FILIAÇÃO Waldemar Zusman A palavra filiação como verbete do

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FILIAÇÃO
Waldemar Zusman
A palavra filiação como verbete do dicionário de Webster se
desdobra em 5 acepções:
1- Estado ou fato de ser filho ou filha; a relação do filho ou criança
ao pai: correlativo de paternidade.
2- Adoção.
3- Descendente de, ou como se fosse, pais; derivação; como a
filiação das línguas Romanas ao Latim.
4-- a) a formação de um novo ramo ou afiliação de uma sociedade.
b) o ramo afiliado.
5- Na justiça, a determinação por uma corte da paternidade de um
filho ilegítimo.
E comum a todos os significados em que o verbete se desdobra a
noção central de vinculo seja ele de natureza convencional como na
adoção, na afiliação ou na derivação, ou biológico como na
descendência de fato, que tem por fato correlativo a paternidade.
A palavra vem do latim filius. É patente que o tema da filiação é o
tema da relação pai/filho, de significação central no terreno da
psicanálise. Foi o estudo desta relação que levou Freud ao
descobrimento do Complexo de Édipo, teoria que alicerça o edifício
conceitual da psicanálise.
A filiação é em seus primórdios uma condição cercada de riscos
mortais, especialmente quando a família era uma organização
poligâmica, onde o macho se constituía em chefe do clã, com direito
a todas as mulheres. Os etólogos descrevem entre os antropóides,
especialmente os chipanzés, estruturas grupais semelhantes às que
existiam entre os homens nas primeiras organizações sociais.
Darwin foi o precursor destas observações. Frazer Atkinson e
Robertson Smith deram a Freud subsídios valiosos que embasaram
suas hipóteses em Totem e Tabu, segundo as quais os Irmaõs se
uniam para matar o chefe do clã e assumir a posse das fêmeas,
proibidas pelas leis do incesto. Ao assassinato do Pai seguia-se o
banquete canibalístico, a festa totêmica, que dava lugar à euforia de
ter incorporado as forças do chefe do Clã. No entanto, esta mesma
incorporação e correspondente introjeção, reinstalava as mesmas
leis do Incesto, que se queria quebrar ao matar a figura do pai. Os
conflitos intra-tribais, derivados da proibição incestuosa eram só
uma parte do problema, que impunha aos filhos uma restrição
pulsional difícil de suportar. A exogamia, por sua vez, criava uma
situação de conflito entre diferentes tribos, cujas mulheres estavam
expostas ao roubo feito pelos machos de grupamentos vizinhos.
Resultava disto m estado de guerra quase permanente. O roubo de
mulheres está na origem das intermináveis guerras do período em
que dominou a poligamia. O exemplo clássico foi a guerra de Tróia.
O mito da Arca de Noé parece ter sido o momento em que se deu a
transição para a monogamia. O texto bíblico, como assinala João
Carlos Crespo em sua investigação intitulada Bênção Mamãe
Gruta, é uma ressonância mítica de uma ruptura entre os estágios
poligâmicos e monogâmicos, descrita na Iinguagem religiosa da
época.
O dilúvio foi um castigo de Deus pelo mau comportamento humano.
Entre os gregos a história do dilúvio bíblico encontra seu
correspondente no mito de Deucalião. Zeus, como Jeová, viu que
os homens haviam se entregue ao crime e aos vícios, resolveu
afogar a humanidade num dilúvio universal, diz Junito Brandão em
seu Dicionário Mítico Etimológico. Poupou só um casal: Deucalião e
Pirra, aconselhado por Prometeu a construir uma arca.
À arca de Noé só tinham acesso, para se salvar, animais aos pares,
um macho e uma fêmea, o casal, o par monogâmico.
A monogamia criou um novo horizonte, um cenário de outra ordem
para o funcionamento da estrutura familiar. A proibição do incesto e
a exogamia seguem sendo recomendações básicas também na
ordem monogâmica, mas os poderes do pai tiveram que ficar
restritos a uma única mulher. A monogamia modificou as feições
internas da dinâmica familiar, bem como o relacionamento dos
grupos familiares entre si. As pulsões sexuais e tanáticas passaram
por considerável arrefecimento. Graças à evolução, ao progressivo
refinamento dos processos educacionais e à civilização em suas
múltiplas feições de contenção e repressão, a mente humana
iniciou um percurso de progressiva abstração. A mente primitiva,
que não podia distinguir o ato do pensamento, evoluiu. Sabe agora
mais e melhor estabelecer diferenças entre a ação e a fantasia. O
conjunto destes processos, que têm a marca da hominização,
caminha do concreto para o abstrato, do singular para o universal,
do pensamento sígnico para o simbólico.
Na mitologia grega o mito cosmogônico narra o desespero dos pais,
que se sentem ameaçados pelo nascimento dos filhos e os
persegue e prende em calabouços subterrâneos. Fala também da
vingança dos filhos, que ajudados pela mãe, destronam o pai e
ocupam seu lugar.
O céu e a Terra, diz a cosmogonia helênica, foram dois deuses que
geraram. pelo seu abraço o nascimento de numerosos filhos, entre
os quais os mais famosos foram Titã e Saturno. Saturno atacou o
pai, reduziu-o à condição de servo e ocupou o trono do mundo.
Em Édipo Rei, de Sófocles, o tema da filiação ganha um
desdobramento mais minucioso na variante eleita por Freud, o
Édipo Rei de Sófocles. Aqui a noção de filiação emerge plena e
pujante ao ser descrita a violentação de suas normas. O trágico
destino de Édipo resulta da transgressão dos limites constitutivos do
conceito de filiação e está claramente enunciado na fala do Oráculo
de Delfos. Laio e Jocasta recusam a Édipo o vinculo correlativo da
filiação quando são informados que aquele filho matará o pai e se
casará com a mãe. Édipo, que também consultou o Oráculo de
Delfos e soube do destino que o aguardava, fugiu de Corinto por
amor filial. Não queria matar seu pai nem casar-se com sua mãe. A
filiação é um vínculo que se assenta na proibição do Incesto e
obriga ao casamento exogâmico. Implica também, de maneira
simultânea, na preservação da vida do pai, na proibição do
parricídio. No Édipo Rei, de Sófocles, o conceito de filiação se
delineia de forma negativa, isto é, a partir de ações transgressoras
e de sua punição inexorável.
A filiação tem uma conceituação mais remota. As Tabuas da Lei
recebidas por Moisés no Monte Sinai registram em seu 4o.
mandamento: Honrarás Pai e Mãe. É uma recomendação positiva.
Tomado a partir destes remotos registros o conceito de filiação
soma a recomendação bíblica do respeito aos pais à punição das
transgressões que os desonram, como está no Édipo Rei. A
recomendação bíblica é genérica e a transgressão grega é
específica. Estes pólos inscrevem-se uma amplíssima gama de
comportamentos nos quais as desonras e as transgressões não
revelam, de imediato, sua face.
Este foi, a meu ver, um dos graves e difíceis problemas com que se
defrontou Freud depois que surgiram à sua volta os seus primeiros
discípulos. O fundamento das dissidências e o comportamento
intransigente de Freud com respeito às mesmas, nascia, de um lado
das dificuldades emocionais de certos discípulos, que tendiam para
o incesto, e de outros, que tendiam para o parricídio(1). Como
aqueles eram os momentos iniciais da psicanálise e os tratamentos
que Freud fazia de seus primeiros seguidores era muito sumário,
não se pode fazer, em relação àqueles tempos, a mesma cobrança
dos dias de hoje. Vale a pena assinalar, por outro lado, que nem
todos os seus discípulos foram transgressores, muitos foram
homens brilhantes, enriqueceram o patrimônio psicanalítico e deram
seqüência à suas descobertas originais.
Em um trabalho anterior, dedicado ao exame de certos aspectos da
psicopatologia das instituições psicanalíticas cunhei e descrevi a
Síndrome de Eitingon. O exame da relação de Freud com Eitingon
me serviu de modelo para descobrir na estrutura de certos
funcionamentos societários uma excessiva idealização da figura de
Freud que inibe a produção científica, limita a pesquisa e fornece o
modelo do "didata inatacável". Ao examinar as vicissitudes da
filiação entendo que a Síndrome de Eitingon representa o desvio da
excessiva submissão e decorre de uma idealização não elaborada.
Por outro, lado pode ainda dar lugar a uma formação reativa que
coloca Freud ou o didata com ele identificado no alvo do ódio e da
suspeita.l No outro extremo estão os comportamentos que nascem
da quebra do compromisso de "honrar pai e mãe" dos parâmetros
essenciais do conceito de filiação. É no contexto desta dificuldade
de "honrar pai e mãe" que situo, entre outras, a questão das
sociedades paralelas.
A filiação é um vinculo amoroso quando leva em conta os
parâmetros acima assinalados sem se constituir em um fator de
inibição do desenvolvimento dos conflitos geracionais, sobre os
quais repousam modificações institucionais e sociais. É no seio da
estrutura familiar que estes embates se dão quando a geração
antecedente e a conseqüente se defrontam. Não e fácil definir os
limites deste campo em que a posição de cada um dos lados tende
a reforçar a resposta reativa do outro. Ainda que não se possa
controlar com prévia segurança a intensidades dos embates, sabese que se esta no campo dos excessos quando a preservação da
filiação cede lugar às transgressões que implicam em desonrar pai
e mãe e em expor o pai e a mãe aos riscos do parricídio e do
incesto.
(1)
Estou perfeitamente ciente de que Freud não colocou o problema nestes
termos. Minha interpretação decorre do ponto de partida que elegi para pensar
o problema da filiação.
As filiações institucionais seguem o modelo das familiares. Os
conflitos geracionais se deslocam para dentro das instituições ou se
instalam na relação filial entre a instituição matriz e a afiliada. Em
cada um desses campos os processos devem se subordinar aos
parâmetros da filiação.
Publicado em Anais do Simpósio Anual da SBPRJ, 4, 1994
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