TEXTO DE APOIO: MEDICINA TRADICIONAL E COMPLEMENTAR

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TERCEIRA CONFERENCIA INTERPARLAMENTAR DE SAÚDE
Medicina Tradicional e Complementar: Uso racional para uma atenção integral e com
equidade em saúde
Maio 19-20
PARLATINO, São Paulo - Brasil
Medicina Tradicional e Complementar: Relevância social, eficácia, segurança e
necessidade de sua implantação nos serviços nacionais de saúde
Flávio Dantas*
O crescimento da Medicina Tradicional e Complementar (MTC) é um fenômeno social
inegável, nas mais diversas regiões do mundo. A Organização Mundial de Saúde criou
o Programa de Medicina Tradicional, na década de setenta, e vem desde então
estimulando o seu uso. Em adição ao documento “Estratégia da OMS sobre Medicina
Tradicional 2002-2005”, recomendou aos países-membros, durante sua 56a. Assembléia
Mundial, a formulação e implementação de políticas públicas em medicinas
tradicionais e complementares, estimulando seu uso racional e integrado no sistema
nacional de saúde e o desenvolvimento de estudos científicos para melhor
conhecimento de sua segurança, eficácia e qualidade1,2para maior acessibilidade pela
população.
O campo da MTC inclui conhecimentos e tecnologias de intervenção em saúde com
fins de promoção, manutenção e recuperação de saúde bem como prevenção de
doenças que, apesar de tradicionalmente utilizados há muito tempo em todo o mundo,
têm sido insuficientemente avaliados e desenvolvidos pela comunidade científica. Em
função disto, são geralmente excluídas ou pouco contempladas no currículo oficial das
escolas médicas e no uso rotineiro em hospitais de ensino, bem como nas políticas
nacionais de ciência, tecnologia e inovação em saúde. Pode incluir tanto sistemas
completos com bases teóricas integradas a procedimentos diagnósticos, terapêuticos e
preventivos teoricamente consistentes e empiricamente testados ao longo de séculos ou
décadas (homeopatia, acupuntura, fitoterapia, medicina ayurvédica, medicina
antroposófica) assim como procedimentos isolados com fins diagnósticos (iridologia,
radiônica) ou exclusivamente terapêuticos (aromaterapia, florais de Bach, massagem,
hipnose, meditação, relaxamento muscular progressivo, práticas corporais orientais e
ocidentais, cura espiritual, técnicas respiratórias, cromoterapia e musicoterapia, entre
outras).
A demanda aumentada dos pacientes para usar MTC, em sua maioria com alto nível
de escolarização e em serviços pagos, tem sido observada mundialmente. Em 1990
aproximadamente um terço da população nos Estados Unidos fez uso de MTC,
*
Professor Titular de Homeopatia da Universidade Federal de Uberlândia e Visitante na Universidade
Federal de São Paulo; Diretor Científico da Associação Médica Brasileira de Acupuntura.
E-mail: [email protected]
1
aumentando para 42% em 1997, enquanto quase 50% de franceses e alemães fazem uso
habitual dela. Em vários países da América Latina também vêm crescendo o interesse
e pressão da sociedade pelo uso da MTC nos serviços nacionais de saúde, sob a
responsabilidade de profissionais qualificados. Entre outras razões, os pacientes
preferem usar recursos da MTC, inicialmente após a ineficácia do tratamento ortodoxo,
com base na percepção de que são efetivos e mais seguros do que os tratamentos
convencionais, induzem uma melhor comunicação do profissional com o paciente e
permitem uma participação mais ativa do paciente no tratamento3 .
Os profissionais de saúde, no Brasil, também têm se mostrado atentos e desejosos de
melhor conhecer a MTC. Enquete realizada com estudantes de medicina mostrou um
elevado interesse em conhecer a MTC e uma expectativa de grande eficácia nos
problemas de saúde4 . Entre 537 médicos de 80 especialidades e subespecialidades,
aleatoriamente selecionados e residentes em São Paulo, 81% entendem que as práticas
da MTC são úteis para o tratamento, 91% admitem ser importante o conhecimento
delas e 52% indicam ou prescrevem algum tipo de MTC, especialmente acupuntura e
homeopatia5.
Os médicos têm complementado sua formação profissional com cursos em MTC
(notadamente homeopatia e acupuntura) motivados principalmente pela abordagem
integral e humanística, observação de bons resultados em pacientes ou em familiares e
pela insatisfação com resultados da prática convencional6, tanto em termos de
efetividade como de segurança, além de questões de posicionamento no mercado
profissional, mais recentemente. No Brasil a homeopatia foi reconhecida desde 1980
como especialidade médica, e a acupuntura em 1995, pelo Conselho Federal de
Medicina. Hoje já existem programas de residência médica em Homeopatia e
Acupuntura no país, além de cursos de especialização com duração mínima de dois
anos para médicos. O crescimento da MTC é muito grande em termos de seu ensino,
pesquisa e utilização, gerando mudanças nas atitudes de instituições acadêmicas,
governamentais e regulamentadoras da profissão médica em todos os países. Nos
Estados Unidos e na União Européia mais de 40% das escolas médicas oferecem cursos
e treinamento em MTC.
A transição epidemiológica em vários países da América Latina, com queda
progressiva na morbimortalidade por doenças infecciosas transmissíveis e sua
crescente elevação pelas doenças e agravos não-transmissíveis, associada a alterações
na expectativa de vida dos indivíduos, impõe a necessidade de reforçar intervenções
em saúde que estimulem uma maior conscientização dos cidadãos e sua
responsabilidade no cuidado da própria saúde. No atual contexto sanitário, a MTC,
corretamente indicada por profissionais qualificados, pode ser um auxiliar estratégico
pois atua na prevenção de agravos e na promoção, manutenção e recuperação da saúde
dentro de um modelo humanitarístico e que estimula a autoresponsabilidade pela
saúde. Ademais, várias de suas práticas permitem a articulação dos cinco níveis de
prevenção sobre o processo saúde-doença, atuando na promoção, proteção,
diagnóstico precoce, limitação do dano e reabilitação, satisfazendo os requisitos para
um atendimento integral à saúde. Pela sua abordagem holística do ser humano e do
seu processo de adoecimento, práticas como a homeopatia, a medicina ayurvédica e a
2
acupuntura/medicina tradicional chinesa podem contribuir para uma maior
humanização no atendimento de saúde da população, com maior conscientização e
responsabilidade dos cidadãos pelo gerenciamento da sua saúde, e maior satisfação
entre os usuários.
As políticas de saúde dos vários países têm recomendado a adoção de tecnologias
apropriadas às suas distintas realidades sociais (em termos de resolutividade,
segurança, custo, acessibilidade e autonomia no acesso a insumos estratégicos) e que
por outro lado possam contribuir para o processo de educação em saúde da população.
As diretrizes curriculares dos cursos na área de saúde também têm recomendado a
formação de um profissional com fortes valores humanísticos e que esteja
comprometido com a melhoria da realidade social, capazes de oferecerem uma atenção
integral em saúde aos cidadãos. Neste ponto, a MTC se caracteriza como uma
ferramenta estratégica para efetivamente colocar em prática as aspirações curriculares,
pois trata os pacientes com suas doenças, levando o médico a compreender o doente
além de explicar sua doença, evitando o foco reducionista e exclusivo nas doenças. A
homeopatia e acupuntura têm hoje, no Sistema Único de Saúde brasileiro, mais de 900
profissionais distribuídos em quase duzentos municípios, com aproximadamente 500
mil atendimentos em 2003. Em 1986 foi recomendada, na VIII Conferência Nacional de
Saúde, a introdução de práticas da MTC (acupuntura, fitoterapia e homeopatia) nos
serviços públicos de saúde, “possibilitando ao usuário o acesso democrático de
escolher a terapêutica preferida”. O seu uso nos serviços públicos passou a ser
regulamentado a partir de 1988, por meio de resoluções interministeriais, cabendo aos
médicos a responsabilidade por sua aplicação, estando atualmente em discussão uma
proposta nacional de política para a área.
A medicina precisa produzir decisões com o máximo de certeza num cenário de
permanente incerteza. O campo da MTC vem cada vez mais produzindo provas
científicas da sua validade, expressas no aumento de publicações de ensaios clínicos
controlados em revistas médicas de alta qualidade. Isto tudo vem acontecendo apesar
do pequeno interesse de grupos econômicos privados na realização de pesquisas com
acupuntura e homeopatia, em razão da baixa probabilidade de obtenção de patentes e
auferição de lucros decorrentes da pesquisa, deixando o financiamento destas práticas
para órgãos governamentais de fomento à pesquisa, numa competição difícil por
escassos recursos. Apesar de críticas à qualidade dos estudos produzidos na área, vale
acentuar que a qualidade metodológica das revisões sistemáticas em acupuntura,
fitoterapia e homeopatia mostrou ser ligeiramente superior à de intervenções
analgésicas publicada na literatura7..
Trabalhos científicos rigorosos vêm sendo publicados em importantes revistas
médicas, nos últimos anos, sobre a eficácia e segurança destas práticas, particularmente
da homeopatia, acupuntura e fitoterapia. Em homeopatia, revisões sistemáticas sobre a
eficácia e segurança da homeopatia permitem concluir, no momento, que o medicamento
homeopático tem efeitos clínicos diferentes do placebo. Do ponto de vista da eficácia,
publicações em revistas de alto fator de impacto de ensaios randomizados controlados,
considerados globalmente, mostraram diferença a favor da homeopatia quando
comparada com placebo 8,9 . Uma revisão sistemática sobre a segurança dos
3
medicamentos homeopáticos concluiu que estes apresentam quase o dobro de efeitos
adversos, comparados ao placebo, em ensaios clínicos randomizados, embora
provoquem apenas reações adversas transitórias e leves, similares às do placebo, sendo
portanto bastante seguros10. Estudos preliminares sobre custo-efetividade têm
mostrado uma relação favorável ao tratamento homeopático, embora estejam ainda
em fase preliminar.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a Acupuntura aos seus Estados
Membros, tendo produzido várias publicações sobre sua eficácia11, capacitação de
profissionais e segurança12 bem como recomendações sobre métodos de pesquisa em
acupuntura13 e avaliação dos resultados terapêuticos das medicinas complementares e
tradicionais14.
A acupuntura tem sido indicada, de forma isolada ou como
coadjuvante, em várias doenças e agravos à saúde tais como odontalgias pósoperatórias, náuseas e vômitos pós-quimioterapia ou cirurgia em adultos,
dependências químicas, reabilitação após acidentes vasculares cerebrais, dismenorréia,
cefaléia, epicondilite, fibromialgia, dor miofascial, osteoartrite, lombalgias e asma,
entre outras15. Novos estudos e revisões sistemáticas acentuam o seu valor no
tratamento de problemas comuns na atenção primária, como as cefaléias16. A
acupuntura é bastante segura quando praticada por profissionais competentes, tendo a
incidência de efeitos adversos diminuído em anos recentes, possivelmente pelo uso de
agulhas descartáveis e regulamentação de seu exercício por profissionais treinados17.
Como método terapêutico, invasivo, o tratamento acupuntural só deve ser prescrito e
executado após realização de diagnóstico clínico adequado (etiológico) para que se
possa definir as reais indicações da terapêutica e o conseqüente prognóstico. A
proteção da saúde da população impõe o seu uso após verificação das suas reais
indicações e prática por profissional especializado e treinado.
A fitoterapia vem sendo usada tradicionalmente há milênios, e estudos científicos
atuais têm mostrado a utilidade de medicamentos fitoterápicos. Entretanto, estes
estudos são quase que exclusivamente de plantas originadas de outros países, e que
são vendidas na América Latina. O hipérico, originário da Europa, tem mais de trinta
estudos científicos que comprovaram sua efetividade em depressões leves a
moderadas, quando comparada ao placebo e a outros antidepressivos sintéticos.
Entretanto, os componentes químicos das plantas podem produzir também vários
tipos de reações adversas, em geral leves embora outras possam ser fatais, bem como
podem interagir com outros medicamentos em uso, potencializando ou antagonizando
suas ações no organismo.
O crescimento do mercado de fitomedicamentos tem sido superior ao dos
medicamentos sintéticos nos últimos anos, e movimenta mais de US$ 20 bilhões no
mundo. Os países da América Latina detêm, em seu conjunto, a maior biodiversidade
vegetal do planeta entre todos os continentes, mas importa de nações mais ricas os
fitomedicamentos mais consumidos, como o gingko biloba, valeriana, hipérico e kavakava. No Brasil, as normais legais vigentes determinam procedimentos similares aos
dos medicamentos alopáticos para o registro de fitomedicamentos, o que poderá
estimular a produção e exportação de produtos autóctones mas ao mesmo tempo
desestimula o investimento de pequenos produtores pelo elevado custo destes testes.
4
Estimam-se gastos com medicamentos homeopáticos superiores a 1 bilhão de dólares,
sendo a homeopatia o segundo sistema médico mais usado no mundo. Em função de
características sócio-econômicas peculiares, a avaliação sistemática de produtos
naturais abundantes em território latinoamericano, de modo organizado e
colaborativo, pode se constituir numa importante fonte de geração de divisas para o
país e distribuição de riquezas numa larga faixa populacional.
Na área de pesquisa, a 2a. Conferencia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em
Saúde, realizada em 2004, incluiu a acupuntura, homeopatia e fitoterapia como nicho
estratégico de pesquisa na Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em
Saúde, ao lado de áreas e práticas tradicionais como produção de vacinas,
imunobiológicos, hemoderivados, nanotecnologia aplicada à saúde e biotecnologia18.
Adicionalmente incluiu na agenda de prioridades a realização, em curto prazo, de
ensaios clínicos que avaliem sua eficácia, segurança e eficiência. A base instalada de
grupos de pesquisa voltados para MTC, registrados no Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, vem crescendo ao longo dos anos, somando
hoje quase 400 grupos, em sua maioria com linhas de pesquisa em fitoterapia.
É notório que as práticas da MTC, como são exercidas atualmente, quase não
despertam o interesse de grandes grupos capitalistas, pela previsibilidade de baixo
lucro e dificuldades no patenteamento dos seus produtos. Com isto tem-se um avanço
muito tímido em estudos científicos, que devem ser apoiados financeiramente por
agências governamentais de fomento à pesquisa ou por fundações privadas, quando
não pelos próprios autores. Neste sentido, cabe lembrar a função das universidades
públicas na geração de conhecimentos válidos e úteis sobre MTC, que deverão ser
ensinados e empregados adequadamente para beneficiar toda a população, em
particular os segmentos socialmente excluídos ou menos favorecidos. A implantação
de uma rede de centros especializados para avaliação de tecnologias em saúde, na área
de MTC, integrados aos centros colaboradores em Medicina Tradicional da OMS, pode
apoiar os Ministérios da Saúde nacionais na elaboração de políticas públicas e seleção
de intervenções mais efetivas, fundamentadas em estudos científicos que respeitem a
perspectiva holística da MTC, para melhor eficiência na alocação dos escassos recursos
para a saúde.
É dever de Estado democratizar o acesso a informações válidas em saúde e oferecer à
população alternativas terapêuticas socialmente apropriadas, mais eficientes ou mais
seguras. Num cenário de contínuas inovações tecnológicas que devem ser importadas
de empresas sediadas no hemisfério norte, os gastos em saúde têm aumentado ao
longo dos anos, com reflexos inclusive na balança comercial do país. Associada a
estratégias mercadológicas bem sucedidas de difusão, estas inovações passam a ser
incorporadas em nossa realidade, perpetuando a dependência. O Parlamento
Latinoamericano, entre outros propósitos, busca “opor-se à ação imperialista na
América Latina, recomendando a adequada legislação normativa e programática que
permita aos povos latino-americanos o pleno exercício da sua soberania sobre seu
sistema econômico e seus recursos naturais” bem como “estudar, debater e formular
políticas de solução aos problemas sociais, econômicos, culturais e da política exterior
da comunidade latino-americana”. A institucionalização e incorporação da MTC nos
5
serviços nacionais de saúde, com definição de normas legais e implantação de modelos
integrados de promoção e assistência à saúde, pode ter um forte impacto social e
econômico, contribuindo ainda para a geração de soluções eficazes e eficientes,
tecnologicamente adequadas e economicamente viáveis, para complementar os atuais
recursos médicos e fazer com que a população se beneficie de uma boa medicina,
humana e cientificamente apoiada.
Como citar este texto: DANTAS F. Medicina Tradicional e Complementar: Relevância
social, eficácia, segurança e necessidade de sua implantação nos serviços nacionais de
saúde. III Conferência Interparlamentar de Saúde. São Paulo: PARLATINO, 2005.
Documento de apoio.
REFERÊNCIAS
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7
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