Tu, que conduzes à verdadeira luz, sabes que todas as afirmações que me fizeste até agora pareceram-me não só divinas mas também irrefutáveis pela lógica [...]9. Entretanto, Boécio não se sente completamente “curado”. Sabe dos sintomas, mas não conhece a causa de seu sofrimento, ou mais exatamente, não sabe por quê “apesar da existência de um ser bom que comanda o universo, o mal possa existir e até ficar impune”10. Esse questionamento não é absolutamente novo no 3 Ibíd., I, 12, p. 20. Cf. Marc Fumaroli. Prefácio, en Boécio, A consolação da Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 1998, pp. VII-XLIII, (p.VIII). 5 Cf. Karl Jaspers, Introdução ao Pensamento Filosófico, São Paulo, Cultrix, s/d, p. 53. 6 Boécio, ob. cit., I, 5, p. 7. 7 Ibíd., I, 8, p. 10. 8 Além da natureza dialógica da obra, vale notar que a forma literária alterna um capítulo em prosa e outro em verso. Cada capítulo em prosa é antecedido de um capítulo em verso. Muitíssimo lida, desde a Idade Média, dela conservam-se ainda hoje quatrocentos manuscritos medievais (cf. David Luscombe, O pensamento medieval, Mira-Sintra, Mem Martins, 2000, Forum da História, 35). 9 Boécio, ob. cit., IV. I, p. 95. 10 Ibíd. 4 8 MEDIAEVALIA AMERICANA REVISTA DE LA RED LATINOAMERICANA DE FILOSOFÍA MEDIEVAL mundo cultural cristão. Para citar apenas um exemplo, Agostinho inicia sua obra O livre-arbítrio justamente com a pergunta de Evódio, seu interlocutor naquele diálogo, acerca da existência do mal: “Peço-te que me digas, será Deus o autor do mal?”11. Em A consolação da Filosofia essa questão coroa, por assim dizer, todo o percurso do diálogo entre Boécio e a Filosofia. Boécio, naquela situação de extremo sofrimento em que se encontrava, não teve –de imediato– a clareza para discernir entre bem e mal, virtude e vício, prêmio e castigo. A interrogação acerca da existência do mal abriria um leque de questões que ainda hoje fazem pensar e, de diversas maneiras, nos deixam perplexos. Por exemplo, “enquanto o vício reina e prospera, a virtude não recebe recompensa alguma”12, ou “o que me leva ao extremo do espanto é o fato de que um Deus bom governa o universo”13 ou mais ainda: “ora ele [Deus] concede seus benefícios aos bons e maltrata os malfeitores; ora, pelo contrário, ele dá uma vida de sofrimentos ao bom e consente em satisfazer o desejo dos malfeitores. Dessa forma, até que me proves o contrário, em que Deus difere do acaso?”14. A formulação inicial da resposta a essas questões é precedida por um belo poema –como todos os outros– no qual a Filosofia declara possuir asas que dão à sua alma condição de alçar vôo, de forma a contemplar o que está para além das aparências sensíveis. Os olhos, fortemente embaçados pela cegueira da ignorância, podem recuperar a visão. Os versos, de claro matiz platônico, propõem a ascese intelectual para restabelecer a saúde dos olhos. “Possuo eu rápidas asas Para escalar as alturas celestes; Quando minha ágil alma delas se reveste Ela detesta e despreza toda a Terra. [...] E, satisfeita de ter chegado ao seu termo, Deixará a extremidade do céu E, desdobrando-se sobre o ágil éter, Seus olhos poderão contemplar O espetáculo do divino esplendor”15. 11 Santo Agostinho, O livre-arbítrio, São Paulo, Paulus, 1995, I, 1, p. 25. Boécio, ob. cit., IV, 1, p. 95. 13 Ibíd., IV, 9, p. 114. 14 Ibíd., p. 115. 15 Ibíd., IV, 2, pp. 96-7. 12 9 MEDIAEVALIA AMERICANA REVISTA DE LA RED LATINOAMERICANA DE FILOSOFÍA MEDIEVAL 3. Ora, os homens são capazes de fazer o mal. “Acaso há fraqueza maior do que a cegueira da ignorância?”16. Essa questão feita pela Filosofia, sem rodeios, é uma das chaves de compreensão do tema que conduz a obra. Levado por um encadeamento de proposições Boécio chegará ao ponto nevrálgico do tema. Se que quem faz o mal é premiado e quem faz o bem é castigado, valeria a pena conduzir-se retamente em todos os âmbitos da vida? Não haveria uma força poderosa ao lado dos maus? Com a Filosofia demonstrar-se-á justamente o contrário. Não há dúvida de que os “maus são capazes de fazer grande número de coisas [mas] essa capacidade que eles têm não provém de sua força, mas de sua fraqueza”17. Se, como argumenta a Filosofia, a vontade e a capacidade são condições essenciais para realizar qualquer ação, visto que uma sem a outra nos impede de chegarmos ao termo final de qualquer atividade, “é em virtude de sua capacidade que alguém é tido como forte, e fraco o incapaz”18. E posto que “todo o esforço da vontade humana, seja o que for que a motive, volta-se para a felicidade”, e a busca da felicidade é a busca do bem que se deseja, “todos, bons e maus, procuram com a mesma diligência o bem”. Além do mais, se “nos tornamos bons pela obtenção do bem”19 é certo que se “os maus obtivessem o bem que procuram, já não poderiam ser maus”. Sendo assim, como estabelecer diferenças entre um e outro, entre bons e maus, quando é certo que os homens são capazes de fazer o mal? Se suas paixões os fazem desejar bem menores, se mostram “incapazes de resistir ao vício e demonstram sua intemperança pela fraqueza”, se com pleno conhecimento do bem não o desejam, isso atesta que não apenas deixaram de ser fortes e perderam sua capacidade e vontade, mas “deixaram de ser”20. Com agudeza lógica e fineza de espírito Boécio descreve a fraqueza dos maus e sua vacuidade: “para ser é preciso conservar a boa ordenação da alma e preservar a própria natureza; ora, aquele que se afasta de sua natureza renuncia também a ser 16 Ibíd., IV, 4, p. 101. Ibíd., 3, p. 101. 18 Ibíd., p. 98. 19 Ibíd., pp. 98-9. 20 Cf. ibíd., p. 101. 17 10 MEDIAEVALIA AMERICANA REVISTA DE LA RED LATINOAMERICANA DE FILOSOFÍA MEDIEVAL aquilo de que sua natureza depende. Poder-me-ias dizer que os maus são capazes de fazer grande número de coisas. Não o nego; no entanto, essa capacidade que eles têm não provém de sua força, mas de sua fraqueza.[...] se podem fazer o mal é apenas porque conservam a capacidade de fazer o bem. E é justamente a capacidade de fazer o mal que prova com toda a clareza sua fraqueza”21. Assim, entre uma e outra prosa, a linguagem poética revela a penosa condição daqueles que, julgando-se fortes e bons, sofrem de uma fraqueza moral: “Estes reis que vês orgulhosamente instalados em seus tronos, Envoltos em brilhante púrpura e protegidos por guardiães sinistros, Cujo olhar, duro e ameaçador, espuma de raiva e orgulho, Quando perdem a proteção de sua frágil majestade Mostram os estreitos liames que os acorrentam: Os venenos devastadores das paixões atormentam-lhes o coração, A cólera os sacode como o vento as águas do mar, A experiência da tristeza os abate, e a incerteza das esperanças os tortura: Tu podes bem ver que um só desses reis é escravo de tantos tiranos: Longe de fazer o que quer, ele está submetido a seus carrascos” 22. Os versos lembram a descrição de Platão acerca do homem tirânico em sua obra A República23. “Submetido a seus carrascos”, o tirano hospeda em si todos os vícios, é nefasto portador de infelicidades. Com Boécio, confirma-se que o “poder dos bons e a fraqueza dos maus não podem ser postos em dúvida” e as más ações conduzem à infelicidade: “os [maus] fazem tudo o que lhes agrada pensando obter o bem que desejam graças ao que o prazer proporciona; no entanto, não obtêm absolutamente nada”24, enfatiza a Filosofia. 21 Ibíd., pp. 101-2. Ibíd., IV, 4, p.103. 23 Cf. Platão, A República, IX. 24 Boécio, ob. cit., IV, 3, p. 102. 22 11 MEDIAEVALIA AMERICANA REVISTA DE LA RED LATINOAMERICANA DE FILOSOFÍA MEDIEVAL 4. A maldade, doença da alma Por aí vê-se que a vontade de fazer o mal é uma infelicidade. Pior ainda é a capacidade de faze-lo. Querer, poder e fazer o mal é causa de todo infortúnio, de todas as infelicidades. Essa composição triádica ocorre porque “as pessoas em geral são incapazes de elevar seus olhos acostumados às trevas em direção à luz da verdade, onde a evidência se impõe [...] têm o olhar fixado sobre seus próprios sentimentos, e crêem ser felizes para cometer todo tipo de má ação livre e impunemente”25. Essa pseudo-felicidade nada mais é do que uma doença, uma doença da alma: “se a astenia é uma doença do corpo, a maldade é uma espécie de doença da alma”26 e provoca uma metempsicose moral: “... acaso enrubesce por sua cobiça aquele que recorre à força para espoliar os bens dos outros? É como falar de um lobo! Acaso ele emprega sua energia e seu tempo para gastar a saliva com ardis? Podes então compara-lo a um cão. Mas fica este tramando armadilhas veladas e se alegra de ter despojado alguém fraudulentamente? Compara-o então a uma raposa. Acaso ele ruge de cólera e perde o autocontrole? Poderíamos dizer que ele tem o coração de um leão. Mas acaso treme ele de pavor e está sempre pronto a se esconder diante daquilo que não amedronta nem uma mosca? Esse mau caráter, que tem medo de sua própria sombra, é mais parecido com um cervo. Este, preguiçoso, pesado e sempre inclinado ao sono, leva uma vida digna de um asno; seus caprichos, fantásticos e móveis, não diferem em nada dos de um pássaro. Mete-se ele em infâmias e imundas paixões? Ei-lo prisioneiro de desejos dignos de um porco repugnante!”27. Esses modos viciados de ser, todos semelhantes (asno, porco, lobo, cão, etc.) às criaturas não-racionais, demonstra que renunciar à virtude e ao bem é renunciar à própria existência, numa espécie de adoecimento. Aquele que “é” mau deixa de ser e, por não conduzir-se livremente –pois é escravo de seus próprios ardis– já não pode ser considerado humano, pois foi “metamorfoseado por muitos vícios” e “transforma-se em besta, incapaz de ascender à condição divina”28. É interessante notar que, logo no início d’A Consolação, Boécio foi interrogado sobre a essência da 25 Ibíd., IV, 7, p. 110. Ibíd., p. 113. 27 Ibíd., IV, 5, pp. 105-6. 28 Cf. ibíd. 26 12 MEDIAEVALIA AMERICANA REVISTA DE LA RED LATINOAMERICANA DE FILOSOFÍA MEDIEVAL natureza humana. A pergunta feita pela Filosofia “o que é afinal um homem” recebeu resposta imediata porém insuficiente: “um animal racional e mortal”. Foi preciso um longo processo terapêutico para desvelar o sentido mais profundo de ser e saber-se humano: “talvez esta seja a causa principal [da doença]: deixaste de saber o que tu és”29. Mais uma vez encontra-se aí forte ressonância da ética platônica. Em sua Apologia de Sócrates Platão lembra que “uma vida sem investigação não é digna de ser vivida”30. Também em Boécio a essência do homem deve ser buscada na complexidade da alma humana. Difícil encontrar definição mais apropriada, para não dizer mais atual, do que essa descrição poética de Boécio: “No interior do homem está sua natureza Encravada numa cidadela secreta. Há venenos dos mais poderosos Que fazem o homem sair de si mesmo, Mas eles o atingem profundamente, Pois, sem lhe prejudicar o corpo, Ferem-lhe a alma”31. De fato, a alma envenenada não pode querer o bem. Ferida, quer fazer o mal e contraria sua natureza. Daí a desmedida, a infelicidade, o infortúnio... e tantos males que expressam os absurdos na (da) vida humana. Sob esse prisma, o tema do mal é inconcluso e ainda hoje não temos receitas para os antídotos. Pode ser que, se educada pela Razão, vale dizer, “consolada pela Filosofia”, essa alma possa um dia “elevar-se acima da terra e merecer as estrelas”. Recibido 23/03/2016 Aceptado 01/06/2016 29 Cf. ibíd., I, 12, p. 21. Platão, Apologia, 38a 31 Boécio, ob. cit., IV, 6, p. 107. 30 13 MEDIAEVALIA AMERICANA REVISTA DE LA RED LATINOAMERICANA DE FILOSOFÍA MEDIEVAL 14