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A DEMOCRACIA EM KELSEN
Crisnanda Pane Siscar1
Renato Martins Vieira Fonseca2
RESUMO: O objetivo deste artigo é uma reflexão sobre a democracia tal como analisada por
Hans Kelsen em um conjunto de textos de filosofia política escrito no início do séc. xx pouco
conhecido e comentado na literatura jurídica e análise de suas críticas e conclusões com
relação a esta forma de governo na atualidade.
Palavras-chave: Democracia - Kelsen - liberdade - autonomia - legitimidade - democracia
representativa
1. INTRODUÇÃO
Democracia não é um termo vazio que pode simplesmente ser jogado em uma frase para
que a mesma pareça mais adequada ou menos bruta, frente à realidade de que somos e
devemos ser governados, em nossa vida em sociedade.
A idéia de Governo, por si só, já é uma distorção de realidade, uma ilusão de que o homem
precisa, sempre necessitará e inexoravelmente está condenado à convivência social e para
que isto seja viável, não pode abrir mão da existência de um governante, que imponha sua
vontade como se fosse a vontade de todos.
Claro, podemos então brincar com as idéias de Maquiavel, em O Príncipe e dizer, da forma
mais simplória, que o Governante deve governar pelo interesse da coletividade,
simplificando esta figura como a do Monarca, em contrapartida a seu oposto, o Tirano, que
governa em interesse próprio. A verdade, entretanto, é muito mais desapaixonada do que
este paradigma e também muito mais tênue a distinção do que seria este "interesse da
coletividade".
1
Mestre (2002) e Doutora (2007) em Filosofia de Direito pela Faculdade de Direito da UFMG.
Professora das Faculdades de Direito Batista e Estácio de Sá de Belo Horizonte.
2
Mestre (2004) em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Advogado e Professor das Faculdades de Direito Estácio de Belo Horizonte e Batista de Minas Gerais
2
Modernamente, com o "desenvolvimento", se isto puder ser afirmado, das formas de
Governo, surge o fenômeno da Democracia atual. Isto mesmo, um fenômeno, visto a
simplicidade da idéia de um governo feito pelo próprio povo. A inocência da célebre frase de
Lincoln, em seu discurso de Gettysburg: "O governo do povo, pelo povo e para o povo",
demonstra o quão fácil é desvirtuar a realidade em troca da ilusão, e achar que um sistema
representativo, através da eleição universal, pode de qualquer forma criar um Governo
verdadeiramente de todos.
Contrário senso, as decisões finais sempre acabarão nas mãos e discricionariedade dos
Governantes em si e não no povo como um todo. O que naturalmente provoca
questionamentos sobre o se esta Democracia, mesmo que bem intencionada, não se
tornaria uma ditadura da maioria.
A fim de refletir sobre este tipo de dilema, vamos buscar guarita no ensinamentos clássicos
de Kelsen, na pouco conhecida obra A Democracia.
É importante distinguir entre o Kelsen da Teoria Pura do Direito, ou seja, o estudioso do
direito positivo, o Kelsen historiador do pensamento político-jurídico, que se manifesta em A
Ilusão da Justiça e o filósofo político de A Democracia.
Do ponto de vista da Teoria Pura do Direito, “realmente, todas as ordenações são pouco
definidas, com exceção das diferenças estruturais: o Sacro Império Romano, uma
monarquia constitucional, um Estado fascista, um Estado socialista não são nem mais nem
menos ordenações jurídicas do que os Estados democráticos” GAVAZZI, p. 2-3).
Essa perspectiva é válida também para o Kelsen filósofo político que se manifesta em A
Democracia? A resposta, após a leitura da sua obra A Democracia, apenas pode ser que
definitivamente não.
Ora, é bem verdade que, por vezes, principalmente nos primeiros capítulos, tem-se a
impressão de que os problemas a respeito da democracia analisados por Kelsen levam a
crer que esta forma de governo se encontra como que em um beco sem saída.
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Isso se deve certamente ao método de Kelsen, que prima pela busca por precisão científica,
ao tentar uma exposição o mais objetiva possível, evitando, na medida do possível, a
explicitação de preferências políticas pessoais, que poderiam obscurecer os fatos e
comprometer uma avaliação imparcial e profunda dessa forma específica de governo.
Entretanto, não é essa imparcialidade que predomina no conjunto da obra, mas sim a
manifesta preferência e defesa vigorosa da democracia em face de outros sistemas. Tal
opção, porém, não faz com que Kelsen ignore as dificuldades inerentes à democracia,
principalmente no plano da realidade de sua aplicação. Pelo contrário, ele tenta fazer
propriamente uma crítica da mesma, num sentido kantiano, buscando os limites da
democracia, seja na teoria ou na prática, e quais pretensões lhe são legítimas.
Grande parte das críticas dirigidas genericamente a Kelsen se pautam numa leitura
equivocada da Teoria Pura do Direito, como se fosse uma tese de filosofia política,
desembocando na falsa acusação de que ele é um “santo protetor de qualquer sistema
político”, inclusive de regimes não-democráticos.
Em A Democracia, sim, quem fala agora é o Kelsen filósofo político, brilhante teórico da
democracia, que foi substancialmente ignorado pelos seus críticos, e que se apresenta
como ardoroso defensor do sistema democrático, não de forma panfletária e ideológica, mas
a partir de razões rigorosamente encadeadas.
2 . ESSÊNCIA E VALOR DA DEMOCRACIA
Kelsen chama a atenção para o fenômeno de que, exatamente porque a democracia é
palavra de ordem que domina quase que universalmente os espíritos, nos séculos XIX e XX,
ela perde, como qualquer palavra de ordem, o sentido que lhe seria próprio.
Essa consideração é bem própria e atual, pois até hoje, (pode-se até mesmo dizer
principalmente hoje, pois em tempos de grandes mudanças em torno do homem, como o
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presente, os valores ficam altamente obscurecidos), a palavra democracia tem assumido os
mais variados significados, muitos até contrastantes, ao sabor das contingências políticas,
“quando a costumeira impropriedade do linguajar político vulgar não a degrada deveras a
uma frase convencional que não mais exige sentido determinado” (KELSEN, p. 25).
O texto Essência e Valor da Democracia foi escrito por Kelsen em 1929, quando, se de um
lado o ideal da democracia era atacado pela esquerda comunista, por outro, e como reação,
a burguesia passa a assumir também uma atitude anti-democrática, com expressão no
fascismo. Daí mostrar-se cogente, àquela época, (e ainda hoje, embora em bases
obviamente bastante diversas daquelas), uma revisão desse valor político.
Daí o questionamento inicial. Onde a Democracia se desvirtua, enquanto forma de Governo
ética e se instala a Ditadura democrática da maioria, situação mais preocupante que a
ditadura da minoria, posto que no primeiro caso, há uma clara aparência de legitimidade do
Governo, mesmo que legítimo seja exatamente o que qualquer forma ditatarial jamais
poderia ser.
É o conflito entre a Liberdade do todo, mesmo que com sofrimento compartilhado, contra a
liberdade da maioria, com o sofrimento concentrado na minoria sem os devidos direitos e
respeito.
3. DIFERENTES ACEPÇÕES DA PALAVRA LIBERDADE
A idéia de democracia apresenta-se como a síntese entre liberdade e igualdade, pois, se de
um lado a liberdade apresenta-se como reação à coerção resultante do estado de
sociedade, como protesto contra a heteronomia, de outro lado, a idéia de igualdade impõe a
seguinte pergunta: “se somos iguais, por que deveríamos nos deixar comandar”?
Daí o ponto-chave dessa discussão: “se deve haver sociedade, (...) deve haver um
regulamento obrigatório das relações dos homens entre si, deve haver um poder. Mas, se
devemos ser comandados, queremos sê-lo por nós mesmos (...). É politicamente livre
aquele que está submetido, sim, mas à vontade própria e não alheia” (KELSEN, p. 28).
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A liberdade entendida como livre-arbítrio, como negação de qualquer determinismo,
inclusive o da natureza, ao preestabelecer ao homem, enquanto ser sensível, uma série de
determinações que independem de sua vontade, implica, porém, um constante impulso de
libertação também dos vínculos sociais, expresso por um primitivo instinto antiestatal, que
poderia ser explicitado com a expressão “fazer o que der na telha”, obviamente incompatível
com a subsistência de qualquer estado de sociedade.
Kelsen contrapõe, então, a essa concepção a idéia de liberdade não mais como livre
arbítrio, nesse sentido, mas sim enquanto autonomia, o que faz transparecer uma clara
influência kantiana e, mais especificamente rousseauniana, nesse ponto da doutrina de
Kelsen.
Dessa forma, no plano externo, que é o que interessa a Kelsen nesse trabalho, a liberdade
deve ser entendida como autodeterminação política do cidadão, ao participar na
formação da vontade diretiva do Estado .
Entretanto, nem quando considerada como autonomia política, a liberdade é absoluta, pois,
mesmo que a vontade geral fosse realizada diretamente pelo povo, o que atualmente só se
cogita hipoteticamente, o indivíduo seria livre só durante a votação, e, ainda assim, apenas
se votou com a maioria e não com a minoria vencida.
Daí a necessidade de que a liberdade seja alcançada pelo menos em nível aproximativo, em
que a imposição de decisões à minoria seja cada vez mais restrita, o que se consubstancia
no princípio democrático de liberdade (KELSEN, p. 29-30).
Kelsen entende isso como uma nova metamorfose da idéia de liberdade, já que se mantém
o princípio da autonomia, na consideração de que cada um submete-se somente à sua
própria vontade, enquanto o que vale em verdade é a lei da maioria.
Para Kelsen, é a partir da idéia de liberdade que o princípio majoritário pode ser deduzido, e
não da de igualdade, pois, se um indivíduo não vale mais que outro, não se pode concluir
que, por uma simples operação aritmética de soma, mais votos tenham mais poder do que
menos votos.
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O raciocínio correto é o de que “se nem todos os indivíduos são livres, pelo menos o seu
maior número o é, o que vale dizer que há necessidade de uma ordem social que contrarie
o menor número deles. Certamente esse raciocínio pressupõe a igualdade como postulado
fundamental da democracia: de fato está claro que se procura assegurar a liberdade não
deste ou daquele indivíduo porque este vale mais do que aquele, mas do maior número
possível de indivíduos” (KELSEN, p. 32).
A partir da transformação da idéia de liberdade do indivíduo em relação ao Estado para a
participação do indivíduo no poder do Estado, opera-se a separação entre democracia e
liberalismo, entre liberdade individual enquanto livre arbítrio, e enquanto autonomia, sendo
que, em casos extremos, esta poderia perfeitamente prevalecer sem aquela.
É inevitável a discordância entre a vontade do indivíduo e a ordem estatal, que se apresenta
a ele como vontade alheia, considerando-se a heteronomia da ordem jurídica. Daí a
colocação da liberdade individual, que é irrealizável, em segundo plano, passando a ser
livre e autônoma a coletividade expressa no Estado. Ora, no “regime democrático é o
próprio Estado que aparece como sujeito do poder,” o que encobre “o fato, insuportável
para uma sensibilidade democrática, do domínio do homem pelo homem” (KELSEN, p. 33).
Isso se dá tendo em vista a necessidade de se assegurar o maior grau possível de
objetividade e transpessoalidade à organização da sociedade, já que é atribuído ao Estado
o monopólio da coação na aplicação do Direito. Opera-se, assim, a transmutação da
liberdade em soberania popular.
Talvez, um dia, com a propagação dos meios digitais, seja possível a Democracia Direta,
nos moldes da clássica Democracia Grega, onde todos participam diretamente de todas as
decisões. Entretanto, neste modelo, mais do que no modelo representativo, a vontade da
maioria sempre tenderá a prevalecer.
Ora, este é um dilema discursivo circular complexo, que tende a retornar ao status quo. Se a
decisão da maioria é, ou pode ser, entendida como a ditadura da maioria, então não temos
uma democracia em sua acepção legítima. Por outro lado, se o povo, por si só, não decide
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de maneira social, ou seja, pensando no todo e não individualmente, impõe-se a
necessidade da representação para tomar a melhor decisão. No entanto, a existência do
poder na mão de um, ou mais, que representam um todo, geram um poder decisório
centralizado que tende a violar os princípios básicos da Democracia e privilegiar o grupo
dominante, ou seja, a ditadura da minoria.
Neste sentido, o primeiro modelo parece menos ruim, mesmo que longe do ideal, então
impõe-se a necessidade de restrições teóricas, lógicas e racionais, que controlem e
restrinjam os Governantes.
4. DEMOCRACIA: IDEOLOGIA E REALIDADE
Kelsen lembra que é básica e necessária, no que se refere às questões discutidas nesse
texto, a distinção entre ideologia e realidade, não de forma radical, mas sim considerando
esta à luz da ideologia que a domina, e aquela do ponto de vista da realidade que a
sustenta.
No plano da idéia, Kelsen define a democracia como “identidade entre governantes e
governados, entre sujeito e objeto do poder” (KELSEN, p. p. 35).
É esse o sentido empregado no famoso discurso de Abraham Lincoln:
“DEMOCRACIA É O GOVERNO DO POVO, PELO POVO, PARA O POVO”.
Teoricamente, a unidade da pluralidade de indivíduos designa-se como povo. Esse
conceito, porém, numa perspectiva fática, é extremamente problemático, pelo fato
de, sociologicamente, o mesmo não se apresentar de forma alguma como uma
massa coerente.
Essa unidade, que só pode ser normativa, se consubstancia na submissão de todos à
mesma ordem jurídica estatal. Entretanto, assim considerado, o povo só existe como
unidade enquanto objeto do poder, sendo sujeito somente quando participa na criação da
ordem estatal, o que representa a prerrogativa de uma parcela bem reduzida dos indivíduos
que se submetem a essa ordem.
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Passando da noção ideal para a noção real de povo, deve-se ir ainda mais além, levando-se
em consideração “a diferença existente entre o número desses titulares dos direitos políticos
e o número dos que efetivamente exercem tais direitos” (KELSEN, p. 38).
Restringindo ainda mais essa noção, podemos perguntar pela parcela desse povo que
exerce conscientemente seus direitos políticos, principalmente se enfocarmos a realidade
social brasileira.
A participação do povo no poder nos conduz aos partidos políticos, enquanto órgãos de
formação da vontade do Estado, de grande importância para a democracia real, pois não
basta intervir na formação da vontade geral por simples influência dos outros, mas sim como
uma tomada de posição consciente, e, além do mais, o indivíduo isolado politicamente
não existe, não exercendo influência real sobre a formação daquela vontade. Ora, são os
partidos políticos que “agrupam os homens de mesma opinião, para lhes garantir influência
efetiva sobre a gestão dos negócios públicos”, operando a uma “racionalização do poder”
(KELSEN, p. 39).
De fato, os Estados funcionam, segundo Kelsen, antes de mais nada, no interesse de um
grupo dominante. Por isso, dizer que o Estado é o instrumento do interesse geral de uma
comunhão solidária é confundir ser e dever-ser, é ver o ideal no lugar da realidade.
Se a vontade geral não deve exprimir exclusivamente o interesse de um único grupo, ela
tem de ser a resultante da conciliação de interesses opostos, o que se faz principalmente
através das negociações inter-partidárias.
Assim, a lógica do discurso racional, mesmo que negociativo e permissivo, aparece como
um restritor lógico à realidade do Governo da maioria. Por outro lado, a história nos mostra
que as minorias oprimidas tendem à rebelião e invabilizam o Governo. Não importando o
fato de serem minorias. Logo, esta negociação racional também é do interesse da maioria
dominadora, que tenha pretenção da manter-se no poder.
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5. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
O parlamentarismo foi a principal bandeira na luta contra a autocracia em nome da
liberdade política e teve importantes resultados, como a supressão dos privilégios e
o reconhecimento da igualdade de direitos políticos entre os cidadãos.
A expressão parlamentarismo deve ser entendida aqui não no sentido usual da
palavra, como forma de governo, mas sim como o que se considera democracia
indireta, na qual a participação na formação da vontade do Estado se faz por meio
de representantes eleitos pelo povo que compõem o Parlamento ou órgão
legislativo.
No princípio do parlamentarismo, a liberdade combina-se com dois elementos que a
restringem: o princípio majoritário e a formação indireta da vontade do Estado, não sendo
obra direta do povo, mas sim do Parlamento por ele eleito, ligando-se a idéia de liberdade à
necessidade de uma divisão do trabalho, que com ela se confronta abertamente (KELSEN,
p. 47).
Para tentar sustentar a ilusão de que o principal na democracia é que ela seja a expressão
integral da liberdade, recorre-se à ficção de que o parlamento representa realmente o povo,
embora em todas as constituições, como salienta Kelsen, vigora exclusivamente a regra de
que os deputados não podem receber instruções obrigatórias dos próprios eleitores, o que
torna o parlamento, no exercício de suas funções, juridicamente independente do povo.
Essa ficção legitima o parlamento do ponto de vista da soberania popular e ofereceu aos
adversários da democracia um argumento para afirmarem a falsidade da própria
democracia.
Entretanto, a essência da democracia representativa não se determina exclusivamente por
esta ficção, mas também deverá ter o seu valor justificado sobretudo “como um meio
técnico-social específico para a criação da ordem do Estado” KELSEN, p. 49).
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Segundo Kelsen, a “chamada ‘vontade’ do Estado é apenas a expressão antropomórfica
usada para indicar a ordem ideal da comunidade, ordem esta constituída por uma série de
atos individuais cujo conteúdo ela representa, (...) é um complexo de normas. (...) „A
formação da vontade do Estado‟ é, pois, simplesmente o processo de criação da ordem
estatal” (KELSEN, p. 51).
Para minimizar os efeitos da acusação de que o parlamento é alheio ao povo, os eleitores
por vezes podem ser consultados, através do plebiscito, da iniciativa popular e do
referendum, se não obrigatórios, pelo menos facultativos. Dessa forma, o povo estaria
associado à ordem estatal em proporção bem maior, apesar de esses recursos serem
usados tão raramente.
O povo deve ter meios para dar, pelo menos, sugestões que orientem o parlamento em sua
atividade legislativa, já que não pode dar instruções obrigatórias.
Kelsen desenvolve, então, uma crítica ferrenha à imunidade parlamentar, que, pior ainda do
que a irresponsabilidade dos parlamentares perante os
eleitores,
representa a
irresponsabilidade deles perante a autoridade do Estado e dos tribunais, não encontrando
justificação alguma a sua manutenção na atualidade, pelo que clama pela sua urgente
extinção (KELSEN, p. 55). Note-se que essa manifestação de Kelsen, lembremos mais uma
vez, data do final da década de 20, parecendo-nos absurda a subsistência de tal instituto até
hoje.
Kelsen considera uma evolução no sentido de garantir maior controle à atividade dos
parlamentares a possibilidade de perda do mandato quando deixam o partido pelo qual
foram eleitos ou são excluídos dele. Mas isso deve pressupor uma organização partidária
sólida e uma coesão relativamente estável dos eleitores.
Face à acusação de que os parlamentares carecem de “conhecimentos técnicos
necessários à feitura de boas leis”, Kelsen se pergunta se não “seria melhor que os partidos
delegassem, segundo a natureza das leis a serem discutidas e votadas, os especialistas de
que dispusessem” (KELSEN, p. 55).
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Ao aceitarmos o modelo representativo como o único viável, os representantes em questão,
Políticos, não podem ser considerados como portadores da sua vontade pessoal, mas sim
da vontade do povo que os elegeu. Neste sentido, podemos questionar a responsabilidade
destes "seres" políticos perante seus eleitores. Daí os fortes questionamentos quanto à
imunidade parlamentar, falta de fidelidade parlamentar, falta de coesão dos políticos com a
ideologia teórica de seus partidos.
Não sendo o modelo ideal, mas apenas o modelo menos ruim, inaceitável o fato do mesmo
ser desvirtuado por interesses pessoais dos agentes em tela. O Político, uma vez eleito,
deve permanecer fiel aos ideais e objetivos dos que o elegeram como seu representante. A
quebra desve vínculo, quebra também o mandato de representação, criando uma forma
desvirtuada híbrida, qual não seja mais a ditadura da maioria, caracterizada pela
Democracia desequilibrada, ou a ditadura da minoria, baseada no governo centralizado em
benefício próprio.
Estamos vendo a criação de um terceito tipo, a ditadura dos representantes do povo, que se
vestem de representantes, mas que nada mais fazem do que representar a si mesmos.
6. CONCLUSÃO
A conclusão maior a que se pode chegar a partir da obra A Democracia, de Kelsen, é que
ele tenta captar a essência real da democracia, primeiramente demonstrando a redução da
liberdade natural à autonomia política por decisão majoritária e a restrição da noção ideal de
povo ao número ainda mais restrito de titulares dos direitos políticos que se valem desses
seus direitos, e pela compreensão do instituto da representação, que é o elemento
democrático mais importante, já que atualmente é totalmente inviável a democracia direta,
dada a extensão e complexidade dos Estados.
Embora Kelsen, no capítulo Fundamentos da Democracia, posicione-se a favor desta,
preocupa-se, desde o princípio de seu livro, em analisar as dificuldades que a democracia
apresenta e que não podem ser simplesmente ignoradas, ainda que se acredite ser ela o
melhor caminho. Evidencia, no decorrer de sua argumentação, que, se os problemas dessa
forma de governo não podem ser eliminados, eles podem ser minorados, através de
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instrumentos como plebiscito, referendo, iniciativa popular das leis, quebra da imunidade
parlamentar, formação de partidos sólidos e fidelidade partidária. Apesar de suas
vicissitudes, a democracia é preferível à autocracia, por ser ela o sistema que propicia a
maior liberdade individual possível aos membros da sociedade.
No entanto, algumas considerações críticas poderiam ser feitas ao pensamento de Kelsen.
A primeira delas, inclusive, foi aludida já na introdução do livro por Giacommo Gavazzi, e
trata-se, justamente, do reducionismo kelseniano, isto é, a redução de diferentes conceitos e
realidades ao Direito, notadamente, a redução do Estado ao Direito, mediante a
identificação que dele faz com a ordem jurídica.
Embora seja compreensível a explicação dada por Kelsen para tanto – a de que o
Estado democrático, não sendo uma realidade transcendente ao conhecimento
humano, ao conhecimento racional, apresenta-se como “uma ordem normativa
específica que regula o comportamento mútuo dos homens”, pelo que é decorrência
das mentes daqueles a essa ordem sujeitos como titulares de direitos e deveres
jurídicos –, todo reducionismo é pernicioso à ciência, haja vista a imprescindibilidade
da precisão terminológica para a viabilização do desenvolvimento científico. Embora
o que distinga o Estado da mera sociedade seja a sua organização jurídica e
administrativamente estruturada, não se deve tomar a parte pelo todo, um dos
elementos essenciais como a totalidade do conceito. A organização jurídica, o
Direito é indispensável para a caracterização do Estado, mas nem o Direito se
identifica com o Estado nem vice-versa. São conceitos distintos (assim como
realidades distintas) que se inter-relacionam sem se justaporem.
Não obstante, talvez a principal crítica que se pode fazer a Kelsen é o fato de ser sua
posição, no mínimo, dúbia, em relação à democracia enquanto ideologia. Adotando os
cânones positivistas, Kelsen, também nesta obra, deixa claro que a ciência, para ser tal,
deve ser neutra de valores, que o conhecimento científico, portanto, não é ideológico.
Apenas essa posição já é passível de severas críticas – como, com excelência, o fez a Profª
Elza Maria Miranda Afonso, uma vez que, sendo o homem um ser uno, dotado de razão e
sentimento, é ele o criador tanto das leis científicas (das ciências naturais e/ou humanas) e
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como dos valores e ideologias. Mesmo as ciências exatas sofrem influências axiológicas e
ideológicas, visto que a hipótese da pesquisa é formulada dentro de determinado contexto
social, que forma o cientista e de cujos valores e concepções políticas, econômicas não lhe
é possível isolar-se. Tais fatores, formadores de sua consciência, de sua personalidade, de
sua individualidade, de seu próprio ser como homem influem, em maior ou menor escala
(mas inevitavelmente em algum grau), não apenas na postulação hipotética como no próprio
desenvolvimento da pesquisa científica, isto é, no próprio fazer da ciência. Por isso não se
pode crer, realisticamente, em uma ciência totalmente imune a qualquer “ingerência”
valorativa ou ideológica. Valores e ideologia fazem parte da essência do homem e a ciência
é produto desse homem, que é um todo e não um fragmento de racionalidade puramente
neutra – ainda que essa neutralidade fosse possível.
O ponto criticável, a esse respeito, no livro A democracia, é concepção que Kelsen parece
seguir de que a teoria da autocracia é ideológica, ao passo que a teoria da democracia,
meramente porque relativista, é neutra, isenta de valores e, por isso, melhor.
Pode-se constatar tal posicionamento nas assertivas kelsenianas seguintes:
De tudo o que foi dito antes, decorre que essa teoria política antiideológica,
racionalista e relativista corresponde ao tipo intelectual que foi descrito
como democrático. (...) Ficará, então, mais fácil de compreender o motivo
pelo qual uma genuína ciência política pode prosperar mais em uma
democracia, onde sua liberdade e sua independência do governo estão
asseguradas, do que em uma autocracia, onde só as ideologias políticas
podem desenvolver-se, e também por qual razão aquele que prefere a
democracia à autocracia inclina-se mais fortemente a um conhecimento
científico da sociedade em geral, e do Estado e do Direito em particular, do
que aquele cuja natureza o empurra para a autocracia, e, desse modo, para
uma atitude ideológica (KELSEN, p. 194).
A associação feita por Kelsen entre democracia e conhecimento científico puro (genuíno),
neutro, isento de valores e ideologias, de um lado, e autocracia e influência (aliás,
determinação) ideológica, de outro, é notória, bem como a crença de que a neutralidade
axiológica e ideológica é boa, porque propiciadora do desenvolvimento da ciência. Que a
democracia é um sistema melhor do que a autocracia, isso resta claro na obra, já que esta
última é associada ao totalitarismo, e então ao nazismo e ao fascismo, à insegurança
jurídica, enquanto a primeira é ligada à liberdade e à igualdade, princípios fundamentais e
direitos maiores do homem, bem como à tolerância, ao respeito ao outro (e sua proteção) e
à legalidade. Considerando a democracia um sistema superior, a posição de Kelsen é,
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inclusive, otimista, no sentido de que a humanidade caminha para o estabelecimento cada
vez mais sólido de Estados democráticos.
A omissão kelseniana de que, porém, a teoria democrática, sendo algo formulado por uma
ciência política que é criada pelo homem, é também, inevitavelmente, influenciada por
elementos axiológicos e ideológicos, revela, ainda que tacitamente, implicitamente, a crença
de que ela seria uma teoria axiológica e ideologicamente neutra, assim como o seria a
ciência que em um Estado democrático se desenvolve. Neutra simplesmente porque a
democracia, sendo uma teoria política relativista, já que admite, por definição, uma maioria e
uma minoria, com opiniões diversas, não considera nenhuma posição como absoluta ou
exclusivamente verdadeira (o que é verdade hoje, pode não ser amanhã; inclusive, a
convicção minoritária é que pode, por vezes, ser a correta).
Ora, a neutralidade não decorre do relativismo, seja político, axiológico ou epistemológico. O
fato de se considerarem como válidas e dignas de respeito posições antagônicas entre si,
embora apenas uma delas seja tida como a verdadeira em determinado momento, não tem
o condão de fazer com que a opção eleita majoritariamente como correta seja imune a
valores e ideologias. A multiplicidade de posicionamentos e a relatividade da verdade não
exclui a influência valorativo-ideológica. Não existe qualquer relação de exclusão ou, ao
menos, de proporcionalidade inversa entre tal multiplicidade e ideologias. Ao contrário,
ambas convivem simultaneamente no mesmo meio social. Isso pelo simples fato de que o
conteúdo axiológico e ideológico é inerente ao homem, pertine à sua razão prática, que,
como razão, compõe-lhe a essência.
Assim, a ideologia, bem como os valores, permeiam toda teoria, porque toda teoria é
humana, seja ela autocrática ou democrática. O que se pode, com certeza, afirmar é que um
Estado que propugne e respeite a liberdade e, conseqüentemente, a liberdade de
pensamento, terá uma produção científica muito mais eclética, com temática muito mais
variada e menos direcionada, bem como com posicionamentos diversificados e
tendencialmente mais isentos, do que um Estado autocrático, inclinado à opressão e ao
totalitarismo, que obriga não só desenvolvimento da ciência em conformidade com a
posição ideológica adotada (e para seu reforço), mas todo o comportamento do indivíduo à
adequação às diretrizes impostas.
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O caráter determinador e heterônomo da ideologia, em uma autocracia, é, sem qualquer
dúvida, incomensuravelmente superior do que aquele da democracia. O que nesta ocorre é
que há uma diversidade de convicções ideológicas e as teorias desenvolvidas seguem,
conforme seu autor, aquela ideologia que ele adota e na qual acredita. Há, portanto, uma
influência ideológica, mas um maior grau de autonomia, uma vez que o cientista não sofre
coerção jurídica nem, muito menos, coação física para elaborar sua teoria – embora não se
possa, outrossim, negar a presença de práticas autoritárias, antidemocráticas mesmo no
seio de uma democracia e, portanto, a heteronomia, a manipulação e a negação da
liberdade também nela. Certo é que, seja heterônoma, seja autonomamente, tal influência
ideológica e axiológica existe em qualquer sistema, autocrático ou democrático, não se
podendo, como quis Kelsen, vincular a ideologia estritamente à autocracia e a neutralidade
ideológica à democracia.
Não se pode negligenciar que Democracia por Democracia, representativa ou não, o povo
de Nuremberg escolheu Democraticamente, aprovar as leis que permitiram o martírio de
milhões de Judeus durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Neste caso, não sendo
possível imputar a desvios Democráticos ou Autocráticos a equivocada escolha popular.
A ideologia de um povo em um determinado momento no tempo, em um determinado local,
exposto a determinados fatores sociais e econômicos faz com que as acepções
principiológicas e éticas variem profundamente. Seria negar a realidade querer construir um
modelo de Governo que impossibilite esta direta influência de fatores extra ideológicos.
Ainda assim, a ética discursiva básica e as premissas sociais de convivência em sociedade
nos impõem algumas conclusões inexoráveis
sobre a Democracia enquanto forma
legítima de Governo. A mais importante delas, mesmo que não tenha sido percebida por
Kelsen, não deixa de ser decorrência direta de seu raciocínio, é a necessidade de que a
Democracia tenha um fim ético-social, um retorno inegável ao conceito de Lincoln.
Para que isto seja possível a maioria deve, através do discurso racional, compreender os
anseios da minoria e conceder-lhe, no que couber, seu papel decisório nos assuntos de
Estado, na formação da leis, na partição de direitos e deveres dentro da sociedade.
Qualquer exagero, qualquer radicalismo, seja de Direita, seja de Esquerda, seja de Centro,
irá desequilibrar o sistema, provocando o fim do processo Democrático, e iniciando o efeito
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da dominação de determinado grupo em detrimento de outro, o que é, em qualquer
momento, em qualquer ideologia, inaceitável.
Assim, dentro das expectativas geradas pela Democracia, por mais contraditório que possa
parecer, a sistema representativo, com a eleição proporcional, sistema Brasileiro, apresenta
uma melhor oportunidade de representatividade das minorias e de se evitar os sistemas
ilegítimos de dominação Governamental.
Não sendo possível um governo verdadeiramente "do povo, pelo povo, para o povo", que
pelo menos exista um governo da maioria, pelos representantes do povo e para a
heterogeneidade e diversidade social de maneira indistinta.
V . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AFONSO, Elza Maria Miranda. O positivismo jurídico na epistemologia jurídica de Hans
Kelsen. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais,
1984.
_______. Filosofia do Direito II. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais, 1º sem., 1999. (Notas de aula).
KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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