ADI 3.510/DF implantação, o que, de forma natural, só ocorre em

Propaganda
ADI 3.510/DF
implantação, o que, de forma natural, só ocorre em sincronismo com o processo da
ovulação, ou se, artificialmente, o endométrio materno for 'preparado'. Isso ocorre
apenas durante a janela de implantação, em que todas as condições estão adequadas
para receber aquele embrião. Afora essa condição, o embrião, mesmo introduzido no
organismo materno, não tem como ser implantado. Então, não basta apenas colocar o
embrião no organismo materno. Ele tem que estar lá no momento em que o útero está
preparado para recebê-lo. E isso ocorre quando seu endométrio está secretando uma
série de fatores que poderão interagir com o embrião para ajudar na sua implantação e
transformação. Novamente, reforça-se a idéia de que sem as dezenas de moléculas
envolvidas no processo não há como um embrião ter a potencialidade de se tornar 'ser
humano'".
Todavia, com o maior respeito e admiração que tenho pela Professora
Patrícia Pranke, entendo que essa posição inovadora deixa ainda mais nítida a
distinção conceituai entre potência e possibilidade que, como antes procurei mostrar,
considero conceitos diversos.
A possibilidade traz em seu âmago o seu próprio opósito, já que uma
possibilidade é sempre e ao mesmo tempo uma impossibilidade, o que não se dá com
a potência. Esta não encerra em si a sua negação e só não resulta em ato se, como
visto, um impedimento externo se interpõe.
Mas mesmo um impedimento externo não é capaz de privar o ser de sua
potência e, conseqüentemente, de sua essência. Pode apenas impedir a sua
atualização.
E é esse empecilho que se constitui em artifício, contrário à natureza e à
essência do ser.
É importante lembrar que a "produção" dos embriões nos processos de
fertilização in vitro é orientada teleologicamente. Não é lícita a fertilização in vitro para
fins outros que não os da reprodução. Mesmo gerados através de um procedimento
artificial, o destino dos embriões fertilizados in vitro é a implantação no útero. Uma vez
criados, é essa a sua vocação natural. Sua potência, assim, em nada difere da
potência encontrada naqueles embriões engendrados pela reprodução sexuada.
Página 54
ADI 3.510/DF
Revela-se, aqui, segundo entendo, um desvio de perspectiva. Diz-se que
o normal é que os embriões produzidos na fertilização in vitro e não utilizados nunca
venham a nascer, como se o curso natural a ser seguido fosse esse. Esquece-se de
que, quando gerados, foram gerados para a vida, pelo que a implantação é o seu
destino.
Por terem sido criados artificialmente, dependem de que algo seja feito,
também artificialmente, para que voltem ao seu destino natural, sem o que não se dará
a sua atualização. Isso confere ao destino dos embriões não implantados por escolha
médica uma aparência de processo regular: como não há interferência de cientistas
após o congelamento desses embriões, fica parecendo que o seu confinamento é o
seu destino natural, o que contribui para facilitar a escolha, ao meu sentir apressada,
entre essa sina dita inútil e a sua utilidade, com sua destruição, para pesquisa.
Esse ponto de vista turva a visão do fim essencial do embrião: a geração
da vida humana seja ela natural seja ela artificial. Isso não é um artifício como alguns
parecem sustentar ou um desvio na trajetória do confinamento; é o ato que compensa
a geração não-natural do embrião, o resgate de sua natureza. Toda ação que não se
volta para esse fim impede a sua atualização. O congelamento, diga-se, não é
irreversível, porque não põe termo definitivo á atualização. A destruição do embrião,
por seu turno, é impedimento externo, que corta o seu desenvolvimento, tira-lhe a vida.
Ele deixa, por isso, de ter um vir a ser.
A vida humana é a vida de um organismo autônomo, com movimento e
projeto próprios, que evolui de acordo com um programa contido em si mesmo e que
pode ser executado independentemente de impulsos externos.
Chama a atenção o descuido com que se invoca Tomás de Aquino neste
tema, no ponto em que se afirma o reconhecimento do ser somente após a animação.
O problema não é tão simples quanto parece, o que, de resto, é característico de tudo
aquilo que diga respeito ao Doutor Angélico, como já alertava Chesterton. Se de fato
ele entendia que a animação se dava algum tempo após a fecundação (quarenta ou
noventa dias, conforme o sexo), isso dizia respeito à alma racional, ao entendimento.
As outras faculdades, vegetativa e sensitiva, vinham anteriormente, decorentes da
Página 55
ADI 3.510/DF
matéria germinal, como bem anota Jesus Valbuena O.P., em seus comentários sobre
o "Tratado do Governo Divino do Mundo" (op. c i t , págs. 1.042/1.043). Diga-se que em
se tratando de embriologia o que foi já não é, daí o cuidado de Padre Jesus Valbuena
ao encerrar a introdução às Questões 118 e 119 do Tratado com a lembrança da frase
de Agostinho de Hipona: "Não sei se poderei chegar a saber quando começa o
homem a viver no seio materno" (op. cit., pág. 1.044).
Tudo isso só demonstra a potência (totipotência) presente no embrião
desde o início e sua constante atualização.
Mesmo assim, a se comparar o momento da animação racional e a
formação do sistema nervoso, o gênio de São Tomás não impediu que chegasse
incrivelmente perto da cronologia moderna do desenvolvimento do embrião. E, como
sustenta Stephen J. Heaney, Professor de Filosofia da Universidade Saint Paul,
Minnesota, se tivesse os conhecimentos hoje disponíveis ele teria revisto seu
entendimento para reconhecer a animação desde o momento da fecundação
(Disponível em: <http://studentorqs.vanderbilt.edu/sfl/ThomistFertilization.htm>. Acesso
em: 27mar. 2008).
A embriologia moderna dispõe de conhecimentos extraordinários e um
dos mais importantes textos de referência do mundo nessa área, adotado em inúmeras
faculdades de medicina, o de Moore e Persauit, ensina que o desenvolvimento
humano se inicia exatamente na fecundação (Embriologia clínica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 7a ed., 2004). No mesmo sentido Jan Langman (Medical embryology.
Baltimore: Williams and Wilkins, 3 a ed., 1975. pág. 3) e Bruce M. Carlson (Patten's
foundations of embryology. N. York: McGraw-Hill, 6a ed., 1996. pág. 3). Assim
também sustenta o Doutor Gerson Cotta-Pereira, destacado médico patologista,
Chefe do Serviço de Imunoquímica e Histoquímica da Santa Casa de Misericórdia do
Rio de Janeiro, em trabalho ainda não publicado e no qual descreve detalhadamente o
processo de reprodução ("O Exato Momento em que se inicia a Vida Humana e a
Terapia com as Células-Tronco").
Não se trata, portanto, de um "problema de regressão infinita", como foi
mencionado na audiência pública. Em alusão à sua conhecida alegoria, o rio de
Página 56
ADI 3.510/DF
Heraclito é diferente em cada mergulho, mas não deixa de ser o próprio em sua
essência.
No seu Ensaio Sobre o Homem, Ernst Cassirer já lembrava que "ao
tratar do problema da vida orgânica precisamos, antes e acima de tudo, livrar-nos
daquilo que Whitehead chamou de preconceito da 'localização simples'. O organismo
nunca está localizado em um único instante. Em sua vida, três modos de tempo passado, presente e futuro - formam um todo que não pode ser dividido em seus
elementos individuais. 'Le présent est chargé du passé, et gros de l'avenir', disse
Leibniz. Não podemos descrever o estado momentâneo de um organismo sem levar
em consideração a sua história e sem referi-lo a um estado futuro para o qual este
estado é apenas um ponto de passagem" (Martins Fontes, São Paulo: 2001. pág. 86).
O embrião é, desde a fecundação, mais precisamente desde a união dos
núcleos do óvulo e do espermatozóide, um indivíduo, um representante da espécie
humana, com toda a carga genética (DNA) que será a mesma do feto, do recémnascido, da criança, do adolescente, do adulto, do velho. Não há diferença ontológica
entre essas fases que justifique a algumas a proteção de sua continuidade e a outras
não. Como escreveu Vincent Bourget, o "uso do termo 'zigoto' (usualmente aplicado
da fecundação às primeiras mitoses), o de blástula, gástrula, feto (aplicado quando os
principais órgãos já estão constituídos, ou seja, por volta da 7a semana... ou da 13º 'de acordo com a obra') tem apenas um valor de baliza para o observador e tampouco
tem um alcance 'ontológico': não se trata de modo algum de, por meio desses termos,
designar
a emergência
de um novo ser, mas de um simples
balizamento
'fenomenológico' em um mesmo indivíduo" (Ser em gestação, Trad. Nicolás Nyimi
Campanário. São Paulo: 2002. pág. 54). A individualidade decorre de sua distinção
com o meio em que vive e de sua autonomia, principalmente de seu projeto de
individuação, de seu desenvolvimento, de sua renovação e atualização, através de
uma atividade orientada por um programa, o programa genético, "o que implica
conseqüências importantes referentes à maneira de conceber a individualidade e,
portanto, também o estatuto do embrião" (op. c i t , pág. 27).
E não se diga que a individualidade não se sustenta por conta da
ADI 3.510/DF
possibilidade de formação de gêmeos univitelinos através de divisão espontânea,
porque isso equivale a sustentar que algo que é, não é mais apenas porque pode
deixar de sê-lo. Esse argumento apenas reforça a tese que defende a proteção do
embrião. Se essa proteção é devida àquele que pode se tornar um sujeito de direitos, o
que se dirá daquele que pode se tornar dois.
Há uma dificuldade lógica a desafiar o raciocínio que coloca marcos
temporais no desenvolvimento do embrião para fixar o início da vida após a
fecundação. É que se de um lado reconhece haver vida no embrião, mas uma vida
ainda não humana, para a qual não caberia a proteção do direito constitucional à vida,
de outro, entende não haver pessoa (personalidade) no embrião, mas lhe reconhece a
proteção da dignidade da pessoa humana.
Com todo respeito, essa engenhosa solução é compartilhada por boa
parte do mundo ocidental para justificar a violação do embrião: um estatuto
intermediário, fundado em uma dignidade também intermediária, geralmente associada
à ausência de capacidade moral ou racional.
Curiosamente, esse fundamento foi adotado a partir da obra de um dos
principais defensores da ética relacional, Kant. Ao mesmo tempo em que nos legou a
famosa segunda formulação do imperativo categórico, à qual se deve uma importante
base da bioética ("age de tal maneira que uses a tua humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como
meio"), ele não se preocupou em definir o que seria essa "humanidade", ensejando o
reconhecimento, por parte de alguns, da racionalidade como fundamento único e
exclusivo da condição humana. Veja-se o que escreveu Susan M. Shell: "seres
humanos têm dignidade, para Kant, porque eles são capazes de agir moralmente. Mas
essa capacidade só pode ser realizada dialeticamente, através de nossas interações
pragmáticas com o mundo" (Kant's concept of human dignity in human dignity and
bioethics -
essays comissioned by the president's council on bioethics.
Washington, 2008. pág. 347).
Aliou-se a essa interpretação de Kant a consolidação e a legitimação do
critério para constatação da morte a partir da ausência de impulsos elétricos no cérebro
Download