Evangelho segundo S. João 8,1-11. Jesus foi para o Monte das Oliveiras. De madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com Ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. Então, os doutores da Lei e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério, colocaram-na no meio e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais mulheres. E Tu que dizes?» Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra. Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» E, inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles. Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.» Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona (Norte de África) e doutor da Igreja Homilias sobre S. João "Também eu não te condeno. Vai e não voltes a pecar" "Retiraram-se todos, um após outro." Só ficaram duas: a miserável e a Misericórdia. Mas o Senhor, depois de os ter derrubado com o vigor da justiça, não se dignou ficar a olhar a queda deles; afastando o seu olhar, "baixou-se de novo para desenhar traços no chão". Quando aquela mulher ficou sozinha, depois de todos os outros se terem ido embora, levantou os olhos para ela. Ouvimos a voz da justiça, ouçamos também a da bondade... Aquela mulher esperava ser punida por aquele em quem não se podia encontrar pecado. Mas ele, que tinha expulsado os inimigos com a voz da justiça, levantando para ela os olhos da misericórdia, perguntou-lhe: "Ninguém te condenou?" Ela respondeu: "Ninguém, Senhor." E ele disse-lhe: "Também eu não te condenarei. Pudeste recear ser condenada por mim porque em mim não encontraste pecado; mas também eu não te condenarei". Que é isto, Senhor? Favoreces então os pecados? Não, de maneira nenhuma. Repara no que vem a seguir: "Vai e doravante não peques mais". O Senhor condenou na realidade, mas condenou o pecado, não o pecador... Que estejam então atentos, aqueles que no Senhor amam a bondade, mas temam a sua verdade... O Senhor é bom, o Senhor é lento na cólera, o Senhor é misericordioso, mas o Sehor também é justo e cheio de verdade (Sl 85,15). Concede-te o tempo para te corrigires, mas preferes gozar esse tempo mais do que mudares de vida. Foste mau ontem, sê bom hoje; passaste este dia no mal, pelo menos amanhã muda a tua conduta. É, pois, este o sentido das palavras que ele dirige àquela mulher: "Também eu não te condenarei mas, segura em relação ao passado, tem cuidado para o futuro. Também eu não te condenarei; apaguei o que cometeste; observa o que prescrevo para obteres o que eu prometi". S. Simeão, o Jovem Teólogo (c. 949-1022), monge ortodoxo Hino 45 "Também eu não te condeno... Eu sou a luz do mundo" (Jo 8, 11-12) Ó meu Deus, que amas perdoar, meu Criador, faz crescer sobre mim o fulgor da tua luz inacessível para que encha de alegria meu coração. Ah! não te irrites! Ah! não me abandones! mas faz resplandecer a minha alma com a tua luz, porque a tua Luz, ó meu Deus, és tu... Afastei-me do caminho recto, do caminho de Deus, e caí lamentavelmente da glória que me tinha sido dada. Fui despojado da veste luminosa, da veste de Deus, e, caído nas trevas, nas trevas permaneço, e não sei mesmo que estou privado da Luz... Porque, se tu brilhaste no alto, se apareceste na obscuridade, se vieste ao mundo, ó Misericordioso, se quiseste viver com os homens, segundo a nossa condição, por amor ao homem, se... disseste que eras a luz do mundo (Jo 8,12) e, ainda assim, nós não te vimos, não seremos nós totalmente cegos e mais desgraçados do que os próprios cegos, ó meu Cristo?... Mas tu, que és todos os bens, tu os dás sem cessar aos teus servos, aos que vêem a tua luz... Quem te possui, realmente possui tudo em ti. Que eu não seja privado de ti, Mestre! Que eu não seja privado de ti, Criador! Que eu não seja privado de ti, Misericordioso, eu que sou um humilde estrageiro... Peço-te: dá-me um lugar junto de ti, mesmo se multipliquei meus pecados mais do que todos os homens. Aceita a minha oração como a do publicano (Lc 18,13), como a da prostituta (Lc 7,38), Mestre, ainda que eu não chore como ela... Não és tu a nascente da piedade, a fonte da misericórdia e o rio da bondade? Tem piedade de mim! Sim, tu que tiveste as mãos, que tiveste os pés pregados na cruz, que tiveste o lado trespassado pela lança, ó todo-Compassivo, tem piedade de mim e arranca-me ao fogo eterno... Que nesse dia eu me erga sem condenação diante de ti, para ser acolhido na sala das tuas núpcias, em que partilharei a tua felicidade, meu bom Mestre, na alegria inexprimível, por todos os séculos. Amen! Isaac de l’Etoile (?- c. 1171), monge cisterciense Sermão 12 «Ele que era de condição divina... despojou-se de Si mesmo, tomando a condição de servo» (Fl 2, 6-7) O Senhor, Salvador de todos, «faz-se tudo para todos» (1Cor 9,12), por forma a revelar-se mais pequeno que os pequenos, Ele que era maior que os grandes. Para salvar uma alma surpreendida em adultério e acusada pelos demónios, rebaixa-se a escrever com o dedo na terra... Ele mesmo é essa santa e sublime escada que o viajante Jacob viu no seu sonho (Gn 28,12)..., escada dirigida da terra para Deus e estendida por Deus à terra. Quando quer, sobe até Deus, às vezes acompanhado de alguns..., às vezes sem que nenhum homem possa seguiLo. E, quando Ele quer, reúne a multidão..., cura os leprosos, come com os publicanos e os pecadores..., toca os doentes para os curar. Bem-aventurada essa alma que pode seguir o Senhor Jesus por todo o lado aonde Ele vai, subindo no repouso da contemplação... e, por outro lado, descendo pelo exercício da caridade, seguindo-o até se rebaixar no serviço, a amar a pobreza, a suportar... o cansaço, o trabalho, as lágrimas, a súplica, e finalmente a compaixão e a paixão. É que Ele veio para obedecer até à morte, para servir, não para ser servido, e dar, não ouro ou prata, mas o seu ensinamento e a sua assistência à multidão, a sua vida, pela multidão (Mc 10,45). Que este seja pois para vós o modelo de vida, irmãos:... seguir Cristo subindo para o Pai, ...seguir Cristo descendo aos irmãos, não recusando nenhum exercício de caridade, fazendoSe tudo para todos. João Paulo II Mulieris dignitatem, cap. 5 (trad. © Libreria Editrice Vaticana) "Aquele de entre vós que estiver sem pecado, atire a primeira pedra" Cristo é aquele que «sabe o que há no homem» (cf.Jo 2, 25), no homem e na mulher. Conhece a dignidade do homem, o seu valor aos olhos de Deus. Ele mesmo, Cristo, é a confirmação definitiva deste valor. Tudo o que diz e faz tem o seu cumprimento definitivo no mistério pascal da redenção. O comportamento de Jesus a respeito das mulheres, que encontra ao longo do caminho do seu serviço messianico, é o reflexo do desígnio eterno de Deus, o qual, criando cada uma delas, a escolhe e ama em Cristo (cf. Ef 1, 1-5)... Jesus de Nazaré confirma esta dignidade, recorda-a, renova-a e faz dela um conteúdo do Evangelho e da redenção, para a qual é enviado ao mundo... Jesus entra na situação concreta e hístórica da mulher, situação sobre a qual pesa a herança do pecado. Esta herança exprime-se, entre outras coisas, no costume que discrimina a mulher em favor do homem, e está enraizada também dentro dela. Deste ponto de vista, o episódio da mulher «surpreendida em adultério» (cf. Jo 8, 3-11) parece ser particularmente eloquente. No fim Jesus lhe diz: «não tornes a pecar»; mas, primeiro ele desperta a consciência do pecado nos homens ... Jesus parece dizer aos acusadores: esta mulher, com todo o seu pecado, não é talvez também, e antes de tudo, uma confirmação das vossas transgressões, da vossa injustiça «masculina», dos vossos abusos? Esta é uma verdade válida para todo o gênero humano... Uma mulher é deixada só, é exposta diante da opinião pública com «o seu pecado», enquanto por detrás deste «seu» pecado se esconde um homem como pecador, culpado pelo «pecado do outro», antes, co-responsável do mesmo. E, no entanto, o seu pecado escapa à atenção, passa sob silêncio... Quantas vezes a mulher paga pelo próprio pecado mas paga ela só e paga sozinha! Quantas vezes ela fica abandonada na sua maternidade, quando o homem, pai da criança, não quer aceitar a sua responsabilidade? E ao lado das numerosas «mães solteiras» das nossas sociedades, é preciso tomar em consideração também todas aquelas que, muitas vezes, sofrendo diversas pressões, inclusive da parte do homem culpado, «se livram» da criança antes do seu nascimento. «Livram-se»: mas a que preço? Pregador do Papa: Jesus devolve ao matrimônio e à família sua beleza originária Comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap., sobre a liturgia do próximo domingo ROMA, quinta-feira, 22 de março de 2007 (ZENIT.org).- Publicamos o comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap. -- pregador da Casa Pontifícia -- sobre a liturgia do próximo domingo, V da Quaresma. *** Jesus, a mulher e a família V Domingo da Quaresma Isaías, 43, 16-21; Filipenses 3, 8-14; João 8, 1-11 O Evangelho do V domingo da Quaresma é o episódio da mulher surpreendida em adultério que Jesus salva da lapidação. Jesus não pretende com isso dizer que o adultério não é pecado ou que é coisa de pouca importância. Existe uma condenação explícita disso, ainda que delicadíssima, nas palavras dirigidas ao final à mulher: «Não peques mais». Jesus não busca, portanto, aprovar a ação da mulher; o que tenta é condenar a atitude de quem sempre está disposto a descobrir e denunciar o pecado alheio. Nós vimos isso na última vez, analisando a atitude de Jesus para com os pecadores em geral. Mas agora, como de costume, partindo deste episódio, ampliemos nosso horizonte examinando a atitude de Jesus para com o matrimônio e a família em todo o Evangelho. Entre as muitas teses estranhas apontadas sobre Jesus em anos recentes, também está a de um Jesus que teria rejeitado a família natural e todos os vínculos parentais em nome da pertença a uma comunidade diferente, na qual Deus é o pai e os discípulos são todos irmãos e irmãs, e teria proposto aos seus uma vida errante, como faziam naquele tempo, fora de Israel, os filósofos cínicos. Efetivamente, há nos evangelhos palavras de Cristo sobre os vínculos familiares que à primeira vista suscitam desconcerto. Jesus diz: «Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até sua própria vida, não pode ser meu discípulo» (Lc 14, 26). Palavras duras, certamente, mas o evangelista Mateus se apressa em explicar o sentido da palavra «odiar» neste caso: «Quem ama seu pai ou sua mãe... seu filho ou sua filha mais que a mim, não é digno de mim» (Mt 10, 37). Jesus não pede, portanto, ódio aos pais ou aos filhos, mas não amá-los até o ponto de renunciar, por eles, a segui-lo. Outro episódio que suscita desconcerto. Um dia Jesus disse a alguém: «‘Segue-me’. Aquele respondeu: ‘Deixa-me ir primeiro enterrar a meu pai’. Jesus lhe respondeu: ‘Deixa que os mortos enterrem seus mortos; mas vai anunciar o Reino de Deus’» (Lc 9, 59s). Ó céus! Certos críticos aqui se desatam. Esta é uma petição escandalosa, uma desobediência a Deus, que ordena atender os pais; uma clara violação dos deveres filiais! O escândalo desses críticos constitui para nós uma prova preciosa. Certas palavras de Cristo não se explicam enquanto Ele for considerado um simples homem, por mais que seja excepcional. Só Deus pode pedir que se lhe ame mais que ao pai e que, para segui-lo, se renuncie até a ir à sua sepultura. Portanto, desde uma perspectiva de fé como a de Cristo, o que era melhor para o pai do falecido: que seu filho estivesse em casa naquele momento para sepultar seu corpo ou que seguisse o enviado desse Deus, a quem sua alma devia agora se apresentar? Mas talvez a explicação neste caso seja mais simples ainda. Sabe-se que a expressão «Deixame ir primeiro enterrar a meu pai» se usava às vezes (como se faz também hoje) para dizer: «deixa-me ir atender meu pai enquanto esteja vivo; quando morrer, eu o sepultarei e depois te seguirei». Jesus pedirá, portanto, só não prorrogar por tempo indeterminado a resposta a seu chamado. Muitos de nós, religiosos, sacerdotes e religiosas, tivemos de fazer essa mesma escolha e com freqüência os pais foram os mais felizes por esta obediência nossa. O desconcerto ante estes pedidos de Jesus nasce em grande parte de não levar em conta a diferença entre o que Ele pedia a todos indistintamente e o que pedia só a alguns, chamados a compartilhar sua vida inteiramente dedicada ao reino, como acontece hoje na Igreja. Há outras frases de Jesus que poderiam ser examinadas. Alguns até poderiam acusar Jesus de ser o responsável da proverbial dificuldade entre sogra e nora para se dar bem, porque disse: «Vim trazer a divisão entre o filho e o pai, ente a filha e sua mãe, entre a nora e sua sogra» (Mt 10, 35). Mas não é Ele quem separará; será a atitude diferente que cada um adotará na família com relação a Ele o que determinará esta divisão. Um fato que se verifica dolorosamente também hoje em muitas famílias. Todas as dúvidas sobre a atitude de Jesus para com a família e o matrimônio acabam se levarmos em conta todo o Evangelho, e não só as passagens que nos convêm. Jesus é mais rigoroso que ninguém acerca da indissolubilidade do matrimônio, sublinha com força o mandamento de honrar o pai e a mãe, até condenar a prática de afastar-se, com pretextos religiosos, do dever de assisti-los (Mc 7, 11-13). Quantos milagres realiza Jesus precisamente para sair ao encontro da dor de pais (Jairo, o pai do epilético), de mães (a cananéia, ou a viúva de Naim), ou de parentes (as irmãs de Lázaro), portanto, para honrar os vínculos de parentesco. Ele inclusive, em mais de uma ocasião, compartilha a dor de parentes até chorar com eles. Em um momento como o atual, em que tudo parece conspirar para debilitar os vínculos e os valores da família, já só faltaria que puséssemos contra ela também Jesus e o Evangelho! Mas esta é uma das muitas estranhezas sobre Cristo que devemos conhecer para não nos deixarmos impressionar quando ouçamos falar de novas descobertas sobre os evangelhos. Jesus veio para devolver ao matrimônio sua beleza originária (Mt 19, 4-9), para reforçá-lo, não para enfraquecê-lo. [Traduzido por Zenit] ZP07032220 Cristo é «a luz do mundo» (Jo 8, 12) Orígenes (c.185-253), padre e teólogo Homilias sobre o Génesis, 1, 5-7 «Eu sou a luz, vim ao mundo para que aquele que crê em mim não permaneça nas trevas» Cristo é «a luz do mundo» (Jo 8, 12) e Ele ilumina a Igreja com a sua luz. E, tal como a lua recebe a sua luz do sol a fim de iluminar a noite, assim também a Igreja, recebendo a luz de Cristo, ilumina todos aqueles que se encontram na noite da ignorância... É pois Cristo que é «a verdadeira luz que ilumina todo o homem vindo a este mundo» (Jo 1,9), e a Igreja, recebendo a sua luz, torna-se, ela própria, luz do mundo, «iluminando aqueles que caminham nas trevas» (Rom 2,19), de acordo com esta palavra de Cristo aos seus discípulos: «Vós sois a luz do mundo» (Mt 5,14). Do que se conclui que Cristo é a luz dos apóstolos, e os apóstolos, por sua vez, a luz do mundo. Evangelho segundo S. João 8,21-30. Uma outra vez, Jesus disse-lhes: «Eu vou-me embora: vós haveis de procurar-me, mas morrereis no vosso pecado. Vós não podereis ir para onde Eu vou.» Então, os judeus comentavam: «Será que Ele se vai suicidar, dado que está a dizer: 'Vós não podeis ir para onde Eu vou'?» Mas Ele acrescentou: «Vós sois cá de baixo; Eu sou lá de cima! Vós sois deste mundo; Eu não sou deste mundo. Já vos disse que morrereis nos vossos pecados. De facto, se não crerdes que Eu sou o que sou, morrereis nos vossos pecados.» Perguntaram-lhe, então: «Quem és Tu, afinal?» Disse-lhes Jesus: «Absolutamente aquilo que já vos estou a dizer! Tenho muitas coisas que dizer e que julgar a vosso respeito; mas do que falo ao mundo é do que ouvi àquele que me enviou, e que é verdadeiro.» Eles não perceberam que lhes falava do Pai. Disse-lhes, pois, Jesus: «Quando tiverdes erguido ao alto o Filho do Homem, então ficareis a saber que Eu sou o que sou e que nada faço por mim mesmo, mas falo destas coisas tal como o Pai me ensinou. E aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou só, porque faço sempre aquilo que lhe agrada.» Quando expunha estas coisas, muitos creram nele. Santo Atanásio (295-373), bispo de Alexandria, doutor da Igreja Sobre a incarnação do Verbo "Quando tiverdes erguido o Filho do homem, compreendereis que Eu Sou" Alguém poderia dizer: Se Cristo tinha mesmo de entregar o seu corpo à morte por nós todos, porque é que não morreu normalmente, como homem? porque é que tinha de se deixar crucificar? Poder-se-ia, na verdade, dizer que era mais conveniente para Ele entregar o seu corpo de uma maneira digna do que suportar a infâmia de tal morte... Esta objecção é demasiado humana: o que aconteceu ao Salvador é verdadeiramente divino e digno da sua divindade por várias razões. Em primeiro lugar, porque a morte que acontece aos homens tem a ver com a fraqueza da sua natureza; não podendo durar indefinidamente, eles desagregam-se com o tempo. Chegam as doenças e, tendo perdido as suas forças, acabam por morrer. Mas o Senhor não é fraco; Ele é a Força de Deus, o Verbo de Deus, a própria Vida. Se Ele entregasse o corpo em privado, num leito, à maneira dos homens, teriam pensado... que Ele não tinha nada a mais do que os outros homens... Não convinha que o Senhor adoecesse, Ele que curava as doenças dos outros... Então porque é que Ele não afastou a morte, tal como tinha afastado a doença? Porque Ele possuia um corpo precisamente para isso e para não pôr entraves à ressurreição... Mas, dirá talvez alguém, Ele deveria ter evitado a conjura dos seus inimigos, para conservar o seu corpo absolutamente imortal. Que esse aprenda, então, que também isso não convinha ao Senhor. Tal como não era digno do Verbo de Deus, por ser a Vida, dar a morte ao seu corpo por sua príopria iniciativa, também não lhe convinha fugir da morte que outros lhe queriam dar... Morrer como morreu não significou de modo algum a fraqueza do Verbo, mas fê-lo ser conhecido como Salvador e Vida... O Salvador não veio experimentar a sua própria morte mas a morte dos homens. S. Leão Magno (? - cerca de 461), papa e doutor da Igreja 15º sermão sobre a Paixão "Quando tiverdes erguido o Filho do homem, compreendereis que Eu sou" Aquele que verdadeiramente venera a Paixão do Senhor deve olhar de tal forma Jesus crucificado com os olhos do coração que consiga reconhecer a sua própria carne na dEle... Nenhum doente vê ser-lhe recusada a vitória da cruz e não há ninguém que não encontre socorro na oração de Cristo; se ela aproveitou a muitos dos Seus algozes, quanto mais não ajudará os que se viram para Ele?! Esta adopção da nossa natureza pela divindade, graças à qual "o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1,14), terá ela excluido algum homem da Sua misericórdia, a não ser que ele recuse a fé? Não tem o homem uma natureza comum com Cristo, se acolher Aquele que a assumiu e se tiver sido regenerado pelo Espírito que O gerou? Além disso, quem não reconheceria nEle as nossas próprias fraquezas..., nEle que "tomou a condição de escravo" (Fl 2,7)?... É nosso, aquele corpo sem vida que jazia no sepulcro mas que ressuscitou ao terceiro dia e que, acima de todas as alturas celestes, subiu até à direita da majestade do Pai. Se caminharmos pela via dos Seus mandamentos e se não tivermos vergonha de confessar tudo o que Ele fez pela nossa salvação no rebaixamento da Sua carne, também nós seremos elevados até partilhar a Sua glória. Porque aquilo que anunciou cumprir-se-á de forma deslumbrante: "Aquele que se pronunciar por mim diante dos homens, também Eu me pronunciarei por ele diante do meu Pai que está nos céus" (Mt 10,32). S. Bernardo (1091-1153), monge cisterciense e Doutor da Igreja Sermões diversos, nº 22 «Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então compreendereis que eu, eu sou» A Cristo Jesus deves toda a tua vida, pois que Ele deu a sua vida pela tua e suportou amargos tormentos para que tu não suportasses tormentos eternos. Que poderá haver para ti de duro e medonho, se te lembrares que aquele que era de condição divina na luz da sua eternidade, antes do nascer da aurora, no esplendor dos santos, ele mesmo resplendor e imagem da substância de Deus, veio à tua prisão, enterrar-se até ao pescoço, como se diz, no fundo do teu lodo? (Fil 2,6; Sl 109,3; Heb 1,3; Sl 68,3) O que é que não te parecerá doce, quando tiveres reunido no teu coração todas as tristezas do teu Senhor e te lembrares, primeiro, das condicionantes da sua infância, depois, das fadigas da sua pregação, das tentações dos seus jejuns, das suas vigílias de oração, das suas lágrimas de compaixão, das maquinações que armaram contra ele... e, depois, das injúrias, dos escarros, das bofetadas, das chicotadas, do escárnio, da troça, dos pregos, de tudo o que suportou para nossa salvação? Que compaixão imerecida, que amor gratuito assim provado, que estima inesperada, que doçura surpreendente, que bondade invencível! O rei da glória (Sl 23) crucificado por um escravo tão desprezível! Quem é que alguma vez ouviu tal, que alguma vez viu algo semelhante? «É que dificilmente alguém morria por um justo» (Rom, 5,7). Mas ele, foi por inimigos e por injustos que morreu, escolhendo deixar o céu para nos conduzir ao céu, ele, o doce amigo, o sábio conselheiro, o apoio firme. Que daria eu ao Senhor por tudo aquilo que me deu? (Sl 115,3) Evangelho segundo S. João 8,31-42. Então, Jesus pôs-se a dizer aos judeus que nele tinham acreditado: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres.» Replicaram-lhe: «Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém! Como é que Tu dizes: 'Sereis livres'?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é servo do pecado, e o servo não fica na família para sempre; o filho é que fica para sempre. Pois bem, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres. Eu sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque não aderis à minha palavra. Eu comunico o que vi junto do Pai, e vós fazeis o que ouvistes ao vosso pai.» Eles replicaram-lhe: «O nosso pai é Abraão!» Jesus disse-lhes: «Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão! Agora, porém, vós pretendeis matarme, a mim, um homem que vos comunicou a verdade que recebi de Deus. Isso não o fez Abraão! Vós fazeis as obras do vosso pai.» Eles disseram-lhe, então: «Nós não nascemos da prostituição. Temos um só Pai, que é Deus.» Disse-lhes Jesus: «Se Deus fosse vosso Pai, terme-íeis amor, pois é de Deus que Eu saí e vim. Não vim de mim próprio, mas foi Ele que me enviou. S. Jão Crisóstomo (C. de 45 - 407), bpo de Antioqia, depois Patriarca de Cnstantinopla 36ª homilia sobre o Génesis Agir comAbraão Olhando para a promessa de Deus e deixando de lado qualquer perspectiva humana, sabendo que Deus é capaz de obras que ultrapassam a natureza, Abraão confiou nas palavras que lhe tinham sido dirigidas, não guardou nenhuma dúvida no seu espírito e não hesitou sobre o sentido que devia dar às palavras de Deus. Porque é próprio da fé confiar no poder daquele que nos fez uma promessa... Deus tinha prometido a Abraão que dele nasceria uma descendência incontável. Esta promessa ultrapassava as possibilidades da natureza e as perspectivas puramente humanas; por isso é que a fé que ele tinha em Deus "lhe foi contada como justiça" (Gn 15,6; Ga ,6). Pois bem, se formos vigilantes, veremos que nos foram feitas promessas ainda mais maravilhosas e seremos compensados muito mais do que pode sonhar o pensamento humano. Para isso, temos apenas que confiar no poder daquele que nos fez essas prmessas, a fim de merecermos a justificação que vem da fé e de obtermos os bens prometidos. Porque todos esses bens que esperamos ultrapassam toda a concepção humana e todo o pensamento, de tal forma é magnífico o que nos foi prometido! Com efeito, essas promessas não dizem respeito apenas ao presente, à realização plena das nossas vidas e ao gozo dos bens visíveis, mas dizem também respeito ao tempo em que tivermos deixado esta terra, quando os nossos corpos tiverem sido sujeitos à corrupção, quando os nossos restos mortais forem reduzidos a pó. Então Deus promete-nos que nos ressuscitará e nos estabelecerá numa glória magnífica; "porque é preciso, assegura-nos S. Paulo, que o nosso ser corruptível revista a incorruptibilidade, que o nosso ser mortal revista a imortalidade" (1 Co 15,53). Além disso, depois da ressurreição dos nossos corpos, recebemos a promessa de gozarmos do Reino e de beneficiarmos durante séculos sem fim, na companhia dos santos, desses bens inefáveis que "os olhos do homem não viram, que o seu ouvido não ouviu e que o seu coração é incapaz de sondar" (1 Co 2,9). Vês a superabundância das promessas? Vês a grandeza destes dons? Filoxeno de Mabug (?-c. 523), bispo na Síria Homilia nº 4, Sobre a simplicidade “Se sois filhos de Abraão, deveis agir como Abraão” Logo que foi chamado, Abraão partiu, seguindo a Deus. Não se erigiu em juiz da palavra que lhe era dirigida. Não se deixou reter, nem pelas ligações familiares, nem pelo amor ao país e aos amigos, nem por qualquer outro laço humano. A partir do momento em que ouviu a palavra e soube que se tratava de Deus, ouviu-a com simplicidade, tomando-a como verdadeira pela fé. Desprezando tudo o resto, pôs-se a caminho com a inocência da natureza, que não procura enganar nem fazer o mal. Correu para a palavra de Deus como uma criança corre para seu pai. […] Deus tinha-lhe dito: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar” (Gn 12, 1). Foi para fazer triunfar a fé de Abraão e tornar resplandecente a sua simplicidade, que Deus não lhe revelou o país para onde o chamava; parecia conduzi-lo para Canaã, mas a promessa falava-lhe de outro país, o da vida que está nos céus. Como atesta São Paulo: “Esperava a cidade assentada sobre sólidos fundamentos, cujo arquitecto e construtor é Deus” (Heb 11, 10). […] Melhor ainda, a fim de nos mostrar claramente que esta promessa não dizia respeito a uma pátria terrena, depois de ter levado Abraão a sair da sua pátria, Ur dos Caldeus, Deus não o conduziu imediatamente ao país de Canaã, tendo começado por retêlo em Harrane. Como não lhe revelou imediatamente o nome do país para onde o conduzia; deste modo, Abraão não sairia da Caldeia atraído apenas pela recompensa prometida. Considera, pois, ó discípulo, esta saída de Abraão, e que a tua se assemelhe à dele! Não tardes em responder ao apelo vivo de Cristo que te chama. No passado, Ele dirigiu-se apenas a Abraão; hoje, através do seu Evangelho, chama todos quantos querem ser chamados, convidando-os a segui-Lo, porque o seu chamamento dirige-se a todos os homens. […] No passado, escolheu apenas Abraão; hoje, pede a todos que imitem Abraão. Concílio Vaticano II Gaudium et Spes (16 e 17) "Então conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecerlhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a recta consciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objectivas da moralidade. Não raro, porém, acontece que a consciência erra, por ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade e o bem e quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado. Mas é só na liberdade que o homem se pode converter ao bem. Os homens de hoje apreciam grandemente e procuram com ardor esta liberdade; e com toda a razão. Muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade. A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem. Pois Deus quis «deixar o homem entregue à sua própria decisão», para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele. Exige, portanto, a dignidade do homem que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja movido e induzi do pessoalmente desde dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa. O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes. A liberdade do homem, ferida pelo pecado, só com a ajuda da graça divina pode tornar plenamente efectiva esta orientação para Deus. E cada um deve dar conta da própria vida perante o tribunal de Deus, segundo o bem ou o mal que tiver praticado. João Paulo II Redemptor Hominis A verdade que liberta Jesus Cristo vai ao encontro dos homens de todas as épocas, incluindo a nossa, com as mesmas palavras: “Vós conhecereis a verdade e a verdade tornar-vos-á livres” Estas palavras contêm uma exigência fundamental e ao mesmo tempo um aviso: a exigência de honestidade face a face com a verdade como condição de uma autêntica liberdade; e também o aviso de evitar toda a liberdade aparente, toda a liberdade superficial e unilateral, toda a liberdade que não vai ao fundo da verdade sobre o homem e sobre o mundo. Ainda hoje, após dois mil anos, Cristo nos aparece como aquele que liberta o homem daquilo que limita, diminui e por assim dizer destrói esta liberdade suas raízes, no espírito do homem, no seu coração, na sua consciência. Que prova admirável de tudo isto deram e não cessam de dar aqueles que, por Cristo e em Cristo, chegaram à verdadeira liberdade e deram testemunho disso, mesmo em condições de constrangimento exterior! E assim que o próprio Jesus Cristo compareceu como prisi oneiro no tribunal de Pilatos, não respondeu ele: “Para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade” (Jo 18,37)? Por estas palavras pronunciadas diante do juiz no momento decisivo, ele confirmou por assim dizer uma vez mais o que já tinha dito: “Vós conhecereis a verdade e a verdade tornar-vos-á livres”. Ao longo dos séculos e das gerações, a começar pelo tempo dos apóstolos, não foi o próprio Jesus Cristo, que se comparou tanta vez aos homens condenados por causa da verdade? Será que ele cessará de ser sempre o porta-palavra e o advogado do homem que vive “em espírito e em verdade” (Jo 4,23)? Evangelho segundo S. João 8,51-59. Em verdade, em verdade vos digo: se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Agora é que estamos certos de que tens demónio! Abraão morreu, os profetas também, e Tu dizes: 'Se alguém observar a minha palavra, nunca experimentará a morte'? Porventura és Tu maior que o nosso pai Abraão, que morreu? E os profetas morreram também! Afinal, quem é que Tu pretendes ser?» Jesus respondeu: «Se Eu me glorificar a mim mesmo, a minha glória nada valerá. Quem me glorifica é o meu Pai, de quem dizeis: 'É o nosso Deus'; e, no entanto, não o conheceis. Eu é que o conheço; se dissesse que não o conhecia, seria como vós: um mentiroso. Mas Eu conheço-o e observo a sua palavra. Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: antes de Abraão existir, Eu sou!» Então, agarraram em pedras para lhe atirarem. Mas Jesus escondeu-se e saiu do templo. Santo Ireneu de Lyon /130-208), bispo, teólogo e mártir Contra as heresias “Abraão viu o meu dia e ficou feliz” “Abraão, vosso pai, exultou com o pensamento de ver o meu dia; viu-o e regozijou”. Que quer isto dizer? “Abraão confiou em Deus, e isso foi-lhe outorgado como mérito” (Gn 15,6). Ele acreditou, em primeiro lugar, que era ele o autor do céu e da terra, o único Deus; em seguida, que ele tornaria a sua descendência semelhante às estrelas do céu... É pois justo que, deixando todos os seus parentes terrestres, siga a Palavra de Deus, fazendo-se estrangeiro com o Verbo a fim de se tornar concidadão do Verbo. É também justo que os apóstolos, esses descendentes de Abraão, deixando as suas barcas e os seus pais, sigam o Verbo. É justo enfim que nós, que temos a mesma fé que Abraão, pegando em nossa cruz como Isaac pegou na lenha (Gn 22,6), sigamos este mesmo Verbo. Porque em Abraão o homem tinha sido educado adiantadamente e tinha-se habituado a seguir o Verbo de Deus. Abraão seguiu com efeito, na sua fé, o mandamento da Palavra de Deus, cedendo apressadamente o seu único e bem amado filh o em sacrifício a Deus, a fim de que Deus consentisse em entregar o seu Filho bem amado e único em sacrifício para nossa redenção. E como Abraão era profeta e via pelo Espírito o dia da vinda do Senhor e a disposição da sua paixão, quer dizer a salvação para si próprio e para todos os que como ele acreditassem em Deus, exultou de grande alegria. O Senhor não era pois desconhecido de Abraão, pois que este desejava ver o seu dia... a fim de poder... abraçar Cristo, e tendo-o visto de maneira profética pelo Espírito, ele exultou. Santo Ireneu de Lião (cerca de 130 - cerca de 208), bispo, teólogo e mártir Contra os Hereges "Abraão viu o meu dia e ficou feliz" Como Abraão era profeta, via no Espírito o dia da vinda do Senhor e o desígnio da sua Paixão, pela qual ele mesmo e todos os que, como ele, acreditassem em Deus seriam salvos. E estremeceu com grande alegria (Gn 17,17). O Senhor não era pois desconhecido de Abraão, uma vez que este desejou ver o seu dia... Desejou ver esse dia a fim de poder também abraçar Cristo e, tendo-o visto de maneira profética pelo Espírito, exultou. Foi por isso que Simeão, que era seu descendente, consumou a alegria do patriarca e disse: "Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em Paz segundo a tua promessa; porque os meus olhos viram a tua salvação que preparas diante dos povos" (Lc 2, 29sg)... E Isabel disse [segundo certos manuscritos]: A Minha alma enaltece o Senhor, o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador". A exultação de Abraão descia assim sobre os que vigiavam, que viam Cristo e que acreditavam nele. E, a partir dos seus filhos, a exultação tornava a subir até Abraão... Por isso, é justo que o Senhor lhe preste testemunho, ao dizer: "Abraão, vosso pai, exultou com o pensamento de ver o meu dia: viu-o e alegrou-se". E não é só a propósito S. Cirilo de Jerusalém (313-350), bispo de Jerusalém e doutor da Igreja Catequeses baptismais, nº 5 «Porventura és maior que o nosso pai Abraão?» Muito haveria a dizer acerca da fé. Basta-nos lançar uma vista de olhos sobre um dos modelos que o Antigo Testamento nos dá, Abraão, pois somos seus filhos pela fé. Este não foi justificado só pelas obras, mas também pela fé. Ele praticara muitas boas acções mas, só depois de ter feito prova da sua fé, é que ele foi chamado amigo de Deus. Todas as suas obras tiraram a perfeição da sua fé. Foi pela fé que deixou os seus pais; foi pela fé que deixou a pátria, o país, a casa. Da mesma forma que ele foi justificado, também tu te tornas justo! Logicamente, o seu corpo tornou-se incapaz de ser pai, porque era demasiado velho. Sara, a quem ele se unira, era também já idosa. Não tinham, pois, nenhuma esperança de descendência. Ora Deus anuncia a esse ancião que seria pai e a fé de Abraão não vacilou. Considerando que o seu corpo estava já próximo da morte, ele não tem em conta a sua impotência física, mas o poder daquele que prometera, pois julgava digno de fé aquele que lhe fizera essa promessa. Foi assim que, de dois corpos já marcados de algum modo pela morte, nasceu um filho, maravilhosamente... É o exemplo da fé de Abraão que nos torna a todos filhos de Abraão. De que maneira? Os homens consideram inacreditável uma ressurreição dos mortos, como é inacreditável que os velhos, marcados já pela morte, possam gerar descendência. Mas quando nos anunciam a boa nova de Cristo, crucificado na cruz, morto e ressuscitado, nós acreditamos. É, pois, pela semelhança da sua fé que entramos na filiação de Abraão. E, então, com a fé, recebemos como ele o vaso espiritual, circuncisos no Baptismo pelo selo do Espírito Santo. Santo Ambrósio (cerca de 340-397), bispo de Milão e doutor da Igrela Sobre Abraão "Abraão viu o meu dia." "Deus disse a Abraão: Toma o teu filho bem-amado, esse Isaac que acarinhaste; parte para a montanha e lá mo oferecerás em holocausto" (Gn 22,2). Isaac prefigura Cristo que vai sofrer: vem sobre uma burra... Quando o Senhor veio sofrer por nós na sua Paixão, soltou o jumento de junto da burra e sentou-se nela... Abraão disse aos servos: "Já voltaremos para junto de vós"; sem que ele o soubesse, isto era uma profecia... Isaac carregou a lenha e Cristo levou a própria cruz. Abraão acompanhava o seu filho; o Pai acompanhava Cristo. Na verdade, ele diz: "Deixar-me-eis só, mas eu não estou só; o Pai está comigo" (Jo 16,32). Isaac diz a seu pai...: "Está aqui a lenha, onde está o cordeiro para o holocausto?" São palavras proféticas, mas ele não o sabe; com efeito, o Senhor preparava um Cordeiro para o sacrifício. Também Abraão profetizou ao responder: "Deus proverá o cordeiro para o holocausto, meu filho"... "O anjo diz: 'Abraão, Abraão!... Não ergas a mão sobre o menino, não lhe faças m al; porque agora sei que temes a Deus, tu que não poupaste o teu filho bem-amado por minha causa' (cf. Rm 8,32)... Abraão levantou os olhos e viu: estava ali um carneiro suspenso pelos cornos num arbusto." Porquê um carneiro? É o que tem mais valor em todo o rebanho. Porquê suspenso? Para te mostar que não era uma vítima terrestre... O nosso corno, a nossa força, é Cristo (Lc 1,69), que é superior a todos os homens, tal como lemos: "És o mais belo dos filhos dos homens" (Sl 44,3). Só ele foi erguido da terra e exaltado, como no-lo ensina com estas palavras: "Eu não sou deste mundo; sou do alto" (Jo 8,23) Abraão viu-o neste sacrifício, apercebeu-se da sua Paixão. É por isso que o Senhor diz dele: "Abraão viu o meu dia e rejubilou". Ele apareceu a Abraão, revelando-lhe que o seu corpo sofreria a paixão pela qual resgatou o mundo. Indica mesmo o tipo de Paixão ao mostrar o carneiro suspenso; aquele arbusto é o braço da sua cruz. Erguido sobre esse madeiro, o guia incomparável do rebanho tudo atraíu a si, para por todos ser conhecido. Santo Ambrósio (c. 340-397), bispo de Milão e doutor da Igreja Abraão, Livro I, 19-20 “Abraão viu o meu dia” Consideremos a recompensa que Abraão pede ao Senhor. Não Lhe pede riquezas, como um avaro, nem vida longa, como quem teme a morte, nem poder, antes pede um digno herdeiro do seu trabalho. “Que me dareis, Senhor Deus, vou-me sem filhos” (Gn 15, 2). […] Agar deu à luz um filho, Ismael, mas Deus diz-lhe: “Não é ele que será o teu herdeiro, mas aquele que sairá das tuas entranhas” (Gn 15, 4). De quem fala Ele? Não se trata de Ismael, mas de Santo Isaac. […] Em Isaac, filho legítimo, podemos ver o verdadeiro filho legítimo, o Senhor Jesus Cristo, que, no começo do Evangelho de São Mateus, é chamado filho de Abraão (Mt 1, 1). Ele mostrou ser um verdadeiro filho de Abraão, fazendo resplandecer a descendência do seu antepassado; foi graças a Ele que Abraão, olhando para o céu, pôde ver brilhar a sua posteridade como as estrelas (Gn 15,5). O apóstolo Paulo afirma: “Uma estrela difere da outra em resplendor. Assim também é a ressurreição dos mortos” (1 Co 15, 41-42). Ao associar à sua ressurreição os homens que a morte mantinha na terra, Cristo fê-los participar no reino dos céus. A filiação de Abraão apenas se propagou pela herança da fé, que nos prepara para o céu, nos aproxima dos anjos, nos eleva até às estrelas. Disse Deus: “’Será assim a tua descendência.’ Abraão confiou no Senhor” (Gn 15, 5-6). Ele acreditou que, pela sua encarnação, Cristo seria seu herdeiro. Para to fazer compreender, o Senhor afirmou: “Abraão viu o Meu dia e alegrouse.” Deus considerou-o justo porque não pediu explicações, antes acreditou sem a menor hesitação. É bom que a fé se sobreponha às explicações, pois de outro modo parecia que estávamos a exigi-las ao Senhor nosso Deus, como quem as exige a um homem. Que inconveniência, acreditar nos homens quando eles dão testemunho de outro, e não acreditar em Deus, quando fala de Si! Imitemos, pois, Abraão, para herdarmos o mundo pela justificação da fé, que o tornou a ele herdeiro da terra.