o indivíduo coram deo: ética, repetição e liberdade na filosofia

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Departamento de Filosofia
O INDIVÍDUO CORAM DEO: ÉTICA, REPETIÇÃO E LIBERDADE NA
FILOSOFIA EXISTENCIAL DE SØREN KIERKEGAARD
Aluno: Rodrigo Melo da Silva
Orientador: Paulo César Duque-Estrada
Indrodução
Apesar de sua evidente riqueza e das inúmeras contribuições que pode trazer para o
debate filosófico, é inegável o fato de que o pensamento do filósofo dinamarquês Søren
Kierkegaard permanece ainda bastante pouco explorado, especialmente no âmbito da
academia brasileira. Nesse sentido, essa pesquisa teve como objetivo não só contribuir com a
difusão de suas ideias, como, principalmente, apresentá-las como uma alternativa de
pensamento que rompe com o tradicional dogma da autonomia da razão1 – pressuposto sobre
o qual se desenvolveram, praticamente, todas as filosofias até então, dos gregos até os pósmodernos.
Para isso, inicialmente, procurei compreender o contexto histórico-filosófico no qual o
autor encontra-se inserido, buscando delimitar o que ele entende por filosofia existencial, que
– de acordo com sua perspectiva – seria a única filosofia realmente legítima; em um segundo
momento, debrucei-me sobre sua concepção de Indivíduo, que, como será mostrado, constitui
o conceito-chave para a compreensão de todo o seu pensamento; em seguida, trabalhei os
conceitos de ética, repetição e liberdade, procurando compreender não só como eles se
relacionam entre si, mas, também, o que têm a nos oferecer em termos de contribuição para a
nossa própria existência; e, por fim, à título de conclusão, tencionei analisar até que ponto
Kierkegaard foi – ou não – fiel ao seu projeto.
O primado da existência
Nas raríssimas vezes em que se ouve alguma menção ao pensamento de Kierkegaard,
geralmente o discurso encontra-se ligado ou a sua clássica concepção dos três estádios da
existência, ou a sua alegada paternidade do existencialismo. Entretanto, se se pretende
compreender a obra do dinamarquês de maneira mais fiel à compreensão que ele mesmo
possuía de si enquanto filósofo, o primeiro mito que precisa ser desfeito, é, justamente, esse
que o apresenta como pai do existencialismo.
1
Segundo o filósofo holandês Herman Dooyeweerd, esse seria o grande problema do pensamento ocidental:
“uma completa confusão a respeito da relação entre racionalidade e natureza humana” (DOOYEWEERD, 2010,
p. 29). Um dos pontos centrais de sua tese é a afirmação de que “a razão teórica depende da orientação religiosa
fundamental do ser humano, em direção ao que ele crê ser a fonte divina de todas as coisas” (Ibidem, p.28).
Dessa forma, ele procura demonstrar que “o pensamento teórico reflete uma função ou aspecto particular da vida
humana, o qual perde todo o sentido se deixa de ser compreendido em seu contexto humano integral” (Ibidem,
p.29).
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Segundo Gouvêa, embora Kierkegaard tenha, certamente, influenciado o pensamento de
alguns dos assim chamados filósofos existencialistas – assim como também o fizeram
Dostoievsky, Nietzsche, Miguel de Unamuno, Kafka, Henri Bergson e Martin Buber, entre
outros –, identificar sua filosofia com essa escola de pensamento constituir-se-ia não somente
um erro banal, mas uma traição (Cf. GOUVÊA, 2009, p. 47) 2. Entretanto, infelizmente, ao
definir Kierkegaard como pai do existencialismo, “pode-se mais facilmente louvá-lo ou
rejeitá-lo como irracionalista, subjetivista, ou relativista. É o modo mais fácil de livrar-se de
um autor difícil” (GOUVÊA, 2006, p. 88) 3.
De fato, até mesmo um olhar superficial sobre o corpus kierkegaardiano é capaz de
revelar, com bastante clareza, a forte repulsa que Kierkegaard sempre nutriu em relação aos
sistemas filosóficos. Nesse sentido, nada seria mais irracional do que ele próprio desenvolver
um tipo de pensamento contra o qual combateu por praticamente toda a vida, seja ele de
cunho existencialista ou de qualquer outra natureza. A existência, para Kierkegaard,
definitivamente, não se ajusta a sistemas:
Um pensador ergue um grande edifício, um sistema, um sistema que abrange o todo
da existência, história do mundo, etc., e se sua vida pessoal é considerada, para
nosso espanto faz-se a descoberta assustadora e burlesca de que ele mesmo não vive
pessoalmente neste grande e abobodado palácio, mas numa cabana ao lado, ou numa
casa de cachorro, ou na melhor das hipóteses, na guarita do porteiro
(KIERKEGAARD apud ibidem, p. 89).
Assim, o que se observa é que a intenção de Kierkegaard nunca foi a de criar sistemas
de pensamento ou dar início a alguma escola filosófica. De outro modo, ele via a si mesmo
como um corretivo existencial de seu tempo, que tinha como tarefa apresentar os ideais de
maneira poética, de forma que pudesse incitar as pessoas sobre a ordem estabelecida (Cf.
SONTAG apud ibidem, p. 89). Entretanto, para Gouvêa, Sartre cometeu um grave equívoco
ao considerar “o compromisso de Kierkegaard com o cristianismo como se fosse algo
supérfluo, apesar da crença deste de que isto era a pedra fundamental de seu pensamento”
(GOUVÊA, Op. Cit. p. 90). Na verdade, o que aconteceu foi que não apenas Sartre, como
também Heidegger, “ignoraram o único e singular propósito declarado de toda a obra de
Kierkegaard: esclarecer conceitos cristãos e mostrar como alguém realmente pode tornar-se
cristão” (ibidem, p. 91). Sem esse entendimento, até mesmo a compreensão a respeito dos três
estádios da existência fica comprometida.
O movimento descrito pela obra é este: do poeta (da estética), da filosofia (da
especulação), para a indicação da definição mais central do que seja cristianismo...
Este movimento foi conseguido ou descrito uno tenore, de um fôlego, se posso usar
esta expressão, de forma que a obra, vista integralmente, é religiosa do início ao fim
– algo que todo mundo pode ver se estiver disposto a ver, e portanto pode ver...a
mente perspicaz reconhecerá que correspondendo a esta obra há um originador que,
como autor, “desejou apenas uma coisa”. A mente perspicaz reconhecerá ao mesmo
tempo que esta coisa é o religioso, mas o religioso completa e profundamente
transposto em reflexão, mas de tal forma que esteja completa e profundamente
retirado da reflexão e devolvido à simplicidade – isto é, ele verá que a estrada
percorrida tem o alvo de aproximar, de obter simplicidade” (KIERKEGAARD apud
ibidem, p. 91).
2
GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Palavra e o Silêncio. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2009.
3
GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Paixão pelo paradoxo. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2006.
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Todavia, se o exposto até aqui já é suficiente para rejeitarmos qualquer relação mais
direta de Kierkegaard com o existencialismo, é também inegável a forte ênfase existencial que
pode ser encontrada ao longo de toda sua obra. Para Kierkegaard, de fato, não havia nada
mais repugnante do que uma filosofia que se reduzisse a meros jogos linguísticos, com suas
proposições bem articuladas, mas vazias de conteúdo. Em seu entendimento, a filosofia
deveria ser não uma reflexão de saber, mas uma reflexão de poder, que, de alguma forma,
conduzisse o singular a comprometer-se consigo mesmo, tornando-o capaz de reduplicar o ato
de pensar no ato de existir (Cf. ALMEIDA E VALLS, 2007, p. 30) 4.
Assim, o que fica bastante evidente é que a chave hermenêutica da filosofia existencial,
da maneira como Kierkegaard a compreende, deve ser a decisão apaixonada do existente na
transformação da própria existência, visto que toda decisão essencial se dá na subjetividade.
Com isso, a filosofia sai do campo de uma mera abstração estéril e assume a perspectiva de
um diálogo íntimo e profundo do eu consigo mesmo.
Obviamente, essa ênfase kierkegaardiana na subjetividade rendeu-lhe várias críticas
daqueles que viram nela a possibilidade de degeneração em subjetivismo ou relativismo.
Entretanto, para compreender o pensamento do dinamarquês é necessário não somente atentar
para o caráter eminentemente cristão de sua obra – como já colocado anteriormente –, como
também situá-lo no contexto histórico-filosófico no qual está inserido.
Nesse sentido, é possível afirmar que os escritos kierkegaardianos estão, praticamente, o
tempo todo em um intenso diálogo com o racionalismo moderno, expressos, principalmente,
nos pensamentos de Kant e Hegel. Para o filósofo de Copenhagen, a filosofia hegeliana,
especialmente, poderia até ter alguma utilidade na interpretação da vida, o verdadeiro
problema, entretanto, seria vivê-la (Cf. GOUVÊA, Op. Cit., p. 44). Por isso, a identificação
que a filosofia moderna opera entre o ser e o pensamento é, tacitamente, rejeitada por
Kierkegaard.
Na filosofia das ideias puras, a qual não considera o indivíduo real, a passagem é de
absoluta necessidade (como aliás no hegelianismo, no qual tudo se realiza com
necessidade), isto é, a passagem do compreender ao agir não tropeça em nenhum
embaraço. [...] E é igualmente esse, no fundo, todo o segredo da filosofia moderna,
toda ela contida no cogito ergo sum, na identidade do pensamento e do ser; (ao
passo que o cristão, esse, pensa: Que vos seja dado segundo a vossa fé ou: tal fé, tal
homem, ou: crer é ser). A filosofia moderna não é, como se vê, senão paganismo
(KIERKEGAARD, 1979, p. 250) 5.
Também sobre a crítica kierkegaardiana a essa identificação da filosofia moderna do ser
e do pensar, Almeida e Valls comentam o seguinte:
A diferença entre pensamento e existência, embora colocada pela razão, não se
reduz à razão, porque, na ótica existencial, a razão é uma dimensão da existência,
não sinônimo dela. O pensamento puro não é capaz de criar a partir do próprio
pensar a realidade, Deus e o Bem. A tarefa existencial não é objeto do pensamento
puro, mas da existência, precisamente, do existente, pois “existir significa, antes de
tudo, e, sobretudo, ser um indivíduo singular e é por isso que o pensamento puro
deve prescindir da existência, porque o singular não se deixa pensar, somente o
universal” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 53).
4
ALMEIDA E VALLS, Jorge Miranda de e Álvaro L. M.. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
(Coleção passo-a-passo).
5
KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais Monteiro] –
São Paulo: Abril Cultural, 1979.
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Por isso, para Kierkegaard, essa supressão do indivíduo singular diante da abstração do
universal que ganhou força na modernidade mostrou-se tão perniciosa e desumanizadora.
Nesse sentido, a “correção dialética” operada por Hegel na lógica aristotélica – negando os
princípios de não-contradição e do meio excluído – acabou por engolir todas as oposições,
transformando a vida numa apatia absoluta e conduzindo-a à desmoralização (Cf. GOUVÊA,
2009, p. 54). Portanto, no entendimento do dinamarquês, “dissolver-se no universal, seja
concebido como estado ou como pensamento universal, é rejeitar a responsabilidade pessoal e
a existência autêntica (ibidem, p. 55).
Para compreender essa forte antipatia de Kierkegaard à filosofia moderna – e ao
hegelianismo em particular, com sua forte ênfase universalista – é preciso compreender que,
para ele, a existência é, antes de tudo, contradição, ou, utilizando o termo mais comumente
empregado por ele: paradoxo. Enquanto a filosofia estava identificada à mediação, o
cristianismo, por sua vez, constituía o paradoxo. Ainda que a lógica dialética hegeliana tivesse
acabado não só com todos os paradoxos, mas, também, com sua própria possibilidade de
existência, para Kierkegaard “a personalidade protestará por toda a eternidade contra a ideia
de que contrastes absolutos podem ser mediados (e este protesto é incomensurável com a
afirmação da mediação); para toda a eternidade ela repetirá seu dilema imortal: ser ou não ser
– eis a questão (Hamlet)” (KIERKEGAARD, apud GOUVÊA, 2006, p. 169).
Kierkegaard amava paradoxos porque ele via a importância do paradoxo para a
transmissão das mais profundas verdades cristãs. A percepção de que paradoxos são
fundamentais para a comunicação das mais profundas verdades religiosas não é
sequer exclusivamente cristã ou bíblica. Ela está presente também em outras
religiões. São exemplos disso também os Koans do Zen-Budismo, a tradição do
Budismo Madhiamica, e o Hassidismo judaico. [...] Enfim, o paradoxo é uma
ferramenta por meio da qual o eu ético-religioso pode ser, como Carnell coloca,
“chocado de sua tendência natural de ter uma idéia maior de si do que deveria.
Enquanto o eu conseguir perpetuar a ilusão de que sua posição no tempo é apenas
uma ocasião para especulação, assim o eu continuará ignorante de seu pecado. E esta
ignorância, por sua vez, encorajará o eu a conceber Deus como pouco mais do que a
contra-partida cósmica da razão humana” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 170).
Portanto, de acordo com o que foi exposto até aqui, três pontos devem ser considerados
fundamentais na abordagem do pensamento kierkegaardiano: Kierkegaard não é – nem de
longe – um filósofo existencialista, mas um cristão que dedica seu labor filosófico à tarefa de
conduzir os homens ao cristianismo do Novo Testamento; apesar disso, sua filosofia
apresenta, sim, uma forte ênfase existencial, visto que, mesmo não terminando suas
conclusões na existência, ele tira suas conclusões da existência, quer se movimente na esfera
dos fatos sensíveis e palpáveis, quer no domínio do pensamento (Cf. KIERKEGAARD, 2011,
p.63) 6; e, por fim, todo o corpus kierkegaardiano encontra-se em constante diálogo com a
tradição moderna, numa atitude não só de forte crítica aos sistemas filosóficos, mas,
especialmente, de afirmação do indivíduo e da responsabilidade humana diante das escolhas
que a vida nos oferece na constante tensão dialética dos opostos.
O Indivíduo coram Deo
Ousarmos ser nós próprios, ousar-se ser um indivíduo, não um qualquer, mas este
que somos, só face a Deus, isolado na imensidade do seu esforço e da sua
6
KIERKEGAARD, Søren. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. [Tradução:
Ernani Reichmann e Álvaro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
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responsabilidade: eis o heroísmo cristão; e confesse-se a sua provável raridade; mas
haverá heroísmo no iludirmo-nos pelo refúgio na pura humanidade, ou em brincar a
ver quem mais se extasia perante a história da humanidade? Todo o conhecimento
cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação e deve sê-lo; mas essa
mesma inquietação edifica. A inquietação é o verdadeiro comportamento para com a
vida, para com a nossa realidade pessoal e, consequentemente, ela representa, para o
cristão, a seriedade por excelência; a elevação das ciências imparciais, muito longe
de representar uma seriedade superior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade.
Mas sério é, eu vo-lo afirmo, aquilo que edifica (KIERKEGAARD, 1979, p. 189).
Se para Kierkegaard a multidão é a mentira, é na categoria do Indivíduo que o homem
encontra a realização da verdade. Opondo-se ao formalismo que nega ou reduz o ato de existir
a uma padronização da ordem estabelecida ou a generalidades, o indivíduo encontra-se acima
do gênero humano em sua abstração. Para ele, este indivíduo singular, sempre em devir, só é
passível de ser concretizado na existência e a partir da diferenciação entre o ser e a essência.
(Cf. ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p.51).
Contudo, como a distinção que Kierkegaard faz entre ser e essência rompe com o
modelo tradicional, é importante compreender o que ele tem em mente com tal diferenciação.
Segundo o dinamarquês, “o sujeito existente é eterno, mas enquanto existente é temporal
(KIERKEGAARD apud ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 51). Com isso, ele entende que
enquanto possibilidade, o existente é eterno, visto que é criado do nada e, em Deus, tem sua
essência, mas, por outro lado, sendo a existência um dom – e considerando-se que Deus se
retira no ato da criação –, automaticamente, esvai-se também qualquer possibilidade de
permanência dessa essência que poderia vir a determinar uma pseudo-independência do ser
humano.
Dessa maneira, a partir dessa concepção do caráter dadivoso da existência, já não há
mais espaço para se trabalhar com causas e efeitos. Tendo sido o dom oferecido, a
responsabilidade do que se faz de si mesmo e consigo mesmo diz respeito, exclusivamente, ao
indivíduo singular. “Nesse caso, a essência é também uma construção da própria condição
humana, ou, em termos kierkegaardianos, a essência também deve ser reduplicada em cada
indivíduo, em cada geração” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 52). Afinal, se e existência já
tivesse – de antemão – uma essência pronta, não seria uma existência de fato. Nessa
perspectiva, o indivíduo singular
tem como tarefa o tornar-se em palavras vivas, à maneira de Cristo, que é sempre
[..] o Modelo, a referência a ser seguida, porque Ele se constitui na verdadeira vida.
Isso explica porque, nessa ótica, a verdade não se resume à identidade ou à
conformidade entre o ser e o pensamento. A verdade “é” uma vida e é somente na
sua apropriação, na aceitação livre e integral da verdade de Cristo enquanto
Verdade-Caminho-Vida, é que a verdade adquire o caráter de sinônimo de
subjetividade (ibidem, p. 53).
Como se percebe, portanto, a verdade na filosofia existencial de Kierkegaard não é um
conceito, mas – antes – uma vida que é sempre atual. “É a vida que se faz vida, como oferta a
cada indivíduo singular numa relação sempre presente do agora da eternidade no tempo
(ibidem, p. 56). Com isso, a verdade deixa de ser um fundamento lógico para tornar-se uma
apropriação existencial que se dá no interior dessa dialética do finito e do infinito, do
temporal e do eterno. Sob essa ótica, o próprio ato de tornar-se cristão assume outro
significado: tornar-se contemporâneo com Cristo (Cf. ibidem, p. 58). É, justamente, nesse
sentido que, para Kierkegaard, o indivíduo se identifica à verdade. É quando o indivíduo,
afastado da multidão, torna-se indivíduo coram Deo.
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Ser contemporâneo é ser o único perante Deus. É traduzir-se em autenticidade, e
esta, em verdade. A verdade enquanto é Cristo não pertence ao campo da doutrina,
mas à dimensão da realização enquanto apropriação da própria verdade. O que é a
verdade? “Cristo é a verdade. Nesse sentido, a verdade não consiste em uma suma
de proposições, nem em uma determinação conceitual e coisas similares, senão que
a verdade é a Vida.” E, contrariamente às máximas filosóficas, ele explica que o ser
da verdade não é uma duplicação direta do ser relativo ao pensamento, que somente
dá um ser pensado. “O ser da verdade é um ser, é a duplicação em ti, em mim, de
maneira que a tua vida, a minha e a tua, de uma forma aproximativa – em contato
com ele – seja o ser da verdade, como a verdade era Cristo: uma vida, pois Ele era a
verdade (ibidem, p. 58).
No mesmo sentido, o próprio Kierkegaard, em As Obras do Amor, afirma o seguinte:
O mesquinho jamais teve a coragem de realizar esse ato audacioso, de humildade e
de orgulho agradável a Deus: de ser si mesmo diante de Deus. – pois a ênfase está
neste “diante de Deus”, já que esta atitude é a fonte e a origem de todo o caráter
particular da pessoa. Quem teve esta audácia tem um caráter individual; ele veio a
saber o que Deus já lhe tinha dado, e ele crê exatamente bem do mesmo jeito no
caráter particular de cada um. Ter caráter individual é crer no caráter individual de
cada um dos outros, pois o caráter individual não é coisa minha; é um dom pelo qual
Deus me dá o ser, e ele o dá aliás a todos, e a todos ele dá o ser. Tal é a insondável
fonte de bondade que jorra da bondade de Deus, que Ele, o Todo-Poderoso, dá de tal
maneira que o que recebe, recebe seu caráter particular, que Ele cria do nada, cria
dando uma característica particular, de modo que a criatura, mesmo sendo tirada do
nada, não paira diante d’Ele como nada, mas adquire seu caráter próprio
(KIERKEGAARD, 2007, p. 306) 7.
Entretanto, como já salientado no item anterior, é importante que esse discurso de
Kierkegaard a respeito da subjetividade seja compreendido à luz de sua polêmica contra
Hegel e seu abstrato sujeito absoluto. Segundo o dinamarquês:
Todo homem que não se conhece como espírito ou cujo eu interior não tomou em
Deus consciência de si próprio, toda a existência humana, que não mergulha desse
modo limpidamente em Deus, mas se funda nebulosamente sobre qualquer abstração
ou a ela se reduz (Estado, Nação, etc.), ou que, cega para consigo própria, não vê nas
suas faculdades mais do que energias de origem pouco explícita, e aceita o seu eu
como um enigma rebelde a qualquer introspecção – toda a existência deste gênero,
realize o que realizar de extraordinário, explique o que explicar, até o próprio
universo, por muito interessante que, como esteta, goze a vida: mesmo assim, ela
será desespero (KIERKEGAARD, 1979, p. 218).
É também oportuno ressaltar que Kierkegaard jamais afirmou que existem tantas
verdades quanto existem indivíduos. Subjetividade da forma como ele entende nada tem a ver
com alguma manifestação de atividade pessoal ou qualquer outra expressão de capricho ou
egocentrismo humanos. Definitivamente, ele não está se referindo a alguma espécie de
personalidade artística, nem cultuando a particularidade a todo custo. “Subjetividade em
Kierkegaard, portanto, não significa acreditar no que se queira, fazer apenas o que nos agrada,
negar as compulsões da verdade universal (GOUVÊA, Op. Cit., p. 153).
Portanto,o que se deve ter claro em mente quando Kierkegaard afirma a primazia do
indivíduo sobre o geral e apresenta a subjetividade como verdade é que em nenhum momento
7
KIERKEGAARD, Søren. As Obras do Amor – Algumas considerações cristãs em forma de discursos.
[Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis,
RJ: Vozes, 2007.
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ele está saindo em defesa de alguma espécie de subjetivismo epistemológico, ou enamorandose da ideia presente nas ciências naturais que afirma a impossibilidade de uma certeza
objetiva. Para o dinamarquês, de outro modo, visto que a noção de confiança é básica para o
conceito de fé, esta acaba por configurar-se como uma incerteza, mas uma incerteza objetiva.
Quando subjetividade é verdade, a definição de verdade deve conter também em si
mesma uma expressão da antítese à objetividade, um lembrete daquela bifurcação na
estrada, e esta expressão indicará ao mesmo tempo a tenacidade da introspecção.
Aqui está uma tal definição de verdade: Uma incerteza objetiva, agarrada através da
apropriação com a mais apaixonada introspecção, é a verdade, a mais elevada
verdade que há para uma pessoa existente (KIERKEGAARD apud ibidem, p. 155).
A ética kierkegaardiana
Se Kierkegaard é um autor reconhecidamente complexo e que suscita várias
possibilidades de confusão por parte de leitores desavisados, sua concepção de ética,
certamente, pode ser considerada um de seus temas mais nebulosos. Eventualmente, quando
se ouve alguma coisa sobre a ética kierkegaardiana, geralmente o conteúdo da afirmação está
associado à compreensão do segundo estádio da existência, situado entre o estádio estético e o
religioso. Entretanto, um olhar mais atento sobre o conjunto da obra nos revela que, em
Kierkegaard, o conceito de ética quase nunca apresenta significados unívocos.
O primeiro fato a que devemos atentar, portanto, é que, no pensamento de Kierkegaard,
há uma distinção entre uma ética-primeira e uma ética-segunda. Segundo o dinamarquês,
“todo o conhecimento e toda a especulação dos Antigos baseavam-se na pressuposição de que
o pensamento tinha realidade”, assim também como “toda Ética antiga baseava-se na
pressuposição de que a virtude era realizável” (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p. 21) 8. Dessa
forma, o pecado – que, para Kierkegaard, constitui um aspecto fundamental da realidade –
acabava sendo para a consciência ética o que o erro era para o conhecimento: apenas uma
exceção isolada incapaz de provar qualquer coisa.
Nesse sentido, a ciência responsável por fazer a transposição dessa ética-primeira, de
caráter idealista – que tem em Sócrates o seu principal representante – para a ética-segunda –
expressa na figura de Abraão como protótipo do cavaleiro da fé – seria a Dogmática. Partindo
da realidade efetiva, ela não apenas reconhece a presença do pecado, como explica-o ao
pressupor o pecado hereditário (Cf. ibidem, p. 21). Assim, a ética-segunda “pressupõe a
Dogmática, e com essa o pecado hereditário, de que se serve em seguida para explicar o
pecado do indivíduo, enquanto ao mesmo tempo institui como tarefa a idealidade, porém não
no movimento de cima para baixo, mas de baixo para cima” (ibidem, p. 23).
Na perspectiva de Kierkegaard, a filosofia e a teologia acabaram caindo em uma grande
confusão quando – desviando-se do caminho – pretenderam ultrapassar seus limites através
do calculismo e da indiferença da mediação como condição para se chegar a Deus. O
resultado, como se viu, foi a redução do próprio Deus a um elemento final do mesmo
processo lógico. Com isso: “Em lugar de esclarecer e orientar os homens (os homens
individuais) ao ético, ao religioso, ao existencial, a filosofia deu o aval para que os homens se
colocassem, para dizer de maneira prosaica, em especulações vazias, sem perigo, nas nuvens
do puro simulacro” (KIERKEGAARD apud ALMEIDA E VALLS, Op. Cit. p. 45). Como
consequência dessa vereda tortuosa, ocorreu que tanto a filosofia, quanto a ética acabaram por
se perverter “ao trocar o amor e a seriedade ética por um saber que transformou Deus em
8
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. [Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Petrópolis,
RJ: Vozes; São Paulo, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010. – (Coleção pensamento humano).
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paliativo, em analgésico para as dores de consciência” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p.
45).
Descobrimos assim, com a ajuda de Kierkegaard, que o tipo de ética que
encontramos na tradição platônico-aristotélica não é apenas racionalista (pois apenas
o que é humanamente imaginável e justificável pode ser a base e o conteúdo da
ética), mas, do ponto de vista religioso, é idólatra, pois até Deus está sujeito a algo
superior. Por outro lado, não se pode dizer que seja real, pois não considera a
existência. É uma ética domada, muito cultural, muito aceitável, que não tem nada
de importante a dizer além de obrigar a um certo padrão comportamental que é
adequado e proveitoso para os dirigentes de uma sociedade. Isto não pode ser jamais
o retrato de uma ética existencial, nem muito menos de uma ética cristã, pois o
padrão da ética cristã deve ser o ensinamento de Jesus que está longe de ser um
ensinamento domado, socialmente aceitável, culturalmente conservador, controlador
de pessoas, mas sim um ensinamento devastadoramente contra-cultural, libertador,
revolucionário e que “vira a mesa” (GOUVÊA, 2009, p.244).
Dessa maneira, visto que a ética, enquanto reflexão natural acerca das relações, não
deixa de ser validada, o que se observa no ponto de vista kierkegaardiano é que há uma
transformação do velho sentido estático de dever de Deus, de mandamento divino. Agora, a
ética – encontrando a sua verdadeira base – passa a ser compreendida dentro de sua
religiosidade e assume a dimensão de uma supra-ética (Cf. ibidem, p. 245). Assim, “sempre
que uma pessoa é chamada a agir como um indivíduo, ele está fora da esfera ética e, portanto,
não pode encontrar justificação ética para a sua ação” (SCHRADER apud ibidem, p. 249).
Isso significa que um indivíduo – enquanto indivíduo –, faça o que fizer, certo ou errado,
estará sempre fora da esfera ética, visto não haver nenhuma justificação ética para uma ação
realizada por um indivíduo enquanto indivíduo, apenas enquanto participante de uma
sociedade. Na realidade da existência coram Deo – isto é, do indivíduo isolado perante Deus –
, cada ser humano encontra-se, inevitavelmente, como indivíduo singular e, desse modo, deve
prestar conta de suas ações, sabendo ainda que, diante de Deus, nós somos sempre devedores.
Portanto, enquanto indivíduo, todo ser humano encontra-se fora da esfera ética e,
conscientemente ou não, inserido na esfera religiosa. “É por isso que Kierkegaard afirma que
o estágio ético era meramente um estágio intermediário, uma passagem na qual ninguém pode
realmente permanecer” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 249).
No entanto, conforme bem nos lembra Gouvêa, “o pensamento de Kierkegaard não era
em nenhum sentido transmoral, se com isso queremos dizer algum tipo de antinomianismo.
Ele não era advogado do niilismo moral” (ibidem, p. 250). O que Kierkegaard nos oferece, na
realidade, não é a supressão da ética, mas – de maneira inversa – uma base genuína e original
para o pensamento ético. Em As Obras do Amor (1847), um de seus mais belos livros, o
dinamarquês dedica-se, justamente, a nos mostrar como outro tipo de ética, “melhor, mais
séria e mais honesta” (Cf. ibidem, p. 250), é possível.
Segundo o filósofo de Copenhagen:
Quando [...] se deve amar o próximo, a tarefa existe (a tarefa ética), a qual, por sua
vez, é a fonte original de todas as tarefas. Justamente porque o crístico é o
verdadeiro ético ele sabe abreviar os raciocínios e cortar fora as introduções
panorâmicas, afastar todas as delongas preliminares e libertar de toda perda de
tempo; o cristão está imediatamente na tarefa, porque ele a tem consigo. No mundo
há uma grande discussão, aliás, sobre o que deveria ser chamado o bem supremo.
Mas qualquer que seja o que chamamos assim, por mais diferente que seja, é incrível
quanta complexidade se prende ao esforço de alcançá-lo. O Cristianismo, ao
contrário, ensina ao homem imediatamente o caminho mais curto para encontrar o
que há de mais elevado: fecha tua porta e ora a Deus – pois Deus é que é o bem
supremo. E se um homem tiver que sair pelo mundo, sim, aí talvez ele possa ir longe
e andar em vão, dar uma volta ao mundo – e em vão, para procurar a pessoa amada
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ou o amigo. Mas o Cristianismo jamais incorre na falta de mandar uma pessoa
andar, nem que seja um único passo, inutilmente; pois quando abrires aquela porta,
que tu fechaste para orar a Deus, e saíres, então a primeira pessoa que encontrares é
o próximo, que tu deves amar. Que coisa estranha! (KIERKEGAARD, 2007, p. 7071).
Assim, o que fica bastante evidente no pensamento kierkegaardiano é que “sem uma
intervenção e um fundo religioso, a realização do ideal ético é de fato impossível”
(GOUVÊA, 2006, p. 262). Nessa perspectiva, a função da ética passa a ser não somente
desenvolver uma receptividade para a religião, como, também, um sentimento de necessidade
por ela (Cf. SWENSON apud GOUVÊA, Op. Cit., p. 262).
O conceito de Repetição
Se Gouvêa estiver correto em sua interpretação, a repetição é um dos conceitos mais
importantes trabalhados por Kierkegaard, quiçá o mais importante. O comentador do
dinamarquês chega a profetizar que o conceito kierkegaardiano de repetição “ainda irá se
evidenciar como um dos conceitos mais importantes na história da filosofia, um conceito cujo
alcance e cujas implicações ainda estão longe de serem descobertas, e que por isso mesmo
deverá ser um dos conceitos filosóficos mais explorados do século XXI” (GOUVÊA, Op.
Cit., p. 213). Comecemos, então, a fazê-lo.
Etimologicamente, a palavra re-petição significa pedir novamente ou, em outras
palavras, re-peticionar. Isso pode se dá de, pelo menos, duas formas distintas: pode-se pedir
algo que já se teve e que se quer mais ou, de outro modo, pode-se pedir algo já pedido
anteriormente, mas que, por algum motivo qualquer, não se obteve. O conceito de repetição
abarca as duas possibilidades: aquela em que se pede algo que se tem ou que se teve e de que
se quer mais, e aquela em que o pedido já se quis, embora não tenha sido obtido. “A repetição
kierkegaardiana é, portanto, reapropriação (Gjentagelse), isto é, pegar ou tomar novamente
aquilo que já se teve ou ainda se tem, mas de que se quer mais, ou aquilo que já se tentou
apropriar anteriormente sem completo êxito” (ibidem, p. 214).
A importância da repetição encontra-se no escândalo da kinesis, do movimento, da
metamorfose, e todos os fenômenos relacionados à transitoriedade da vida temporal.
A filosofia grega nunca soube o que fazer direito com o movimento, a transformação
e a temporalidade, apesar dos honrosos esforços de Aristóteles, porque está toda ela
calcada na concepção de reminiscência do eterno. Em outras palavras, diante do
fluxo da existência, a filosofia grega se re-colhe e en-colhe em direção do ponto
inicial, da origem, isto é, do nada, e sai pela porta dos fundos. A repetição apresenta
uma marcha adiante, para o eterno no “fim” da temporalidade, não no seu “início”
(ibidem, p. 216).
Assim, o que se percebe, como o próprio Kierkegaard chega a afirmar, é que seu
conceito de repetição e a reminiscência platônica, na realidade, correspondem ao mesmo
movimento, só que em direções opostas. A reminiscência, ao lembrar o que já passou, seria
uma espécie de repetição às avessas. A verdadeira repetição, em contrapartida, configura-se
como um movimento para frente, constituindo-se em uma espécie de lembrança do futuro.
Exatamente por isso que, de modo diferente da reminiscência – que tende a nos tornar
infelizes, nostálgicos e pessimistas – ela “faz-nos felizes, motivados e otimistas, pois
apresenta-nos a possibilidade do movimento existencial, do crescimento espiritual, em vez da
opção da busca pela aniquilação da personalidade e da individualidade no desapego à
temporalidade e o retorno ao eterno” (ibidem, p. 217). Ou, nas palavras do próprio
Departamento de Filosofia
dinamarquês: “Grande é alcançar o eterno, mas maior ainda é guardar o temporal depois de a
ele ter renunciado” (KIERKEGAARD, 1979, p. 119) 9.
Ao contrário do que se pode imaginar, no entanto, Kierkegaard não está, simplesmente,
negando o pensamento platônico. Está, na realidade, renovando-o e transformando-o. Não se
pode esquecer que foi a partir da reminiscência platônica que, mais tarde – na idade Média –
Agostinho – que muito influenciou o pensamento de Kierkegaard – construiu sua
epistemologia da iluminação. Entretanto, enquanto no pensamento agostiniano – que,
diferentemente da reminiscência platônica, não pressupunha a pré-existência da alma humana
– a reminiscência se dava como uma iluminação oferecida por Deus ao ser humano,
Kierkegaard vai ainda mais longe e sugere que tanto Platão, quanto Agostinho, embora
tenham percebido corretamente um movimento psico-epistemológico, erraram na
identificação do seu direcionamento, supondo-o para trás. Para Kierkegaard, esse movimento
não só toma a direção oposta, dirigindo-se para frente, como é “um movimento
empiricamente verificável e inerente à criação, ao mundo natural, independente, portanto,
tanto de uma pré-existência da alma quanto de uma iluminação transcendental adicional ou
miraculosa” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 217).
No entendimento de Kierkegaard, a repetição, configurando-se como uma espécie de
terceira via que se oferece como opção aos conceitos de esperança e reminiscência –
provenientes, respectivamente, da tradição judaico-cristã e da tradição grega – é, na realidade,
a verdadeira expressão do conceito – tão combatido por ele – que, no idealismo alemão, ficou
conhecido como mediação. Nesse sentido, se, para Kierkegaard, a filosofia grega da
reminiscência possuía a honestidade como virtude, o mesmo não se dava com a filosofia
moderna.
Hegel, lembra-nos Kierkegaard, propunha-se a trazer dinamismo à lógica e à
filosofia, por meio da dialética triádica que sugere e exemplifica muitas vezes.
Entretanto, sua filosofia termina em um monismo absoluto, tão estático quanto o Ser
de Parmênides. O movimento, em Hegel, é comparável ao das crianças nos
carrinhos de um parque de diversão: não importa quão drasticamente elas movam a
direção do carrinho, ele continua girando preso na bitola segura e sem a incerteza da
liberdade a qual estamos fadados, como disse Sartre, ao menos todos os que
acordam do sonho da eternidade platônica e abraçam a condição humana da
temporalidade. Kierkegaard sugere, no Epílogo de Temor e Tremor, que Hegel é
como Crátilo, o discípulo de Heráclito, que, na intenção de levar adiante o projeto
filosófico de dinamismo e transmutação de seu mestre, acabou por apresentar, sem
perceber, argumentos em favor das teses de Parmênides, o grande opositor de
Heráclito. A kinesis hegeliana seria, portanto, um movimento aparente, abstrato,
teórico. Assim também é o conhecimento no platonismo e no agostinianismo. A
repetição, ao contrário, implica em um genuíno movimento do espírito humano, um
movimento concreto e fenomenológico, com consequências práticas para a vida e o
mundo (ibidem, p. 219).
É por isso que, em A Repetição, o heterônimo de Kierkegaard Constantin Canstantius
afirma que “a repetição é o lema em qualquer intuição ética” (KIERKEGAARD, 2009, p. 51)
10
. Mais até do que isso, a repetição é identificada à própria realidade, como uma atitude de
seriedade diante da existência. Nas belas palavras do dinamarquês:
9
KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor. In: Os pensadores. [Tradução: Maria José Marinho] – São Paulo:
Abril Cultural, 1979.
10
KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. [Tradução: José Miranda Justo] – Lisboa, PT: Relógio D’Água
Editores, 2009.
Departamento de Filosofia
É preciso juventude para ter esperança, juventude para recordar, mas é preciso
coragem para se querer a repetição. Porque aquele que apenas quer ter esperança é
cobarde; aquele que apenas quer recordar é voluptuoso; mas aquele que quer a
repetição é um homem, e quanto mais energicamente for capaz de a tornar clara para
si próprio, tanto maior será a sua profundidade como criatura humana. Aquele,
porém, que não compreende que a vida é uma repetição e que essa é a beleza da
vida, esse condenou-se a si mesmo e não merece melhor fim do que o que lhe
acontecerá, ou seja, sucumbir; porque a esperança é um fruto sedutor que não
satisfaz; mas a repetição é o pão de cada dia que abençoadamente satisfaz. Se um
indivíduo circum-navegou a existência, tornar-se-á evidente se tem coragem para
entender que a vida é uma repetição e desejo suficiente para com ela se regozijar.
Aquele que não circum-navegou a vida antes de começar a viver nunca chegará a
viver; aquele que a circum-navegou, e porém ficou satisfeito, tinha uma fraca
constituição; aquele que escolheu a repetição, esse vive. Não corre como um rapaz
atrás de borboletas, nem se põe em bicos de pés para vislumbrar as maravilhas do
mundo, pois que as conhece; nem se senta como uma velha mulher fiando na roca da
recordação; antes avança calmamente pelo seu caminho, contente da repetição. Sim,
se não houvesse a repetição, o que seria vida? Quem poderia desejar ser uma ardósia
na qual o tempo inscrevesse a cada instante um novo texto, ou ser um memorial de
coisas passadas? Quem poderia desejar deixar-se mover por tudo o que é efémero,
pelo novo, que constantemente entretém a alma, amolecendo-a? Se o próprio Deus
não tivesse querido a repetição, o mundo nunca teria surgido. Deus teria seguido os
planos superficiais da esperança, ou teria voltado a retirar todas as coisas e tê-las-ia
preservado na recordação. Não o fez, por isso continua a haver mundo, e continua a
haver pelo fato de ser repetição (ibidem, p. 32-33).
A liberdade
Como se deve ter percebido até aqui, há uma ideia central que permeia todo o
pensamento de Kierkegaard: a ideia de liberdade. Não raras vezes, inclusive, o dinamarquês
apresenta tal conceito como sinônimo de verdade. Entretanto, como já visto anteriormente, o
indivíduo, para Kierkegaard, também é, constantemente, identificado à verdade. Dessa
maneira, o que fica evidente para nós no pensamento kierkegaardiano é que tanto verdade,
quanto liberdade e individualidade apresentam-se indissociavelmente relacionadas, chegando
mesmo, muitas vezes, a significarem a mesma coisa.
Em seu Desespero Humano, Kierkegaard declara que: “O eu é formado de finito e de
infinito. Mas a sua síntese é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo
própria, o que é a liberdade. O eu é liberdade. Mas a liberdade é a dialética das duas
categorias do possível e do necessário” (KIERKEGAARD, 1979, p. 207) 11. Para ele, se a
mudança do devir é a realidade, essa passagem só se torna possível pela liberdade, jamais por
pura necessidade. Isso porque, em seu entendimento, nada do que está vindo a ser o está
fazendo devido a uma razão, mas devido a uma causa. E, nesse sentido, toda e qualquer causa
remonta a uma causa atuando livremente. Segundo ele, o engano advindo da ideia de causas
intermediárias ocorre porque o devir parece necessário. No entanto, a verdade delas consiste
em que, devindas elas mesmas, remetem definitivamente a uma causa que atua livremente.
Com isso, mesmo a consequência de uma lei natural não poderia explicar a necessidade de
nenhum devir, pelo menos não quando se reflete de maneira definitiva sobre o devir. Assim,
da mesma forma ocorre com as manifestações de liberdade quando, não nos deixando enganar
por elas, refletimos sobre o seu devir (Cf. KIERKEGAARD, 2011, p. 104).
11
KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais Monteiro] –
São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Departamento de Filosofia
Na perspectiva kierkegaardiana:
Se o passado se tivesse tornado necessário, não se deveria poder concluir o oposto
no que concerne ao futuro, porém, ao contrário, daí se seguiria que o futuro também
era necessário. Caso a necessidade pudesse penetrar num único ponto, não se
poderia mais falar de passado e de futuro. Querer predizer o futuro (profetizar) e
querer compreender a necessidade do passado é completamente a mesma coisa, e é
apenas uma questão de moda se a uma geração uma parece mais plausível do que a
outra. O passado, afinal de contas, deveio; o devir é a mudança da realidade pela
liberdade. Ora, se o passado se tivesse tornado necessário, não mais pertenceria à
liberdade, isto é, àquilo pelo qual ele veio a ser. A liberdade estaria então numa
posição ruim, faria ao mesmo tempo rir e chorar, pois levaria a culpa daquilo que
não seria de sua competência, produziria aquilo que a necessidade logo haveria de
engolir, e a própria liberdade tornar-se-ia uma ilusão, e o devir não menos; a
liberdade tornar-se-ia bruxaria, e o devir alarme falso (KIERKEGAARD, Op. Cit.,
p. 107-108).
Por isso que, para o dinamarquês, a fé não é um conhecimento, mas – de outro modo –
um ato da liberdade, uma expressão da vontade. Ao crer no devir, a fé acaba por suprimir em
si a incerteza que corresponde ao nada do não-ser. Ela crê “neste ‘assim’ do que deveio e já
suprimiu, portanto, o ‘como’ possível do que deveio, e embora sem negar a possibilidade de
um outro ‘assim’, o ‘assim’ do que deveio é todavia para a fé o que há de mais certo” (ibidem,
p. 116).
É nesse contexto, portanto, que indivíduo, verdade e liberdade são entendidos de
maneira muito próxima. Ao considerar a verdade não como uma abstração teórica ou como
um conceito frio, mas como um caminho que é identificado com a própria vida, Kierkegaard
percebe que “a verdade exige um constante atualizar da Verdade na ação concreta e na
realização do indivíduo singular” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 55). Essa atualização,
por sua vez, só é possível através da liberdade. Desse modo, concebida fora de um sistema, a
verdade passa a ser concebida como uma coerência prática que se realiza na ação. Ou, em
suas próprias palavras: “Eu só conheço a verdade se ela se faz vida em mim”
(KIERKEGAARD apud ibidem, p. 55).
Em termos éticos, na concepção da ética kierkegaardiana do amor vista anteriormente, o
dinamarquês entende que é o dever de amar o próximo que oferece o fundamento necessário
para que a verdadeira liberdade se estabeleça. Para ele,
o amor que se submeteu à transformação da eternidade em se tornando dever, e ama
porque deve amar, é independente, tem a lei de sua existência na própria relação do
amor para com o eterno. Este amor jamais pode tornar-se dependente no sentido não
verdadeiro, pois a única coisa de que ele depende é o dever, e o dever é a única coisa
que liberta. O amor imediato torna um ser humano livre, e no instante seguinte
dependente. O mesmo ocorre com o tornar-se homem de um homem; ao tornar-se,
ao tornar-se um “si mesmo”, ele se torna livre, mas no instante seguinte está
dependente desse si mesmo. O dever, ao contrário, torna um homem dependente e
no mesmo instante eternamente independente. “Só a lei pode dar a liberdade”. Ai,
tão frequentemente se acha que há liberdade, e que a lei seria aquilo que amarra a
liberdade. Contudo, é justamente o contrário; sem a lei a liberdade pura e
simplesmente não existe, e é a lei que dá a liberdade. Também se acredita que é a lei
quem faz diferenças, porque não há diferença nenhuma lá onde não existe lei.
Contudo, é o contrário; se é a lei que faz diferenças, então é justamente a lei que
torna todos iguais diante da lei. Dessa maneira, este “deves” liberta o amor para uma
feliz independência; um tal amor não depende , para se manter ou perecer, da
contingência do seu objeto, ele depende da lei da eternidade – mas então realmente
não perece jamais; um tal amor não depende deste ou daquele, ele só depende da
única coisa que liberta; portanto ele é eternamente independente. Com esta
Departamento de Filosofia
independência nenhuma outra pode ser comparada (KIERKEGAARD, 2007, p. 5657).
Conclusão
Diante do exposto até aqui, fica bastante claro que o pensamento de Kierkegaard traz
em si um aspecto extremamente revolucionário. Muito mais do que criticar a filosofia
moderna como um todo – e, especialmente, Hegel, em particular – o que o dinamarquês nos
apresenta é um outro paradigma de filosofia. Ironicamente – aliás a ironia é a grande marca de
toda sua filosofia –, ao assumir a dogmática e as questões relativas à fé como a base de seu
pensamento, Kierkegaard não só rompe com o dogma da autonomia da razão que permeou
toda a tradição ocidental, como liberta a si mesmo e sua filosofia, possibilitando um diálogo
efetivo entre esta e a realidade. Se, como ele afirma, é a lei a responsável por conferir
liberdade ao indivíduo, analogamente, a assunção honesta de seus pressupostos religiosos
acaba sendo a grande responsável por permitir-lhe desenvolver uma ética extremamente livre
e independente. Isso porque, conforme bem percebe Gouvêa,
como a ética cristã é baseada no nomos do Criador, a ética bíblica não é heteronomia
pois não é heteroios em relação a alguém que vive coram Deo. Ética bíblica é a
exposição e elucidação dos nomiomata revelacionais, isto é, o nomos ético-cósmico
em contraste com a anomia pecado, rebelião e idolatria. Estes nomiomata da ética
bíblica são a base para o que Kierkegaard afirma sobre o homem que conheceu o
Deus vivo: que “ele determina sua relação com o universal por sua relação com o
absoluto, não sua relação com o absoluto por sua relação com o universal”
(GOUVÊA, Op. Cit, p. 234).
Assim, ao contrário do pensa Hannah Arendt quando afirma ter permanecido o
dinamarquês preso à tradição em sua crítica à tradição (Cf. ARENDT, 2009, p. 52) 12 ,
Kierkegaard não só nos presenteia com uma concepção superior de ética, pautada no dever de
amar o próximo, como apresenta um novo modo de fazer filosofia. Não é à toa que, para Paul
Ricoeur – ao introduzir a descontinuidade, a angústia, o nada, o paradoxo, o salto, o drama
existencial que se apresenta no vazio, na superficialidade, na inautenticidade da existência –,
Kierkegaard inaugura a pós-filosofia (Cf. ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 61).
Portanto, se também Adorno estiver correto em sua crítica ético-política, ao afirmar que
a estratégia do Estado consiste em eliminar a personalidade individual, criando o anonimato e
difundindo a mentira de que o mais importante é a massa, a multidão, a maioria (Cf. ibidem,
p. 65), ouso dizer que o pensamento kierkegaardiano deve não somente deixar de ser alvo de
preconceitos infundados por parte daqueles que – incapazes de compreender as implicações
mais profundas de sua filosofia – o inferiorizam por seu posicionamento declaradamente
religioso, mas, acima de tudo, receber uma atenção especial dos pesquisadores como forma de
oferecer alternativas de pensamento para um mundo onde o velho racionalismo moderno já
não tem mais muito o que dizer.
Referências Bibliográficas
1 - ALMEIDA E VALLS, Jorge Miranda de e Álvaro L. M.. Kierkegaard. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2007. (Coleção passo-a-passo).
12
ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
2009.
Departamento de Filosofia
2 - ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São
Paulo: Perspectiva, 2009.
3 - DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. [Tradução:
Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
4 - GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Paixão pelo paradoxo. São Paulo, SP: Fonte Editorial,
2006.
5 - ____________________. A Palavra e o Silêncio. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2009.
6 - KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. [Tradução: José Miranda Justo] – Lisboa, PT:
Relógio D’Água Editores, 2009.
7 - ____________________. As Obras do Amor – Algumas considerações cristãs em forma
de discursos. [Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco; Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
8 - ____________________. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João
Clímacus. [Tradução: Ernani Reichmann e Álvaro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
9 -_____________________. O conceito de angústia. [Tradução: Álvaro Luiz Montenegro
Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010. –
(Coleção pensamento humano).
10 - ____________________. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo
Casais Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
11 - ____________________. Temor e Tremor. In: Os pensadores. [Tradução: Maria José
Marinho] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
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