127 Review Evolução Cronológica do Conhecimento Neuroanatômico: da Antiguidade ao pós-Renascimento - Parte 1 Chronological Evolution of Neuroanatomical Knowledge: From Antiquity to post-Renaissance Part 1 Sergio Murilo Georgeto1,3 Carlos Alexandre Martins Zicarelli1,3 Luiz Roberto Aguiar4 Munir Antonio Gariba 4 Karen Barros Parron Fernandes 5 Alekcey Glayzer Gavioli Colione 3 Francisco Spessatto Pesente 2 Milena Gerke Sampaio 2 RESUMO O presente artigo, sob a forma de revisão da literatura médica, revela a importância de se estabelecer uma análise histórica, na medida em que tal conhecimento apresenta-se como essencial para o entendimento aprofundado da anatomia do encéfalo. O conhecimento científico da humanidade evoluiu em fases, desde a antiguidade. Essa análise temporal, não só permite uma descrição extremamente interessante da evolução do pensamento científico da humanidade, como nos esclarece a maneira e o nível de profundidade com que as estruturas foram sendo compreendidas. Um adequado entendimento das estruturas e da função do sistema nervoso central com uma perspectiva temporal pode ser conseguido subdividindo-o em quatro fases: as descobertas e o conhecimento na Antiguidade, Idade Média, Renascimento e Era Contemporânea. Nessa revisão trataremos dos pensamentos incipientes da Antiguidade até a fase do pós-Renascença. Palavras chave: Anatomia , Cérebro, História ABSTRACT This article is a review of the medical literature and shows the importance of setting up a historical analysis. This knowledge is presented as an essential way of understanding the anatomy of the brain. Scientific knowledge of humanity has evolved in stages since ancient times. This temporal analysis not only allows an extremely interesting description of the evolution of scientific thought of humanity, but explains the way and the level of depth that the structures were being understood. A proper understanding of the structures and function of the central nervous system with a temporal perspective can be achieved dividing it into four phases: discovery and knowledge in Antiquity, in Middle Age, Renaissance and Contemporary Age. In this review we will discuss the incipient thoughts from Antiquity until the post-Renaissance period. Key words: Anatomy, Brain, History I ntrodução Antiguidade O primeiro relato com conotação de um tratado cirúrgico foi encontrado em um papiro egípcio transcrito há aproximadamente 2000 A.C., sendo provavelmente um compilado de notas referentes a diagnósticos e tratamentos usados pelo sumo sacerdote Imhotep (Figura 1), que teria vivido entre 2500 a 3000 A.C.. A tradução desse papiro ficou a cargo de Edwin Smith, um americano nascido em Connecticut no ano de 1822, que após ter estudado língua egípcia em Londres e Paris foi para o Egito no ano de 1858. Trabalhando como tradutor de antigos documentos egípcios por 18 anos, teve a oportunidade de acessar esse importante documento. Entretanto, ele pouco publicou sobre suas traduções, cabendo a James Henry Departamento de Neurocirurgia da Santa Casa de Londrina, Paraná, Preceptor da Liga Acadêmica de Neurocirurgia de Londrina, Paraná, Brasil Acadêmico, Liga Acadêmica de Neurocirurgia de Londrina, Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil 3 Pós Graduação em Tecnologia em Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba, Paraná, Brasil 4 Professor da Pós Graduação em Tecnologia em Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Paraná, Brasil 5 Professora Titular do Programa de Doutorado Associado UEL/UNOPAR em Ciências da Reabilitação e Professora Adjunta da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Campus Londrina, Paraná, Brasil. 1 2 Received Dec 15, 2014. Accepted Feb 3, 2015 Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1 J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014 128 Review Breastes, o primeiro egiptologista com formação acadêmica e fundador do Instituto Oriental de Chicago, a publicação do manuscrito com um ensaio preliminar em 1922, sendo a obra definitiva apresentada em 193016. Neste hieróglifo a palavra cérebro e a ideia de circunvoluções aparecem pela primeira vez. Este era formado por uma coletânea de 48 casos, sendo 27 relacionados a trauma de crânio e 6 relacionados a trauma de coluna. Sua grande importância era não consistir somente de uma coletânea casos, mas uma descrição dos achados, preconizando o tratamento e traçando considerações sobre o prognóstico de cada lesão6. Entre os relatos presentes na obra, o de número vinte desperta especial interesse, pois se trata de uma fratura penetrante no crânio em que, ao se palpar o cérebro através do osso fraturado, o paciente perdia a capacidade de falar. Essa é, provavelmente, a primeira correlação entre topografia cerebral e a função da fala. A concepção egípcia sobre as funções neurológicas não permitiu fazer a correlação da morfologia com a função, pois acreditavam ser o coração e não o cérebro a fonte do espírito, intelecto, sentimentos, controle motor e de sensações5. Paralelamente ao Império Egípcio, encontrava-se o império Persa (VI A.C.), destacando a cidade de Gondishapur, como centro cosmoplolita, fazendo intenso intercâmbio cultural principalmente com os gregos. Durante o seu apogeu era permitida a dissecção de cadáveres, possibilitando que estudos anatômicos prosperassem. Rhazes era o maior expoente da sua época, tendo escrito um livro de anatomia que foi referência por séculos, sendo o primeiro a usar o termo neuroanatomia e seus pensamentos tiveram profunda influência, principalmente para os gregos. Quando o islamismo unificou o Império Persa, esse passou a condenar a dissecção em animais e pessoas, fazendo a produção cultural entrar em colapso24. Na Grécia, principalmente entre 500-400 AC, surgem 3 importantes centros médicos: Croton, Agrigentum e Cós. O principal expoente de Croton é Alcmaeon, cujas dissecções em cadáveres relaciona o cérebro com as sensações e a cognição, deduzindo que a superioridade da inteligência humana era devido à complexidade das circunvoluções da superfície cerebral (Figura 2)3. Hipócrates é o mais ilustre personagem da ilha de Cós, sendo conhecido como o pai da Medicina. Sua principal herança foi a desmistificação dos fatores que causavam as doenças, retirandoas do campo sobrenatural e trazendo uma explicação real Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1 baseada na observação clínica. Sua teoria dos quatro humores – sangue, a bile amarela, bile negra e a fleuma – determinava que a vida era mantida pelo equilíbrio entre esses quatro elementos e o predomínio natural de um deles determinaria tipos fenotípicos diferentes. O pensamento médico baseado nessas assertivas foi influenciado por séculos15. Aristóteles era proveniente de uma família de várias gerações de médicos e discípulo de Platão. Ele introduziu o conceito de anatomia comparativa sendo esse modelo utilizado como base para todo o desenvolvimento biológico subsequente. Sua ênfase era a função, comparando o senso de significado funcional relacionado a estrutura, forma e função combinadas. Por esse conceito de estudo ele se torna o pai da anatomia comparativa4. Com a divisão de império de Alexandre Magno, coube a Ptolomeu I, seu general e pupilo de Aristóteles, a construção do grande museu de Alexandria. Essa foi considerada a maior maravilha do velho mundo, tendo sido o suporte de um regime imperial, que abrigou as condições políticas e econômicas ideais para o desenvolvimento de estudos de dissecções anatômicas25. A neuroanatomia teve seu apogeu com Herophilus (325-255 A.C.), por meio da metodologia meticulosa de dissecção e registro de mais de 600 cadáveres de condenado. Também descreveu as meninges, membranas aracnoides, os ventrículos cerebrais, a diferenciação entre tendões e os nervos e a protuberância da confluência dos seios venosos na região occipital, sendo que essa foi homenageada com o seu nome, a tórcula de Herophilus (Figura 3). Ele sugeriu ser o cérebro o local da consciência, inteligência e emoção e ainda é considerado o pai da anatomia1. Com a destruição da biblioteca de Alexandria por Júlio Cesar, finda a era do desenvolvimento neuroanatômico, perdeu-se não somente as obras produzidas nesse período como também o espírito científico que as criaram, passando as afirmações a apresentar um cunho dogmático29. Com a expansão do Império Romano e a consagração do Cristianismo como religião oficial do império (200 D.C. e 300 D.C.), a prática de dissecção humana foi se tornando cada vez mais difícil, sendo praticamente extinta durante esse período, vindo a ressurgir de maneira expressiva só no Renascimento15. J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014 129 Review Idade Média Durante esse período, em um reduto da cultura grega, na região de Pergamon, onde atualmente é a Turquia, um eminente filósofo e médico chamado Claudius Galeno (131-192 A.C.) aparece com pensamentos dogmáticos que dominaram a medicina até a renascença. Tendo sido médico do Imperador romano Marco Aurélio, pode observar e tratar feridas oriundas dos combates entre gladiadores, o que lhe proporcionou grande conhecimento anatômico. Galeno escreveu mais de 130 tratados médicos, conferindolhe grande notoriedade. Também fundamentou a teoria ventricular, um dogma sobre a fisiologia da mente onde nutrientes absorvidos pelo intestino passavam pelo fígado, e se produzia o espírito natural. Ao passar pelo ventrículo esquerdo era transformado em espírito vital, sendo direcionado pelas carótidas à base do crânio e ao se misturar com o ar inspirado, ao nível da rete mirabile, formava o espírito animal, essência das faculdades intelectuais, sendo armazenado na rete mirabile e nos ventrículos. Uma fração desse material que se encontrava na forma gasosa escaparia pelos seios aéreos do crânio e suturas; uma segunda parte, na forma líquida, escorreria pelo ventrículo anterior até a fossa pituitária, onde seria descartada pela cavidade nasal como fleuma ou muco. Essa foi a primeira tentativa de separar funções corticais por áreas. Para Galeno, seria melhor considerar a inteligência como dependente de uma porção adequada da substância, e não sobre a complexidade da composição11. Com a crescente influência da igreja, uma variação da teoria anterior foi apregoada, afirmando que a alma não teria uma sede, mas as ideias teriam localizações específicas. Os ventrículos seriam responsáveis por funções que iriam da sensação à memorização, sendo que cada cavidade ventricular responderia por uma faculdade intelectual. O primeiro par de ventrículos receberia as informações sensoriais e as analisaria, o ventrículo médio seria a sede da razão e o último ventrículo armazenaria a memória. O dogma foi denominado de teoria das três células e persistiu por séculos, sendo substituído pelas novas ideias vindas do Renascimento20. Renascimento As velhas doutrinas como a rete mirabile e a doutrina das três células, idealizada por autoridades eclesiásticas do início Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1 do cristianismo, começaram a ser desmoronadas com a reintrodução da disseção humana pelo cirurgião e anatomista Mondino de Luzzi, em Bolonha (1270-1326 D.C.). Mondino reincorporou o estudo sistemático na anatomia e a dissecção cadavérica, legado importante oriundo da escola de Alexandria. Seu trabalho não teve foco na dissecção craniana, nem questionou os preceitos tradicionais da teoria ventricular. Seu principal trabalho foi a produção de um manual de dissecção e do primeiro texto anatômico: Anathomia corporis humani , escrito em 1316, tornando-se referência no estudo anatômico para os próximos 250 anos23. Unindo filosofia e matemática, René Descartes tentou criar uma fundamentação racional para explicar como a sensação produziria uma ação. A glândula pineal seria o modulador desses mecanismos de ação voluntária por encontrar-se envolta pelo líquido ventricular que atuaria como um meio facilitador na sua propagação. O estímulo luminoso vindo da retina, passaria pelo líquido ventricular facilitador, estimulando a glândula pineal, promovendo a liberação do espírito animal. Esse conceito não teve muita aceitação por conter erros anatômicos grosseiros, mas trouxe o benefício de tentar conciliar uma visão racional aos estudos biológicos2. Os artistas renascentistas reconheceram a importância do conhecimento anatômico para poder criar mais realidade nos trabalhos que executavam, como fica evidente na obra de Leonardo Da Vinci (1472-1519). Os adventos desses novos conhecimentos estão refletidos na sua pintura (Figura 3), mostrando os nervos com conexão direta com o tecido cerebral, omitindo a participação do sistema ventricular na interpretação dos sentidos11. Essa rejeição à doutrina das células também é vista na obra de Michelangelo no teto da Capela Sistina (Figura 4). No afresco intitulado “Criação de Adão” (1511 D.C.), demonstra uma versão sobre a interpretação da criação, onde tal seria originada da mente confinada ao cérebro humano e não à teoria das células ventriculares, como era proposta pela igreja27. As mais importantes mudanças nos conceitos e no modo de ensino da anatomia devem-se a Andreas Vesalius (15141564), aclamado como o maior anatomista da renascença. Foi professor na Universidade de Pádua em 1537, lecionando anatomia e cirurgia. Seus métodos já se mostraram inovadores desde o início, sendo a disseção feita no centro de um teatro J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014 130 Review e executada pelo próprio Vesalius, dispensando o uso de cirurgiões barbeiros. A plateia era distribuída ao seu redor em diversos andares, respeitando uma hierarquia, ficando os ilustradores ao lado de Vesalius, como é mostrado na capa do seu grande livro De humani corporis fabrica (Figura 5). A extensa inclusão de ilustrações, trazendo uma nova compreensão dos textos anatômicos, associada a um maior dinamismo no aprendizado foram traços marcantes na sua maneira de ensinar anatomia18. Através de um corte transversal no nível dos átrios ventriculares demostrou que o sistema ventricular em humanos tem morfologia muito semelhante ao de alguns animais. Com essa constatação, Vesalius argumentou que não poderia ser negada a presença da alma nos animais, já que esses apresentavam os mesmos requisitos anatômicos que os seres humanos26. A Renascença viu surgir no campo da arte um novo dogma da teoria estética onde uma obra de arte é representação direta e fiel dos fenômenos naturais. Essa concepção exigia que o artista se familiarizasse com a estrutura e as propriedades físicas dos fenômenos naturais para retratá-las objetivamente e conhecesse as regras da perspectiva e da matemática a fim de obter a exatidão representativa. A Arte tornara-se científica10. Usando um método revolucionário de disseção para a época, Costanzo VarolIo (1543-1575) conseguiu a completa exteriorização do cérebro, fazendo um corte paralelo ao nível da base do crânio, separando o encéfalo da caixa craniana. Novas estruturas encobertas pelo manto cortical puderam ser descritas; entre elas a ligação do cérebro com a medula, que foi designada de ponte e posteriormente denominada ponte de VarolIo30. Thomas Willis (1621-1675), usando a técnica de VarolIo, fez um estudo detalhado da circulação da base do encéfalo, demonstrando haver uma conexão entre a circulação carotídea e vertebral, posteriormente denominada polígono de Willlis. Esse conhecimento é fundamental para compreender como os dois sistemas arteriais se sobrepõem na irrigação do cérebro, bem como as manifestações clínicas diversas que eram originadas pelos déficits de irrigação, possibilitando a descrição de várias síndromes clínicas correlacionadas à anatomia vascular7. Em seu livro clássico: “A anatomia do cérebro e nervos”, Willis (Figura 6) foi o primeiro a usar o termo neurologia14. lateral do cérebro que se iniciava próximo da órbita e que, curvando-se posterior e superiormente, se dirige tão distal quanto a origem do tronco encefálico, dividindo o cérebro em uma porção superior e uma inferior. Segundo ele: “Toda a superfície do cérebro está profundamente marcada por giro similar a circunvoluções do intestino delgado e, especialmente, por uma fissura ou hiato que começa perto da órbita. Corre posteriormente acima das têmporas até o nível onde o tronco cerebral tem a sua origem. Ele divide o cérebro em parte superior maior e, uma parte inferior menor. Esse giro se apresenta ao longo de todo o comprimento e profundidade da fissura”. Devido a esse relato anatômico seu nome foi perpetuado no meio acadêmico, traçando um paralelismo entre o nome da fissura lateral e a denominação fissura de Sylvius28. A fase das representações minuciosas da estrutura cerebral passa a dar lugar à combinação de técnicas, que visavam desvendar o seu funcionamento. Seu início foi marcado pelas ideias originais de Félix Vicq d’Azyr (1748-1794) (Figura 8). Ele tinha uma formação multidisciplinar, deixando como grande legado a descrição da neuroanatomia da face medial do cérebro. Suas descrições eram acompanhadas de correlações anátomo-funcionais e evolucionárias, estabelecendo uma conexão entre os conhecimentos usados na anatomia (a ciência da morte) com a fisiologia (a ciência da vida). A junção de conceitos anatômicos com fisiológicos abre novos campos de pesquisa22. Contradizendo as teorias holísticas dos séculos XVII a XIX sobre o funcionamento cerebral, Luigi Rolando (1773-1831) acreditava que o sistema nervoso poderia ter áreas funcionais e anatomicamente individualizadas. Seu nome está relacionado a duas importantes regiões do sistema nervoso. Num primeiro momento, constatou que apesar da variabilidade dos dois giros serem sempre constantes e transversos à fissura de Sylvius, um na região frontal e o outro na parietal, existia entre eles um sulco que também é constante. Este recebeu o nome de fissura de Rolando. Os seus conceitos contradizem o pensamento holístico e abriram caminho para uma nova teoria de organização funcional do cérebro, conferindo características topográficas para as funções cerebrais8. Em 1663, o médico e anatomista Franciscus Sylvius (16141672) (Figura 7) descreveu uma marca profunda na superfície Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1 J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014 131 Review Fase contemporânea Importantes mudanças ocorreram nessa época, tais como o desenvolvimento da imprensa por Gutemberg e o florescimento de novas ciências que possibilitaram uma propagação de informações pela Europa, como nunca visto anteriormente. Durante os 200 anos que se seguiram ao renascimento grandes alterações surgiram no campo da anatomia, fazendo com que ela se estabelecesse definitivamente como uma ciência médica19. Essa fase se inicia no século XIX e persiste até hoje, tentando descobrir como a atividade cognitiva é organizada no cérebro. Duas ideias opostas fazem parte deste contexto: as visões topográfica e equipotencial. A primeira afirma que áreas específicas do cérebro desempenham determinadas funções. Defendendo esse posicionamento temos Luigi Rolando (17731831) que afirmou ser possível o sistema nervoso ter áreas, funcional e anatomicamente, individualizadas. Seu nome encontra-se relacionado a duas importantes regiões do sistema nervoso. Num primeiro momento, constatou-se que apesar da variabilidade morfológica, havia dois giros que eram sempre constantes e transversos à fissura de Sylvius, sendo um na região frontal e o outro na parietal, existindo entre eles um sulco sempre constante. Esse sulco recebeu o nome de fissura de Rolando, sendo o complexo giral formado pelo giro précentral e pós-central, responsável pelo controle sensitivomotor do hemidimídio contralateral. Os conceitos de Rolando abriram caminho para uma nova teoria de organização funcional do cérebro, conferindo características topográficas para as funções cerebrais8. A segunda ideia afirmava que grandes partes do cérebro são igualmente envolvidas em toda atividade mental e não existe uma função específica para uma área em particular. Franz Joseph Gall (1756-1828), seu importante defensor, propôs que a organização do comportamento humano podia ser observada a partir de características faciais externas. Cada sentido é uma representação em uma parte diferente do cérebro, fazendo com que as proporções do osso subjacente reflitam a importância dessa faculdade mental e a personalidade do indivíduo17. Numa fase inicial do seu trabalho, Gall uniu-se ao anatomista Johann Gaspard Spurzheim (1776-1832). Juntos publicaram uma série de artigos sobre anatomia funcional e psicologia. Por discordar de Gall quanto à necessidade de um maior Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1 rigor científico para continuar suas afirmações, Spurzheim se separou e fundou a frenologia. Por carecerem de fundamentação científica, as afirmações das duas teorias passaram a sofrer críticas da comunidade científica. Seu principal repreensor foi Pierre Flourens (1794-1867), um respeitado catedrático de anatomia, embriologia, fisiologista e anestesia, e membro da Academia Francesa de Ciências. Apesar dos ataques, as ideias de Gall sobrevivem até os experimentos do neurologista francês Jean Baptiste Bouillaud (1796-1881), que acreditava indubitavelmente na teoria da localização, principalmente no que se referia à fala. Durante uma apresentação de suas teorias referentes à localização da fala, na Sociedade de Antropologia Francesa, Paul Broca estava presente na plateia31. Coube a Paul Broca (1824-1880), anatomista, antropologista e cirurgião, relatar em 1861 o caso do paciente Monsieur Leborgne (denominado por Broca Monsieur Tan), que havia sofrido um trauma frontal esquerdo e apresentava múltiplos problemas neurológicos associados ao acometimento da fala. O paciente permaneceu por anos com a compressão da linguagem falada intacta, mas o único som emitido, em resposta a qualquer pergunta, era uma sílaba única, tan. A autópsia revelou alterações na circunvolução frontal inferior na sua porção posterior. O caso foi apresentado à Sociedade de Antropologia Francesa em 1861. Esses achados reforçaram a premissa de que funções cognitivas poderiam ter localização específica em circunvoluções cerebrais (Figura 9), reafirmando as convicções de Bouillaud. Alguns meses depois, ele apresentou um segundo caso com as mesmas correlações clínicas e anátomopatológicas. Esses dois casos, dos senhores Leborgne e Lelong, foram essenciais no estabelecimento da conexão entre a linguagem expressa verbalmente e o giro frontal inferior esquerdo. Toda a fundamentação da moderna neurofisiologia e neurociência cognitiva é baseada nesses achados clássicos proferidos por Broca. Em sua homenagem, esse distúrbio da expressão da fala recebeu o nome de afasia de Broca, e a região do giro frontal inferior, compreendida entre a porção triangular e a opercular, passou a chamar-se área de Broca. Como parte do seu trabalho estão as correlações entre a superfície cortical com pontos referenciais no crânio12. J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014 132 Review Figura 1. Imhotep (Século XXVII AC). Extraído de http://commons.wikimedia.org/ wiki/File:Imhotep-Louvre.jpg Figura 3. Ilustração anatômica de Leonardo da Vinci. Extraído de Del Maestro RF. Leonardo da Vinci: the search for the soul. J Neurosurg 1998;89(5):874-87 11 Figura 4. Obra de Michelângelo “Criação de Adão”. Extraído de https://www. google.com.br/search?q=afresco+de+michelangelo Figura 2. A. Busto de Alcmaeon de Croton. B. Representação dos Encéfalos utilizados para demonstração de suas teorias. Extraído de http://hypescience. com/veja-o-tamanho-e-peso-do-cerebro-humano-em-comparacao-com-outrosanimais/ Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1 J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014 133 Review Figura 7. Figura e Obra de Franciscus Sylvius (1614 – 1672). Extraído de http:// en.wikipedia.org/wiki/Franciscus_Sylvius Figura 5. Ilustração do método de ensino anatômico proposto por Andreas Vesalius. De Humani Corporis Fabrica. Extraído de http://www.vesaliusfabrica.com Figura 8. Desenho do cérebro humano seccionado ao longo do plano sagital, por Félix Vicq d’Azyr. Extraído de Parent A. Felix Vicq d’Azyr: anatomy, medicine and revolution 22 Figura 6. Foto de Thomas Willis (1621-1675). Extraído de https://www.google. com.br/search?q=imagensde Thomas Willis Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1 Figura 9. Imagem das lesões topográficas descritas por Paul Broca. A. Sr. Leborgne. B. Sr. Lelong. Extraído de http://brain.oxfordjournals.org/content/130/5/1432/ F3.large.jpg J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014 134 Review Considerações finais Aos trabalhos de Broca seguem-se correlações clínicas formadas por Charcot e Gower que, por sua vez, abrem caminho para Ferrier iniciar seus experimentos com estimulação cortical e, com isso, estabelecer uma nova fase na ciência neural. Correlações anátomo-funcionais promoveram uma compressão mais acurada das doenças neurológicas, produzindo diversas descrições clínicas baseadas em achados anátomo-topográficos e suas correlações funcionais. Toda a fundamentação da neurofisiologia e de neurociência cognitiva foi baseada inicialmente nesses achados clássicos proferidos por Broca. fazendo com que a anatomia readquira a sua importância na formulação das hipóteses neurofisiológicas e reintegre-se como ferramenta essencial nas áreas de pesquisa. Este é assunto é igualmente instigante, entretanto, torna-se conteúdo para um próximo artigo histórico que promoverá um entendimento da evolução da neurociência contemporânea. A Tabela 1 ilustra o esquema histórico em forma de fluxograma que sintetiza a evolução do conhecimento contido no período temporal abordado neste artigo. Tabela 1. Sequência da evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico da antiguidade até a fase contemporânea. A maioria dos avanços feitos até esse momento foram obtidos pela análise de pequenas séries de paciente, com sintomas similares. A anatomia macroscópica já não era suficiente para explicar a complexidade das disfunções neuropsicológicas. Pela ausência de suporte neuroanatômico, a abordagem psicológica passou a ser feita com análises de grupos de indivíduos normais em diferentes tratamentos experimentais, com efeitos mensurados segundo protocolos padronizados, e posteriormente validados por métodos estatísticos, como a análise de variâncias. Com isso, ideias de associações topográficas gradualmente foram esquecidas. A neuropsicologia trabalhava nessa época procurando uma compressão das lesões cerebrais, tentando entender quais as repercussões que essas produziam sobre as funções corticais superiores. A neuropsicologia carecia de ferramentas para poder confirmar suas hipóteses, o que só se tornou possível com o advento dos modernos exames de neuroimagem21. A ciência neural surgiu há cerca de vinte séculos com objetivo de estudar o neurônio, seus elementos estruturais e funcionais, com apelo topográfico e funcional predominantemente observacional na sua fundamentação. Abre-se espaço à neurociência contemporânea, que tem suas origens há aproximadamente cinquenta anos, sendo o resultado dos avanços da neuroimagem acrescidos à neuroanatomia. A neurociência moderna é tanto transdisciplinar como interdisciplinar, somando conceitos biofísicos, cálculos biomatemáticos e sistemas de informação para constituir a base da sua fundamentação13. Os avanços na metodologia das neuroimagens fecham a lacuna existente entre a anatomia e os modelos neurofisiológicos, Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1 J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014 135 Review R eferências 18. Kickhöfel EHP. 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