- Academia Brasileira de Neurocirurgia

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Review
Evolução Cronológica do Conhecimento Neuroanatômico: da
Antiguidade ao pós-Renascimento - Parte 1
Chronological Evolution of Neuroanatomical Knowledge: From Antiquity to post-Renaissance
Part 1
Sergio Murilo Georgeto1,3
Carlos Alexandre Martins Zicarelli1,3
Luiz Roberto Aguiar4
Munir Antonio Gariba 4
Karen Barros Parron Fernandes 5
Alekcey Glayzer Gavioli Colione 3
Francisco Spessatto Pesente 2
Milena Gerke Sampaio 2
RESUMO
O presente artigo, sob a forma de revisão da literatura médica, revela a importância de se estabelecer uma análise histórica,
na medida em que tal conhecimento apresenta-se como essencial para o entendimento aprofundado da anatomia do encéfalo.
O conhecimento científico da humanidade evoluiu em fases, desde a antiguidade. Essa análise temporal, não só permite uma
descrição extremamente interessante da evolução do pensamento científico da humanidade, como nos esclarece a maneira e
o nível de profundidade com que as estruturas foram sendo compreendidas. Um adequado entendimento das estruturas e da
função do sistema nervoso central com uma perspectiva temporal pode ser conseguido subdividindo-o em quatro fases: as
descobertas e o conhecimento na Antiguidade, Idade Média, Renascimento e Era Contemporânea. Nessa revisão trataremos dos
pensamentos incipientes da Antiguidade até a fase do pós-Renascença.
Palavras chave: Anatomia , Cérebro, História
ABSTRACT
This article is a review of the medical literature and shows the importance of setting up a historical analysis. This knowledge
is presented as an essential way of understanding the anatomy of the brain. Scientific knowledge of humanity has evolved
in stages since ancient times. This temporal analysis not only allows an extremely interesting description of the evolution of
scientific thought of humanity, but explains the way and the level of depth that the structures were being understood. A proper
understanding of the structures and function of the central nervous system with a temporal perspective can be achieved dividing
it into four phases: discovery and knowledge in Antiquity, in Middle Age, Renaissance and Contemporary Age. In this review we
will discuss the incipient thoughts from Antiquity until the post-Renaissance period.
Key words: Anatomy, Brain, History
I ntrodução
Antiguidade
O primeiro relato com conotação de um tratado cirúrgico foi
encontrado em um papiro egípcio transcrito há aproximadamente
2000 A.C., sendo provavelmente um compilado de notas
referentes a diagnósticos e tratamentos usados pelo sumo
sacerdote Imhotep (Figura 1), que teria vivido entre 2500 a
3000 A.C.. A tradução desse papiro ficou a cargo de Edwin
Smith, um americano nascido em Connecticut no ano de 1822,
que após ter estudado língua egípcia em Londres e Paris foi
para o Egito no ano de 1858. Trabalhando como tradutor de
antigos documentos egípcios por 18 anos, teve a oportunidade
de acessar esse importante documento. Entretanto, ele pouco
publicou sobre suas traduções, cabendo a James Henry
Departamento de Neurocirurgia da Santa Casa de Londrina, Paraná, Preceptor da Liga Acadêmica de Neurocirurgia de Londrina, Paraná, Brasil
Acadêmico, Liga Acadêmica de Neurocirurgia de Londrina, Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil
3
Pós Graduação em Tecnologia em Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba, Paraná, Brasil
4
Professor da Pós Graduação em Tecnologia em Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Paraná, Brasil
5
Professora Titular do Programa de Doutorado Associado UEL/UNOPAR em Ciências da Reabilitação e Professora Adjunta da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUC-PR), Campus Londrina, Paraná, Brasil.
1
2
Received Dec 15, 2014. Accepted Feb 3, 2015
Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1
J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014
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Breastes, o primeiro egiptologista com formação acadêmica
e fundador do Instituto Oriental de Chicago, a publicação do
manuscrito com um ensaio preliminar em 1922, sendo a obra
definitiva apresentada em 193016. Neste hieróglifo a palavra
cérebro e a ideia de circunvoluções aparecem pela primeira
vez. Este era formado por uma coletânea de 48 casos, sendo
27 relacionados a trauma de crânio e 6 relacionados a trauma
de coluna. Sua grande importância era não consistir somente
de uma coletânea casos, mas uma descrição dos achados,
preconizando o tratamento e traçando considerações sobre o
prognóstico de cada lesão6.
Entre os relatos presentes na obra, o de número vinte desperta
especial interesse, pois se trata de uma fratura penetrante no
crânio em que, ao se palpar o cérebro através do osso fraturado,
o paciente perdia a capacidade de falar. Essa é, provavelmente,
a primeira correlação entre topografia cerebral e a função da
fala. A concepção egípcia sobre as funções neurológicas não
permitiu fazer a correlação da morfologia com a função, pois
acreditavam ser o coração e não o cérebro a fonte do espírito,
intelecto, sentimentos, controle motor e de sensações5.
Paralelamente ao Império Egípcio, encontrava-se o império
Persa (VI A.C.), destacando a cidade de Gondishapur, como
centro cosmoplolita, fazendo intenso intercâmbio cultural
principalmente com os gregos. Durante o seu apogeu era
permitida a dissecção de cadáveres, possibilitando que estudos
anatômicos prosperassem. Rhazes era o maior expoente da sua
época, tendo escrito um livro de anatomia que foi referência
por séculos, sendo o primeiro a usar o termo neuroanatomia e
seus pensamentos tiveram profunda influência, principalmente
para os gregos. Quando o islamismo unificou o Império Persa,
esse passou a condenar a dissecção em animais e pessoas,
fazendo a produção cultural entrar em colapso24.
Na Grécia, principalmente entre 500-400 AC, surgem 3
importantes centros médicos: Croton, Agrigentum e Cós. O
principal expoente de Croton é Alcmaeon, cujas dissecções em
cadáveres relaciona o cérebro com as sensações e a cognição,
deduzindo que a superioridade da inteligência humana era
devido à complexidade das circunvoluções da superfície
cerebral (Figura 2)3.
Hipócrates é o mais ilustre personagem da ilha de Cós, sendo
conhecido como o pai da Medicina. Sua principal herança foi a
desmistificação dos fatores que causavam as doenças, retirandoas do campo sobrenatural e trazendo uma explicação real
Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1
baseada na observação clínica. Sua teoria dos quatro humores
– sangue, a bile amarela, bile negra e a fleuma – determinava
que a vida era mantida pelo equilíbrio entre esses quatro
elementos e o predomínio natural de um deles determinaria
tipos fenotípicos diferentes. O pensamento médico baseado
nessas assertivas foi influenciado por séculos15.
Aristóteles era proveniente de uma família de várias gerações
de médicos e discípulo de Platão. Ele introduziu o conceito
de anatomia comparativa sendo esse modelo utilizado como
base para todo o desenvolvimento biológico subsequente.
Sua ênfase era a função, comparando o senso de significado
funcional relacionado a estrutura, forma e função combinadas.
Por esse conceito de estudo ele se torna o pai da anatomia
comparativa4.
Com a divisão de império de Alexandre Magno, coube a
Ptolomeu I, seu general e pupilo de Aristóteles, a construção
do grande museu de Alexandria. Essa foi considerada a maior
maravilha do velho mundo, tendo sido o suporte de um regime
imperial, que abrigou as condições políticas e econômicas
ideais para o desenvolvimento de estudos de dissecções
anatômicas25.
A neuroanatomia teve seu apogeu com Herophilus (325-255
A.C.), por meio da metodologia meticulosa de dissecção e
registro de mais de 600 cadáveres de condenado. Também
descreveu as meninges, membranas aracnoides, os ventrículos
cerebrais, a diferenciação entre tendões e os nervos e a
protuberância da confluência dos seios venosos na região
occipital, sendo que essa foi homenageada com o seu nome,
a tórcula de Herophilus (Figura 3). Ele sugeriu ser o cérebro
o local da consciência, inteligência e emoção e ainda é
considerado o pai da anatomia1.
Com a destruição da biblioteca de Alexandria por Júlio Cesar,
finda a era do desenvolvimento neuroanatômico, perdeu-se
não somente as obras produzidas nesse período como também
o espírito científico que as criaram, passando as afirmações a
apresentar um cunho dogmático29.
Com a expansão do Império Romano e a consagração do
Cristianismo como religião oficial do império (200 D.C. e 300
D.C.), a prática de dissecção humana foi se tornando cada vez
mais difícil, sendo praticamente extinta durante esse período,
vindo a ressurgir de maneira expressiva só no Renascimento15.
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Idade Média
Durante esse período, em um reduto da cultura grega, na região
de Pergamon, onde atualmente é a Turquia, um eminente
filósofo e médico chamado Claudius Galeno (131-192 A.C.)
aparece com pensamentos dogmáticos que dominaram a
medicina até a renascença. Tendo sido médico do Imperador
romano Marco Aurélio, pode observar e tratar feridas oriundas
dos combates entre gladiadores, o que lhe proporcionou grande
conhecimento anatômico.
Galeno escreveu mais de 130 tratados médicos, conferindolhe grande notoriedade. Também fundamentou a teoria
ventricular, um dogma sobre a fisiologia da mente onde
nutrientes absorvidos pelo intestino passavam pelo fígado, e se
produzia o espírito natural. Ao passar pelo ventrículo esquerdo
era transformado em espírito vital, sendo direcionado pelas
carótidas à base do crânio e ao se misturar com o ar inspirado,
ao nível da rete mirabile, formava o espírito animal, essência
das faculdades intelectuais, sendo armazenado na rete mirabile
e nos ventrículos. Uma fração desse material que se encontrava
na forma gasosa escaparia pelos seios aéreos do crânio e
suturas; uma segunda parte, na forma líquida, escorreria pelo
ventrículo anterior até a fossa pituitária, onde seria descartada
pela cavidade nasal como fleuma ou muco.
Essa foi a primeira tentativa de separar funções corticais por
áreas. Para Galeno, seria melhor considerar a inteligência
como dependente de uma porção adequada da substância, e
não sobre a complexidade da composição11.
Com a crescente influência da igreja, uma variação da teoria
anterior foi apregoada, afirmando que a alma não teria uma
sede, mas as ideias teriam localizações específicas. Os
ventrículos seriam responsáveis por funções que iriam da
sensação à memorização, sendo que cada cavidade ventricular
responderia por uma faculdade intelectual. O primeiro par de
ventrículos receberia as informações sensoriais e as analisaria,
o ventrículo médio seria a sede da razão e o último ventrículo
armazenaria a memória. O dogma foi denominado de teoria
das três células e persistiu por séculos, sendo substituído pelas
novas ideias vindas do Renascimento20.
Renascimento
As velhas doutrinas como a rete mirabile e a doutrina das
três células, idealizada por autoridades eclesiásticas do início
Georgeto SM, Zicarelli CAM, Aguiar LR, Gariba MA, Fernandes KBP, Coline AGG, Pesente FS, Sampaio MG. Evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico: da antiguidade ao pós-renascimento - Parte 1
do cristianismo, começaram a ser desmoronadas com a
reintrodução da disseção humana pelo cirurgião e anatomista
Mondino de Luzzi, em Bolonha (1270-1326 D.C.).
Mondino reincorporou o estudo sistemático na anatomia e a
dissecção cadavérica, legado importante oriundo da escola de
Alexandria. Seu trabalho não teve foco na dissecção craniana,
nem questionou os preceitos tradicionais da teoria ventricular.
Seu principal trabalho foi a produção de um manual de
dissecção e do primeiro texto anatômico: Anathomia corporis
humani , escrito em 1316, tornando-se referência no estudo
anatômico para os próximos 250 anos23.
Unindo filosofia e matemática, René Descartes tentou criar
uma fundamentação racional para explicar como a sensação
produziria uma ação. A glândula pineal seria o modulador
desses mecanismos de ação voluntária por encontrar-se envolta
pelo líquido ventricular que atuaria como um meio facilitador
na sua propagação. O estímulo luminoso vindo da retina,
passaria pelo líquido ventricular facilitador, estimulando a
glândula pineal, promovendo a liberação do espírito animal.
Esse conceito não teve muita aceitação por conter erros
anatômicos grosseiros, mas trouxe o benefício de tentar
conciliar uma visão racional aos estudos biológicos2.
Os artistas renascentistas reconheceram a importância do
conhecimento anatômico para poder criar mais realidade nos
trabalhos que executavam, como fica evidente na obra de
Leonardo Da Vinci (1472-1519). Os adventos desses novos
conhecimentos estão refletidos na sua pintura (Figura 3),
mostrando os nervos com conexão direta com o tecido cerebral,
omitindo a participação do sistema ventricular na interpretação
dos sentidos11.
Essa rejeição à doutrina das células também é vista na obra de
Michelangelo no teto da Capela Sistina (Figura 4). No afresco
intitulado “Criação de Adão” (1511 D.C.), demonstra uma
versão sobre a interpretação da criação, onde tal seria originada
da mente confinada ao cérebro humano e não à teoria das
células ventriculares, como era proposta pela igreja27.
As mais importantes mudanças nos conceitos e no modo de
ensino da anatomia devem-se a Andreas Vesalius (15141564), aclamado como o maior anatomista da renascença.
Foi professor na Universidade de Pádua em 1537, lecionando
anatomia e cirurgia. Seus métodos já se mostraram inovadores
desde o início, sendo a disseção feita no centro de um teatro
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e executada pelo próprio Vesalius, dispensando o uso de
cirurgiões barbeiros. A plateia era distribuída ao seu redor
em diversos andares, respeitando uma hierarquia, ficando os
ilustradores ao lado de Vesalius, como é mostrado na capa
do seu grande livro De humani corporis fabrica (Figura
5). A extensa inclusão de ilustrações, trazendo uma nova
compreensão dos textos anatômicos, associada a um maior
dinamismo no aprendizado foram traços marcantes na sua
maneira de ensinar anatomia18. Através de um corte transversal
no nível dos átrios ventriculares demostrou que o sistema
ventricular em humanos tem morfologia muito semelhante ao
de alguns animais. Com essa constatação, Vesalius argumentou
que não poderia ser negada a presença da alma nos animais, já
que esses apresentavam os mesmos requisitos anatômicos que
os seres humanos26.
A Renascença viu surgir no campo da arte um novo dogma da
teoria estética onde uma obra de arte é representação direta
e fiel dos fenômenos naturais. Essa concepção exigia que o
artista se familiarizasse com a estrutura e as propriedades
físicas dos fenômenos naturais para retratá-las objetivamente e
conhecesse as regras da perspectiva e da matemática a fim de
obter a exatidão representativa. A Arte tornara-se científica10.
Usando um método revolucionário de disseção para a
época, Costanzo VarolIo (1543-1575) conseguiu a completa
exteriorização do cérebro, fazendo um corte paralelo ao nível
da base do crânio, separando o encéfalo da caixa craniana.
Novas estruturas encobertas pelo manto cortical puderam ser
descritas; entre elas a ligação do cérebro com a medula, que
foi designada de ponte e posteriormente denominada ponte de
VarolIo30.
Thomas Willis (1621-1675), usando a técnica de VarolIo,
fez um estudo detalhado da circulação da base do encéfalo,
demonstrando haver uma conexão entre a circulação carotídea e
vertebral, posteriormente denominada polígono de Willlis. Esse
conhecimento é fundamental para compreender como os dois
sistemas arteriais se sobrepõem na irrigação do cérebro, bem
como as manifestações clínicas diversas que eram originadas
pelos déficits de irrigação, possibilitando a descrição de várias
síndromes clínicas correlacionadas à anatomia vascular7. Em
seu livro clássico: “A anatomia do cérebro e nervos”, Willis
(Figura 6) foi o primeiro a usar o termo neurologia14.
lateral do cérebro que se iniciava próximo da órbita e que,
curvando-se posterior e superiormente, se dirige tão distal
quanto a origem do tronco encefálico, dividindo o cérebro
em uma porção superior e uma inferior. Segundo ele: “Toda
a superfície do cérebro está profundamente marcada por giro
similar a circunvoluções do intestino delgado e, especialmente,
por uma fissura ou hiato que começa perto da órbita. Corre
posteriormente acima das têmporas até o nível onde o tronco
cerebral tem a sua origem. Ele divide o cérebro em parte
superior maior e, uma parte inferior menor. Esse giro se
apresenta ao longo de todo o comprimento e profundidade da
fissura”.
Devido a esse relato anatômico seu nome foi perpetuado no
meio acadêmico, traçando um paralelismo entre o nome da
fissura lateral e a denominação fissura de Sylvius28.
A fase das representações minuciosas da estrutura cerebral
passa a dar lugar à combinação de técnicas, que visavam
desvendar o seu funcionamento. Seu início foi marcado pelas
ideias originais de Félix Vicq d’Azyr (1748-1794) (Figura
8). Ele tinha uma formação multidisciplinar, deixando como
grande legado a descrição da neuroanatomia da face medial do
cérebro. Suas descrições eram acompanhadas de correlações
anátomo-funcionais e evolucionárias, estabelecendo uma
conexão entre os conhecimentos usados na anatomia (a ciência
da morte) com a fisiologia (a ciência da vida). A junção de
conceitos anatômicos com fisiológicos abre novos campos de
pesquisa22.
Contradizendo as teorias holísticas dos séculos XVII a XIX
sobre o funcionamento cerebral, Luigi Rolando (1773-1831)
acreditava que o sistema nervoso poderia ter áreas funcionais e
anatomicamente individualizadas. Seu nome está relacionado
a duas importantes regiões do sistema nervoso. Num primeiro
momento, constatou que apesar da variabilidade dos dois
giros serem sempre constantes e transversos à fissura de
Sylvius, um na região frontal e o outro na parietal, existia
entre eles um sulco que também é constante. Este recebeu o
nome de fissura de Rolando. Os seus conceitos contradizem o
pensamento holístico e abriram caminho para uma nova teoria
de organização funcional do cérebro, conferindo características
topográficas para as funções cerebrais8.
Em 1663, o médico e anatomista Franciscus Sylvius (16141672) (Figura 7) descreveu uma marca profunda na superfície
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Fase contemporânea
Importantes mudanças ocorreram nessa época, tais como o
desenvolvimento da imprensa por Gutemberg e o florescimento
de novas ciências que possibilitaram uma propagação de
informações pela Europa, como nunca visto anteriormente.
Durante os 200 anos que se seguiram ao renascimento grandes
alterações surgiram no campo da anatomia, fazendo com
que ela se estabelecesse definitivamente como uma ciência
médica19.
Essa fase se inicia no século XIX e persiste até hoje, tentando
descobrir como a atividade cognitiva é organizada no cérebro.
Duas ideias opostas fazem parte deste contexto: as visões
topográfica e equipotencial. A primeira afirma que áreas
específicas do cérebro desempenham determinadas funções.
Defendendo esse posicionamento temos Luigi Rolando (17731831) que afirmou ser possível o sistema nervoso ter áreas,
funcional e anatomicamente, individualizadas. Seu nome
encontra-se relacionado a duas importantes regiões do sistema
nervoso.
Num primeiro momento, constatou-se que apesar da
variabilidade morfológica, havia dois giros que eram sempre
constantes e transversos à fissura de Sylvius, sendo um na
região frontal e o outro na parietal, existindo entre eles um
sulco sempre constante. Esse sulco recebeu o nome de fissura
de Rolando, sendo o complexo giral formado pelo giro précentral e pós-central, responsável pelo controle sensitivomotor do hemidimídio contralateral. Os conceitos de Rolando
abriram caminho para uma nova teoria de organização
funcional do cérebro, conferindo características topográficas
para as funções cerebrais8.
A segunda ideia afirmava que grandes partes do cérebro são
igualmente envolvidas em toda atividade mental e não existe
uma função específica para uma área em particular. Franz
Joseph Gall (1756-1828), seu importante defensor, propôs que
a organização do comportamento humano podia ser observada
a partir de características faciais externas. Cada sentido é uma
representação em uma parte diferente do cérebro, fazendo com
que as proporções do osso subjacente reflitam a importância
dessa faculdade mental e a personalidade do indivíduo17.
Numa fase inicial do seu trabalho, Gall uniu-se ao anatomista
Johann Gaspard Spurzheim (1776-1832). Juntos publicaram
uma série de artigos sobre anatomia funcional e psicologia.
Por discordar de Gall quanto à necessidade de um maior
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rigor científico para continuar suas afirmações, Spurzheim se
separou e fundou a frenologia. Por carecerem de fundamentação
científica, as afirmações das duas teorias passaram a sofrer
críticas da comunidade científica. Seu principal repreensor
foi Pierre Flourens (1794-1867), um respeitado catedrático
de anatomia, embriologia, fisiologista e anestesia, e membro
da Academia Francesa de Ciências. Apesar dos ataques, as
ideias de Gall sobrevivem até os experimentos do neurologista
francês Jean Baptiste Bouillaud (1796-1881), que acreditava
indubitavelmente na teoria da localização, principalmente no
que se referia à fala. Durante uma apresentação de suas teorias
referentes à localização da fala, na Sociedade de Antropologia
Francesa, Paul Broca estava presente na plateia31.
Coube a Paul Broca (1824-1880), anatomista, antropologista
e cirurgião, relatar em 1861 o caso do paciente Monsieur
Leborgne (denominado por Broca Monsieur Tan), que havia
sofrido um trauma frontal esquerdo e apresentava múltiplos
problemas neurológicos associados ao acometimento da
fala. O paciente permaneceu por anos com a compressão
da linguagem falada intacta, mas o único som emitido, em
resposta a qualquer pergunta, era uma sílaba única, tan. A
autópsia revelou alterações na circunvolução frontal inferior
na sua porção posterior.
O caso foi apresentado à Sociedade de Antropologia Francesa
em 1861. Esses achados reforçaram a premissa de que
funções cognitivas poderiam ter localização específica em
circunvoluções cerebrais (Figura 9), reafirmando as convicções
de Bouillaud. Alguns meses depois, ele apresentou um
segundo caso com as mesmas correlações clínicas e anátomopatológicas.
Esses dois casos, dos senhores Leborgne e Lelong, foram
essenciais no estabelecimento da conexão entre a linguagem
expressa verbalmente e o giro frontal inferior esquerdo. Toda
a fundamentação da moderna neurofisiologia e neurociência
cognitiva é baseada nesses achados clássicos proferidos por
Broca. Em sua homenagem, esse distúrbio da expressão da fala
recebeu o nome de afasia de Broca, e a região do giro frontal
inferior, compreendida entre a porção triangular e a opercular,
passou a chamar-se área de Broca. Como parte do seu trabalho
estão as correlações entre a superfície cortical com pontos
referenciais no crânio12.
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Figura 1. Imhotep (Século XXVII AC). Extraído de http://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Imhotep-Louvre.jpg
Figura 3. Ilustração anatômica de Leonardo da Vinci. Extraído de Del Maestro RF.
Leonardo da Vinci: the search for the soul. J Neurosurg 1998;89(5):874-87 11
Figura 4. Obra de Michelângelo “Criação de Adão”. Extraído de https://www.
google.com.br/search?q=afresco+de+michelangelo
Figura 2. A. Busto de Alcmaeon de Croton. B. Representação dos Encéfalos
utilizados para demonstração de suas teorias. Extraído de http://hypescience.
com/veja-o-tamanho-e-peso-do-cerebro-humano-em-comparacao-com-outrosanimais/
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Figura 7. Figura e Obra de Franciscus Sylvius (1614 – 1672). Extraído de http://
en.wikipedia.org/wiki/Franciscus_Sylvius
Figura 5. Ilustração do método de ensino anatômico proposto por Andreas
Vesalius. De Humani Corporis Fabrica. Extraído de http://www.vesaliusfabrica.com
Figura 8. Desenho do cérebro humano seccionado ao longo do plano sagital, por
Félix Vicq d’Azyr. Extraído de Parent A. Felix Vicq d’Azyr: anatomy, medicine and
revolution 22
Figura 6. Foto de Thomas Willis (1621-1675). Extraído de https://www.google.
com.br/search?q=imagensde Thomas Willis
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Figura 9. Imagem das lesões topográficas descritas por Paul Broca. A. Sr. Leborgne.
B. Sr. Lelong. Extraído de http://brain.oxfordjournals.org/content/130/5/1432/
F3.large.jpg
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Considerações finais
Aos trabalhos de Broca seguem-se correlações clínicas
formadas por Charcot e Gower que, por sua vez, abrem caminho
para Ferrier iniciar seus experimentos com estimulação cortical
e, com isso, estabelecer uma nova fase na ciência neural.
Correlações anátomo-funcionais promoveram uma compressão
mais acurada das doenças neurológicas, produzindo diversas
descrições clínicas baseadas em achados anátomo-topográficos
e suas correlações funcionais. Toda a fundamentação da
neurofisiologia e de neurociência cognitiva foi baseada
inicialmente nesses achados clássicos proferidos por Broca.
fazendo com que a anatomia readquira a sua importância na
formulação das hipóteses neurofisiológicas e reintegre-se
como ferramenta essencial nas áreas de pesquisa.
Este é assunto é igualmente instigante, entretanto, torna-se
conteúdo para um próximo artigo histórico que promoverá um
entendimento da evolução da neurociência contemporânea.
A Tabela 1 ilustra o esquema histórico em forma de fluxograma
que sintetiza a evolução do conhecimento contido no período
temporal abordado neste artigo.
Tabela 1. Sequência da evolução cronológica do conhecimento neuroanatômico
da antiguidade até a fase contemporânea.
A maioria dos avanços feitos até esse momento foram obtidos
pela análise de pequenas séries de paciente, com sintomas
similares. A anatomia macroscópica já não era suficiente para
explicar a complexidade das disfunções neuropsicológicas.
Pela ausência de suporte neuroanatômico, a abordagem
psicológica passou a ser feita com análises de grupos de
indivíduos normais em diferentes tratamentos experimentais,
com efeitos mensurados segundo protocolos padronizados,
e posteriormente validados por métodos estatísticos, como
a análise de variâncias. Com isso, ideias de associações
topográficas gradualmente foram esquecidas.
A neuropsicologia trabalhava nessa época procurando uma
compressão das lesões cerebrais, tentando entender quais as
repercussões que essas produziam sobre as funções corticais
superiores. A neuropsicologia carecia de ferramentas para
poder confirmar suas hipóteses, o que só se tornou possível
com o advento dos modernos exames de neuroimagem21.
A ciência neural surgiu há cerca de vinte séculos com objetivo
de estudar o neurônio, seus elementos estruturais e funcionais,
com apelo topográfico e funcional predominantemente
observacional na sua fundamentação. Abre-se espaço à
neurociência contemporânea, que tem suas origens há
aproximadamente cinquenta anos, sendo o resultado dos
avanços da neuroimagem acrescidos à neuroanatomia.
A neurociência moderna é tanto transdisciplinar como
interdisciplinar, somando conceitos biofísicos, cálculos
biomatemáticos e sistemas de informação para constituir a
base da sua fundamentação13.
Os avanços na metodologia das neuroimagens fecham a lacuna
existente entre a anatomia e os modelos neurofisiológicos,
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Corresponding Author
Sergio Murilo Georgeto
Av Bandeirantes, 476, Londrina, Paraná, Brazil
Zip code: 86020-620
E-mail: [email protected]
The authors declare no conflict of interest
J Bras Neurocirurg 25 (2): 127 - 135, 2014
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